sábado, 30 de julho de 2016

Picanha em Série - Stranger Things (1ª Temporada)

[SPOILER ALERT: caso você ainda não tenha visto a série e não quer ter nenhuma surpresa estragada, vai lá e assiste e depois volta aqui pra ler =)]

Não sei se foi a ingenuidade em excesso, a historinha de ficção científica relativamente previsível, ou os arcos dramáticos dispensáveis - em especial aquele que dá conta do "núcleo adolescente" mais xarope desde a finada Dawson's Creek - mas, dado o hype criado nas redes sociais (e em todo o lugar), devo dizer que, ao terminar a primeira temporada da nova série da Netflix, Stranger Things, não pude deixar de ser tomado por certo sentimento de decepção. Não quero aqui soar presunçoso ou excessivamente crítico pelo simples prazer de ser "do contra", mas o fato é que eu esperava mais. Aliás, acho que esperava muito mais - e aqui quem vos escreve é um declarado fã dessa "modinha cultural" (vamos chamar assim) de promover a nostalgia como sentimento máximo, na hora da construção de novos produtos, sejam eles músicas, filmes, ou séries. E, enquanto assistia, juro que aguardava aquele momento ou instante em que tudo viraria de cabeça pra baixo - com o perdão do trocadilho - para que pudesse dizer, nem que fosse mentalmente, um "ahhh, agora sim, tudo se explica!". Mas não rolou, já que o que acompanhei foi apenas um bom entretenimento.

Em fóruns e comunidades internet afora parece que, no que diz respeito a recepção do público, tem ocorrido um fenômeno: pessoas de trinta e muitos anos, ou quarenta e alguma coisa tem avaliado a atração concebida pelos irmãos Matt e Ross Duffer apenas como razoável. Ao passo que adolescentes e jovens de vinte e poucos anos têm curtido MUITO, o que não deixa de se constituir em certo paradoxo uma vez que, justamente quem viveu os anos 80 - a série se passa em 1983 - não tem se emocionado tanto. É o famoso caso da nostalgia por aquilo que não fomos contemporâneos. Mais ou menos o que tentam explicar os personagens da sensacional comédia Meia Noite em Paris, de Woody Allen, que passam a película inteira debatendo o contexto cultural - e político/ideológico - do passado, como um modelo ideal a não ser mais alcançado na atualidade. Assim, passamos o tempo inteiro pensando "bah, que massa que era ou devia ser aquela época. E aqui estamos nós, nesse presente sem graça." Ou vai ver estamos ficando velhos mesmo. E chatos. Sei lá também.



A trama da série se passa em uma pacata cidadezinha do interior dos Estados Unidos, onde um garotinho desaparece misteriosamente, deixando a sua mãe (Ryder, em papel meio histriônico), em desespero. Enquanto tenta desvendar o mistério, com o auxílio de um policial que parece guardar traumas do passado (Harbour), os outros três amigos do jovem também tentam encontrá-lo, buscando pistas próximas ao local em que ele sumiu, que possam levar a solução do caso. A única pista que encontrarão será uma menina de comportamento estranho, perdida no meio do mato, que poderá ser a chave para que a verdade venha a tona. É a partir desse momento que tem início uma versão "moderna" de ET - O Extraterrestre, com a garota, que parece ter alguns poderes especiais, vivendo escondida do restante do mundo. (e são tantas as sequências que fazem lembrar o filme de Spielberg - a hora em que Onze se "fantasia de menina", a fuga de bicicletas -, que, em alguns momentos, Stranger Things quase parece uma refilmagem)

Mas ET não é a única referência da série, sendo possível encontrar, aqui e ali, citações a produtos culturais diversos, como os filmes Conta Comigo, Os Herois Não Tem Idade, O Enigma do Outro Mundo e Alien - O Oitavo Passageiro, além das obras do David Cronenberg, séries como Anos Incríveis, e até mesmo a jogos de videogames modernos, como Silent Hill - esta a meu ver uma das mais gritantes (e impactantes) influências. Em especial nas cenas que envolvem uma espécie de portal para um "submundo correlato de terror" - ainda que o game fosse ser desenvolvido somente nos anos 90. E, mesmo sendo as referências explícitas a outras obras uma das partes mais legais da série, devo dizer que muitas inserções davam a sensação de terem sido forçadamente incluídas, deixando o processo um tanto mais artificial - e, confesso que, para minha decepção, a sequência com a música Heroes, do David Bowie, me pareceu ter sido desenhada pelos roteiristas não como um processo orgânico e, sim, como algo com o único objetivo de induzir a comoção por efeito da "mão pesada". (e se não for isso, me digam) Fora o fato de a trilha sonora, ainda que obviamente boa, parecer estar deslocada em algumas cenas, não combinando com o áudio com aquilo que se vê.



Mas absolutamente NADA é mais irregular (pra não dizer lamentável) do que o já citado núcleo adolescente. Na intenção de reforçar estereótipos que, hoje em dia, já estão (quase) em desuso ou mesmo superados - a bonitinha CDF e estudiosa que se apaixona pelo bonitão atlético e babaca, o bonitão atlético e babaca que é mais babaca ainda do que imaginávamos, o amigo babaca do babaca, o esquisitão que sofre bullying e gosta de fotografia, a amiga nerd e gordinha e por aí vai -, a série não consegue homenagear um período, ou mesmo filmes consagrados como Clube dos Cinco, soando apenas artificial e verdadeiramente irritante. Os exageros nos comportamentos recheados de clichês de todo esse grupo tornam as suas aparições não apenas dispensáveis, mas anacrônicas em todos os aspectos, uma vez que elas não são sequer divertidas - além de pouco contribuírem, como um todo, para o arco dramático central. E, pra piorar tudo, a escolha totalmente equivocada da atriz Natalia Dyer, capaz de fazer durante oito episódios uma única expressão - a da testa franzida e preocupada -, como uma das protagonistas, confere a este segmento um ar de quase tortura, tamanho o aspecto caricato das concepções.

Num contraponto, é louvável o esforço do núcleo infantil em entregar boas interpretações - o jovem que vive o Dustin (Gaten Matarazzo), é um verdadeiro achado. O mesmo valendo para os demais meninos. As exigências da personagem de Millie Brown (Onze) faz com que relevemos pequenas imperfeições - e não se pode negar que, com seus olhos grandes e expressivos, ela compõe uma boa e enigmática figura. Entre os adultos, Ryder exagera um pouco na dose, ainda que consiga emocionar em alguns momentos - e eu particularmente gosto da cena à Interestellar, da conversa com o filho que se encontra "dentro da parede". As conversas à Poltergeist - O Fenômeno, por meio do sistema de luz, podem ser meio surreais, mas até que encaixam no contexto (ainda que não representem algo inovador). David Harbour, como o xerife da pequena cidade, também está bem - ainda que os roteiristas esqueçam, depois da primeira cena, de seu vício compulsivo em cigarros, já que ele simplesmente não aparece mais fumando. E, Matthew Modine? Bom, ele parece estar lá muito mais pelos seus papeis dos anos 80 - faz parte do revival - do que por alguma qualidade secreta no que diz respeito a interpretação.


Tocando de raspão no tema da Guerra Fria - a simbologia da ameaça comunista em um país em que crianças compravam armas de fogo como se fossem barras de chocolate - e na falha completa do American Way Of Life - os pais de um dos guris beiram o patético da paixão republicana que poderá ser revivida agora por Donald Trump -, a série como um todo deixa um sentimento de que, se tivesse tido alguns de seus núcleos enxugados, não forçasse a barra na inclusão das referências e construísse ainda alguns personagens mais complexos (e menos idiotas), talvez o resultado final fosse mais interessante. E mesmo a resolução do último episódio, em que tudo se encaixa de forma tranquila demais e até "meio sem querer" forma um conjunto um tanto anticlimático - ainda que a morte de Onze compense, minimamente, este sentimento. Dito isso tudo, conclui-se de que não é ruim, tem boa direção de arte (os objetos de cena são interessantes e realistas), fotografia granulada que remonta ao período e figurinos ótimos mas, no fim das contas, é apenas ok. Em um mundo em que temos tantas ótimas séries para nos ocupar, ou mesmo filmes como Super 8 (2011), de JJ Abrams - que de certa forma já contemplou o que se vê em Stranger Things -, uma série que busca o passado como fonte de inspiração, mas abre mão de aspectos que poderiam torná-la um tanto mais inovadora, soa apenas como um revival ultrapassado ou uma mera homenagem pro forma. Mas essa é apenas a opinião desse jornalista que vos escreve. E, opinião, oras, o mundo está cheio delas.

Nota: 6,8

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Lado B Classe A - Of Monsters And Men (My Head Is An Animal)

Aaaaah, a sensação de experimentar um daqueles discos que, sabemos, se tornará um dos "do coração". Todos vocês que amam música certamente já passaram por isso. As primeiras audições - muitas vezes recomendadas por alguém. O reconhecimento dos sinais que revelarão o registro como um documento íntimo de nossos gostos mais particulares. A ampliação da apropriação sobre o material a cada novo reencontro - exercício prazeroso que quase nos faz sentir parte daquilo que escutamos. E quando percebemos, o disco já está no repeat em looping infinito e, nós, com a alma desvelada, cantando os refrãos e versos a plenos pulmões, dançando pela casa e, imaginando, enfim, quão bela pode ser a música enquanto exercício de arte. Digamos que é exatamente este o meu sentimento quando penso no primeiro registro dos islandeses do Of Monsters And Men, intitulado My Head Is An Animal, lançado em 2012.

É um trabalho tão descaradamente pop, tão ensolarado e repleto de palminhas, lálálás, heys!, vozes que se encontram em coro e arranjos naturalmente acessíveis que, gostar desse disco, quase se revela em um daqueles "prazeres proibidos" que só nos permitimos sozinhos em casa, sem que ninguém esteja vendo. Mas, verdade seja dita, é justamente ao contrário. Ouvir hits efervescentes como King and Lionheart (a favorita da vida), Mountain Sound, From Finner e Little Talks, parecem ser um convite natural para a reunião de amigos, para os momentos de parceria com quem se gosta, enfim, para a celebração da vida. Fico aqui tentando imaginar - e a internet nos permite chegar muito próximos disso, por meio de vídeos do Youtube - o que deve ser uma apresentação ao vivo desse quinteto, capaz de equilibrar voz, violão, guitarra, baixo e bateria de uma forma que até parece familiar - ainda que nunca óbvia.



A presença de dois vocais, um feminino (Nanna Bryndís Hilmarsdóttir) e um masculino (Ragnar "Raggi" Þórhallsson), é capaz de gerar, dada a natureza indie folk do grupo, inevitáveis comparações com os canadenses do Arcade Fire - sensação ampliada pela existência de outros instrumentos de apoio, aqui e ali, como piano, acordeão e trompetes. (E já posso imaginar os fãs de Win Butler e companhia executando verdadeiros saltos ornamentais de desgosto, com o comparativo entre uma banda cool e totalmente hypada e outra assumidamente pop, feita para o canto das massas em estádios) Os elementos do folk também são capazes de aproximar o grupo de outras bandas bacanas da atualidade, entre elas o Vampire Weekend e o Mumford and Sons - no caso dessa última, se ela não fosse tão rançosa e certinha ao ponto de irritar. (não à toa, Sloom, a única canção meio sem graça, é a que mais se aproxima daquilo que produzem os ingleses)

Apostando em letras que abordam a nostalgia pela juventude que se vai (Six Weeks), a modernidade e a perda da inocência (Dirty Paws), as dificuldades diante de um amor impossível (Love Love Love) e a dor pela existência que chega ao fim (Little Talks), a banda ainda mostra forte versatilidade - até mesmo fugindo do óbvio esquema do lirismo nonsense e do caos cotidiano que ocupa muitas das mentes (afetadas) do mundo da música, nos dias de hoje. Isso sem falar no equilíbrio certeiro entre os momentos mais agitados e aqueles de calmaria, que permitem ao ouvinte um respiro em meio as glórias cantadas a plenos pulmões e os momentos mais íntimos. Se com o disco seguinte, Beneath The Skin (2015), os islandeses mostraram maturidade em canções mais sóbrias e até mesmo introspectivas, foi com a alegria juvenil e o canto alegre, descompromissado e radiofônico de seu primeiro álbum, que conquistaram o mundo. Talvez este nem seja um Lado B, verdadeiramente. Mas, sem dúvida, é Classe A!

Lançamento de Videoclipe - Fernando Motta (Céu)

Mais uma daquelas gratíssimas surpresas de nosso cancioneiro, o mineiro Fernando Motta lançou neste ano, o seu primeiro registro solo, intitulado Andando Sem Olhar Pra Frente - que certamente estará em todas as listas de melhores nacionais do final do ano (podem me cobrar!). Como forma de divulgar o trabalho, o cantor e guitarrista, que fazia parte do coletivo Young Lights, pediu o apoio do parceiro de música Jonathan Tadeu - que também lançou um ótimo registro em 2016, de nome Queda Livre - para a gravação de um clipe para a canção Céu, que abre o disco. O clima introspectivo da música (e do vocal) combina bem com o aspecto bucólico do vídeo, fotografado em um belo preto e branco - ao estilo Chris Isaak em Wicked Games (mas sem as supermodelos, e com muita natureza no lugar). Vale clicar e conferir!

terça-feira, 26 de julho de 2016

Encontro com a Professora - Batman, Superman e Loki (Que Não Tem Nada a Ver Com Isso)

Sempre gostei de super-heróis. Embora tenha me deliciado muito com Tio Patinhas, Mônica e Cebolinha, o que curtia mesmo eram as pilhas de gibis da Liga da Justiça e, principalmente, as do Homem-Aranha e do Batman, meus preferidos. Gosto de pensar que o que me encantava no “Cabeça de teia” e no Morcego era a humanidade deles, no primeiro mais sarcástica e, no segundo, absolutamente sombria. Esses gibis eram a minha leitura clandestina, primeiro roubados do meu irmão, depois comprados, escondido da mãe. E aí, começam os filmes, já que Hollywood nunca perde tempo com a possibilidade de lucro. Foram décadas de produções de êxito, mas relativamente esporádicas, até o boom da DC Comics e, sobretudo, da Marvel, nos anos 2000. Atualmente, creio que as melhores são as que envolvem os Vingadores, com destaque para os filmes homônimos e para a excelente franquia do Capitão América, herói que jamais encantou a minha infância e adolescência.

Ele e o Super-Homem sempre me pareceram insossos demais, naquele fervor patriótico (apesar de um deles ser alienígena). Os uniformes entregam a principal missão deles: salvar o mundo, leia-se EUA, do perigo que vem de fora – o que soa completamente irônico em relação ao Superman, mas que, ao mesmo tempo, revela o “inevitável” amor pela América. E sabemos todos de que América se está falando. A atual franquia do Capitão rompeu um pouco com isso: manteve a disciplina, mas acrescentou personalidade. Gostei mesmo e, no geral, adoro estabelecer as relações entre os filmes e os quadrinhos, lembrar as genealogias, se se pode chamar assim, dos vilões e a trajetória dos heróis. Coisa de nostálgicos.



Mas, quando tudo parece perfeito, eis que surge Batman versus Super-Homem – a Origem da Justiça (2016), dirigido por Zack Snyder. O filme é incoerente do começo ao fim e peca, principalmente, por fazer o que a franquia do Homem-Aranha fez. Ou seja, encher o enredo de vilões, tornando todos subaproveitados. Não é novidade para ninguém a importância que tem um bom vilão, com o perdão do trocadilho. Loki que o diga...

Eis que Batman odeia Superman que odeia Bruce Wayne. Para mediar a birra entre os dois meninos, surge a Mulher-Maravilha (Gal Gadot) que, aliás, lembra muito a Lynda Carter do seriado entre 1975 e 1979. O ódio entre os dois heróis nasce de forma inverossímil, transformado Wayne em alguém que não pensa e fixa as próprias frustrações no oponente. Ora, Bruce sempre um personagem complexo, não obtuso. E, ainda que saibamos pouco sobre os possíveis tormentos psicológicos de Clark Kent, é fácil perceber que conhece as agruras de ser herói. Portanto, a briga deles poderia ser facilmente resolvida numa conversa de bar. Dando-se conta disso, finalmente, Snyder começa a encher o filme de inimigos de ambos os heróis. E, aí, só podemos esperar que o filme termine logo. Ou que Loki apareça...


Na trama, Ben Affleck volta a atuar como nos primeiros tempos, isto é, sem expressão. A boa notícia é que agora sabemos que não houve trauma com Daredevil, de 2003. Henry Cavill se confirma como um dos rostos mais simétricos do cinema. E só. E ainda tem o Jesse Eisenberg, compondo um histriônico Lex Luthor, o que, mais uma vez, detona com o tempero de um bom anti-herói. No final, quando assume a feição careca, como é conhecido, a cena a la Darth Vader é de matar! Enfim, falar mal de Batman versus Super-Homem renderia laudas, mas ninguém precisa perder tempo com cinema ruim. E sempre resta algo. No meio dessa confusão toda, escondidinho, está Jeremy Irons – que deve ter uma dívida enorme para pagar – com seu sotaque britânico maravilhoso, deixando saudade em cada aparição. E, só para repetir, também senti falta de Loki. Muita falta.

Texto: Rosane Cardoso

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Pérolas do Netflix - Em Nome de Deus (The Magdalene Sisters)

De: Peter Mullan. Com Anne-Marie Duff, Nora-Jane Noone, Dorothy Duffy, Geraldine McEwan e Eileen Walsh. Drama / Terror, Irlanda / Reino Unido, 2001, 122 minutos.

Margaret (Duff), Bernadette (Noone) e Rose (Duffy) são três criminosas da pesada. Margaret, a primeira meliante em questão, cometeu o absurdo de ser estuprada por um primo durante um casamento em família. Pode um negócio desses? Bernadette não fica atrás, no quesito pouca vergonha, já que andava pela escola flertando com os meninos - e isso pelo simples fato de ser uma garota jovem e bonita. Não é estarrecedor? E, não sei dizer se o caso de Rose não é ainda pior, já que a danada teve um filho - pensem vocês - fora do casamento. Fora do casamento! Uma barbaridade! Dado esse cenário, não haveria outra alternativa para as criminosas que não o envio obrigatório, por parte das famílias de cada uma delas, para a prisão, certo?

É evidente que estou ironizando neste primeiro parágrafo, mas se essa sinopse parece coisa de algum roteirista tresloucado que estudou a fundo o papel da mulher em algum lugar muito distante - talvez a Idade Média - saiba que este é apenas o retrato da Irlanda patriarcal dos anos 60. Sim, anos 60, há pouco mais de 50 anos atrás. A "prisão" em questão eram asilos católicos em que as jovens eram enviadas - normalmente pelos pais - para receber todo o "amor de Deus" em forma de humilhações variadas, castigos físicos e trabalho escravo por tempo indeterminado. O objetivo era fazer elas "pagarem os seus pecados". Sem discussão, sem revisão de pena, sem abonos de quaisquer tipos, era lá que centenas de milhares de moças tinham não apenas a juventude, mas as suas vidas cerceadas. Tudo com vistas a obter a redenção pelos pecados da carne - com anulação de qualquer tipo de prazer em vida, com trabalho além do limite humano e proibições de todos os tipos. O tipo de sofrimento experienciado, muito provavelmente, pelos escravos.



O que mais surpreende no filme muito bem construído pelo ator Peter Mullan - em sua segunda e, até o momento, última, incursão como diretor - é saber que a obra é baseada em fatos reais. As instituições das Irmãs Madalenas existiram de verdade, tendo por base a história da própria Maria Madalena  - discípula tida como pecadora pelo fato de vender o seu corpo aos "depravados". Estima-se que mais de 30 mil mulheres tenham sido aprisionadas em asilos desse tipo - sendo a última lavanderia que se tem conhecimento, fechada em 1996. E só esse contexto histórico-religioso, muito bem construído - além de pesado, dramático, melancólico - já é digno de nota na hora de avaliar essa verdadeira Pérola perdida pelos cantos do Netflix. É um filme sufocante, vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza, e que certamente permanece por horas conosco, após o final da projeção.

Apresentando o microcosmo da instituição como um cenário verdadeiramente opressor, com salas pequenas, apertadas e quentes, a obra ainda investe em uma fotografia azulada e empalidecida, como forma de ressaltar o sentimento permanente de terror vivido pelo grupo de jovens que, cheias de vida, sequer tem o direito de conversar enquanto executam suas tarefas. Nesse sentido, não deixa de ser marcante a cena em que uma das internas "descobre" uma porta aberta para o exterior, onde ela se depara com a natureza cheia de vida e colorida, provavelmente, como nunca ela havia percebido durante a sua existência, até o momento de passar pela clausura. E o fato de retornar para o pátio da entidade, ainda que houvesse essa brecha - ampliada pelo desastroso encontro com um homem que não poderia ser mais machista e preconceituoso - serve para dar conta do medo que rondava as "detentas", que poderiam sofrer severas punições por esse tipo de mau comportamento.


Ainda que tenha pesado um pouco a mão ao apresentar a madre superiora (McEwan) e todas as demais madres como se fossem "o diabo em pessoa" - não posso crer que nenhum delas tivesse um mínimo de piedade ou sentimento de fraternidade para com essas "almas pecadoras" - o filme aposta ainda em pequenas sutilezas para demonstrar o poder da Igreja nas comunidades católicas tementes à Deus. E, nesse sentido, não deixam de ser sintomáticas as sequências em que a madre superiora conta o (farto) dinheiro recebido para manter a lavanderia ou mesmo aquelas que mostram a diferença "nutricional" entre os cafés de ambas as classes - a das madres e a das internas. Em uma época em que a intolerância e a violência contra a mulher ainda reinam - e parecem ganhar força com discursos misóginos internet afora, legitimados por aberrações políticas como o deputado Jair Bolsonaro - um filme como Em Nome de Deus não é apenas uma aula de bom cinema. É também um documento histórico sobre tempos obscuros que, esperamos, jamais retornem.

sábado, 23 de julho de 2016

Disco da Semana - The Avalanches (Wildflower)

Tente imaginar como seria uma parceria musical envolvendo Kendrick Lamar e Jamie XX. Agora some a isso a imagem de um filme dirigido por Spike Lee em que, num daqueles impensáveis paradoxos, seus personagens passam o dia curtindo a vida na beira da praia, ao som de Beach Boys - ou qualquer outra com espírito litorâneo. Dentro das casas, o burburinho das pessoas se mistura ao do gramofone - que toca algum álbum clássico do The Supremes, lançado nos anos 60 -, com o da TV ligada em algum desenho animado, como aqueles que (pensamos que) não são mais feitos hoje em dia. Nas ruas um vendedor opera o realejo com o objetivo de chamar a atenção do grupo de estudantes que aguarda a entrada na matinê, enquanto artistas performáticos utilizam-se de roupas multicoloridas, com a intenção de se destacar em meio a multidão. Coloque todos estes referenciais em um liquidificador - adicionando ainda um amontoado de outras pitadas de "cultura pop", escondidas em algum canto de nossos cérebros nostálgicos - e está feito o caldeirão que (tenta) definir o que significa o recém lançado disco Wildflower, dos australianos do The Avalanches.

Esse verdadeiro caleidoscópio sonoro - recheado de samplers, efeitos, reverbs e outras programações eletrônicas - já era o que ocorria, em alguma medida, no hoje já clássico e único registro anterior disponibilizado pelo grupo, intitulado Since I Left You. Recheado de idas e vindas no tempo, recortes musicais (e fílmicos) variados e sonoridades perdidas que parecem suplicar para serem encontradas, a obra ainda possibilitava, à época, as sobreposições diversas que chegavam a beirar a aquilo que poderia ser considerado uma espécie de "esquizofrenia musical". Sem medo de brincar com estilos diversos, como o trip hop, o house, a música eletrônica, o jazz, o R&B, a surf music e até mesmo o synthpop, o trio - hoje formado por Robbie Chater (teclados e guitarra), Tony Di Blasi (teclado, baixo e vocal de apoio) e James Dela Cruz (toca-discos, teclados) - logo alcançou, com o registro inaugural, o sucesso não apenas de público, mas de crítica, o que fez com que o trabalho figurasse em todas as listas de melhores do ano 2000.



O longo hiato de 16 anos - explicado pelo fato de um dos integrantes (Etoh) ter sido deportado -, nem parece ter relevância, tamanha a capacidade absolutamente natural do coletivo, em dar continuidade ao tipo de material apresentado ao mundo em Since I Left You. Tendo como diferenciais um uso maior do hip hop - algo que pode ser percebido já no ótimo single Frankie Sinatra - e uma busca por uma sonoridade aparentemente mais acessível, os australianos buscam, com Wildfower, claramente se adequar a lógica de consumo atual, certamente diferente daquela existente há 16 anos. E que conta com ouvintes que, num mundo urgente, caótico e cheio de informação, parecem estar acostumados ao esquema estrofe-refrão-estrofe - o que talvez explique a adoção, em um maior número, de canções que contenham letras ou versos amparados por uma espécie de charme-retrô, ou mesmo que sejam perfumadas por uma ambientação litorânea próxima da de vertentes psicodélicas e acolhedoras - e que muito encontramos em bandas atuais. Tudo isso sem abandonar as suas origens, claro.

Como forma de consolidar este modelo, os australianos contam com uma série de participações especiais, como Jonathan Donahue do Mercury Rev (Colours), Toro Y Moi (If I Was a Folkstar), Father John Misty (Saturday Night Inside Out) e Ariel Pink (Live a Lifetime Love). Algo que serve também para dar uma ideia da importância do conjunto, do espírito colaborativo utilizado e da atenção àquilo que se está produzindo de melhor em termos de musical atual. Se com a sessentista Because I'm Me, o The Avalanches tem uma das prováveis melhores músicas do ano, com outras, como a psicodélica Wildflower a adocicada e oitentista Colours, a intoxicante Stepkids e a efervescente Subways, o trio - e seus colaboradores - parece dar conta da multiplicidade de possibilidades e do espírito democrático que parece prevalecer em suas construções - que, de quebra, nunca parecem isoladas em si. I feel in love for sunshine, canta a banda durante s singular Sunshine. Pra nós ouvintes é um resumo do sentimento, ao escutar este Wildflower.

Nota: 9,1


quinta-feira, 21 de julho de 2016

Cinema - Marguerite (Marguerite)

De: Xavier Giannoli. Com Catherine Frot, André Marcon, Michel Fau, Christa Théret e Sylvain Dieuaide. Drama / Comédia, França / Bélgica / República Tcheca, 2015, 129 minutos.

Existe uma frase atribuída ao escritor George Bernard Shaw que bem poderia definir aquilo que assistimos no ótimo Marguerite (Marguerite), esse verdadeiro achado do cinema francês que está em cartaz pelas salas do País: "os espelhos são usados para ver o rosto, a arte para ver a alma". Baseado em fatos reais, o filme do diretor Xavier Giannoli conta a história da baronesa Marguerite Dumont (Catherine Frot), que costuma organizar saraus e outros eventos artísticos privados, em sua mansão, com objetivo de levantar fundos para crianças órfãs ou outras entidades em vulnerabilidade social. Por acreditar ter uma boa voz, a ricaça eventualmente "presenteia" o público que lhe prestigia com exibições de música clássica. O problema é que ela canta mal. Aliás, mal não. MUITO MAL. E, dada a sua generosidade e inegável interesse pessoal, claro, ninguém parece estar muito disposto a dizer a ela a verdade sobre o seu "talento" (ou falta de) musical.

A situação piora quando o jornalista pé-rapado Lucien (o ótimo Sylvain Dieuaide) resolve fazer o contrário e publicar, no jornal em que trabalha, uma resenha elogiosa à uma das apresentações de Marguerite. Reanimada, após uma noite de dúvidas acerca de suas performances, a baronesa decide levar a "carreira" adiante, programando uma apresentação em público para o futuro. Diga-se de passagem, o contato com Lucien, que lhe apresentará o submundo da produção cultural, com cantores, atores e escritores a margem da sociedade, além de outras personas burlescas da Paris dos anos 20, representará uma reviravolta para a baronesa. Algo como uma espécie de A Princesa e o Plebeu artístico, em que uma mulher rica conhecerá a efervescência e o turbilhão cultural, político e ideológico vivido pela França naquela época - e que culminará em uma desastrosa apresentação de Marguerite em um cabaré decadente do subúrbio.



Nesse sentido, a obra se torna inspiradora inicialmente por "pincelar" o momento político vivido pelo País, no período, mas também por fugir daquilo que seria o arco dramático mais óbvio - a representação do elemento cômico nas insistentes tentativas da baronesa em se tornar uma cantora de verdade. Circunstância que amplia a relevância do debate, costurando a trama com ambiguidades e elipses que nos fazem, permanentemente, questionar sobre aquilo que pudesse ser considerado "arte de verdade". Inegavelmente Marguerite, de acordo com as convenções - especialmente as burguesas, do início do século passado - é uma péssima cantora. Mas, num contraponto, ela não é um espírito que busca se transformar (e se elevar) por meio da arte? Ignorando inclusive o marido "mala" que insiste que ela não prossiga com as suas tentativas frustradas? Assim, na persistência de Marguerite não encontramos apenas libertação e empoderamento, mas também alma, esperança, e até mesmo alguma visceralidade e dedicação a um propósito. (alguém aí lembrou do punk rock?)

É evidente que o filme não deixa de lado o viés cômico - e as cenas com o improvável professor Atos Pezzini (vivido pelo ator Michel Fau) estão, desde já, entre as mais engraçadas do ano - e é com gosto que admito ter CHORADO DE RIR na primeira cena em que Marguerite apresenta seus dotes a ele. Ainda assim, como numa espécie de contraponto, tudo é tratado de uma forma solene e elegante e, mesmo as curvas fora do tom, o desafinamento e a dificuldade com as notas mais agudas da baronesa, são tratadas com respeito e até mesmo com um tom suntuoso pela produção - algo ampliado pela seriedade com que ela encara as suas apresentações, com direito a álbum de fotos surrealista e figurinos luxuosíssimos. (e, mesmo assim, é quase impossível não lembrar da personagem de Gloria Swanson no clássico hollywoodiano Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard, 1950), dado o caráter expressionista das manifestações ou mesmo o espírito esquizofrênico da composição da protagonista, especialmente a partir do terço final)



Com personagens riquíssimos e ambíguos - até o fim do filme não temos a exata certeza sobre as reais intenções de Lucien, ainda que reconheçamos seu espírito anárquico e disposto a destruir convenções ou mesmo desmascarar a hipocrisia reinante na burguesia -, a obra ainda capricha no desenho de produção, com uma riqueza cênica digna de nota. A trilha sonora invariavelmente recheada de grande mestres da música clássica - Mozart, Vivaldi, Verdi, Bach - certamente contribuirá para a construção da história. Pecando apenas no uso de alguns coadjuvantes mal aproveitados - a cantora Hazel (Christa Théret) e o cartunista Kyrill (Aubert Fenoy), apenas para citar esses dois exemplos que poderiam acrescentar outras camadas à obra - esta comédia dramática burlesca (e maravilhosa) ainda reserva para o final alguns momentos de tensão dignos dos melhores suspenses da atualidade. Até que ponto estamos dispostos a trilhar nossos caminhos, por aquilo que gostamos? Marguerite, com seus modos sutis, sua persistência tocante e sua alma artística - a seu modo - chega próxima de nos revelar. O que não é pouco.

Nota: 9,1

PS: o filme é baseado na história real da ricaça Florence Foster Jenkins, que teria verdadeiramente tentado a carreira de cantora de ópera no começo do século passado. Para quem se interessar, a versão hollywoodiana - tendo Meryl Streep como protagonista - também circula em circuito comercial. O filme se chama Florence: Quem É Essa Mulher, e é dirigido por Stephen Frears.

Na Espera - Wilco (Disco)

Os fãs do Wilco tiveram uma ótima notícia nesta semana, com o anúncio de um novo registro - intitulado Schmilco - apenas um ano após o lançamento do ótimo Star Wars, que chegou de surpresa, em 2015, sendo um dos melhores internacionais do ano, aqui pra nós do Picanha. A exceção deste, há quem diga que a qualidade dos álbuns mais recentes dos norte-americanos possa ser questionada - nós somos suspeitos, pois gostamos demais da banda de Jeff Tweedy e companhia. Mas ainda assim, há algo que não se pode negar: a banda voltou muito a fim de mostrar trabalho e tenta resgatar a qualidade já mostrada em discos fundamentais como Being There (1996) e Yankee Hotel Foxtrot (2002).


O novo trabalho, décimo da carreira de Tweedy e seus parceiros de banda, teve a capa divulgada - uma divertida série de desenhos elaboradas pelo cartunista espanhol Joan Cornellà -, bem como a lista de canções (serão doze no total). O disco chega ao mercado no próximo dia 09 de setembro - mas os fãs mais ansiosos já podem aproveitar a pré-venda no iTunes para adquirir o álbum, que contará com os singles Locator e If I Ever Was a Child, divulgados entre a última e esta semana. De antemão, o que pode-se depreender das canções é que o Wilco parece promover um retorno a uma musicalidade mais "pura" do country alternativo - sem tantas invencionices, como em Star Wars - remetendo a registros anteriores, como Sky Blue Sky (2007) e o já citado Yankee Hotel Foxtrot. Por aqui, nem é preciso dizer: estamos MUITO Na Espera!


quarta-feira, 20 de julho de 2016

Picanha Cast 15/07/2016

Picanha Cultural participando da semana em homenagem ao Dia Mundial do Rock na rádio Univates.

Lá falamos da importância do rock em nossas vidas e também dos discos da semana.

Programa Enciclopédia 95 &1
Apresentação: Ariana de Oliveira

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terça-feira, 19 de julho de 2016

Cinemúsica - Pulp Fiction: Tempo de Violência

É praticamente impossível falar da equação música + cinema sem pensar em Quentin Tarantino. Muitos diretores utilizaram o expediente com o objetivo de enriquecer as suas experiências cinematográficas, mas, talvez a exceção de Cameron Crowe (de Vanilla Sky e Quase Famosos), poucos tiveram a eficiência desse ex-balconista de videolocadora, que levou a paixão pela sétima arte ao limite, ao se tornar um dos mais importantes realizadores da atualidade. Para Tarantino, muito mais do que a execução do ponto de vista técnico - com enquadramentos precisos, desenho de produção adequado, interpretações impecáveis ou fotografia bem produzida -, o importante mesmo é se divertir. E a música - assim como os videogames, as séries japonesas, os antigos filmes de faroeste spaghetti ou as histórias em quadrinhos obscuras -, é preciso que se diga, tem papel fundamental nesse processo.

Se com o inaugural Cães de Aluguel (1992), o diretor utilizou a trilha sonora de uma maneira digamos, mais econômica, foi com Pulp Fiction - Tempo de Violência (Pulp Fiction), que Tarantino explorou ao máximo as possibilidades do uso da música como parte importante da construção fílmica - capaz de alterar as sensações ou mesmo a nossa percepção sobre aquilo que estamos vendo. Utilizando-se de um verdadeiro caldeirão de referências sonoras, o diretor vai do surf rock - na primeira cena do filme, durante os créditos iniciais quando da execução de Misirlou, regravação de Dick Dale para uma clássica canção grega -, passa pelo boogie woogie do Kool and the Gang - quando vemos Jules (Samuel L. Jackson) e Vincent Vega (John Travolta) conversarem sobre "massagens nos pés" - até chegar ao romantismo lascivo da quente Let's Stay Togheter de Al Green, executada durante a cena em que o boxeador Butch (Bruce Willis) conversa com seu chefe Marcellus Wallace (Ving Rhames), sobre uma luta que ele deve entregar.


Mas é provável que nenhuma canção tenha se tornado tão clássica e referencial, quanto a versão do Urge Overkill para Girl, You'll Be a Woman Soon, regravada a partir do original de Neil Diamond, apresentada pela primeira vez em registro de 1967. Até hoje é praticamente impossível escutar a canção sem lembrar do filme - e da cena em que ela aparece. A sequência ocorre logo após a famosa competição de twist no bar Jack Rabbit's Slim (outra cena clássica!), quando Mia (Uma Thurmann) e Vega dançam ao som de You Never Can Tell de Chuck Berry - é a famosa coreografia da dancinha com os dedos em "V" cruzando o rosto, tão imitada até hoje. Ao chegar em casa, Mia coloca a música em um disco de vinil, enquanto Vega, preocupado com a pouco apropriada aproximação com a "mulher do chefe", vai ao banheiro. É o momento em que Mia praticamente se mata de tanto cheirar e que faz com a trama promova mais uma de suas tantas reviravoltas.

A propósito do roteiro intrincado, a trilha sonora praticamente onipresente - especialmente na primeira metade da película - contribui para criar o clima cool/retrô que serve de amparo para um roteiro que, em linhas gerais, apresenta um panorama sobre a violência em diversas cidades dos Estados Unidos. Utilizando-se de elipses, flashbacks e outras trucagens de edição, Tarantino mantém o espectador ligado em três histórias que ocorrem em paralelo e que serão conectadas, com o desenrolar do filme. Quando Vega aparece, por exemplo, utilizando inexplicáveis calção, chinelo de dedo e camiseta ao estilo "coxinha", no início da projeção, apenas mais tarde entenderemos os motivos disso. Ao brincar ainda com o conceito de "nascer de novo", o diretor ainda subverte a lógica da "segunda chance na vida" para os personagens, apenas para, no instante seguinte, escancarar em nossas telas o fato de que a violência não escolhe nem hora e local.


Abusando, ainda, do charme em diálogos irresistíveis, Tarantino constroi uma obra que utiliza um modelo que, de maneira geral, seria praticamente onipresente em sua filmografia. Os referenciais diversos, recheados de citações a séries, filmes, jogos e HQs de outrora, retornariam ainda em muitas outras ocasiões, talvez atingindo a sua plenitude nesse quesito nos dois filmes da série Kill Bill, lançados em 2003 e 2004. Também nessas películas, o diretor utiliza os temas musicais variados - indo de Quincy Jones a Ennio Morrocone, passando por Johnny Cash e Nancy Sinatra - para ancorar a história sobre a noiva (Uma Thurmann) que praticamente renasce, em busca de vingança. Mas foi com a trilha sonora diversificada, eclética, e com uma indefectível veia pop de Pulp Fiction - Tempo de Violência, que Tarantino pavimentou o terreno para este tipo de abordagem, sentindo-se seguro, a partir dali, para brincar ainda mais com o modelo.

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Novidades em DVD - A Bruxa (The Witch)

De: Robert Eggers. Com Anya Taylor Joy, Ralph Ineson, Kate Dickie e Harvey Scrimshaw. Terror, EUA / Canadá, 2015, 93 minutos.

Se interpretado ao pé da letra, um bom filme como este A Bruxa (The Witch) pode ter efeito contrário e servir justamente para que religiosos mais fervorosos utilizem a película para embasar opiniões no estilo "viu no que dá desrespeitar a Igreja ou os seus símbolos"? Algo que, pode-se dizer, seria lamentável se ocorresse e que retiraria da obra uma de suas maiores virtudes - a de utilizar a transição para a fase adulta e o reconhecimento da sexualidade de uma mulher jovem, como uma metáfora para a ruína e a destruição de uma família inteira. Ainda que a película de Robert Eggers não esteja completamente livre de tal associação, dado o seu conteúdo e a forma como é apresentada a história, o diretor estreante parece confiar plenamente na capacidade interpretativa de seu público - o que por si só, não deixa de ser uma bela virtude.

A trama se passa em uma comunidade extremamente religiosa da Nova Inglaterra, no começo do século XVII. É lá que vive o casal William (Ineson) e Katherine (Dickie) e seus cinco filhos. Ainda que levem uma vida cristã, a obra inicia justamente com a expulsão da família do local por terem o seu "modelo de fé" questionado pelas autoridades locais. Sem ter para onde ir, os sete integrantes se instalam em um local isolado, à beira de um bosque. À escassez de comida e os poucos recursos disponíveis se somam a uma outra tragédia: o desaparecimento misterioso do filho mais novo, um bebê recém-nascido, justamente quando este estava aos cuidados da filha mais velha do casal, a adolescente Thomasin (Taylor Joy). A desconfiança inicial de que o bebê pudesses ter sido capturado por um lobo, aos poucos vai dando lugar a outra probabilidade, esta um tanto mais sinistra: a de ter sido sequestrado por uma bruxa que poderia viver na floresta.


Não é preciso ser nenhum adivinho para saber que, essa crise inicial com o sumiço do caçula, vai ser o estopim para o desmantelamento do núcleo familiar, conforme as suas suspeitas começam, aos poucos, a se concretizar. A situação piora quando o jovem Caleb (Crimshaw) também desaparece após uma saída de campo para tentar resgatar o irmão, em uma jornada que contava também com a presença da irmã. As seguidas desgraças ocorridas com a família fazem com que os pais - especialmente a mãe - desconfiem que Thomasin possa ser uma bruxa, que enfeitiçou todos os integrantes. O fato de o recém-nascido não ter sido batizado ainda, quando da expulsão da comunidade, tornam a situação ainda mais comovente, uma vez que todos parecem cientes de estarem experienciando uma espécie de "ira divina" a partir dos fatos ocorridos.

Ainda que, aqui e ali,Eggers não resista aos sustinhos no estilo "bigorna caindo", é preciso que se diga que o diretor - que venceu o Festival de Sundance do ano passado, em sua categoria - costura a trama utilizando muito mais as sugestões do que as imagens óbvias, apresentando, durante a projeção, uma série de figuras de linguagem que sugerem a decadência familiar, por obra apenas de seus integrantes e não por qualquer tipo de bruxaria, ação sobrenatural ou raiva de Deus. Quando o foco de visão de Caleb passa a ser o decote da Thomasin e, a filha mais velha, ao mesmo tempo, passa a ser uma espécie de "protegida" do pai, a impressão que se tem não é outra que não seja a de incômodo provocado por uma jovem na flor da idade - e pela mais pura incapacidade de TODOS os integrantes da família em lidar com este fato. Eventualmente Thomasin parece ser uma bruxa? Sim, parece. Mas mais do que isso: ela é uma simples moça.


Baseado em relatos reais do que seriam os "ataques de bruxas" em uma Inglaterra ainda muito distante da Era Vitoriana, o filme tem ainda como mérito o uso de um inglês arcaico, que torna ainda mais realista a percepção dos eventos ocorridos. Com uma paleta de cores eventualmente escurecida e acinzentada, a fotografia, assim como a trilha sonora, contribuem para que o suspense quase sufocante permaneça com o espectador praticamente durante toda a projeção - e não deixa de ser fascinante a capacidade do realizador de gerar um clima de tensão que mostra o mínimo possível e sugere muito mais, como mostram as cenas na floresta e a presença de animais, como o bode. O final exagerado e meio "ao pé da letra" no que diz respeito aos relatos podem decepcionar alguns - e ampliar a sensação sobre aquilo que é descrito lá no primeiro parágrafo desta modesta resenha. Mas, ainda assim, no que diz respeito ao exercício de estilo, pode-se dizer que este A Bruxa está acima da média.

Nota: 7,8

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Disco da Semana - Biffy Clyro (Ellipsis)

O trio escocês Biffy Clyro é uma banda relativamente pouco conhecida no Brasil, apesar de ser bastante cultuada no Reino Unido - onde obteve o título de melhor banda pelo New Musical Express à época de seu lançamento anterior, o álbum Opposites, de 2014. Formada em 1995, a banda chega a seu sétimo disco com o lançamento de Ellipsis, após ter liderado uma série de festivais importantes. Lembro direitinho quando assisti seu show no iTunes Festival alguns anos atrás e me surpreendi com uma performance visceral e explosiva. Seguindo a cartilha do melhor rock alternativo produzido atualmente, o trio investe mais uma vez em uma produção caprichada que deve alçar o grupo ainda mais ao mainstream, cravando de vez seu nome entre as grandes bandas da atualidade - posto este que começou a ser galgado a partir do álbum Puzzle, de 2007.

Ao optar pelo produtor Rich Costey (Fiona Apple, Muse, Franz Ferdinand, entre outros) houve uma sensível mudança na sonoridade dos escoceses, trazendo uma produção recheada de elementos eletrônicos e truques de estúdio espertos, de forma a dar novas camadas ao som da banda. Interessante notar como as características tão associadas ao grupo continuam presentes: seja nos riffs de guitarra, nas quebras de andamento ou no peso conjugado às melodias radiofônicas, as composições do líder Simon Neil não causam estranhamento aos fãs que esperavam mais daquilo a que já estavam acostumados - embora em entrevistas Neil tenha dito que este era o "melhor disco", ou "o mais experimental" até o momento. Se existe algum experimentalismo aqui é mais na busca de elementos inéditos (o uso da eletrônica mencionado anteriormente) mas que de forma alguma descaracterizam o seu etilo já consagrado.


O primeiro single, Wolves of Winter, impressiona já na abertura do disco: com bateria e guitarras marcantes, traz o que de melhor a banda sabe fazer: peso, visceralidade e melodia, tudo casado perfeitamente com a produção meticulosa de Costey. A seguinte, Friends and Enemies, tem tudo que um hit radiofônico exige: eletrônica na medida, versos, backing vocals e refrões melodiosos, guitarras encorpadas encaixadas em momentos certeiros e uma letra amargurada (embora irônica) que ficará grudada como chiclete na cabeça do ouvinte. O segundo single, Animal Style, é outro petardo: um rockão no melhor estilo do Biffy que deve agradar em cheio os fãs de outrora. Liricamente este talvez seja um disco mais denso, pelo menos se comparado às obras anteriores. As letras de Neil estão um pouco mais pessimistas e desoladas. Até as baladas tem um quê de tristeza: se na linda Re-Arrange temos Neil se desculpando (em uma suposta canção feita para sua esposa) e agradecendo o apoio recebido em um momento de depressão, tentando reajustar a sua vida e de sua companheira, na acústica Medicine temos o sujeito da canção lamentando, reconhecendo seu problema e o quanto isso prejudica a convivência com seus pares, bem como sua busca por alívio em subterfúgios que o fazem esquecer de si próprio.

Talvez o único problema de Ellipsis seja lançar suas melhores cartas logo no início da audição. Com uma primeira metade praticamente irrepreensível, cria-se uma expectativa que falha em se concretizar. Embora canções como Herex (com seu andamento quebrado e melodia bacana) ou Flammable (outra candidata a single para tocar no rádio) sejam cativantes, o terço final desaponta um pouco. Se em On a Bang temos novamente o peso e uma harmonia que nos pega de surpresa, Small Wishes consegue ser apenas simpática ao emular o country em uma canção que destoa do resto. Howl traz um rock inofensivo e previsível enquanto que People é uma balada que, de forma desesperançosa, promete um ápice que jamais chega, encerrando a obra em uma nota agridoce que deixa um gosto levemente amargo na boca do ouvinte. A edição deluxe do álbum traz a dispensável Don't, Won't, Can't e a boa In the Name of the Wee Man, não modificando o resultado final.

Sem ser a maravilha toda que a banda prometeu, nem seu melhor álbum (os discos Opposites e Only Revolutions continuam sendo meus favoritos), Ellipsis pode e deve contribuir para que o Biffy Clyro alcance novos públicos e chegue aos ouvidos via FM's da vida, com seu som peculiar pronto para conquistar os apreciadores do bom rock. E não seria nada mal ver os caras aparecendo no Brasil para alguns shows, visto que suas apresentações ao vivo conseguem ser ainda mais intensas que seus discos.

Nota: 8,0.

quarta-feira, 13 de julho de 2016

05 Discos Essenciais do Rock (por Marcelo Petter)

Quem acompanha o Picanha sabe que, ao menos do ponto de vista musical, costumamos ser extremamente democráticos no que diz respeito às escolhas de artistas que aparecerão em nossos quadros. Assim, vertentes como pop, música eletrônica, samba, R&B e jazz, se misturam a estilos modernos como o chillwave, o freak folk e o dream pop, formando um caldeirão musical que resulta em resenhas de artistas tão distintos quanto a Rihanna ou o Animal Collective. Mas e o rock - que tem o seu famoso Dia Mundial celebrado neste 13 de julho? Bom, o rock é diferente, claro, já que o estilo - que surgiu e se popularizou no mundo, no começo dos anos 50 - certamente contribuiu, e muito, para a nossa bagagem cultural e até mesmo para a formação daquilo que podemos chamar de "gosto musical". Afinal de contas, todo o mundo tem as suas preferências na hora de falar do estilo musical mais diversificado (e barulhento) do planeta!


E foi pensando em tudo isso que resolvemos chamar quem realmente entende do assunto para nos ajudar. A nosso convite o amigo, parceiro aqui do site, e colega de profissão Marcelo Petter, coordenador da Rádio Univates FM 95.1, de Lajeado, elaborou uma lista com 05 Discos Essenciais do Rock. E, é preciso que se diga, o nosso querido brother Marcelão (como é conhecido pelos chegados), é uma verdadeira AUTORIDADE - com todas as letras maiúsculas - quando o assunto é o bom e velho rock'n roll, com direito a cursos, capacitações, estudos e trabalhos de conclusão que envolvem o tema. E nem é preciso dizer que a Rádio Univates - canal em que "todo o dia é dia de rock" - está com uma programação especialíssima, durante toda essa semana, tocando não apenas as clássicas, mas todas aquelas canções que embalam os corações de roqueiros mundo afora. Segue a lista do Marcelão, que não está em ordem de preferência.



#05 The London Howlin' - Wolf Sessions (1971) – Álbum clássico de blues lançado pela lendária Chess Records, e que traz um compilado de sucessos de uma das figuras mais representativas do seu precioso cast: Howlin' Wolf. Com uma banda de apoio formada por nomes como Eric Clapton, Steve Winwood, Charlie Watts e Bill Wyman e fantásticas interpretações fica fácil perceber porque Wolf se tornou referência e fonte de inspiração de tantos artistas e bandas que vieram a seguir e trilharam a estrada do blues e do rock'n'roll, entre elas The Rolling Stones.




#04 Woodstock - Music from the Original Soundtrack and More (1970) – A opção de escolher cinco discos indispensáveis é difícil. Então como forma de incluir grande parte de meus ídolos musicais em um trabalho apenas, foi esse álbum. Além de ser um apaixonado pelo tema, a parte musical traz a nata do showbizz da época em sua melhor forma. A visceralidade com que Joe Cocker se apropria de With a Little Help From My Friends, dos Beatles, demonstra da melhor forma possível o sentimento daquela geração que queria mudar, e mudou, o mundo, em três dias de paz, amor e música. Janis Joplin, Jimi Hendrix, The Who, Arlo Guthrie, Santana e tantos outros mostram que a música transcende crenças, geografias e épocas, com o perdão da redundância.



#03 The Beatles - Let It Be (1970) – Impossível também deixar os caras de Liverpool de fora. Let It Be, na minha opinião apresenta a verdadeira cara dos Beatles. Mesmo que desgastados diante de sua curta até, porém intensa trajetória, esse fechamento de história é de uma categoria impressionante. Impossível não se emocionar ao som de I've Got A Feeling, no telhado da Apple, em Savile Row.



#02 Rolling Stones - Let It Bleed (1969) – A máxima de que sempre depois de um Beatles deve rolar um Stones, ou vice-versa, se encaixa também na minha seleção. Mesmo que exista a eterna comparação de quem foi/é o melhor, acho que na verdade eles se complementam. O contraponto dos Stones ao “bom mocismo” dos Beatles, mesmo que estratégia de marketing, foi salutar à ambas as bandas. Esse disco particularmente me fisgou já pela abertura, Gimme Shelter, um petardo onde Jagger e Merry Clayton dão um show de interpretação e arrepiam até hoje quem a ouve. E o fechamento não poderia ser mais adequando com You Can't Always Get What You Want, que além de belíssima nos dá uma sacudida e alerta que nem sempre podemos ter tudo que queremos, literalmente.



#01 Led Zeppelin - The Song Remains The Same (1976) – Como gosto de todos os álbuns do Led Zeppelin (minha banda favorita), vale colocar o clássico concerto no Madison Square Garden, em 1976. Os maiores clássicos dos ingleses ali estão, tanto de disco como filme, contando a história, mesmo que de forma lúdica muitas vezes, do que foi e é o Led Zeppelin. Banda em que os quatro integrantes se fundem de uma maneira que no momento que um deles partiu, a banda acabou. O legado ficou e até hoje se aguarda ansiosamente por um retorno, que mesmo que parcial, jamais será o bom e velho Led. But, até hoje THE SONG REMAINS THE SAME!

E então, pessoal, curtiram a lista do Marcelão? Certamente não apenas para ele, mas para qualquer um de nós, fazer uma relação desse tipo não é nada fácil! Mas pra você, qual disco não pode faltar de jeito nenhum quando o assunto é rock'n roll? Escreve aqui pra nós!

terça-feira, 12 de julho de 2016

Cine Baú - A Canção da Estrada (Pather Panchali)

De: Satyajit Ray. Subir Bannerjee, Una Dus Gupta, Chunibala Devi e Karuna Bannerjee. Drama / Índia, 1955, 125 minutos.

"Isto é um filme?" Por mais incrível que possa parecer, é exatamente esta a pergunta que nos vêm a mente quando assistimos ao clássico indiano A Canção da Estrada (Pather Panchali), tamanho o naturalismo das interpretações, o espírito documental e o realismo dos acontecimentos, na obra comandada por Satyajit Ray. Não parece simplesmente cinema e sim algo superior no que diz respeito a formatos artísticos, como se algum pesquisador ou historiador tivesse resolvido fixar a sua câmera em algum lugar remoto da região de Bengala - que, geograficamente, se situa entre Bangladesh e Índia. Tudo para acompanhar o dia a dia de uma pobre família que, sem dinheiro e com poucos recursos, ainda tem as suas vidas devastadas por uma série de acontecimentos trágicos. A grande maioria deles mostrados a partir dos pontos de vista dos filhos Apu (Subir Bannerjee) e Durga (Una Das Gupta).

Não há exatamente um fio condutor de história, que possa guiar o espectador em uma lógica de início, meio e fim tão bem estabelecida pelos padrões hollywoodianos. Tampouco há atores bonitos, bem maquiados, com cabelos impecáveis ou bem vestidos. A fotografia é insistentemente amarelada. As filmagens são angulosas e, às vezes, até mesmo distantes. Mas há muito poder naquilo que se vê e que, até os dias de hoje, permanece enquanto critica social, seja em países mais pobres ou mais abastados. Há uma potência latente, quase inebriante e que torna a experiência não menos do que consagradora para quem a aprecia. Por exemplo, há uma vizinha mais bem de vida - que talvez pudesse até ser considerada a "burguesia" no vilarejo. É ela o alvo de Durca na hora de roubar goiabas que possam alimentar a decrépita nonagenária (Chunibala Devi), chamada apenas de "tia".



A tia é um capítulo a parte. Filmada como se fosse um ser monstruoso aparece quase como uma espécie de paradoxal "vilão" para a obra, uma vez que, interessada apenas em suas próprias necessidades, suga toda a energia da filha e mãe das crianças, de nome Sarbajaya (Karuna Barnejee). Ambas brigam o tempo todo. A tia resolve fugir de casa. Durca vai atrás e se preocupa, entendendo a importância dos mais velhos. E quando a notícia do nascimento de Apu chega até ela, resolve retornar para a família. Todas essas ocorrências, e tantos outras dessa película mágica, são filmadas com extrema delicadeza, tornando tocantes até mesmo os momentos mais singelos - como quando Apu e Durca "encontram" o trilho do trem (num contraponto entre um mundo tecnológico e urgente e um outro rural, bucólico e de sujeitos que, aos olhos do mundo, vivem escondidos).

Mas provavelmente nenhum personagem tenha um arco dramático tão comovente quanto o pai da família, Harihar (Kanu Bannerjee). Ainda que tenha uma veia poética e nítida aptidão para as artes, trabalha dia e noite para levar o melhor no que diz respeito ao sustento da família e ao pagamento das contas que se acumulam. Quando parte para uma jornada de quase meio ano em busca de um emprego melhor, retorna para casa com grandes notícias e recheado de presentes para todos que ali ficaram. Animado, espera que Sarbajaya conte as novidades do local. Mas tudo que a esposa consegue fazer é chorar, pois, o isolamento, aliado as dificuldades financeiras, ao desconhecimento e até mesmo a uma certa má sorte, levaram à família uma das mais duras tragédias. E a cena em que Harihar desaba em dor está, certamente até os dias de hoje, eternizada nos corações dos cinéfilos.



Baseado no livro do escritor bengali Bibhutibhushan Bandyopadhyay esta verdadeira obra-prima do cinema asiático abriu caminho para outras duas obras - O Invencível (1957) e O Mundo de Apu (1959) - que mais tarde ficariam conhecidas como Trilogia de Apu e que recentemente receberam edição nacional. Ainda que, evidentemente, não tenha sido fácil para Ray, um publicitário e cinéfilo de carteirinha, ter levantado os recursos necessários para as suas obras - algo possível não apenas com o apoio do governo indiano, mas também de diretores como John Huston e Jean Renoir -, no Festival de Cannes daquele ano o diretor recebeu o honroso prêmio de "Melhor Documento Humano", além de uma menção especial. Além disso, a obra é figura fácil em listas de melhores, aparecendo em publicações diversificadas como os 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer e os 50 Grandes Filmes de Todos os Tempos da Sight and Sound Magazine. Por tudo isso, mais do que justificada a presença no nosso Cine Baú.

Na Espera - Aquarius (Filme)

Em mais um ano recheado de obras com super-herois (Batman Vs. Superman, Capitão América: Guerra Civil), continuações de blockbusters (Independence Day: Ressurgimento), reboots (A Lenda de Tarzan, As Caça-Fantasmas), um dos filmes mais aguardados do ano - ao menos para nós, aqui do Picanha - é o nacional Aquarius - que estreia por aqui no dia 01 de setembro. Dirigido por Kléber Mendonça Filho (do espetacular O Som ao Redor), a trama conta a história de Clara (Sonia Braga), jornalista aposentada, viúva e mãe de três adultos, que mora em um apartamento na avenida Boa Viagem, no Recife, local onde criou seus filhos e viveu boa parte de sua vida. A situação muda quando um grupo de empreiteiros - interessados em construir um novo prédio no local - adquire quase todos os apartamentos, menos o de Clara, que não pretende vender o seu imóvel, passando a sofrer todos os tipos de pressões, a partir de sua decisão.


Com trilha sonora impactante, o trailer carrega no clima de suspense, prometendo um embate forte entre uma mulher que luta para preservar a memória de sua família - ligada ao local em que sempre morou - e o grupo de empresários, interessado apenas em ganhar dinheiro, independentemente do destino que será dado ao cidadão"comum". Sonia Braga parece estar arrebatadora no papel da protagonista, emanando ao mesmo tempo força e serenidade para enfrentar as pressões exercidas pelos poderosos - sendo elogiada por diversas publicações, por sua construção. O filme também tem recebido críticas elogiosas mundo afora, sendo representativo também em festivais, com uma série de conquistas já alcançadas. Junte-se a este contexto todo o falatório em cima do protesto promovido pelo elenco durante o Festival de Cannes - chamando a atenção do mundo para o golpe em curso, em nosso País - e está construído o cenário para uma obra que promete, e MUITO. Por aqui, somos pura expectativa!

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Encontro com a Professora - Phoenix (Phoenix)

De: Christian Petzold. Com Nina Hoss, Ronald Zehrfeld, Uwe Preuss e Nina Kunzendorf. Drama, Alemanha, 2014, 98 minutos.

Conta a mitologia egípcia que a fênix é uma bela ave de asas coloridas, única da sua espécie, que, quando sente que vai morrer, faz um ninho de folhas aromáticas, deita-se nele e incendeia-se. Das cinzas, renasce como uma nova fênix, cuja missão é transportar os restos de sua antecessora para o altar do deus Sol. Com base nesse mito, em uma interpretação possível, se constrói Phoenix, filme alemão de 2014, dirigido por Christian Petzold. No elenco, estão Nina Hoss, Ronald Zehrfeld, Uwe Preuss, Nina Kunzendorf. Há momentos em que lembra um pouco Ida, aquela maravilha de 2013. E, para melhorar, é um filme embalado por um delicioso cancioneiro jazzístico, com destaque para Speak low, de Kurt Weil.

A trama, ambientada na devastada Alemanha pós-Segunda Guerra, conta a história de Nelly, cantora que fora aprisionada pelos nazistas. Durante o tempo no campo de concentração, seu rosto foi desfigurado por um tiro. De volta à liberdade, um cirurgião plástico restaura a sua face. Agora, ela está pronta para procurar o marido desaparecido, Johnny, e ela transforma esta busca no seu objetivo de vida. No entanto, quando Nelly finalmente o reencontra, no bar Phoenix, ele não a reconhece. Ou, pior, percebe que é muito parecida com a “falecida” e arma um plano: ele irá treiná-la para que finja ser Nelly. Assim, ele poderá usurpar a fortuna da esposa. Meio tonta pela situação, a mulher aceita o embuste, sempre na esperança de que Johnny a reconheça ou que demonstre, de alguma forma, que ainda ama a esposa desaparecida. Mas, na medida em que convivem, o marido que ela imagina vai se desvanecendo, apesar da sutil atração que existe entre ambos.



Este plot facilmente poderia se transformar num clichê romântico. Mas a direção segura de Petzold não permite isso. Às vezes, o filme quase escorrega para o melodrama. Uma cena como o suicídio de Lene, amiga de Nelly, poderia parecer improvável. No entanto, demarca bem o desespero do pós-guerra. Propositalmente minuciosa, seguimos passo a passo a transformação da protagonista, o rosto ferido, depois marcado pela cirurgia e pela longa reabilitação. Isso cria, apesar da morosidade narrativa, uma expectativa ante o provável reconhecimento de Johnny em relação à esposa. Parece-nos que, na medida em que ela for recuperando a aparência, ele irá percebê-la como sua mulher. Mas ela está morta para ele.

Não deixa de ser, retomando o mito da fênix, o momento em que Nelly deveria renascer. Só que ela não está preparada para deixar as próprias cinzas. Encontrar o marido é a única coisa concreta que existe neste mundo novo e brutal. Felizmente, chega um momento em que ela consegue cantar de novo. É quando Speak low se fixa na cabeça da gente, contando uma história que só a genialidade de Kurt Weil poderia compor.


Texto: Rosane Cardoso

sábado, 9 de julho de 2016

Picanha Cast - 01/07/2016

Neste Picanha Cast, falamos um pouco sobre o disco "Grace" do Jeff Buckley e do stand-up original da Netflix, Bo Burnham: Make Happy.

Apresentação: Ariana de Oliveira
Programa Enciclopédia 95&1 FM, da rádio Univates FM.

www.univates.br/radio
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sexta-feira, 8 de julho de 2016

Disco da Semana - Wado (Ivete)

O cantor Wado talvez seja, na atualidade, um dos artistas que melhor represente aquilo que conhecemos por "novas formas de se consumir música". Em 15 anos de carreira, são nove discos lançados. Sim, NOVE. Todos eles disponíveis em seu site, para download gratuito. Sério, com alguma habilidade da arte de clicar e de extrair música dos arquivos, em talvez no máximo sete minutos, é possível ter todos os registros à sua disposição. Não existe mais música boa sendo feita no País, atualmente? Ao contrário, nunca se fez tanta música boa, diversificada, acessível, capaz de dialogar com todos os extratos da sociedade, indistintamente. O que mudou foi como ouvimos. Se o Wado não tem nenhuma música tocando nas rádios - não sejamos injustos com os nossos queridos da Univates FM, aqui de Lajeado, que desde a semana passada já incorporou o single Alabama à sua programação - não importa. NÓS podemos escolher o que ouvir. E isso, é verdade, a tecnologia tem de bom.

Em sua diversificada obra, o catarinense sempre foi mestre em se apropriar dos mais variados estilos, absorvendo características sonoras distintas e transformando-as em um produto ao mesmo tempo divertido, irônico, repleto de crítica social e MUITO brasileiro. E tudo isso sem esquecer daqueles elementos capazes de transformar uma canção em uma arte de consumo imediato, direto, sem firulas. Wado é pop, mas é hip hop, rap - esses dois estilos muito presentes em seu cancioneiro e em discos variados, como, Cinema Auditivo (Diabos), A Farsa do Samba Nublado (Grande Poder) e Atlântico Negro (Boa Tarde Povo, Rap Guerra do Iraque), mas é rock, música eletrônica, samba, funk, baladinha romântica, reggae... e agora é axé, como entrega o nome de seu mais recente registro, Ivete.



Produzido pelo próprio cantor - e gravado no estúdio Gravamusic - o álbum procura, de acordo com o material de divulgação, ir além daquilo que já foi feito anteriormente em Atlântico Negro (2009), buscando esmiuçar e vasculhar os guetos. "Ivete é a musa a não ser alcançada, ela é norte, mas não é ela quem canta no disco", explica o artista. "Ela é a musa intocada da empreitada". Uma atenta audição ao disco nos permitirá inferir que, para o cantor, a escolha pela vertente também está relacionada a um caráter ideológico, social e racial. O axé, enquanto manifestação artística, surge em meados dos anos 80, na Bahia, promovendo uma mistura de ritmos africanos e latinos, com reggae, forró e maracatu. "Musicalmente, procura-se evocar os primeiros discos solo de Moraes Moreira", explica Wado, em alusão ao cantor baiano, que poderia ser considerado um dos precursores da vertente que, mais tarde, seria impulsionada pela mídia.

Não à toa, o catarinense regrava Gilberto Gil e Moreno Veloso (Filhos de Ghandi), apresentando ainda uma nova coleção de canções capazes de evocar artistas diversos como Timbalada e Carlinhos Brown. Se o disco é enxuto em tamanho - são apenas 24 (imperdíveis) minutos - ele é grande no que se propõe, sando da zona de conforto naquilo que poderíamos considerar um artista já estabelecido, e com uma boa gama de fãs, dentro do nosso cancioneiro. Se as letras saem um pouco do caráter mais questionador em relação ao contexto político atual, observado anteriormente, para apostar num clima mais festivo - e até mesmo sensual (Um Passo a Frente, Sexo, Você Não Vem) -, é porque Wado também quer se divertir, gerando uma música que equilibra frescor e leveza a partir do diálogo entre a tradição e o moderno. Os fãs agradecem.

Nota: 8,0


quinta-feira, 7 de julho de 2016

Lançamento de Videoclipe - Courtney Barnett (Elevator Operator)

He said “I think you’re projecting the way that you’re feeling.
I’m not suicidal, just idling insignificantly.
I come up here for perception and clarity,
I like to imagine I’m playing Sim City.
All the people look like ants from up here,
and the wind’s the only traffic you can hear.”

(Courtney Barnett - Elevator Operator)

A australiana Courtney Barnett lançou, no ano passado, o disco Sometimes I Sit and Think, and Sometimes I Just Sit, trabalho que figurou entre os 25 melhores de 2015 - e se você ainda não o escutou, faça um bem a si mesmo e ouça-o, porque é maravilhoso! Como forma de seguir divulgando o registro, a cantora publicou na tarde de ontem um clipe para a deliciosa canção Elevator Operator. Recheado de participações especiais - entre elas, as meninas do Sleater-Kinney e o vocalista do Wilco Jeff Tweedy - o vídeo mostra a artista como uma ascensorista que encontra os mais variados (e esquisitos) tipos de pessoas. Abusando do bom humor - algo que também ocorre em suas letras ácidas, que versam sobre o cotidiano e a banalidade da vida durante a juventude - Courtney constroi uma divertida narrativa, no vídeo assinado pelo diretor Sunny Leunig. Vale clicar e conferir!


quarta-feira, 6 de julho de 2016

Cinema - Independence Day: O Ressurgimento (Independence Day: Resurgence)

De: Roland Emmerich. Com Liam Hemsworth, Jeff Goldblum, Bill Pullmann, Jessie Usher, Sela Ward, Maika Monroe e Charlotte Gainsbourg. Ficção científica / Ação, EUA, 2016, 115 minutos.

Em geral não sou avesso à continuações no cinema, desde que haja boas histórias a ser contadas. Se é assim com séries, que muitas vezes esgotam todas as suas possibilidades em intermináveis temporadas, por quê não haveria de ser também com os filmes? Ocorre que, na maioria dos casos, as sequências funcionam claramente como um veículo destinado a gerar dinheiro para produtores e executivos do setor, na ânsia de faturar uns pilas a mais com produtos já há muito desgastados. E, infelizmente, é preciso que se diga que o que ocorre com esse Independence Day: O Ressurgimento (Independence Day: Resurgence), é exatamente isso. Prestes a completar 20 anos do lançamento do primeiro filme, num agora já longínquo 1996, a data era uma ótima ocasião para, na onda dos reboots, retomar a série. Não havia por quê não acreditar: a tecnologia avançou, o mundo mudou bem como o pensamento, enfim... juro que acreditei que esta podia ser uma ótima continuação. Mas não é.

Tudo o que primeiro filme tinha de legal, de tenso, de divertido, inexiste nessa sequência. Posso estar sendo nostálgico talvez, mas em 1996 tudo era diferente. Para assistir um filme era realmente necessário ir ao cinema - ou aguardar o lançamento em vídeo cassete. Netflix? Internet para buscar alguma versão online? Nada. Lembro de ter ido com a família assistir a obra estrelada por Will Smith no antigo cinema do Geneshopping. Foi um dos acontecimentos do ano. Passamos dias falando do filme, que depois chegou a criar uma certa aura cult - a obra (pasme) figura até mesmo no livro 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer. Mas não é por acaso. A história era levemente inovadora - ao menos no que dizia respeito ao quesito "destruição do mundo" -, o elenco era absolutamente carismático - a química entre Smith e Jeff Goldblum é impagável -, o suspense tornava o filme quase sufocante - a cena em que, pela primeira vez, a sombra da grande nave mãe toma mãe toma conta de tudo, certamente está na memória dos fãs de cinema. Só que tudo isso se perdeu nessa sequência. Até as cenas de ação conseguem ser piores. E isso que o diretor é o mesmo.


A trama, praticamente igual a do primeiro, retoma os eventos ocorridos 20 anos atrás. De lá para cá, a Terra se uniu para combater o perigo alienígena, com direito a instalações construídas em Saturno e na Lua para monitoramento da movimentação dos OVNIs. Como os ETs também gostam de comemorar o 04 de julho - o Dia da Independência americana - eles resolvem retornar ao nosso planeta exatamente nesse dia, após receberem uma espécie de "pedido de socorro" interplanetário, vindo dos presos "políticos" mantidos em nosso solo. Isso significará uma nave-mãe ainda maior e aparentemente mais poderosa, que chegará ao nosso planeta sem nenhum tipo de suspense, de modo grosseiro, com o objetivo de sugar a energia de nosso núcleo magnético (se é que entendi direito), comprometendo assim a nossa existência.

Digamos que a parte do "se é que não entendi direito" não é de graça. Ainda que a obra se trate de uma diversão escapista e "nada cerebral", poucas vezes assisti a um filme tão confuso. Seja nas explosões, nas batalhas aéreas ou de solo, tudo é uma bagunça só, sensação ampliada pela fotografia permanentemente escurecida e pelo desenho de produção artificial. Além disso, ID2 tem dezenas de personagens. Além de resgatar Goldblum (que vive o cientista David Levinson) e Pullmann (o agora ex-presidente Whitmore), além de outros do original, era necessário acrescentar novos personagens, que despertassem a empatia das novas gerações, o que ocorre com o piloto Hiller (Usher), filho do personagem de Smith, a agente Patrícia (Monroe) filha de Whitmore e Jake Morrison (Hemsworth), que interpreta o bonitão descolado, que faz tudo ao contrário mas salva o dia, porque, afinal de contas, cinema catástrofe precisa de bons clichês no que diz respeito aos personagens, quase como um atestado de sua lógica de existência. Mas isso é quase nada, se comparado ao amontoado de personagens secundários absolutamente dispensáveis e que não causam NENHUMA comoção em quem assiste. Até a Charlotte Gainsbourg tá lá no meio, sabe-se lá fazendo o quê. E, nesse contexto, nada pior do que assistir a morte de um personagem que deveria ter alguma importância e não fazer muito caso já que, afinal de contas, os próprios personagens parecem não se importar muito, fazendo piadinhas bobas (e sem graça) o tempo todo, mesmo em situações de real perigo. E, muitas vezes, pouco depois da morte de algum ente querido.


Abusando, ainda, da paciência dos espectadores com diálogos quase surreais de tão improváveis ("vamos chutar algumas bundas alienígenas", "compraremos aquela casa que você tanto sonhou se ela ainda estiver lá quando voltarmos"), a obra ainda peca naquilo que poderia ter de mais representativo, no caso o significado e a importância da união dos povos enquanto IGUAIS na "luta" por uma causa maior e comum. Algo mostrado ao final do primeiro filme e, muito melhor explorado no até hoje clássico O Dia em Que a Terra Parou (1951). Sem se preocupar ainda com uma eventual misoginia, o filme parece retratar as mulheres apenas como "acessórios" de seus maridos/namorados/pais, cabendo a elas o papel apenas de aguardar o retorno de seus fortes, machos e patriotas homens de volta para casa. (e de preferência com o jantar já posto) Para um filme que gerou tanta expectativa, ID2 é mais catastrófico do que o próprio gênero do qual faz parte. E a perspectiva de uma série de filmes já encomendada daqui para frente, não é nada menos do que tenebrosa. Nesse caso, acho que nem os aliens nos salvarão.

Nota: 1,6

terça-feira, 5 de julho de 2016

Grandes Cenas do Cinema - Luzes da Cidade (City Lights)

Filme: Luzes da Cidade
Cena: Vendedora de flores finalmente encontra o seu benfeitor

Vamos combinar que não seria nenhum exagero fazer o quadro Grandes Cenas do Cinema apenas com os filmes do "vagabundo" mais famoso da sétima arte, dada a quantidade quase infinita de sequências icônicas entregues pelo mestre Charles Chaplin em suas obras. O próprio Luzes da Cidade (City Lights), lançado em 1931, tem muitas cenas clássicas, mas certamente nenhuma delas supera o epílogo, momento revelador em que a vendedora de flores - vivida de forma absolutamente tocante pela atriz Virgínia Cherril -, finalmente encontra e reconhece o seu benfeitor.



O nosso querido protagonista passa o filme inteiro fazendo a plateia rir em meio a uma série de desventuras após salvar um excêntrico milionário de um suicídio, fazendo amizade com ele. Só que o ricaço não o reconhece quando está sóbrio, apenas quando está bebaço, o que resultará em alguns mal-entendidos - além de várias sequências engraçadas, como a da janta, em que Carlitos se confunde e come uma serpentina como se fosse espaguete. Em paralelo a isso, o nobre vagabundo conhece uma vendedora de flores cega e resolve fazer de tudo para levantar a grana que possa ajudá-la a fazer uma cirurgia para recobrar a visão.

Carlitos acredita que o ricaço possa ser o caminho para alcançar seu objetivo, se sujeitando, inclusive, a alguns "empregos" fajutos que não dão muito certo - como o de lutador de boxe (em mais uma cena memorável). Após muitas tentativas, Carlitos alcança o seu objetivo mas acaba preso pela polícia. Quando ele é solto, em um dia inesperado, ele reencontra a florista, que não o reconhece de imediato. O que se vê a partir daí é absolutamente comovente, com a vendedora, que agora pode ver, inicialmente utilizando um tom de deboche em relação do homem que parece "paralisado" em frente a loja em que trabalha. Ao sair e perceber, após tocar seu braço, que se trata de seu benfeitor, ela tem uma epifania, proferindo a frase de duplo sentido - "agora eu posso ver" - mais icônica do cinema. Não é uma cena para chorar. É uma cena para derrubar RIOS de lágrimas. E tudo feito da forma mais natural possível, com interpretações singelas, sutis e que se valem muito mais dos olhares e dos silêncios, do que das palavras. (até mesmo pelo fato de Chaplin ter renegado a tecnologia sonora, optando pelo cinema mudo até quase o final de sua carreira) Simplesmente inesquecível!


segunda-feira, 4 de julho de 2016

10 Discos Para Morrer Antes de Ouvir (De Artistas que Gostamos)

O pessoal da Revista Bula fez, recentemente, um divertidíssimo post com os 20 Livros Para Morrer Antes de Ler, que procurava ajudar as pessoas a evitarem o "desperdício da existência", ao sugerir obras em que era preferível manter a distância - e olha que tinha muito autor consagrado lá no meio! Como nós, do Picanha, adoramos copiar boas ideias somos muito criativos, resolvemos aplicar a mesma lógica para bandas e cantores que gostamos e que, em algum momento de suas carreiras, pisaram feio na bola com algum registro absolutamente dispensável. O velho chavão diz que "é melhor ser surdo do que ouvir certas coisas". Bom, "certas coisas", no nosso caso são os 10 Discos Para Morrer Antes de Ouvir. Boa leitura!

#10 Belle and Sebastian (Fold Your Hands Child, You Walk Like a Peasant, 2000): os escoceses têm muitos discos legais, para que você se preocupe em perder tempo com o pior registro da carreira de Stuart Murdoch e companhia. Após três álbuns absolutamente matadores - Tigermilk (1996), If You're Feeling Sinister (1996) e The Boy With The Arab Strap (1998) - todos eles recheados por aquela fofura urgente, ao mesmo tempo melancólica e ensolada que conquistou todos os indiezinhos dos anos 90, a banda resolveu dar uma invetadinha básica: baixou um pouco o ritmo, incorporou elementos excessivamente sutis de orquestração romântica e soou repetitiva até mesmo quando não era. O resultado foi um álbum cansativo, chato e, hoje, só lembrado com carinho pelos fãs mais ardorosos. E olhe lá.


#09 Silversun Pickups (Better Nature, 2015): quando surgiu em 2006 com o ótimo Carnavas, o Silversun Pickups apareceu como uma grata surpresa que mergulhava diretamente nos anos 90, bebendo de fontes tão distintas como o Smashing Pumpkins e o bem... o Smashing Pumpkins, novamente. Sim, a banda parecia DEMAIS com o grupo comandado por Billy Corgan, mas os hits do registro eram tão efervescentes e de uma alma roqueira tão intensa que o trabalho chegou a figurar em listas de melhores daquele ano. De lá para cá foram mais três discos. Todos eles repetindo fórmulas que foram se tornando a cada dia mais cansativas. Hoje, o Silversun Pickups - pela sua absoluta falta de capacidade para se reinventar - pode ser considerada apenas a "banda chata que parece o Smashing Pumpkins". Uma pena.


#08 The Strokes (Angles, 2011): quando foi divulgado o single Under Cover Of Darkness, os fãs chegaram a salivar pela real possibilidade de reencontrar o Strokes de início de carreira, aquele mesmo de Is This It (2001) e que todo mundo amava - especialmente após o lançamento do apenas regular First Impressions Of Earth (2006), hoje vendido em lojas de músicas nos balaios, a "preço de banana". Mas a canção se mostrou um legítimo oásis no meio do deserto. Em um disco absolutamente irregular Julian Casablancas e companhia fizeram uma maçaroca sonora que tinha música caribenha (Machu Picchu), rock oitentista (Two Kind Of Hapiness), cancioneiro eletrônico de gosto duvidoso (You're So Right) e outras tantas invencionices. A sensação foi a mesma de perder Gre-Nal em casa. Terrível.


#07 Coldplay (Ghost Stories, 2014): o Coldplay nunca foi o bicho, todos sabemos, mas nesse disco, lançado em 2014, o grupo abusou da paciência até do fã mais devoto. Com o relacionamento com a atriz Gwyneth Palthrow terminado no começo daquele ano - para desespero das revistas de fofocas -, Martin resolveu injetar toda a sua "força criativa" nesse registro. Quer dizer, "força criativa" é mais uma expressão. Com um apanhado de músicas lentas, melancólicas e de letras sobre sofrimento amoroso, o vocalista exorciza os demônios - e quase manda junto o ouvinte pra bem longe, com tanta tristeza traduzida em música ruim. Sorte que, quase ao final do álbum, a belíssima A Sky Full Of Stars - traz de volta aquela bandas que, em algum momento lááá do disco Parachutes (2000), aprendemos a gostar.


#06 Manic Street Preachers (Send Away The Tigers, 2007): existe um certo paradoxo nesse álbum, já que uma das canções que mais ouvi da banda, o megahit You're Love Alone Is Not Alone, está nesse registro. Mas, definitivamente essa música - que conta com a parceria da cantora Nina Persson do Cardigans - não representa de maneira alguma o cancioneiro dos galeses, que tão bem misturam britpop com rock melódico. Não bastasse esse fato, o restante do disco jamais alcança a grandiosidade, a imponência e o significado de trabalhos fundamentais como The Holy Bible (1994), Everything Must Go (1996) e This Is My Truth Tell Me Yours (1998). Foi, definitivamente, uma pequena bola fora. Tanto que, no trabalho seguinte, a banda já voltou a boa forma com o até hoje lembrado Journal for Plague Lovers (2009).


#05 Cícero (Sábado, 2013): com o disco Canções de Apartamento (2011) o músico carioca Cícero deu uma verdadeira aula de como fazer um grande disco. Gravou e tocou todos os instrumentos, se apropriou de um referencial diversificado da música moderna, misturou tudo com uma MPB sofisticada, mas sem soar rebuscada, e cunhou, talvez, o melhor trabalho nacional daquele ano. Com direito a, no mínimo três canções inesquecíveis: Tempo de Pipa, Ensaio Sobre Ela e Vagalumes Cegos. Com o jogo todo ganho, qual deve ser o passo seguinte? Um disco todo ao contrário, desconstruído, hermético, de verve concretista, voltado a satisfazer absolutamente ninguém que não seja a si próprio. Cícero poderia ter demonstrado o eventual virtuosismo ou mesmo refinamento de outras formas. Assim, fez um disco chato, sem pé nem cabeça, com o pior da MPB moderna que tanto irrita parte da crítica.


#04 Smashing Pumpkins (Zeitgeist, 2007): tudo o que o Smashing Pumpkins tinha de versátil e de bacana no início de carreira, com uma vasta capacidade de explorar sonoridades distintas - fosse com a potente psicodelia roqueira de Cherub Rock, o pop adocicado de Today ou mesmo as orquestrações elaboradas e surrealistas de Tonight Tonight se perdem completamente com esse dispensável registro de 2007. Billy Corgan, com uma inadvertida ânsia de reaparecer para o mainstream, tocou (praticamente) todos os instrumentos, tornando o disco uma sequência de canções excessivamente soturnas, pouco inspiradas e repetitivas. Pode até parecer uma espécie de maldição, mas desde esse trabalho, o Smashing Pumpkins jamais foi o mesmo, lançando com Oceania (2012) e Monuments Of a Elegy (2014), trabalhos não mais do que médios.


#03 The Killers (Battle Born): tudo que a banda de Brandon Flowers tinha de legal - as emanações pop/oitentistas, os refrões pegajosos, as letras sarcásticas - parecem ter desaparecido nesse registro, que dá a impressão de ter sido feito a toque de caixa. Infelizmente nada se salva nesse trabalho, que é só aborrecimento em meio a construções óbvias e vocal choroso. Até mesmo a capa do disco parece estranha. A crítica já tinha torcido o nariz para o irregular Day & Age, lançado em 2008. Só que quando Battle Born veio ao mundo ele se mostrou etão ruim, que o disco anterior, recheado de hits - Human, This Is Your Life, Spaceman, The World We Live In - ficava parecendo uma obra-prima. Sorte que Flowers já recuperou a boa forma com uma ótima carreira solo de, até agora, dois discos lançados.


#02 The Decemberists (Hazards Of Love, 2009): O Decemberists vinha de uma sequência de três discos fundamentais - Her Majesty (2003), Picaresque (2005) e The Crane Wife (2006). Neles, apresentavam o melhor de seu som, uma mistura de "rock de cabaré", música circense e vaudeville, com instrumentos distintos como violino, xilofone e acordeão e personagens enigmáticos, como, baronesas, prostitutas, concubinas e reis mouros. A propósito, uma banda criativa e original como poucas, nos dias de hoje. Agora, entender os motivos pelos quais o grupo resolveu fazer uma espécie de opera-rock com ecos de heavy metal neste intragável Hazards Of Love) é algo que até o fã mais engajado deve se perguntar até hoje. Não à toa, a banda superou esse (quase inadmissível) tropeço, lançando, no trabalho seguinte, seu disco mais acessível: The King Is Dead (2011).


#01 Mumford and Sons (Babel, 2012): o mais incrível do Mumford and Sons é que, muito provavelmente, eles mesmo perceberam que são uma banda chata pra cacete e resolveram mudar de estilo no mais recente registro, intitulado Wilder Mind (2015). Não tá escrito em lugar nenhum que se você se apropriar de um filão mais do que batido - o das musiquetas country tocadas com banjo, com letrinhas chorosas e autocomiserativas e, ainda amparadas, por uma inadvertida aura de culto religioso - será garantia de música boa. Tudo nesse disco parece certinho demais, coxa demais, como se o quarteto fosse uma espécie de gaveta organizadora em que tudo está no seu devido lugar, resultando num trabalho oco, pouco inspirado e nada autêntico. Talvez não seja nem justa a presença do M&S nessa lista, já que, em geral, seus discos são muito fracos. Mas não resisti.

E pra vocês? Existe algum disco em que é preferível morrer do que ouvir? Nos escreva nos comentários! =D