terça-feira, 30 de agosto de 2022

Novidades em Streaming - Red: Crescer É Uma Fera (Turning Red)

De: Domee Shi. Com Rosalie Chiang, Sandra Oh e James Hong. Animação / Aventura, EUA, 2021, 99 minutos.

Vamos combinar que se há algo que a Pixar faz com competência são as histórias sobre assuntos diversos que, em muitos casos, se amparam em metáforas inteligentes que buscam facilitar a compreensão dos pequenos. Como falar por exemplo de luto (Viva: A Vida É Uma Festa), memória e espiritualidade (Soul), sentimentos (Divertida Mente), aceitação das diferenças (Luca) e amadurecimento (Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica), entre outros, mas sem pesar a mão? Em Red: Crescer É Uma Fera (Turning Red) a alegoria é quase óbvia: prestes a entrar na puberdade, a adolescente Mei-Mei (Rosalie Chiang) se "vende" como uma jovem independente e confiante, capaz de tomar as próprias decisões. Ou ao menos em partes, já que dentro de casa ela é bastante submissa à mãe Ming (Sandra Oh), a quem auxilia na recepção de turistas interessados na cultura ancestral chinesa, da qual ela descende - a trama se passa no Canadá, no ano de 2002.

Em certo dia, Mei-Mei se vê diante de um evento quase kafkiano ao acordar transformada em um panda vermelho gigante. Sim, a pequena garotinha de apenas 13 anos assiste às mudanças corporais que estão por acontecer - bem como a explosão de hormônios que acarretará em mudanças de humor, em indisposições com a família, em dúvidas e em incertezas - de forma quase literal. Enquanto à mãe se esforça em ampará-la física e emocionalmente (e com absorventes) de uma forma quase exagerada, a protagonista vai se desgarrando da saia da genitora a cada nova aparição do panda (que vai e vem de acordo com o estado de espírito da adolescente). E tudo se intensificará quando a jovem passar a ser governada por um certo senso de autonomia - as novas vontades envolverão desde paixões adolescentes que emergem em sequência a novos interesses, como o de ir no show de uma boy band fictícia chamada 4 Town.



De forma paralela a esse contexto de descobertas, de vida escolar, de amizades, de primeiros amores e de dificuldades nas relações familiares, Mei Mei ainda precisará lidar com o fato de que a transformação em panda envolve uma espécie de herança mágica de uma das ancestrais da família, que se transformava na figura gigante e peluda como forma de proteger seu povo - com a "feitiçaria" tendo sigo propagada de geração em geração até chegar a Mei Mei. E a única forma de ela se livrar do fenômeno envolve a próxima lua cheia vermelha, quando um ritual possibilitará encapsular a fera. Só que, até lá, ainda haverá um mês pela frente - com o show dos 4 Town no meio do caminho (uma apresentação que Mei Mei e suas amigas somente poderão ir driblando a repressora e preocupada senhora Ming). Com criatividade, as meninas utilizarão a própria criatura para conseguir o dinheiro para o espetáculo e, bom, a gente já sabe que lá pelas tantas a coisas vai desandar em meio a estes conflitos todos.

De forma criativa, a diretora Domee Chi utiliza bem a sugestão na hora de naturalizar as transformações adolescentes - e os "monstrinhos" interiores que costumam vir acompanhados destas. E, lá pelas tantas, a inevitável pergunta aparece: será que é o certo se livrar das nossas feras particulares? Afinal de contas, somos seres humanos cheios de defeitos, virtudes, erros e acertos, medos e anseios - e as descobertas feitas por Mei Mei nesse contexto tornam Red: Crescer É Uma Fera uma parábola poderosa sobre sermos nós mesmos, leais aos nossos desejos, e nunca subservientes a esta ou aquela convenção social. Quebrar os paradigmas familiares, desafiar, perder o controle das coisas aqui e ali, dançar, brincar, viver é o que dá cor a nossa existência. E esse rompimento simbólico possui uma mensagem embutida de que jamais devemos suprimir nossas vontades. Ainda mais se você for uma mulher, jovem, de uma família tradicional. Domee Chi já havia encantado o mundo com Bao, seu curta-metragem vencedor do Oscar de 2018 que, de alguma forma, tratava mais ou menos do mesmo assunto. Aqui, ela acerta em cheio ao apresentar uma reflexão valiosa em uma animação cheia de coragem, bastante espirituosa e muito bem feita tecnicamente. Vale demais.

Nota: 8,5


Na Espera - Ruído Branco (Filme)

Um dos clássicos da literatura moderna norte-americana, o ótimo Ruído Branco (White Noise) finalmente teve o primeiro teaser da adaptação de Noah Baumbach (Frances Ha, História de Um Casamento). E, sinceramente, o trailer entrega pouco sobre a trama da família típica dos Estados Unidos que é surpreendida pelo vazamento de uma perigosa substância química na pequena cidade em que vivem, sendo obrigados a evacuar o local. Na volta e na tentativa de reestabelecer algum tipo de normalidade diante do ocorrido, o professor Jack (Adam Driver), um estudioso de Hitler, e sua esposa Babette (Greta Gerwig) se deparam com questões contemporâneas diversas, como medo da morte, superação, busca por felicidade e usos da tecnologia.


Por já ter lido o livro de Don DeLillo afirmo a vocês que esta pode ser uma boa experiência antes de encarar a produção da Netflix que, a princípio, tem data de estreia prevista para o dia 29 de dezembro. Complexa, a obra apela a um certo existencialismo filosófico ao divagar sobre temas tão profundos, em uma sociedade tão cheia de incertezas como a que vivemos. Ah, e ainda é cedo pra falar em indicações ao Oscar, mas na bolsa de apostas o filme surge com força nas categorias de Roteiro Adaptado, Ator, Diretor e até na principal. A expectativa é alta e, por aqui, já estamos Na Espera!


segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Tesouros Cinéfilos - 10 Horas Até o Paraíso (10 Timer til Paradis)

De: Mads Matthiesen. Com Kim Kold, Elsebeth Steenloft e Lamaiporn Sangmanee Hougaard. Drama, Dinamarca, 2012, 91 minutos.

Histórias de mães castradoras que impedem seus filhos de exercer plenamente sua independência - de "voar", como costumamos dizer - existem aos montes por aí. Mas o que torna diferente 10 Horas Até o Paraíso (10 Timer til Paradis) - filme disponível no Mubi - talvez seja o contraste que envolve Dennis (Kim Kold), o seu protagonista. Com quase dois metros de altura, o sujeito é um fisiculturista tímido que, a despeito dos vários títulos da modalidade que ostenta na casa em que divide com a mãe, tem extrema dificuldade para se relacionar, para socializar. Especialmente com as mulheres. Tímido, introspectivo, Dennis é uma massa de músculos - um homem forte, mas que caminha pra lá e pra cá com os ombros encurvados, retraídos. As tentativas com o sexo oposto são sempre desastrosas. Com pouca habilidade ele parece nunca ter tido um relacionamento sequer. E a vigilância permanente da mãe Ingrid (Elsebeth Steenloft) piora tudo.

Aliás, não será necessário muito tempo para que percebamos que o tipo de criação de Dennis diz muito sobre como ele se comporta atualmente. Com 38 anos, ele quase parece uma criança envelhecida em corpo de adulto - uma discrepância assombrosa para quem alcança, seguramente, um peso próximo dos 150 anos. Kim Kold, por sinal, converte o seu personagem em uma figura carismática e afável, bem distante do estereótipo exibicionista que costuma frequentar as academias. A despeito, por exemplo, de seu corpo invejável para aquilo que se propõe, jamais se utiliza dele para levar alguma vantagem. Ao contrário, quando uma jovem tenta seduzi-lo pedindo para vê-lo sem camisa ele se recolhe, se enfurna em seu universo. Quase como um animal desconfiado, em meio a olhares que sugerem fragilidade emocional diante da situação vivida por ele. É um gigante gentil que carrega um peso maior que a vida.



Mas quando um tio seu retorna da Tailândia casado, o seu sorriso meio de lado na festa que celebra o matrimônio do parente é revelador. Estimulado pelo irmão da mãe, Dennis sai de Copenhague em direção à convidativa Pattaya, no País asiático. De acordo com seu tio, lá a chance é maior de se obter uma companhia. Para conseguir subir no avião sem gerar desconfiança alguma de Ingrid, Dennis mente que está indo participar de uma competição na Alemanha. Aos trancos e barrancos, o protagonista sofre nos primeiros dias de Tailândia - ele não imaginava que a dica do tio envolvia sexo pago e relações nada românticas, típicas de quem procura esse tipo de turismo. Frustrado, Dennis vai parar em uma academia local, onde faz novos amigos, treina um pouco e conhece a recém viúva Toi (Lamaiporn Sangmanee Hougaard). Onde, enfim, começará a encontrar algum carinho.

Com ecos do clássico Marty (1955) numa mistura com o recente Desajustados (2015), esse é aquele caso de O Virgem de 40 Anos (2005), mas sem tanta graça. Ao contrário, poucas vezes uma experiência foi tão verdadeira ao evidenciar a inaptidão dos que se sentem inadequados e de como qualquer movimento que quebre a lógica de sua rotina costuma envolver um grande esforço. Mas a mensagem embutida sobre a necessidade de se romper o cordão umbilical, que interromperá também a inconveniência da família - especialmente quando se chega à vida adulta, aos boletos e as preocupações de gente grande - é um acerto. E não vai adiantar Ingrid chorar, espernear, ou fazer de tudo para que Dennis não se sinta adulto. Aliás, poucas vezes torci tanto para que alguém se livrasse de um "cativeiro" nessa obra totalmente verossímil, com um protagonista espetacular. Méritos para Kold, que é fisiculturista na vida real e que entrega aqui uma interpretação que só não foi lembrada nas grandes premiações porque está distante dos grandes centros. O prêmio de consolação veio de Sundance. Merecido, diga-se.


sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Pitaquinho Musical - Muse (Will of the People)

Dia complicado pra quem amanheceu querendo falar mal do novo disco do Muse, Will of the People. Até mesmo porque, vamos combinar, se tem uma banda que encontra matéria-prima farta no combo pandemia, colapso ambiental, guerra, ódio nas redes sociais, extremismo político (especialmente o de direita) e outros temas é o coletivo capitaneado por Matt Bellamy. Deixando um pouco de lado as firulas eletrônicas e os excessos de todo o tipo que marcariam trabalhos dispensáveis como Drones (2015) e Simulation Theory (2018), aqui, o coletivo recolhe os cacos que sobraram da nossa atual distopia para buscar uma sonoridade mais orgânica, de fácil digestão. Assim, não é difícil pra quem se formou musicalmente ouvindo clássicos modernos como e Black Holes and Revelations (2006) se apaixonar por canções pegajosas Ghosts (How Can I Move On) ou You Make Me Feel It's Halloween.


Já o single Compliance consegue ser mais Muse que o próprio Muse com seu sintetizador oitentista cheio de vigor, refrão grudento e uma letra que parte da perspectiva da existência de uma espécie de organização que pretende cooptar pessoas fragilizadas, com promessas de segurança, proteção, amparo e remoção da dor (Você está correndo com medo, você vai correr para os nossos braços / Venha se juntar ao nosso grupo, nós vamos mantê-lo a salvo de danos / Nosso soldado de brinquedo, você vai fazer o trabalho sujo). E, sinceramente, quando ouvimos músicas do tipo, é simplesmente impossível não pensar em certos grupos extremistas que atraem os vulneráveis com discurso alienante - algo bastante adequado aos nossos tempos. Sim, o Muse é uma banda política desde sempre. Mas em seu nono trabalho eles conseguiram unir o apocalipse às ótimas canções. Os fãs agradecem.

Nota: 8,0


quinta-feira, 25 de agosto de 2022

Pérolas da Netflix - Cine Holliúdy

De Halder Gomes. Com Edmilson Filho, Miriam Freeland, Joel Gomes e Roberto Bomtempo. Comédia, Brasil, 2012, 91 minutos.

Mistura de filme do Mazzaropi com Cinema Paradiso (1988) e uma pitada de Rebobine, Por Favor (2008). Mais ou menos assim pode ser encarada a experiência com Cine Holliúdy, simpática obra dirigida por Halder Gomes e que finalmente estreou na Netflix. Aliás, a ideia deu tão certo que se tornaria o embrião da série que, hoje, é sucesso na Globoplay. Quem, afinal, não gosta de filmes que falam de filmes? Ainda mais com tanto carinho, tanta nostalgia, tanta memória afetiva? Inspirado pelas lembranças da infância do próprio Gomes, o projeto nos joga para o interior do Ceará onde, em meados dos anos 70, o exibidor de uma pequena sala de cinema, de nome Francisgleydisson (Edmilson Filho), se empenha em manter o local aberto - após o advento da chegada da TV. Sem muitas perspectivas e à beira da falência, o protagonista se muda com a mulher Graciosa (Miriam Freeland) e o pequeno Francin (Joel Gomes) para a tranquila Pacatuba na intenção de tentar um recomeço.

E é claro que tudo não passará de uma grande desculpa para não apenas homenagear a sétima arte - e todo o esforço dispensado por aqueles que amam o cinema -, mas para divertir o espectador com reminiscências em formato de gags que remetem a clássicos antigos (como os faroestes ou os filmes de kung fu) ou mesmo com piadas divertidíssimas que apontam o contraste entre a aridez de Pacatuba - e seus moradores provincianos, meio xucros -, com a persistência empreendedora quase comovente de Francisgleydisson e sua família. E talvez não seja por acaso que, em tempos como os que vivemos - de destruição da cultura e de massacre às artes - sequer nos vejamos surpreendidos quando um burocrata local pergunta se o protagonista é um "comunista" (sim, né, artes, cultura, quebra do status quo, confronto às convenções sociais, enfim, coisa de vermelhinho). 

O mesmo vale para outros momentos, como no instante em que Francisgleydisson se depara com uma burocracia quase infinita para conseguir legalizar a "firma" na junta comercial local (e a parte em que um sujeito explica o sem fim de documentos, de carimbos e de outros, que serão necessários para viabilizar o negócio é cômica, mas ao mesmo tempo trágica, se pensarmos na precarização atual do trabalho como um todo). Apresentando cada uma das figuras locais como personagens caricatos e cheios de manias - caso do prefeito um tanto egocêntrico, da primeira dama afetada, do padre bagaceiro, do bêbado incorrigível, do viadin ressentido - Cine Holliúdy tem aquela cara de programa de auditório improvisado, meio teatral, o que é reforçado pelo fato de a obra apresentar legendas, uma vez que é toda falada no dialeto cearense (e aí é um tal de "macho", "aperreio", "cabra", "estrambólico", "ispilicute", "peia" e outras gírias que espocam na tela nos divertindo e servindo como uma verdadeira aula sobre a região).

Vencedora de prêmios e tida como uma das grandes comédias brasileiras do ano de 2013, a obra pavimentaria o caminho para que Gomes ampliasse o seu olhar para as questões regionais, o que resultaria uma continuação, além da já citada série e outros filmes, caso do hilário O Shaolin do Sertão, transformando seu estilo em uma espécie de assinatura autoral. "Sempre soube que o Nordeste sozinho teria poder de consumo para justificar uma produção voltada para este mercado. Vivemos num país de dimensões continentais, populoso e com uma diversidade cultural imensa. Esta produção passa por um ponto de equilíbrio entre investimento de produção e lançamento pra chegar num formato que seja rentável", afirmou o diretor em entrevista ao Adoro Cinema à época, reforçando o fato de, mesmo sendo uma produção do Nordeste brasileiro, a obra "conversar" com os mais variados lugares do mundo. Um mérito e tanto.


terça-feira, 23 de agosto de 2022

Novidades em Streaming - Babysitter

De: Monia Chokri. Com Patrick Hivon, Monia Chokri, Nadia Tereszkiewicz e Steve Laplante. Comédia, Canadá, 2022, 88 minutos.

Cortes secos. Uma câmera trêmula e muito próxima do rosto dos personagens. A trilha sonora que evoca Tarantino. A cena de dois lutadores de MMA que, em uma tomada aérea feita em câmera lenta, espalham sangue em meio a um exasperante esforço - numa sequência à moda dos Irmãos Coen. Algum tipo de sensualidade luxuriante em tons vibrantes, ao estilo Almodóvar. A estilização à Emerald Fennell. Sim, bastam os primeiros minutos de Babysitter para que tenhamos a impressão de que a diretora Monia Chokri - uma das atrizes preferidas do canadense Xavier Dolan - não apenas pegou emprestadas algumas das melhores referências do cinema, como as enfiou em um liquidificador para extrair esse projeto cheio de personalidade, vigoroso e que debate um tema atualíssimo: no caso o machismo e a misoginia que, aqui, são evidenciados na tentativa de um sujeito de atacar uma repórter em plena rua, tentando beijá-la. Aquele tipo de escrotice que já vimos, inclusive, com jornalistas daqui.

Bom, o caso é que a história pega muito mal junto à opinião pública - ainda que, aqui e ali, muitos haters tenham se sentido legitimados a expressar seu ódio contra a profissional (o tipo de inversão que, não sem alguma surpresa, nos faz perceber que a aversão às mulheres não é exclusividade do cidadão de bem brasileiro e patriota, que apertou 17 nas últimas eleições). No Canadá - mais precisamente em Montreal, onde se passa a história - a pressão faz com que Cédric (Patrick Hivon) seja suspenso da empresa em que trabalha. A companhia, liderada por uma mulher, não compactua com o acontecido. Em casa, o sujeito terá de lidar com a filha recém nascida e a estressada esposa Nadine (a própria Monia Chokri) que, diante da situação bizarra do marido, encontra uma brecha pra se livrar, ao menos em partes, dos afazeres domésticos (sem muita culpa ela se refugia em um motel de beira de estrada, mentindo à Cédric sobre um suposto retorno antecipado da licença maternidade).


Com pouca habilidade para executar as tarefas de pai e de mãe em tempo integral, Cédric recrutará a babá Amy (Nadia Tereszkiewicz) - que se vangloria de sua semelhança com a atriz Brigitte Bardot. Com métodos ao mesmo tempo pouco ortodoxos mas muito afáveis, Amy terá papel central para que os ideais machistas de Cédric sejam subvertidos - ainda que isso envolva uma espécie de tratamento de choque meio involuntário (já que a babá não hesitará em vestir uniformes que fazem lembrar as indumentárias usadas por estrelas do pornô, se comportando ainda de forma furtiva e misteriosa dentro da casa). Já o irmão de Cédric, Jean-Michel (Steve Laplante) faz o papel do esquerdomacho supostamente desconstruído, que apoia o protagonista na ideia mirabolante de escrever uma espécie de "livro desculpa" à repórter, explicando como a sua formação, o tipo de educação recebida e a relação com a família pode ter contribuído para que ele se tornasse o adulto tóxico que, agora, tenta beijar uma desconhecida na rua sem ter sido autorizado a isso.

"Todos somos moralmente confusos" lembra alguém no decorrer da narrativa, enquanto nós mesmos, como espectadores, nos percebemos um tanto desconfortáveis com as situações que, ao passo, nos fazem refletir também sobre o nosso comportamento - e eu admito que, por mais supostamente desconstruído que eu seja, me vi em meio a uma sensação de ambíguo estranhamento e de deleite diante da sempre enigmática figura de Amy (o que sugere também a complexidade da questão e da mais do que urgente necessidade de adequação de todos nós no que diz respeito às temáticas de gênero). Qual a linha, afinal, que burla o flerte (ou a brincadeira tosca) e o converte em assédio? Em algo invasivo? Sim, parece pouco mas, com criatividade, a obra nos faz pensar sobre tudo isso - o tema é importantíssimo, afinal - enquanto entrega uma verdadeira coleção de boas piadas, que se mesclam com relevantes informações relativas ao assunto. Ok, não se chegará a conclusão alguma. Mas o mérito aqui é compreender melhor a parte mais vulnerável dessa equação. E perceber que sempre haverá espaço para evoluir.

Nota: 8,0


segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Novidades em Streaming - Concorrência Oficial (Competencia Oficial)

De: Gastón Duprat e Mariano Cohn. Com Penélope Cruz, Antonio Banderas, Oscar Martínez e Irene Escolar. Comédia / Drama, Argentina / Espanha, 2021, 115 minutos.

Um filme que consegue homenagear o mundo do cinema - seus astros, estrelas e egos - ao mesmo tempo em que debocha descaradamente deste: assim é Concorrência Oficial (Competencia Oficial), mais uma bem sucedida parceria entre os diretores Gastón Duprat e Mariano Cohn e que está disponível na Star+. Aqui, a dupla responsável pelos ótimos O Homem ao Lado (2009) e O Cidadão Ilustre (2016) satiriza esse universo cheio de afetações, de excessos e de excentricidades ao passo em que utiliza a própria presença de seu trio central de atores - formado por Penelope Cruz, Antonio Banderas e Oscar Martínez - como veículo de reverência à magia da interpretação. Aliás, não é por acaso o fato de serem muitos os instantes em que nos vemos magnetizados pelo processo de consolidação de uma obra fictícia que está sendo produzida dentro do filme. É um filme sobre fazer um filme, em mais um divertido exercício de metalinguagem proposto pelos diretores.

Na trama, um magnata da indústria farmacêutica que acaba de completar 80 anos - seu nome é Humberto (José Luis Gómez) - resolve investir parte de sua riqueza na produção de um filme. Ele pretende deixar algum legado mais "simbólico" do que uma mera ponte ou qualquer outra construção que leve o seu nome. E para adaptar o fictício livro Rivalidade - vencedor do Nobel de Literatura - ele contrata a nada ortodoxa diretora Lola Cuevas (Cruz) que, com métodos absolutamente excêntricos, levará a loucura os atores Felix Rivero (Banderas) e Iván Torres (Martínez). O primeiro, é o galã boa pinta que costuma estrelar filmes populares e que faz sucesso em premiações comerciais como o Globo de Ouro e o Goya. Já o segundo é um afetadíssimo e presunçoso ator de teatro, que parece ser um tanto ressentido por nunca ter alcançado maior sucesso junto ao público (a despeito de seu talento e de sua aptidão para os festivais de cinema alternativo como supõe a conquista da Copa Volpi concedida em Veneza).



Juntar os dois em um filme sobre dois irmãos que se tornam rivais após o trágico falecimento dos pais - com o envolvimento direto de um deles no acidente que os vitima - será como jogar gasolina em uma espécie de versão hétero, branca e hispânica de O Que Terá Acontecido a Baby Jane? (com direito a traições e traumas envolvendo ambos, quase ao estilo daqueles perpetrados por Bette Davis e Joan Crawford). Em meio aos dois, Lola se esforçará para manter os egos o menos inflados possíveis, propondo exóticos exercícios de interpretação durante o ensaio, como forma de conectá-los de forma mais intensa a seus personagens (e eu, sinceramente, fiquei angustiado e embasbacado em instantes em que uma pedra de cinco toneladas tem "papel" determinante no processo ou mesmo naquele em que a destruição das estatuetas que premiaram ambos os atores é feita de forma deliberada com o uso e um triturador). É tudo meio curioso e divertido e, aqui e ali, parece servir como uma espécie de alerta que envolve essa permanente necessidade de aprovação que esse universo eventualmente reforça.

Outro ponto que merece destaque é o fato de os personagens que vemos na tela dialogarem de forma tão evidente com a vida real de Banderas e Martínez - e basta pensar na carreira de ambos os atores para vermos como há uma espécie de rima envolvendo as suas personalidades fictícias (do filme) com as reais. E é mais ou menos nesse ponto que a sátira não apenas nos hipnotiza, mas também nos dribla - como evidencia o instante em que, tragicamente, Felix revela estar com um câncer terminal no pâncreas. Repleto de divagações, de sutilezas, de camadas e de piadas sobre o meio, o filme adota um aparato técnico modesto, a despeito do cenário curioso - e aqui há mais uma ótima gag sobre uma instituição de caridade de fachada, que serve para que Humberto exerça a sua filantropia de faz de conta -, apostando nos diálogos e nas interpretações como forma de dar envergadura à narrativa. Em linhas gerais não há nada para além da caricatura ou um grande sentido mais profundo - como a própria Lola argumenta nas "entrevistas" de divulgação. Mas diverte e até surpreende. Como de praxe na filmografia da dupla.

Nota: 8,5


Pitaquinho Musical - Maglore (V)

"Há que se manter esperançoso, mas sem esquecer da luta". Da inaugural e ensolarada A Vida É Uma Aventura aos instantes finais com Maio, 1968 nunca deixa de impressionar a capacidade do Maglore, de converter seu novo trabalho, V, em um veículo que expressa a verdadeira fé em dias melhores - em meio a um contexto de turbulência política e social -, mas sem deixar de lado os romances ensolarados, as dores cotidianas e as crônicas sociais. Como se fosse uma espécie de pacote musical completo, a banda composta por Teago Oliveira (voz e guitarra), Lelo Brandão (guitarra e sintetizadores), Felipe Dieder (bateria) e Lucas Gonçalves (baixo) intercala estilos, indo do power pop ao rock alternativo, passando pelo tropicalismo e pelo reggae. Tudo sem perder a personalidade a coesão que apaixonariam os fãs - eu entre eles!

Um bom exemplo desse expediente de idas e vindas, de passagem do tempo, de utopia e de celebração da vida pode ser encontrada na maravilhosa Espírito Selvagem que, com seu refrão grudento, melodia primaveril e letra zombeteira, cheia de ironia (Não vim aqui pra debochar / Nem boto o dedo na ferida de ninguém / Mas não consigo fingir graça / Pra essa gente que é uma farsa de doer) expressa com senso de humor o contexto de retrocessos, de extremismo e de pós-pandemia. Outra que vai pelo mesmo caminho é a colorida Amor de Verão, que pode até passar a imagem meramente escapista - a melodia e o refrão são fáceis (Quero meu amor de verão / Na próxima estação, no céu escuro) -, mas que pode guardar uma profundidade metafórica à Chico Buarque. Assim como aconteceu com Todas as Bandeiras - nosso primeiro colocado na lista de melhores nacionais de 2017 - esse é mais um registro que posiciona o Maglore entre as grandes bandas brasileiras da atualidade.

Nota: 9,0


sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Tesouros Cinéfilos - Tempo de Cavalos Bêbados (Zamani Barayé Masti Asbha)

De: Bahman Gohbadi. Com Ayoub Ahmadi, Madi Ekhtiar-Dini e Amaneh Ekhtiar-Dini, Drama, Irã, 2000, 80 minutos.

Se existe um filme doloroso de uma forma quase insuportável, este é o iraniano Tempo de Cavalos Bêbados (Zamani Barayé Masti Asbha). Produzida de forma assombrosamente realista, a obra não hesita em mostrar desde maus tratos a animais, passando por descaso com a saúde das crianças, até chegar a desolação de habitar um ambiente completamente inóspito - e que, enfim, é invisível aos olhos do mundo (o que torna uma experiência como esta não apenas impactante, mas extremamente relevante). A "ação" se passa em uma pequena (e gélida) aldeia curda, na divisa entre o Irã e o Iraque, onde o adolescente Ayoub (Ayoub Ahmadi) assume a frente da família remanescente de cinco irmãos, após a morte da mãe e do pai. Vivendo aqui e ali de contrabandos realizados junto à fronteira, os pequenos se esforçam para ter o que comer - em um cenário de incertezas, de violência, de instabilidade e de abusos generalizados.

E como se a tragédia estrutural não fosse o suficiente, há um problema a mais quando Ayoub descobre que seu irmão deficiente Madi (Madi Ekhtiar-Dini) possui uma doença degenerativa que lhe levará à morte se ele não realizar uma cirurgia logo. Pior do que isso, mesmo que consiga o dinheiro para a operação, o menino é informado de que a sobrevida de Madi não deverá superar alguns meses. Desesperado, o protagonista sai a procura de qualquer trabalho que possibilite o acesso aos cuidados médicos do irmão. Só que, bom, evidentemente não será fácil, já que eles precisam se alimentar, se vestir (o frio é tão palpável que parece saltar da tela) e sobreviver. Com pouco ou nenhum amparo de algum adulto, do Estado, de alguma entidade ou instituição. No limite do desalento, uma das irmãs de Ayoub será ofertada em um casamento arranjado com alguém mais velho e melhor posicionado financeiramente. Mas sem que haja qualquer garantia para a solução do caso.

Primeiro longa-metragem do diretor curso-iraniano Bahman Gohbadi, Tempo de Cavalos Bêbados receberia o Prêmio Câmera de Ouro no Festival de Cannes, distinção que ampliaria a visibilidade para questões geográficas, políticas, sociais e culturais da região (e a minha crença é a de que quanto mais pessoas tiverem acesso a esse tipo de história, maiores as chances de nos humanizarmos). Longe do glamour e do entretenimento dos filmes de Hollywood, o realizador constrói uma fábula ás avessas, de supressão da infância, de responsabilidades de adultos assumidas por crianças e de sofrimento real que consome aqueles que acompanhamos. Aliás o tom documental é tão ostensivamente verdadeiro, que as sequências em que Madi resmunga de dor e de frio, que chora por ter de engolir um comprimido a seco, que expressa indignação por algum desconforto são tão realistas, tão longe de qualquer efeito especial, que assistir a tudo aquilo nos deixa não apenas abismados, mas envergonhados. Pelo mundo desigual que vivemos. Caótico. Cheio de riquezas na mão de poucos e de pobreza na mão de muitos.

Hábil na construção de sua narrativa, Gohbadi coloca as crianças em caminhões pouco cômodos, em cenários inóspitos em que a neve cai de forma ostensiva, em montanhas íngremes e nada convidativas. Andando pra lá e pra cá, Ayoub se empenha em uma meta impossível, que não lhe levará a lugar nenhum - enquanto expressa um amor genuíno por seus irmãos, o que torna impossível não derrubar lágrimas a cada nova desventura. Ao cabo, trata-se de uma experiência nada fácil, totalmente incômoda, mas que aposta em algum exagero como forma de chamar a atenção para as chagas do mundo. Sim, na narrativa os cavalos bêbados funcionam como a metáfora perfeita para aqueles que batem cabeça na tela e que parecem se sentir impelidos a se mover ainda que forma trôpega, meio sem sentido, quase sem direção. Ao lado de obras como as de Asghar Farhadi e Abbas Kiarostami, a obra de Gohbadi parece um filme de terror. E talvez seja.


quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Novidades em Streaming - Treze Vidas: O Resgate (Thirteen Lives)

De: Ron Howard. Com Viggo Mortensen, Colin Farrell, Sahajak Boonthanakit, Joel Edgerton e Tom Bateman. Drama, EUA, 2022, 149 minutos.

"Eu esperava que as duas primeiras se afogassem e então teríamos de fazer algo diferente. Coloquei suas chances de sobrevivência em zero." A frase dita pelo doutor Richard Harris em entrevista à National Geographic, dá conta do quão inacreditável foi a proeza alcançada por ele - um experiente anestesista - e por uma equipe de mergulhadores que, em 2018, impediu que uma tragédia que comoveria (e mobilizaria) o mundo, fosse ainda pior. Eu confesso que lembrava vagamente da história do time de futebol de jovens tailandeses que, ao lado de seu treinador, ficaria preso na caverna de Tham Luang, no norte do País, após uma inesperada inundação que ocorreu devido às fortes chuvas. Era época de Copa do Mundo e muito se falava sobre o assunto. E do quão impossível seria resgatar qualquer um dos adolescentes com vida. E é justamente esse spisódio tão improvável que é recontado no emocionante Treze Vidas: O Resgate (Thirteen Lives), que estreou recentemente na Amazon Prime.

Sinceramente é impossível não derrubar lágrimas com a obra, que foi filmada com a habitual competência por Ron Howard - que parece recuperado do fracasso com Era Uma Vez Um Sonho (2020). Na trama acompanhamos os esforços de mais de cinco mil pessoas de dezessete países, que se empenharam durante mais de duas semanas na intenção de levar os jovens para casa. O que envolveria uma operação que beirava o impossível, com direito a aplicação de sedativos nos meninos, para que eles pudessem vencer em segurança os mais de dois quilômetros de águas subterrâneas, em cavernas apertadas, e cheias de obstáculos. Sim, se fosse apenas um filme e não a vida real dificilmente acreditaríamos que os doze garotos mais o seu treinador seriam retirados do local em estado de inconsciência (mas vivos!). E essa estratégia ter funcionado deveria ser uma grande lição para todos nós sobre como a união de esforços pode ser fundamental para que a vida seja preservada. Para que as crises e dificuldades sejam superadas.

Naquele contexto pouco importava se havia disputas políticas entre países ou imigrantes que estavam na Tailândia de forma ilegal. O que movia a todos - governo, integrantes do exército, representantes de organizações, agricultores do entorno e população em geral - era um objetivo só: retirar o máximo possível de pessoas das profundezas das cavernas, antes que as chuvas se ampliassem, o que tornaria tudo ainda mais difícil. Na hora de revisitar o drama, Howard não perde tempo. A entrada dos jovens na caverna ocorre nos primeiros quinze minutos - apenas as suas bicicletas e apetrechos ficam na saída do local (em meio à figuras sagradas, místicas, típicas do budismo, a religião que prevalece no País). E, a partir de então, com a chegada da notícia às autoridades, é montada a operação, indo desde tentativas de adentrar o local (algumas frustradas), a ansiedade envolvendo parentes e amigos do lado de fora, os esforços das autoridades locais e até os pedidos de socorro a outras nações - com a chegada, por exemplo, dos experientes mergulhadores Rick Stanton e John Volanthen, vividos por Colin Farrell e Viggo Mortensen respectivamente.

Mas aqui não estamos diante da história do white savior por excelência. Sem abandonar tudo o que aconteceria no entorno para que a operação fosse bem sucedida, Howard mostra como centenas de voluntários trabalharam no topo das montanhas na intenção de desviar a água da chuva, canalizando-a para a base das montanhas (o que faria, por sinal, produtores de arroz perderem toda a sua safra, de forma deliberada, também pelo objetivo maior, sendo ressarcidos, após, pelo seguro do governo). Tecnicamente impecável, a obra se consiste em uma experiência absurdamente claustrofóbica, quase insana - e mais de uma vez eu me vi pausando o filme para respirar fundo, enquanto acompanhava os esforços daqueles verdadeiros heróis. Simples, direta, a trama também tem como ponto positivo o fato de respeitar o dialeto local e a cultura do País envolvido, apontando a câmera para muitos outros ângulos além do rosto de Mortensen e Farrell (o que amplia o senso quase documental da obra). Emocionante, dramática, sufocante, tensa, essa é daquelas produções tipicamente hollywoodianas. E que nos fazem torcer muito para que tudo dê certo ao final.

Nota: 8,0


terça-feira, 16 de agosto de 2022

Na Espera - The Banshees of Inisherin

Vamos combinar que tá com a maior cara de indicação ao Oscar na categoria Roteiro Original, o novo do diretor Martin McDonagh - de Três Anúncios Para Um Crime (2017) - e que teve seu trailer divulgado recentemente. Com estreia prevista por aqui para o dia 20 de outubro, The Banshees of Inisherin reúne Colin Farrell e Brendan Gleeson como Padraic e Colm dois amigos de longa data que se veem diante de um impasse quando o segundo resolve por fim, de forma meio inesperada, a amizade dos dois. Atordoado, Padraic é socorrido por sua irmã Siobhan (Kerry Condon) e pelo problemático jovem Dominic (o sempre ótimo Barry Keoghan) na tentativa de consertar o "relacionamento".

Só que os esforços de Padraic nesse sentido, só fortalecerão a determinação de seu agora ex-amigo e quando Colm dá um ultimato desesperado a ele, será o momento em que uma série de eventos chocantes se descortinarão. Selecionado para ser exibido nos festivais de Veneza e de Toronto, o filme tem aquele tipo de trailer que sugere a mescla de humor e de drama que se tornaria marca registrada de McDonagh desde o excelente Na Mira do Chefe (2008) - sendo os diálogos e as situações um tanto inusitadas o destaque. As paisagens bonitas da costa Oeste da Irlanda, bem como a fotografia fria, meio azulada do local, também contribuem para que se amplie as expectativas do projeto!

Cinemúsica - As Vantagens de Ser Invisível (The Perks of Being a Wallflower)

De: Stephen Chbosky. Com Emma Watson, Logan Lerman, Ezra Miller, Paul Rudd e Melanie Lynskey. Drama / Romance, EUA, 2021, 103 minutos.

Existe uma cena emblemática em As Vantagens de Ser Invisível (The Perks of Being a Wallflower) que permaneceria para sempre nos corações cinéfilos. Nela, o trio formado por Sam (Emma Watson), Patrick (Ezra Miller) e Charlie (Logan Lerman) se aventura em uma madrugada a bordo de um carro, atravessando um longo túnel ao som de Heroes do David Bowie. Na sequência, Sam se ergue acima do capô do carro com os braços abertos, enquanto a música sobe - como uma metáfora para o senso de libertação e de busca permanente pela felicidade, que parece mover os jovens de 16, 17 anos. É um período de incertezas. Cheio de dúvidas, de medos, de anseios, de frustrações, de desejos e de traumas. É aquele período em que os adolescentes prestes a entrar na fase adulta não sabem se ainda são crianças ou se já cresceram o suficiente para decisões importantes sobre futuro, carreira, formação e outros. "Nós podemos ser herois / Apenas por um dia" entoa Bowie, como que resumindo aquele instante juvenil.

E vamos combinar que, talvez não fosse a excelente trilha sonora, e o filme dirigido por Stephen Chbosky - que mais tarde filmaria o gracioso Extraordinário (2017) e o sofrível Querido Evan Hansen (2021) - talvez fosse apenas mais uma daquelas obras de formação que tanto vemos por aí. Aqui, a música tem papel fundamental em meio a mixtapes gravadas em que músicas sombrias como Asleep dos Smiths se destacam, conduzindo o trio central por entre os dissabores da adolescência. Charlie é o garoto solitário que guarda segredos do passado que envolvem o falecimento de sua tia Helen (Melanie Lynskey), enquanto tenta se enturmar com os veteranos do Ensino Médio, na Escola. Entre leituras de Scott Fitzgerald, Harper Lee e Charles Dickens - Charlie sonha em ser escritor, sendo apoiado pelo carismático professor Bill (Paul Rudd) -, o jovem se une a Sam e Patrick, passando pelo primeiro amor e por descobertas sexuais, que vem acompanhadas do uso de drogas, da formação da bagagem cultural, entre outros aspectos.

Em relação às citações culturais, não deixa de ser divertido acompanhar as recriações de sequências em que os atores encenam atos do clássico The Rocky Horror Picture Show - em que canções como Rose Tint My World e Touch-A Touch-A Touch-A se sobressaem. E o que dizer então do formidável momento em que, em um baile, todos se divertem ao som do excêntrico megahit Come On Eileen, do Dexys Midnight Runner? Em meio a tantas questões mal resolvidas, à relações complexas, à sonhos concretizados (ou não) e a desejos um tanto incompreendidos, a trama vai sendo costurada por trechos de canções de outros artistas, como Joey Ramone, Young MC, Cracker, L7 e The Samples, só pra citar alguns. Envelhecer não é fácil. Forma casca, nos ajuda a enfrentar o mundo e suas dores. Mas o que o filme de Chbosky nos lembra o tempo todo é que aquela música cantada na hora certa, no momento certo, pode eternizar instantes. Por mais estranho que seja o fato de ninguém saber que Heroes é cantada por Bowie - aliás, descobrir de quem é a música se torna uma das metas do trio central naquele começo dos anos 90.

Repleto de frases de efeito que, em tempos de séries adolescentes vigorosas como Euphoria quase soam datadas - "Não escolhemos o passado, mas podemos decidir sobre o futuro", "Aceitamos o amor que acreditamos merecer" -, a obra é uma experiência leve mas sinuosa, poética mas descolada, melancólica mas esperançosa. Com um aceno especial aos esquisitos, aos introvertidos, àqueles que preferem ficar num canto lendo um livro, do que experienciar o vazio hedonista que muitas vezes dita esta fase (e não há nada errado nisso). Se um filme do John Hughes fosse realizado nos anos recentes talvez ele tivesse essa cara de As Vantagens de Ser Invisível. Aquela cara de tédio meio iludido de quem aguarda uma formatura que parece distante, mas que vê essa eternidade sendo reduzida em meio a recortes aleatórios cotidianos cheios de cor, de vida e de música. De estereótipos que se quebram. E de luzes e de tempo que passam rapidamente a bordo do carro enquanto uma música que amamos toca.


segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Novidades em Streaming - The Humans

De: Stephen Karam. Com: Beanie Feldstein, Richard Jenkins, Amy Schumer, Steven Yeun, June Squib e Jayne Houdyshell. Drama, EUA, 2021, 108 minutos.

Janelas sujas, paredes emboloradas, corredores estreitos, buracos em lugares inusitados, lâmpadas que queimam, uma vizinha que faz um barulho persistente e irritante. Vamos combinar que é um ambiente pouco convidativo o "novo" apartamento para onde a jovem Brigid (Beanie Feldstein) está se mudando. Localizada no centro de Manhattan a habitação consiste em um duplex decadente com uma pintura de tons melancólicos, que formarão a metáfora perfeita para o tipo de história que acompanharemos em The Humans - mais um daqueles filmes sobre a ruína das relações familiares, bem como de suas vidas de aparências, repletas de mesquinharias e de traumas prontos à emergir. Brigid está feliz por estar finalmente saindo de baixo da asa dos pais, os conservadores Erik (Richard Jenkins) e Deirdre (Jayne Houdyshell), para tocar a sua vida ao lado do namorado Richard (Steven Yeun).

Como comprovam os primeiros minutos, não será necessário ser nenhum adivinho para prever que as coisas vão desandar na primeira noite no local - ocasião em que, em meio às bagunças da mudança e ao improviso de quem está se acomodando em um novo ambiente, resolvem receber os pais, a avó cadeirante Momo (June Squib) e a irmã lésbica Aimee (Amy Schumer, confortabilíssima em um papel mais sério) para o jantar de Ação de Graças. A chegada de todos já é carregada de alguma tensão, que se torna palpável justamente pelas condições precárias do imóvel. A janela, por exemplo, está tão suja, que Erik mal consegue reconhecer se a figura que, misteriosamente, caminha no pátio, é homem ou mulher. Para Momo, a circulação é difícil. É necessário subir uma escada em formato de caracol para o simples ato de ir ao banheiro. Para dar alguma vida, alguma cor ao espaço, Richard insiste em acender uma imagem projetada de uma lareira - tão falsa quanto o comportamento daquele grupo de parentes, cheios de segredos, de traumas, de dores guardadas.


Aliás, poucas vezes um diretor foi tão ostensivo no uso do próprio ambiente como uma alegoria para o estado de espírito dos personagens que acompanhamos, como no caso de Stephen Karam (que adapta sua própria peça de teatro para a telona) - e não é por acaso que a câmera passeia vagarosamente junto a paredes, próxima ao teto, buscando cada canto arruinado dos cômodos como forma de evidenciar a luta interior daquelas pessoas. Tão humanas quanto qualquer um de nós. Quando uma revelação meio inesperada vem à tona em meio a preparação para o jantar, um estrondo é ouvido vindo do andar de cima. O lustre velho parece pronto a despencar. Uma luz queima. Uma barata gigante aparece, o que faz com que as mulheres gritem. Momo some de forma inesperada. O caos que se instaura avança conforme os diálogos sobre questões de trabalho, de dificuldades econômicas, de religião, de doenças, de problemas climáticos e outros avançam. Ao cabo, a obra é a desculpa para que se teça uma verdadeira teia que evidencia os choques geracionais como um aspecto bastante presente nos tempos de hoje.

É claro que nem tudo é melancolia e, aqui e ali, há espaço para instantes surpreendentes e até comoventes de ternura - como não se emocionar quando, por exemplo, Aimee tem uma dura conversa ao telefone com sua ex-namorada, sendo amparada pelo pai que tenta, de forma meio desajeitada, apoiá-la. Ou mesmo não sorrir diante de um comentário bem humorado sobre o fato de um papel de presentes estar sendo, aparentemente, reutilizado? Família, afinal, é isso mesmo. Um coletivo de pessoas repleta de barulhos interiores, de sonhos nem sempre alcançados, de decepções generalizadas, de fragmentos do que fomos e do que deveríamos ter sido. De pequenas alegrias. Ninguém tão paladino da moral ou pecador exagerado. Todos com problemas a serem resolvidos e amores a serem encontrados. O apartamento apertado, nauseabundo, quase funciona como uma espécie de personagem improvisado, claustrofóbico, um símbolo materializado da queda do sonho americano. É simplesmente impossível não se identificar. Não se reconhecer naquelas figuras. E é por isso que, a rigor, a experiência é tão única. É como se estivéssemos presentes. Como se também fôssemos. E, vá lá, talvez sejamos.

Nota: 8,5


sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Cinema - Clara Sola

De: Nathalie Álvarez Mesén. Com Wendy Chinchilla Araya, Ana Julia Porras Espinoza e Flor María Vargas Chaves. Drama, Costa Rica / Alemanha / Bélgica / Colômbia / Dinamarca / EUA / Suécia, 2021, 106 minutos.

Existe uma cena perturbadora em Clara Sola - filme costarriquenho em cartaz nas salas do País - e que dá conta de como o fanatismo religioso se apropria do corpo alheio como forma de exercer opressão. Nela, Clara (Wendy Chinchilla Araya) está em uma consulta médica acompanhada de sua mãe, dona Fresia (Flor María Vargas Chaves). A intenção é estabelecer o diagnóstico para a curvatura das costas de Clara, o que lhe confere uma espécie de corcunda. O médico explica a Fresia que a solução está em uma cirurgia. A mãe recusa o apoio da ciência: "foi assim que Deus me deu ela", responde. Para a enferma não é dada a oportunidade de escolher. Aliás, no vilarejo distante em que a protagonista habita há quase 40 anos, ela é uma espécie de não mulher em corpo de adulta. Infantilizada, é tratada pela mãe com cuidado excessivo, o que lhe confere um ar ao mesmo tempo místico e ingênuo  O que explica o fato de os aldeões buscarem o apoio de Clara para que suas dores sejam expiadas.

Sim, estamos diante de uma casa em que prevalece o fanatismo religioso. Em que a culpa católica percorre as frestas, em meio a imagens de santas, de sacristias improvisadas, de velas e de terços. Clara habita esse local com uma resignação taciturna, encontrando refúgio na simbiose com a natureza. A mata, os riachos, as montanhas, os animais e os fenômenos da natureza estão no entorno - e geram encanto. É com eles que a mulher impedida de realizar plenamente aquilo que sente, comunga. O que explica a "obscenidade" de um instante em que, para subverter a lógica daquilo que espera a sua família - um comportamento envergonhado, tímido, comedido -, ela simplesmente se atira no barro. Se revolve nele. Se veste dele. É em meio a esses rituais quase selvagens, de conexão com a terra, de associação com o místico e até com a carne - aqui simbolizada pela presença constante de uma égua de estimação a quem destina seus cuidados - que ela encontra forças pra sobreviver. E para, aos poucos, despertar.


E será justamente por causa do animal de estimação que Clara conhecerá o jovem Santiago (Daniel Castañeda Rincón), treinador de cavalos que demonstra certa empatia por sua figura inocente, dando algum fiapo de afeto a cada visita que ele faz a jovem Mariá (Ana Julia Porras Espinoza), sobrinha adolescente da protagonista que está prestes a debutar. Em meio ao despertar sexual de Mariá, Clara verá também o seu próprio desabrochar acontecendo. O que poderá ser percebido nos detalhes: um batom colocados nos lábios, o desejo por um vestido mais bonito, mais feminino, do que as vestes largas e sem vida que Fresia pretende que ela use, como forma de fazer com que não se perca de vista a sua função de curandeira religiosa estabelecida pela mãe ortodoxa. O intelecto limitado que se mescla a um caráter sacro, divino, deve permanecer intocado. Por mais que das entranhas de Clara esteja emergindo o desejo.

Quando se toca de forma íntima, Fresia a pune passando pimenta em seus dedos. A trata como uma menina, mesmo que já esteja perto dos 40 anos - e lá pelas tantas a gente nem estranha mais o fato de própria Mariá dar banho na tia, penteando-a carinhosamente depois. Sua única distração na vida é assistir as novelas que, por fim, apenas ampliarão as suas vontades. E tudo é construído de forma tecnicamente impecável, com uma fotografia que borra os limites entre o real e o imaginário, o concreto e o folclórico, o terreno e o religioso. Já Araya, dançarina de profissão, dá uma aula de interpretação com seus olhares expressivos, silêncios que muito dizem e gestos econômicos, que a levam do indefeso ao indomável em segundos. Dá pra perceber de longe o quanto ela grita por dentro. Assim como nós, aqui desse lado, ficamos loucos para gritar para que ela se liberte, para que fuja desse sistema que a aprisiona, que a enjaula, que a reprime. De superproteção febril e opulenta, que se traveste de amor, mas que mais parece cólera. Em tempos de opressão religiosa e de retrocessos na pauta de costumes, um filme como Clara Sola é tão atual quanto importante. O que apenas amplia o seu valor.

Nota: 9,0


quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Na Espera - Triangle of Sadness (Filme)

Pessoal, é sério: acho que não há absolutamente nada que eu espere mais nesse maravilhoso ano cinematográfico do que este Triangle of Sadness - o grande vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes desse ano. Primeiro de tudo porque é o novo filme do sueco Ruben Östlund, que venceu a mesma premiação em 2017 pelo provocativo The Square: A Arte da Discórdia. Segundo porque o trailer dá a entender de que ele deve intensificar ainda mais a crítica à mesquinharia e a hipocrisia das classes mais abastadas - e um navio que aparentemente naufraga durante um cruzeiro de luxo, virando tudo meio que de ponta cabeça, parece ser a metáfora mais do que perfeita para essa análise.



Em meio a sorrisos plastificados e vidas de faz de conta, o fato é que Ostlund não parece fazer concessões quando o assunto é discutir contrastes sociais, preconceitos cotidianos, o individualismo (e até o hedonismo) que rege nossos tempos e, claro, o mau gosto generalizado das elites. Com a estreia inicialmente prevista para o dia 12 de outubro, a obra acompanha um casal de celebridades do mundo da moda que é convidado para esse cruzeiro cheio de figuras excêntricas - tem de traficante de armas britânico a oligarca russo, passando pelo capitão alcoólatra que é fã de Marx (papel de Woody Harrelson). O tom bem humorado e niilista visto no teaser evoca o vazio existencial dessa camada meritocrática - algo que já havia sido visto em séries como The White Lotus (2021), da HBO Max.


Tesouros Cinéfilos - Festa de Família (Festen)

De: Thomas Vinterberg. Com Henning Moritzen, Ulrich Thomsen, Thomas Bo Larsen, Paprika Steen e Birthe Neumann. Drama, Dinamarca / Suécia, 1998, 100 minutos.

[ATENÇÃO: ESSE TEXTO TEM SPOILERS]


Uma festa que tem a intenção de celebrar os sessenta anos de Helge (Henning Moritzen), patriarca de uma tradicionalíssima família dinamarquesa é o pano de fundo de Festa de Família (Festen) - esse verdadeiro clássico do movimento Dogma 95, que venceria o Prêmio do Júri no Festival de Cannes. Para o pomposo evento, que ocorre num enorme casarão de campo, estão convidados filhos, noras, netos, cunhados, amigos e outros familiares próximos. O que pode, afinal, dar errado? Como essa fachada quase imaculada poderia ser rompida? Bom, quem conhece a filmografia do diretor Thomas Vinterberg - dos excelentes A Caça (2012) e Druk: Mais Uma Rodada (2020) - sabe que o seu cinema é provocativo, ousado e costuma colocar o dedo na ferida independente do assunto. Aqui, ele aponta a sua câmera para a hipocrisia das famílias tradicionais, conservadoras - normalmente hábeis em se autoproteger do "mundo", mantendo segredos, aparências e virtudes intocadas. E preservando o status quo, é claro.

Bom, até poderia ser assim, não fosse o fato de Christian (Ulrich Thomsen), filho mais velho de Helge, tomar a palavra para revelar, em meio ao jantar e às homenagens ao anfitrião, que ele não apenas o estuprava quando criança, como ainda o fazia com a conivência da própria mãe, Else (Birthe Neumann). E, pior do que isso, o aniversariante também violentava a falecida irmã de Christian - e o fato de ela ter se suicidado pode ter a ver com o trauma gerado pelos crimes. Evidentemente que o discurso de Christian joga um balde de água fria no evento. Só que o mais dolorido é perceber como muitos dos presentes ficam contra ele, como no caso do intempestivo irmão mais novo Michael (Thomas Bo Larsen), que o expulsa da festa. "Roupa suja se lava em casa" chega a comentar outro parente, recriminando-o. A janta, afinal, não pode parar. Há um banquete a servir. Vinho. Farta gastronomia. Se há problemas eles se resolvem em outro contexto. A coragem de Christian é cinicamente convertida em problemas particulares, que decorrem de sua exasperante solidão, de seu comportamento taciturno e de sua predileção por histíorias fantasiosas.


E a meu ver esse é um dos pontos mais assombrosos da obra de Vinterberg, afinal de contas, quantas vezes já não vimos coisa parecida no nosso entorno - em alguns casos na nossa própria família? Joga-se os problemas para baixo do tapete para se investir em uma aparência ilusória de bem estar, quando no íntimo as relações podem estar devastadas. Cochichos, fofocas, preconceitos, falsidades, segredos absurdos prontos a emergir gerando incômodo. Retirando máscaras. Apontando comportamentos moralmente questionáveis dos que estão ali do lado, sentados no sofá. Arrotando algum tipo de superioridade ética enquanto se esforçam por esconder seus podres. Vinterberg acerta em cheio ao apontar a teatralidade como uma espécie de metalinguagem para a própria vida. Como se estivesse apenas filmando a festa, entre os convidados, ele vai desnovelando o que de mais vil há nas entranhas, o que de mais sórdido brota dos escombros. A janta? A festa? Não, esta não pode parar.

Talvez ao lado de Ondas do Destino (1996), de Lars Von Trier, Festa de Família seja um dos pontos altos do Dogma 95 - talvez o último grande movimento cinematográfico que se tem conhecimento. Nele, os cineastas deviam respeitar 10 mandamentos na produção dos filmes que representavam uma espécie de contraponto ao cinema mais comercial feito por Hollywood. O que explica a adoção não apenas de câmera na mão (uma câmera por vezes nervosa, trêmula), a ausência completa de trilha sonora (a exceção do som ambiente), a opção por tomadas em locação, com reduzido uso de itens cenográficos, e a ausência de outros truques de fotografia ou efeitos especiais. O resultado é uma experiência claustrofóbica e urgente, realista e absurdamente naturalista. Se surgisse ali no meio um debate sobre Lula ou Bolsonaro na próxima eleição não surpreenderia você se confundir aqueles com seus próprios parentes. O padrão dificilmente se desvia. Tudo permanece intocado. Para deleite do público.

terça-feira, 9 de agosto de 2022

Novidades em Streaming - Memória (Memoria)

De: Apichatpong Weerasethakul. Com Tilda Swinton, Juan Pablo Urrego, Agnes Brekke e Daniel Giménez Cacho. Drama, Tailândia / Colômbia / França, 2021, 136 minutos.

Existe uma cena logo no início de Memória (Memoria) que pode dar alguma pista do que pretende o tailandês Apichatpong Weerasethakul em seu novo trabalho. Uma pista, nada definitivo - aliás, como costuma ser na filmografia instigante do diretor de Mal dos Trópicos (2004). Nela, a botânica Jessica Holland (Tilda Swinton) procura o engenheiro de som Hernán (Juan Pablo Urrego) para tentar explicar uma espécie de barulho - um pequeno estrondo, um baque - que a despertou naquela manhã. Ela exemplifica o estampido comparando-o com a sonoridade de uma pedra de concreto que bate no metal. Mas é algo meio abafado. Como se no entorno houvesse água. O sonoplasta utiliza um programa de edição de áudio e uma base de dados que oferece sugestões semelhantes. Picota aqui, ajusta ali. A sequência dura longos minutos. Tudo passa sem muita pressa, em reflexivos planos. O silêncio se alterna com poucos diálogos. E o som - duro, ilógico - parece pairar em algum lugar que não se sabe onde.

Nunca é fácil interpretar com exatidão a semiologia por trás dos filmes do vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes por Tio Boonme, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010). Aqui, novamente, temos uma experiência sensorial, sinestésica, daquelas que parece deixar o espectador meio entorpecido enquanto tenta, aqui e ali, costurar os pedaços que formarão o todo. Do barulho que acorda Jessica no susto em meio ao silêncio de madrugada avançada para um outro plano em que carros parados em um estacionamento têm seus alarmes acionados inexplicavelmente, o que temos aqui é uma engenhosa narrativa sobre como somos assombrados por fenômenos aleatórios que podem (ou não) estar apenas nas nossas cabeças. A protagonista voltará a ouvir o barulho que a desperta em outras circunstâncias. Solitário ou soterrado em meio a conversas em um restaurante. Ou mesmo fazendo rima com outros ruídos. O que será? De onde vem? Por quê ocorre?


Jessica está na Colômbia para visitar a sua irmã que está no hospital - parece ter sido acometida por um tipo de infecção causada por um cachorro. Quando a enferma recebe alta, um encontro entre ambas coloca mais dúvidas no todo: o que vemos é a realidade? Como escapar da balbúrdia que transforma a nossa mente em um HD infinito que absorve trechos, recortes, pedaços, músicas inteiras, fragmentos de sons? Buzinas, trânsito, os insetos no meio do mato, uma cachoeira que tudo lava. A chuva batendo no chão, os vizinhos que discutem. As conversas abafadas, os trovões. A música. Dramática. Comovente. Vibrante. Ou mesmo o silêncio (quase) ensurdecedor. Como se construísse uma ode àquilo que capta os nossos ouvidos, o diretor cria uma jornada misteriosa de vida e morte, de natureza e concreto, de folclore e de tradição, de ciência e de religião, de passado e de futuro. De vida e de morte. De sítios arqueológicos e de medicina moderna. De tribos afastadas e de fungos que emergem. De história. De memória. Afetiva. Metafísica. Distinta pra cada um de nós.

Não é por acaso que cada instante da narrativa é ocupado por segmentos que estabelecem algum diálogo com esse todo - ainda que tudo possa soar meio ilógico, meio irreal, como um livro de ficção científica escrito por Gabriel García Marquez. Em certo momento, por exemplo, Jessica pesquisa sobre estufas que podem retardar o tempo de vida das orquídeas que produz. Em outro, ela se vê paralisada por um show de jazz meio improvisado que ocorre no estúdio de gravação em que trabalho Hernán (que já não existe mais). E o que dizer da médica que cita Salvador Dali, como um exemplo de alguém que enxergava a beleza da vida - e sem precisar de medicamentos? Mas o que fica de tudo isso é que o mistério é o de menos. O que vale aqui é a dança - no sentido metafórico - que envolve um aparato técnico impressionante, com destaque para a edição e a mixagem de sons e para os hábeis planos sequência, que estendem até o limite do aceitável a condição de observadores em que nos colocamos. Pode parecer difícil, hermético. Mas quem insistir certamente será enfeitiçado por uma rica experiência - complexa, cheia de simbolismos, sedutora em alguma medida e absolutamente hipnótica.

Nota: 9,0


segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Novidades em Streaming - Nova Ordem (Nuevo Orden)

De: Michel Franco. Com Naian Gonzalez Norvind, Diego Boneta, Lisa Owen e Dario Yazbek Bernal. Drama / Ficção Científica, México, 2020, 88 minutos.

Assim que concluí a sessão de Nova Ordem (Nuevo Orden) me preocupou a possibilidade de que ocorresse um "efeito Tropa de Elite" com o filme mexicano, que está disponível na Amazon Prime. O que envolveria o esvaziamento das mensagens antimilitaristas e de crítica a sistemas autoritários por escolhas no mínimo questionáveis do roteiro. Mais ou menos o que ocorreu com a obra de José Padilha que, de crítica nada sutil ao abuso de autoridade, ao fascismo à brasileira e ao domínio das milícias, saltaria para uma inexplicável glorificação da violência e do (in)consequente discurso do "bandido bom é bandido morto". O Capitão Nascimento alçado a ídolo de uma juventude protofascista temente à Deus sequer seria percebido como a figura abjeta, corrupta e covarde que era. Pior: foi o herói ocasional do Brasil que gestava um sonho fetichista e molhado dominado por capitães, generais e outros congêneres. Mais ou menos como o que temos hoje.

No filme do habitualmente polêmico Michel Franco - do doloroso (e espetacular) Depois de Lúcia (2012) - temos a disputa de classes e os contrastes sociais do País como fio condutor da narrativa. Assim, enquanto uma pomposa festa de casamento ocorre - daquelas com milhares de convidados riquíssimos e extravagantes -, um grupo de pessoas à margem da sociedade protesta a alguns quilômetros dali. "60 milhões de mexicanos na miséria" exibe uma pichação nas ruas em meio a símbolos anarquistas e outras frases de ódio à burguesia. O primeiro terço do filme, aliás, marca a melhor parte: enquanto os ricos se ocupam com mesquinharias relativas ao grande evento, vão vendo suas encasteladas existências sendo ocupadas por pequenas "invasões", sejam elas a cor da água que sai da torneira sendo modificada, seja a indesejada presença de um ex-funcionário que pretende conversar com a antiga patroa para pedir um vultuoso empréstimo de dinheiro.



E por mais que Franco talvez tenha pensado no resultado do projeto como uma mistura de Luis Buñuel com Parasita (2019), o caso é que a partir do segundo terço a coisa desanda, com a invasão de um grupo de miseráveis maltrapilhos ao evento, que não hesitarão em utilizar um tipo de violência tão brutal quanto repugnante contra aquelas pessoas. Torturas, estupros, sangue, roubos, morte, enfim, tudo quanto é atrocidade. A ideia inicial da experiência talvez fosse justamente criticar o absurdo de ver as camadas abastadas vivendo do bom e do melhor enquanto o grosso da população pena na fila do osso e na completa vulnerabilidade. Mas sem humanizar minimamente os supostos oprimidos, ficou aquela impressão de que eles apenas queriam se tornar o opressor. E eu, que adoraria assistir a uma distopia que se aprofundasse na discussão de questões sociais e políticas de um País como o México, me vi torcendo para que os ricos (que talvez devessem ser os vilões em meio a manutenção desse status quo que os favorece) se livrassem o quanto antes daquele sadismo generalizado.

Sim, eu sei que lá pelas tantas o filme inclui algumas surpresas que evidenciarão que, nessa disputa, o buraco é mais embaixo - e que há uma série de outras intenções que vão para além do mero grafismo de ricos e pobres em disputa (o fascismo é maior do que tudo isso). Mas até chegarmos até ali, o estrago está feito. Os miseráveis sem cara serão apenas isso: um coletivo vil, torpe, que sente prazer em violentar aqueles brancos aristocráticos. Em anarquizar a festa alheia. Em tomar bens materiais que não são seus. O meu temor ao ver os créditos subirem foi de que o público médio afeito a preconceitos visse alguns de seus maiores temores - de negros, de pobres, de (supostos) vagabundos - aumentado. O que resultaria numa simplificação maniqueísta que, muito provavelmente, vem acompanhada de uma mensagem oposta à original. Em um governo totalitário, ditatorial, militarista e de tirania não há rico, pobre, branco, preto, esquerda, direita, homem, mulher. Todos ali sofrem pela mão do Estado. Talvez falte um pouco de foco, um pouco de clareza para evidenciar isso. Enfim, uma percepção. Que, espero, esteja errada.

Nota: 6,0


quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Pitaquinho Musical - Beyoncé (RENAISSANCE)

Seis anos se passaram desde Lemonade (2016) e talvez não seja por acaso o fato de a montanha-russa emocional vista no projeto parecer, agora, distante. Nada mais dos versos cheios de sinceridade que pareciam funcionar como veículo de expiação dos problemas conjugais que envolviam o marido, o rapper Jay-Z -, e que renderiam canções maravilhosas como Hold Up e Daddy Lessons. O caso é que o casamento pode até existir (ainda), mas com RENAISSANCE, Beyoncé está de volta à pista. Aliás, quase literalmente, dado o apelo à disco music classuda e oitentista - o que faz com que canções como Cuff It soem como um convite a mexer o corpo. "Eu tô a fim de me apaixonar", anuncia a cantora em meio a uma melodia enfumaçada em que os globos espelhados de boate quase se tornam palpáveis. E isso instantes depois de ter levado o ouvinte a levitar com as notas excitantes e espaciais da sublime Alien Superstar. E olha que nesse momento ainda estamos no comecinho do álbum!

Evidentemente que a temática do registro - o sétimo da carreira da artista -, também dialoga com essa vontade de ver o mundo, que parece mover as pessoas nesse período pós confinamento pela pandemia. "Com todo o isolamento do ano passado, penso que estamos todos prontos para escapar, viajar, amar e rir novamente", comentou ela em entrevista ao Harper's Bazaar, citando ainda o renascimento como uma metáfora desse contexto (que, por quê não, também encontra paralelo no momento político e cultural dos Estados Unidos). O resultado é um projeto que muda de rota mas que se apresenta, como de praxe na carreira da estrela, revigorante, oxigenado e cheio de personalidade. O que faz com que canções como Virgo's Groove, I'm That Girl, Break My Soul e, especialmente, Heated (um sinuoso afrobeat) brilhem naturalmente. É quase uma Beyoncé das antigas dando as caras. Mas mais experiente e mais madura do que nunca. O que, convenhamos, é uma combinação irresistível.

Nota: 9,0


quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Cine Baú - A Tortura do Medo (Peeping Tom)

De: Michael Powell. Com Karlheinz Böhm, Moira Shearer, Anna Massey e Maxine Audley. Suspense / Drama, Reino Unido, 1960, 102 minutos.

Vamos combinar: talvez não fosse a existência de um Psicose (1960) no mesmo ano de lançamento de A Tortura do Medo (Peeping Tom) e, muito provavelmente, o filme de Michael Powell teria recebido mais atenção. Em ambos os casos temos um protagonista mentalmente atormentado - um assassino que atrai as suas vítimas de forma quase despretensiosa. Também nos dois filmes o voyeurismo surge no centro da narrativa. Observar, afinal, seja em um buraco improvisado em uma parede, seja através das lentes de uma câmera é parte do que move esses criminosos - o que pode ter a ver com traumas de infância. E há ainda, por fim, o comportamento taciturno, o tom de voz nunca alterado, que une ambos os personagens. A diferença que, arrisco dizer, faz com que essa obra-prima sombria de Powell permaneça viva na mente dos fãs é justamente o certo apelo a atemporalidade: em uma era em que o exibicionismo nunca esteve tão em alta - especialmente por conta das redes sociais - esse tipo de alucinação que mescla desejo, amor, ódio, sexo, hedonismo permanece simbolicamente atual.

Em certa altura da projeção um psiquiatra explica, em partes, o que seria a escoptofilia, distúrbio que explica o prazer estético que deriva de uma pessoa que olha para algo ou alguém - condição que tem a ver também com a observação de algo erótico, pornográfico ou fetichista. Nesse sentido, talvez não seja por acaso que o Mark Lewis de Karlheinz Böhm seja fotógrafo amador do universo pornô no turno inverso em que atua como iluminador em um estúdio de cinema. Para além dessas atividades, o protagonista exercita ainda uma outra "profissão": o de acumulador de imagens em preto e branco dos assassinatos que comete. De prostitutas, de colegas de set e de outras. Atraindo-as para supostas entrevistas que envolveriam um documentário, o homem mata as jovens com uma estaca improvisada na altura do foco da câmera. O resultado são impactantes imagens de terror que, congeladas, revelam a crueldade do ato. Tão brutal quanto esteticamente "belo" (ao menos na mente sádica do sujeito).


Por quê ele faz isso? Conforme o filme avança o espectador vai recebendo pistas que evidenciam uma infância complicada em que um pai perverso filmava praticamente todos os momentos da vida do pequeno Mark. Mais do que isso, de forma desumana, atormentava o menino com fachos de luz em sua cara para despertá-lo do sono ou colocando lagartos sobre a cama pra assustá-lo. A câmera invasiva flagra tudo: o choro, o trauma, o ódio e outras emoções que se fundem. O ciclo de violência é concluído com o pequeno sendo obrigado a posar ao lado da mãe morta - com o pai abandonando-o em favor de uma nova namorada (e a sequência em que todos aparecem borrados nesse instante é um ótimo exemplo do uso técnico da imagem, que ganha um sentido a mais para quem acompanha). Aliás, um outro mérito tenebroso que quase nos escapa: somos todos voyeurs aqui. Paralisados, incapazes de frear a dor presenciada.

Na época de seu lançamento, A Tortura do Medo foi massacrado pela crítica - o que fez com que a obra sofresse boicotes e a carreira de Powell, diretor de clássicos como Os Sapatinhos Vermelhos (1948), fosse praticamente encerrada. Resgatado mais tarde e elogiado por Martin Scorsese - inclusive do ponto de vista da metalinguagem -, a obra ganharia o status de cult por justamente confrontar o espectador em sua sanha tão observacionista quanto secreta. No escurinho da sala, ao cabo, nos sentimos confortáveis para "assistir fascinados, ainda que horrorizados", como diria o crítico Roger Ebert. Talvez por isso instantes como aquele em que Mark conduz uma figurante em meio a passos de dança enquanto se prepara para encenar a sua morte sejam tão inquietantes. Com cada fragmento envolto em cores vivas, saturadas, que formam um contraste macabro em relação a experiência aterradora aqui conferida. Não haverá, por fim, saída fácil para as perturbações da mente. E para que um filme esteja completo, serão necessárias atitudes extremas. Instigante é pouco.


terça-feira, 2 de agosto de 2022

Na Espera - Não Se Preocupe, Querida (Filme)

Pegue uma pitada de O Show de Truman (1998), acrescente uma dose de Esposas em Conflito (1975) e talvez salpique ainda um tantinho de de A Vila (2004) e talvez tenhamos algo próximo do que o trailer de Não Se Preocupe, Querida (Don't Worry, Darling) sugere. Dirigido por Olivia Wilde - que brilhou no recente e divertido Fora de Série (2019) -, o filme acompanha o jovem casal Alice (Florence Pugh) e Jack (Harry Styles) que vive uma vida aparentemente perfeita, idealizada, em uma pequena cidade situada no deserto da Califórnia nos anos 50. Mas há algo diferente no dia a dia deles e que parece ter a ver com o fato de que o local parece ter sido criado de forma artificial - algo relacionado à um programa experimental da companhia onde Jack trabalha.

Curiosa a respeito da natureza de tudo que a cerca, Alice passará a investigar o que está por trás do misterioso Projeto Vitória, que envolve o seu marido - e, bom, não é preciso ser nenhum adivinho para supor que as descobertas feitas pela protagonista farão ruir a estrutura utópica que se vê no entorno. Tudo construído de forma muito engenhosa, com truques instigantes e um suspense que promete ser envolvente - e que será completado por uma série de prováveis discussões sobre o papel da mulher na sociedade, estruturas governamentais e corporativas e hipocrisia das classes abastadas. Se será tudo isso, ainda é cedo pra saber - o projeto que conta ainda com Chris Pine e a própria Olivia Wilde no elenco, estreia por aqui no dia 22 de setembro de 2022. Por aqui, estamos Na Espera!


Cinema - Um Heroi (قهرمان)

De: Asghar Farhadi. Com Amir Jadidi, Mohsen Tanabandeh e Sahar Goldust. Drama, Irã / França, 2021, 127 minutos.

Quem acompanha a carreira do cineasta iraniano Asghar Farhadi sabe que a deterioração das relações humanas a partir de eventos cotidianos, quase prosaicos, costuma ser a matéria-prima para as suas obras que, ao mesmo tempo, também costumam traçar um panorama político, cultural, social e religioso de seu País de origem. Nesse sentido parte-se do microcosmo muitas vezes doméstico para uma análise do todo, de questões maiores - ainda que poucas vezes o espectro seja ampliado para além do dia a dia daqueles que acompanhamos. Foi assim nos ótimos e premiadíssimos A Separação (2011) e O Apartamento (2016). É assim também com Um Heroi (قهرمان) que, após alguns meses de atraso, finalmente entra em cartaz nas salas do País. Aqui temos a história de um sujeito desesperado que aposta em uma mentira para tentar se livrar da cadeia. E é claro que a coisa desanda e toma proporções enormes, o que afetará a todos que estão a sua volta.

Rahim Soltani (Amir Jadidi) está preso por causa de uma dívida com um agiota que não conseguiu pagar - e eu confesso ter ficado absolutamente surpreso em descobrir que as pessoas podem ser privadas de liberdade por não "pagarem seus boletos", por mais conservador que o Irã seja. Em meio a uma espécie de indulto ele fará o possível para que o seu credor, um certo Bahram (Mohsen Tanabandeh) retire a queixa e aceite uma espécie de acordo para o pagamento (o que envolverá uma boa quantia de dinheiro obtida por vias escusas). Esse é só o começo de uma história cheia de idas e vindas, de tomadas de decisão moralmente duvidosas, de ações corretas e incorretas em cascata e de pessoas entrando no modo sobrevivência a qualquer custo. Com tudo piorando quando a namorada de Rahim, Farkhondeh (Sahar Goldust) se apresentar como pivô de um golpe que envolve o furto de uma bolsa que contém 17 moedas de ouro, e que servirão para quitar parte da dívida.

Quer dizer: servirão em partes, já que Bahram não tá pra negócio - ele só aceita o pagamento integral - o que fará o casal mudar de estratégia, optando pela devolução da bolsa com as moedas. Situação que atrairá a atenção da mídia, convertendo o protagonista em uma espécie de heroi involuntário que, mesmo diante de sua própria desgraça, escolheu não usar aquilo que não lhe pertence para benefício próprio. Dessa forma ele permanecerá na prisão - para tristeza de seu filho pequeno e dos demais familiares, que seguirão no embate. E como desgraça pouca é bobagem, entrará na equação uma generosa instituição de caridade que pretende levantar fundos para auxiliar Rahim em seu pleito. Ainda que toda a história não passe de um grande estratagema em que o "heroi acidental" se empenha em transparecer uma certa benevolência quase ingênua, reforçada pela sua fala mansa e gestos comedidos. Ainda que o sorriso permanente e bizarro - talvez de nervoso - converta-o em uma figura eventualmente psicótica (que mostra os dentes mesmo quando não seria a hora pra isso).

"Onde no mundo as pessoas são celebradas por não fazerem o mal?" A pergunta de Barham à certa altura da projeção parece óbvia, mas em um mundo veloz e tecnológico como o que vivemos é muito comum ver pessoas anônimas ou famosas alçadas a heróis ou vilões nacionais em um piscar de olhos (com as redes sociais tendo papel central nisso). E é assim que Amir Jadidi acrescenta camadas na composição de Rahim, o que faz com que sempre estejamos em dúvida sobre como nos comportar em relação a ele. Devemos torcer? Não gostar? A existência de um filho com deficiência influencia? Ele teve azar ao falir um negócio que o descapitalizou? Ou ele tem algum segredo a mais que pode ter a ver com uma certa predisposição para o charlatanismo (e até para a violência, como sugerem os instantes de explosão)? Para os carcereiros ele parece um homem de boa fé, pronto pra retornar ao convívio à sociedade. Mas até que ponto? Essas incertezas ricas em contradições são o que dão o molho para essa experiência cinematográfica valiosa que nos faz lembrar o tempo todo de que jamais devemos ser precipitados em nosso olhar. Nem tudo é o que parece. Por maiores que sejam as evidências.

Nota: 9,5