sexta-feira, 31 de julho de 2020

Pérolas da Netflix - Frances Ha (Frances Ha)

De: Noah Baumbach. Com Greta Gerwig, Adam Driver, Mickey Sumner e Michael Zegen. Comédia dramática, EUA / Brasil, 2012, 86 minutos.

É muito provável que vocês já tenham tido a sensação de estar parados, estagnados no mesmo lugar enquanto, ao redor, o mundo acontece. É um tipo de sentimento que faz com que pareçamos menores do que tudo. Em nossa volta, as pessoas estão conquistando, estão consumindo, estão chegando na vida adulta com os boletos em dia, enquanto compram casas espaçosas e programam dois ou três filhos para as próximas temporadas. Nas redes sociais, as vidas parecem alegres, há uma evolução constante. Não há tempo pra olhar pra trás. É preciso se reinventar, crescer e amadurecer. Nem que seja meio na marra. Nem que seja batendo cabeça diante da dureza do mundo, que nos deixa fragilizados, ansiosos, inseguros. Assistindo a um filme como Frances Ha (Frances Ha), a vontade que temos é a de entrar na tela pra dar um abraço na protagonista porque, meio perdida em um mundo que avança freneticamente, ela parece sempre atrás em relação a todo o resto. Andando meio torta, como são os passos claudicantes de suas aulas de dança.

Crescer, mais especificamente, amadurecer, não é fácil. A gente vê muitos sonhos desabarem. Muitos degraus descidos. Como se estivéssemos em nosso Mito de Sísifo particular, a pedra nunca chega nem perto do topo da montanha nos fazendo encarar a nossa diminuta existência em um mundo sem sentido, desconexo, guiado por religiões, instituições, ideologias e sistemas políticos delirantes, que olham todo mundo mais ou menos da mesma forma. Não cresceu que chega? Não evoluiu? Não chegou lá? Culpa TUA. Tu que não te esforçou o suficiente. E esse ideal é replicado nas rodinhas de conversas de universitários descolados, que não escondem a preferência pelo Partido Novo. Tudo isso acontecendo, enquanto o teu maior desejo DO MOMENTO, talvez seja finalizar a leitura de Em Busca do Tempo Perdido de Proust. Em francês talvez. Prazeres da vida que entram em conflito com as contas que não param de chegar e que geram um vazio de existência - e de armários.


Sim, um olhar mais crítico pode taxar Frances Ha como um daqueles romances de formação white people problems em que a jovem de classe média tenta se enquadrar, enquanto saltita alegremente pelas ruas de Nova York, ao som de Modern Love, do David Bowie. Mas ali, nas entrelinhas daquele preto e branco meio saturado, tem uma obra com crítica social sutil, que de alguma forma analisa a hipocrisia das classes mais abastadas, que, eventualmente, sepultam sonhos para se "vender" para o status quo. A protagonista - vivida num misto de vigor, ingenuidade e delicadeza por Greta Gerwig -, sonha em ser dançarina. Viver da sua arte. Não consegue emplacar na companhia em que persistentemente atua. Vê o sonho ir desmoronando. Enquanto a melhor amiga vai morar no Japão com um bem remunerado marido empregado do mercado financeiro, vai morar com outros dois jovens artistas. Uma boa casa, conforto, mas inalcançável para o padrão de vida daquela jovem, que, ao final, se vê aos 27 anos num albergue, sem muito futuro, sem relacionamento ou a vida acontecendo a contento. Ela indo parar uma temporada na casa dos pais.

É uma obra de nuances essa do Noah Baumbach (que mais tarde passaria o rodo com o seu História de Um Casamento). É uma espécie de fábula moderna que lança um olhar carinhoso para a juventude cheia de frustrações, que transa e tem amigos, mas tem dificuldades para olhar para frente de forma madura, com a dor da certeza de que seus ideais de vida serão, cedo ou tarde, quebrados. Lembra da música Como Nossos Pais? do Belchior? É mais ou menos como se ela se encontrasse com o livro Liberdade do Jonathan Franzen: o "sonho americano" é um ideal que nem sempre está ao alcance de todo mundo. Mas, como acontece para muitas pessoas, Frances vai insistir, tentar, acertar e errar, chorar e brigar com a melhor amiga. Vai se considerada "inamorável" por um dos amigos - pelo seu jeito, pelo seu comportamento. Mas em algum lugar lá perto dos 30 anos, de tanto bater na trave as coisas talvez aconteçam, ou não. O mundo seguirá girando. Sem a necessidade de ir pra Paris apenas por ir. Pra dizer que foi, já que, é muito melhor quando tudo acontece naturalmente. Ainda que não exatamente como desejávamos.

Podcast do Picanha Cultural #14 - Discos que Completam 25 Anos em 2020

Sem falsa modéstia, esse foi um dos episódios mais divertidos já gravados pelo elenco do Podcast do Picanha Cultural. Isso porque estávamos saudosistas, debochados e, até... ousados! A vida tá passando muito rapidamente e quando a gente se dá conta já faz 25 anos que os Mamonas Assassinas lançavam o seu disco único, empilhando apresentações no Domingo Legal do Gugu - entre uma prova da banheira e outra. Mas aí, aproveitando esse gancho, a gente resolveu buscar nos nossos arquivos outros álbuns que estejam completando esse um quarto de década e, admitimos, foi uma ótima e prazerosa surpresa! Pra tentar organizar o negócio, criamos algumas categorias pra dar certo dinamismo - de melhor disco do ano, passando por sessão nostalgia até chegar na arrojada "não consigo escutar de jeito nenhum"! De Alanis Morissette a Oasis, passando por Raimundos e No Doubt, 1995 foi um grande ano musical. Ou não? Embarque conosco nessa viagem no tempo porque vocês já sabem que o melhor sextou só chega com o nosso podcast! #iniciamosacordesdewonderwall


quarta-feira, 29 de julho de 2020

Tesouros Cinéfilos - First Cow (First Cow)

De: Kelly Reichardt. Com John Magaro, Orion Lee, Toby Jones e Scott Shepherd. Drama, EUA, 2020, 121 minutos.

Sensibilidade. Sutileza. Uma fluência narrativa eventualmente lenta, quase evocativa. Eventos que se descortinam sem pressa num filme que diz bastante, mas sem mostrar muito. Um certo bucolismo selvagem. Uma história sobre amizade, empreendedorismo e... gastronomia. Assim é First Cow (First Cow), mais recente trabalho da veterana diretora Kelly Reichardt (de Certas Mulheres) e uma das boas surpresas dessa temporada pouco convencional de cinema. Não é uma obra muito fácil de resumir porque a sua complexidade está nas detalhes, nas nuances, naquilo que nem sempre é dito de forma escancarada. E, confesso, gosto muito de filmes assim! A trama volta 200 anos no tempo para o interior do Estado do Oregon, período em que um grupo de caçadores de peles contrata o cozinheiro Cookie Figowitz (John Magaro) para acompanhá-lo em uma expedição em uma mata fechada.

No meio da viagem ele encontra, por acaso, o chinês King-Lu (Orion Lee), que afirma estar fugindo de um grupo de russos que deseja vingança. Após viabilizar a sua fuga, eles se reencontram próximo a um povoado, dando início a uma amizade que, mais tarde, virará "parceria de negócios". Tudo vai acontecendo, pra falar a verdade, de forma meio inesperada e bastante naturalista, especialmente depois de a dupla se estabelecer e passar a morar junta numa casa meio improvisada, afastada da comunidade. Num certo dia, Cookie enxerga uma vaca pastejando nos arredores - ela é de propriedade de um certo Chief Factor (Toby Jones), um aristocrata local, o primeiro animal a chegar ali. E será unindo o faro para empreender de King-Lu, com as suas habilidades na cozinha, que a dupla passará a, sistematicamente, roubar leite da vaca de Chief, que servirá de matéria-prima para a produção de bolinhos "de chuva" que serão vendidos no comércio local.


A iguaria se torna, imediatamente, um sucesso, sendo quase disputada a tapa pelos aldeões. Só que para produzir o alimento é necessário leite. Todos os dias. O que faz com que se torne rotina a ordenha escondida da vaca de Chief - sempre à noite, com uma metodologia que visa a minimizar os riscos. Bom, vocês sabem: não teríamos um filme se a dupla seguisse com os seus planos de enriquecer, mudar para um grande centro e até construir um hotel com restaurante acoplado, tudo com leite roubado. Em algum momento a coisa vai degringolar. E a condução da narrativa para a forma como as coisas acontecem é não menos do que saborosa: a gente sente que algo está prestes a dar errado. Mas não deixa de torcer para a carismática dupla - no fim das contas dois sujeitos de grande sensibilidade, levemente desajustados e que, num mundo em que a ordem do dia é a brutalidade, se esforçam para sobreviver. Tentando enxergar beleza, inclusive, onde não há.

E, nesse sentido, o filme é um verdadeiro primor, ao nos presentear com uma série de sequências doces, que se alternam com outras mais duras (aliás, preste bastante atenção à primeira meia hora da película). A "descoberta" da vaca, por exemplo, tem um caráter meio mágico, como se Cookie estivesse diante de um ser elevado, quase celestial - o que o seu sorriso não deixa de transparecer. O estilo de filmagem da diretora também é elegante, cheio de travellings e de planos-sequência em que as coisas vão ocorrendo, com a câmera "flanando" em meio aos acontecimentos. E o que falar da trilha sonora, que mistura notas, melodias e arranjos tão doces quanto caóticos, formando um contraste entre a natureza selvagem e a violência do próprio ser humano? Trata-se, ao final, de uma obra nunca óbvia, extremamente envolvente, com uma dupla de protagonistas encantadora e que ainda presta uma homenagem ao poder da gastronomia (as pessoas sempre precisarão comer, né?). Vale demais!

terça-feira, 28 de julho de 2020

Novidades em Streaming - Taylor Swift (Disco)

Foi totalmente de surpresa que a Taylor Swift lançou seu oitavo disco na última sexta-feira - e já tá ficando meio repetitivo dizer que cada álbum dela é uma verdadeira coleção de grandes canções pop. Bom, não é diferente com este Folklore. Cheio de músicas maduras e bem arranjadas, o trabalho foi todo composto durante a pandemia e contou com a colaboração de Aaron Dessner do The National - a ambientação soturna está lá, naqueles pianinhos bem encaixados, melancólicos, que resultam em uma estética mais introspectiva, que parece deixar pra trás os tempos movimentados de Blank Space ou Shake It Off. É claro que isso não significa falta de energia: olhar para si próprio numa nota mais baixa, avaliar o entorno, tatear o desconhecido, também pode ser reflexo dos tempos duros que vivemos, condição ecoada por letras como a da dolorida e bela My Tears Ricochet - E eu posso ir a qualquer lugar que eu quiser / Qualquer lugar que eu quiser, apenas não em casa  -, que surge logo depois de um dueto com Justin Vernon (o Bon Iver), na belíssima Exile. Bom, credenciais não faltam. É só você aceitar a grandiosidade de uma artista que, aos 30 e poucos anos, só melhora a cada lançamento. Melhores faixas: My Tears Ricochet, Cardigan e Betty.


Cine Baú - A Loja da Esquina (The Shop Around Corner)

De: Ernst Lubitsch. Com Margaret Sullavan, James Stewart, Frank Morgan e Felix Bressart. Comédia romântica, EUA, 1940, 99 minutos.

Se tem uma dica que costumo dar para aquelas pessoas que pretendem ter uma iniciação nos clássicos, é a de buscar os obras um pouco mais leves, menos densas, ou que nos retirem um pouco a imagem do filme antigo como um produto arrastado, em preto e branco, longo ou incompreensível. Há muitos diretores que filmaram obras descomplicadas, que continuam fazendo um bom papel em sessões domésticas do novo milênio. Sim, eventualmente pode haver algum tipo de anacronismo na abordagem de certas temáticas - eram outros tempos -, mas o objetivo de se divertir descompromissadamente com o cinema, definitivamente não mudou. A Loja da Esquina (The Shop Around Corner), deliciosa comédia romântica lançada em 1940 pelo diretor Ernst Lubitsch, é um desses exemplos: não é um filme premiado, dificilmente aparece em listas de melhores da história. Mas é uma joia otimista, cheia de bom humor que vale a pena ser vista - especialmente em tempos duros como os que vivemos, de descrença generalizada.

Aliás, aquele período foi pródigo no lançamento de filmes que pretendiam retirar os americanos do cenário de dor em que viviam - o País mal se recuperava da grande quebra da bolsa de 1929 e ainda convivia com um cenário de entre guerras que, aos poucos, se estabelecia. Era preciso rir e diretores como Frank Capra, Howard Hawks, Preston Sturges e George Cukor, entre outros, além do já citado Lubitsch, se empenharam nisso. Baseada em uma peça de teatro do escritor húngaro Miklós Lázsló, a trama de A Loja da Esquina se passa toda praticamente em um mesmo cenário - a tal... loja da esquina, empreendimento que fica no coração de Bucareste e que vende produtos diversos para a classe média (de bolsas, passando por valises, até chegar a caixas de música). Empregado dedicado, Alfred (James Stewart) está apaixonado: troca correspondências com uma garota que nunca viu, depois de ver um anúncio no jornal - algo que, aparentemente, era hábito na época.


Num dia de rotina no trabalho, surge a jovem Klara (Margaret Sullavan), que está desempregada e desesperada por um emprego. Após uma manobra arrojada e surpreendente ela vende uma caixa de música totalmente sem graça para uma cliente que a olhava sem muito interesse: abismado, o dono, um certo Sr. Matuschek (Frank Morgan), a contrata. As cartas de Alfred continuam, assim como a rotina turbulenta da loja, que tenta sobreviver às crises que envolvem a todos - inclusive conjugais. E, bom, estamos em uma comédia romântica, então não é nem um pouco complicado imaginar onde essa história vai dar. E isso após Alfred ser demitido por um tremendo mal entendido - e recontratado logo depois. Detalhe, o homem não se acerta com Klara de jeito nenhum, já que eles parecem ter personalidades completamente distintas. Mas estamos no cinema e, no cinema, os opostos se atraem, se aceitam, se ajustam, se entendem. Especialmente porque o Natal está chegando e, como costuma lembrar a crítica especializada, os norte-americanos não resistem a uma noite de Natal!

Nos dias de hoje o desfecho do filme pode soar meio bobinho e até forçado. Mas até tudo acontecer são dezenas de ótimas piadas, diretas, cheias de um senso de humor meio cínico. É o caso, por exemplo, do instante em que Alfred revela como tem procedido para dar um ar mais "erudito" pras suas cartas: "elas são metade Shakespeare, metade eu, sendo a minha parte a da assinatura", comenta o enamorado. Já no instante em que Klara se empenha em vender a caixa de música - cujo som é completamente irritante - ela argumenta que podem ser colocados doces dentro dela: "e como a música é péssima, a gente vai abrir ela menos vezes e comer menos doces, já que temos de abri-la", explica sorrindo. No fim são vários pequenos instantes em que reina um senso de humor quase ingênuo, fruto de diálogos rasgantes e muito engraçados. Sem grandes arroubos técnicos - por mais que a fotografia seja correta e a trilha sonora extremamente graciosa -, a obra se estabelece como um marco de um tipo de filme que entrou nas casas da classe média estadunidense, para mostrar que ainda dava para manter a esperança no "sonho americano".

segunda-feira, 27 de julho de 2020

Novidades no Now/VOD - High Life (High Life)

De: Claire Denis. Com Robert Pattinson, Juliete Binoche, Andre 3000, Ewan Mitchell e Mia Goth. Ficção científica, Alemanha / EUA / França / Polônia / Reino Unido, 2018, 113 minutos.

Quem gosta de ficção científica existencialista, daquelas que dificilmente tem algum resposta pronta mas que evoca no espectador uma série de sensações diversas, pode embarcar na "viagem" de High Life (High Life) sem medo de se arrepender. A obra da veterana diretora Claire Denis (de Minha Terra, África) é dessas: flui de forma vagarosa, utiliza a parte técnica em favor da narrativa e se ocupa muito mais em analisar o componente (e o comportamento) humano do que em realizar algum tipo de tratado científico. A obra já inicia, diga-se, belíssima: um lindo ecossistema - vivo, florido -, é mostrado em uma sequência de imagens granuladas, cheias de cores, de uma natureza exuberante, massiva. Na próxima tomada um astronauta trabalha na parte externa de uma nave espacial, ouvindo um choro de bebê que vem de dentro da instalação. Natureza, vida, máquinas, futuro e passado. Verde e cinza. Não temos nem cinco minutos de película e já sabemos que esta será uma obra de contrastes, de ambiguidades e, claro, de incertezas.

Voltando um pouco no tempo compreenderemos por que aquele homem - seu nome é Monte (Robert Pattinson) -, está ali, sozinho, com um bebê, vagando pelo espaço em uma nave em formato de contêiner (algo bastante sugestivo, diga-se): ele integra um grupo de criminosos que aceitou, como forma de reduzir (ou expiar) suas penas, participar de uma missão espacial em busca de recursos naturais. Próxima de um buraco negro, distante milhares de quilômetros de anos-luz, a nave deverá tentar se "acoplar" ao sistema para que, em rotação, possa gerar essa energia alternativa. Mas não precisamos aqui esperar grandes explicações científicas ou mesmo imagens de cientistas da Nasa, na Terra, monitorando a expedição: fora de nossa galáxia, a tripulação estará incomunicável. Há apenas uma sequência em que um especialista explica, brevemente, o absurdo de mandar seres humanos - mesmo criminosos com pena de prisão perpétua -, basicamente, para a morte, sob a desculpa de desenvolvimento da ciência.


Essa discussão por si só já justificaria a existência desse filme: o que vemos em tela é ético? Muitas pessoas afirmam que bandidos, ladrões, assassinos e estupradores deveriam trabalhar para o Estado (e para a população), como forma de "pagar as suas dívidas". Transformá-los em astronautas em missões praticamente suicidas deveria ser moralmente aceito? A Monte se somarão quase uma dezena de outros tripulantes, entre eles a misteriosa Dr. Dibs (Juliette Binoche), que parece ter cometido um grave crime envolvendo seus filhos e maridos. Na nave, trabalha no sentido de "gerar vida", fazendo coleta de esperma dos homens e realizando implantes nas mulheres (a viagem é longa, afinal). Não bastasse esse contraste que cruza vida e morte, assuntos como religião, família, filhos e sexualidade surgirão aqui e ali em sequências mais sucintas - e até etéreas, como a que envolve a relação de Monte e o bebê -, com outras mais "visuais", caso da sequência bastante sensual em que a Dr. Dibs entra em uma espécie de "câmara sexual" existente na nave.

Sobre isso, o filme não economiza nas rimas visuais, já que os fluídos humanos (e da própria natureza) surgem como aspecto evocativo do esforço para a geração da vida, do prazer ou da mera continuidade. Ainda assim é claro que, num ambiente de confinamento, com os sujeitos vivendo um isolamento forçado, serão inevitáveis os conflitos, o que dará algum movimento para a narrativa, que trafegará no limite entre o exótico, o lascivo e até o onírico. Há beleza, mas há dor, assim como haverá vida, mas também morte. O ser humano avança - sua tecnologia, seu conhecimento -, para se enfiar em contêineres pequenos. Para brigar pelos parcos recursos. Para renegar o direito à vida àquelas pessoas que convivem a margem, que são párias para a sociedade. Qual o caminho? Onde iremos parar querendo tanto, desejando tanto, nunca estando satisfeitos? Não poderíamos talvez olhar um pouco mais para o simples, para aquilo que poderia efetivamente ter valor? Não há respostas prontas. Mas só o ato de refletir sobre tudo isso, já faz a experiência proposta por High Life valer a pena.

Nota: 8,0

sexta-feira, 24 de julho de 2020

Livro do Mês - Torto Arado (Itamar Vieira Júnior)

De: Itamar Viera Júnior. Editora Todavia, 2018, 266 páginas.

Um olhar minimamente atento ao Brasil de hoje nos faz perceber que o País, de fato, nunca deixou de ser desigual. A escravidão supostamente abolida, por exemplo, jamais significou efetivamente um reequilíbrio de forças entre extratos sociais bastante discrepantes. Aliás, ao contrário: em um território político em que quem dita as cartas, atualmente, são as bancadas da Bala, do Boi e da Bíblia - legitimadas por um Presidente delirante -, não chega a ser exatamente uma novidade o massacre às camadas mais vulneráveis, de pretos, de pobres, de povos indígenas, de quilombolas, pescadores, agricultores familiares, entre outros. Nesse contexto religiões são marginalizadas. A cultura de povos tradicionais é perdida, surrupiada. Instituições são fragilizadas e deixam de contribuir para o fortalecimento do debate de pautas identitárias e de minorias que não detém o capital, - que lutam nas bordas, que erguem enxadas para produzir alimento. Trata-se, ao cabo de um Brasil que insiste em permanecer no passado. Que estabelece novas formas de escravismo, novos padrões para aquilo que sempre aconteceu. E que segue acontecendo.

Torto Arado, romance inadiável do baiano Itamar Vieira Júnior - vencedor do Prêmio Leya em 2018 - lança um olhar para esse Brasil agrário, esquecido, abandonado. Um País em que senhores oligarquicamente engravatados decidem rumos a portas fechadas, exaurindo seus povos, enquanto aumentam suas riquezas as custas das dores, do suor e do sangue de muitos. É nesse universo que o escritor mergulha com sua literatura direta e cheia de virtudes, grandiosa sem ser empolada. Há uma densidade naquele contexto árido do sertão baiano que é tão palpável quanto as dores sentidas pelas irmãs Bibiana e Belonísia, que abrem o livro como crianças curiosas que descobrem uma velha e misteriosa faca em uma mala guardada embaixo da cama da avó. E que resultará em um acidente que modificará a vida delas - ambas filhas de humildes trabalhadores rurais descendentes de escravos - para sempre.


Há naquele contexto em que ambas crescem uma extenuante rotina no campo que envolve produção de alimentos para autoconsumo, participações eventuais em feiras e muitas restrições feitas por senhores de escravos travestidos de empresários. E em meio as tradições afro-brasileiras, seu folclore regionalista, suas velas, crenças, ladainhas, "encantamentos" e toda uma nomenclatura própria, haverá a absorvente vida familiar e as descobertas diversas que misturarão várias formas de consciência. Nesse sentido, ao passo que Belonísia se estabelece como verdadeira "força da natureza" (como se fosse parte da terra), não demorará para que Bibiana passe a perceber o contexto de opressão em que sua família vive: obrigada a sobreviver numa terra que não é sua, sem direitos ou garantia alguma. E que se modificará para sempre a partir da decisão pela luta e pela emancipação dos trabalhadores rurais, numa narrativa riquíssima em figuras de linguagem bucólicas, resultado de uma prosa harmoniosa, conduzida quase em sua totalidade pela força das mulheres que enfrentarão, também, o paternalismo incrustado.

Em uma entrevista à booktuber Litera Tamy, Vieira Júnior disse que o livro é um romance de formação, "história humana, de um Brasil que resiste, mas que está cada vez mais afastado das pessoas que vivem nas grandes cidades". Assim, o próprio título que remonta ao "arado torto" visto em um antigo livro do arcadista Tomás Antônio Gonzaga, funcionará como equipamento que evoca contrastes entre uma agricultura a cada dia mais mecanizada, mas que encontra no trabalho dos povos tradicionais o simbolismo da terra "rasgada" de forma mais rústica, como uma espécie de símbolo de resistência, que coloca a natureza (e o barro) em confronto com o urbano. Na realidade, trata-se de um livro que pontua bem essas dualidades, essas contradições que envolvem esses muitos "brasis" e que também estão nas presentes nas protagonistas. "Todos nós temos o bem e o mal dentro da gente [...] e as irmãs vão ter isso dentro delas muito demarcado, com ou sem controle, o que poderá resultar em um desfecho trágico, sem que isso signifique exatamente 'bom ou ruim', dando conta da nossa complexidade", analisou. É obra que atravessa vozes, gerações e temas - de memória e traumas familiares, a exploração, ao misticismo e aos laços sociais - e se consolida como uma das mais relevantes publicações brasileiras dos últimos anos. Leia. Para ontem.

Podcast do Picanha Cultural #13 - Precisamos Falar Sobre Séries

No episódio de hoje o papo é reto: deixamos os filmes e as músicas de lado para uma conversa exclusiva sobre séries! Que estamos assistindo, que recomendamos ou, simplesmente, que gostamos. De joias unânimes do passado, como Prison Break ou a onipresente The Office, até produtos mais modernos, como Anne With an E e Máfia dos Tigres, o Bernardo, o Henrique e eu fazemos um pequeno desfile por aquele tipo de material que também tem servido para que consigamos nos distrair na quarentena. Afinal contas, tem vezes que tudo o que a gente quer é sentar no sofá de distrair e se divertir! Bora sextar?


quarta-feira, 22 de julho de 2020

Novidades em Streaming - Pretenders (Disco)

Pessoal, podem deixar o ranço de lado: Hate for Sale, o décimo primeiro álbum do Pretenders é muito bom! Composto por uma série de rocks bem resolvidos, diretos, sem muitas firulas, o álbum faz um aceno ao material entregue lá no começo da carreira, quando a banda deu ao mundo hits como Brass In Pocket, Message Of Love e Back On The Chain Gang. Do início blueseiro com a faixa-título, ao final contemplativo com Crying In Public, Chrissie Hynde e companhia se afastam bastante da petulância de Alone (2016), o disco anterior, para entregar a melhor e mais divertida combinação de guitarra, baixo e bateria. Juro que fui dar o play meio desconfiado, mas o trabalho produzido por Stephen Street me ganhou tão rapidamente quanto os 30 minutos que ele dura. Não há reparos aqui: o material é limpo, cheio de personalidade, com um frescor que o faz dialogar com aquilo que outros artistas, como Courtney Barnett - pra ficar apenas em um exemplo -, fazem nos dias de hoje. Num universo de escassez de bom e velho rock and roll, esse retorno é mais do que bem-vindo! Melhores faixas: You Can't Hurt a Fool, I Didn't Know When to Stop e Didn't Want to Be This Lonely.


Pérolas da Netflix - Um Contratempo (Contratiempo)

De: Oriol Paulo. Com Adrián Dória, Ana Wagener, Bárbara Lennie, José Coronado e Francesc Orella. Drama / Suspense, Espanha, 2016, 106 minutos.

Taí um suspense da Netflix absolutamente delicioso de assistir - daqueles que te deixa de queixo caído quando os créditos sobem! Aliás, as tramas cheias de reviravoltas em que nada é o que parece já estão se tornando uma tradição na filmografia do espanhol Oriol Paulo - de Durante a Tormenta (2018) -, com o expediente se repetindo neste vertiginoso Um Contratempo (Contratiempo). Na trama, Adrián Dória (Mario Casas) é o empresário bem sucedido que é acusado de ter assassinado a sua amante, de nome Laura (Bárbara Lennie) em um banheiro de um hotel isolado. Nada parece fazer muito sentido nessa história, já que Adrián leva uma vida feliz, tem uma família bonita, seus negócios vão de vento em popa e a sua amante parece aceitar sem nenhum problema a ideia de ser a "outra" já que, ela própria, também é casada. Mesmo empregando todos os recursos financeiros para se defender, o suspeito precisa enfrentar uma testemunha. Para isso, recebe em seu quarto de hotel a experiente advogada Virginia Goodman (Ana Wagener), que pretende lhe auxiliar.

A jurista lhe dá três horas para que conte a história. A verdade. O que de fato teria acontecido nos dias que antecederam o crime. E qual seria a explicação para ele "despertar" nesse quarto de hotel, após ter sido aparentemente agredido, com a sua amante morta no cômodo ao lado. Pior: com o frio intenso (e a neve) seria impossível qualquer pessoa ter entrado ou saído do local além deles, já que as janelas são vedadas. Mas a narrativa volta para eventos que antecederam o crime, para descobrirmos que um acidente ocorrido em um local isolado, modificaria a pacata vida de Adrián e Laura para sempre. E o pior: todas as decisões tomadas pelos dois dali pra frente os colocaria em uma espiral de acontecimentos em que uma mentira resulta em outra, e mais outra e mais outra e, bom... a gente sabe que a mentira tem perna curta e não vai demorar para que as peças comecem a se encaixar. Ou não! E, confesso, contar muito mais do que isso seria estragar a experiência de assistir a essa pequena joia!


O que posso dizer é que é um filme com ótima ambientação. As paisagens ermas, os dias acinzentados entram o tempo todo em conflito com o clima claustrofóbico gerado pelo quarto do hotel - em que Virginia se empenha em montar em um esquema para que o seu cliente possa escapar ileso de um juri pronto para lhe incriminar. A cada provocação da advogada, a cada novo questionamento em que o rumo da conversa é alterado, modificamos a nossa percepção a respeito daquilo que estamos assistindo. E isto faz com que mocinhos se tornem vilões, pessoas boas passem a ter uma ética duvidosa em questão de poucos segundos. E mais: houve de fato um crime? Ou dois? Quem são os assassinos? Adrián é culpado de algo? Ou tudo não passa de um estratagema, com o envolvimento de terceiros? E, confesso, é muito prazeroso ficar buscando, aqui e ali, alguma pista que possa nos levar ao que, de fato, aconteceu.

E, nesse sentido, é legal ficar atento aos detalhes. Se uma foto é mostrada, tentar perceber ela no todo. Se um objeto - digamos, um isqueiro - é apresentado, buscar compreender que enigma ele pode estar nos ajudando a resolver. Ou não! Todas as pistas podem ser reais ou falsas e o jogo de palavras projetado pelo roteiro engenhoso, cheio de diálogos inteligentes e intrigantes, é o que torna o projeto tão eficiente, vigoroso e, mais do que tudo, surpreendente. Há detalhes que nos são passados, que podem parecer meros.. detalhes. Mas que podem ser peça fundamental para a resolução dos enigmas propostos pelo diretor. Esse, aliás, é o tipo de filme que cai nas graças das plateias! Porque tentar desvendar os segredos é parte da diversão. É o que torna tudo ainda melhor. E, eu, ao chegar à conclusão, me arrepiei. Achei que tinha percebido, que tinha entendido tudo. Mas se você piscar, assim como eu fiz, você será enganado! E adorará!

terça-feira, 21 de julho de 2020

Foi um Disco que Passou em Minha Vida - MAE - (m)orning(a)fternoon(e)vening

MAE é acrônimo de Multi-Sensory Aesthetic Experience, um nome corajoso. Imagine a expectativa ao apertar o play para uma Experiência Estética Multissensorial. Muito pior é a tarefa de resenhar um álbum que se propõe a ser mais do que um amontoado de melodias, harmonias e ritmos. Já diria Olavo Bilac, o Príncipe dos Poetas, que "a forma, fria e espessa, é um sepulcro de neve". Portanto, com a mesma pretensão, talvez demasiada, me dispus a escrever uma resenha-conto. O que você vai ler abaixo é um resumo temático, uma interpretação livre da história que é contada neste álbum dividido em três partes (originalmente lançados como EP's, em 2009). Cada parágrafo é uma música, a história se mantém. Aqui, você encontrará uma experiência estética, a narrativa. Se do seu agrado for, busque a sonora, nas plataformas de streaming.

MORNING:

Está difícil dormir. Ouço todo som, cada movimento que a casa faz. Fui até à praia, com meu violão e aquele velho bloco de notas amarelo. Havia um homem parado à beira-mar, um pescador, pronto para o trabalho, seu barco e sua vara de pesca. Quando percebi, estava na embarcação, junto com essa figura velha e triste. Em um piscar de olhos voltei à areia e, de alguma forma, sabia exatamente como terminar minha música, ou pelo menos sabia o refrão: todos precisamos de amor.

São bonitas, as chamas. A casa pegando fogo, um fogo firme, intenso. Tiro um fósforo do bolso, o chão está absorvido pela gasolina. Risco, acendo e deixo aquele calor me infectar por completo. O fogo é meu, dentro de mim, consumindo. Hora de agir, explodir.

- Você é meu bumerangue. Sempre um vai e vem, um jogo de atirar e pegar. Mas, dessa vez, inesperadamente, você não vai voltar. E eu não vou tentar te alcançar.

É a sua música tocando. Você ouve o piano ou o pulsar da bateria? É dentro dessa melodia que ficamos tão apegados a nossa memória. É possível ir além, no tempo e no espaço, e produzir milhões de novas lembranças?

Meus amigos dizem que vivo dormindo, sonolento. Eu funciono melhor à noite, mas sinto falta do amanhecer. Por muito tempo digo não e, mesmo assim, há algo novo crescendo dentro de mim. Vou acordar e decidir: chuva ou raio de sol. Sempre soube que estava perdendo algo, vou levantar, sentir o sol e fazer tudo de novo.



AFTERNOON:

"Podemos resolver nossos problemas de forma pacífica”, acordei pensando. Mas as paredes nos separam. Não há espaço para compromisso? Estamos em lados opostos e ficamos assim, sempre. Sempre. O próximo mês, a próxima estação não vai nos trazer solução. Já estamos em diferentes sintonias. Estivemos assim, sempre. E assim resistimos, desistindo ou lutando, sempre. Acabou.

Nossa casa é um ringue. Você sequer me ouve e já tira conclusões. Eu fugi por tempo demais, está na hora de confrontar. Estamos colidindo e não me importa o que há do outro lado. Estou certo! Está certa! Estou certo de que haverá outra luta. Nós poderíamos fazer concessões, paciência é uma lição tão simples. Iremos aprender? Você nunca aprende. Você vai bater, errar e dar de cara no chão. Você nunca aprende. Estou certo! Está certa! Estou certo em sair.

Nos conhecemos em uma noite quente de verão. Nosso futuro era tão simples, eu seria a melodia e você a harmonia. Se você quisesse o centro do palco e eu aceitaria ficar ao seu lado, cantando nas arquibancadas. Fizemos planos, mas éramos uma constante contradição. Uma dissonância. Hoje eu lembro de tudo em pedaços, refaço todas as cenas em minha mente. Quando foi que estivemos destinados ao fracasso? Vivíamos brigando e hoje eu que recolho os pedaços. Sempre vou estar aqui, juntando pedaços.

Estava cansado de andar em círculos à procura de algo novo. Você estava lá, parada, esperando que eu me apaixonasse. Eu descansei em você. O seu amor era incrível. Eu estava cansado e você me trouxe a cura. Agora, me deixa cuidar você. Ninguém vai te amar mais. Nosso amor sempre será a cura.

Eu nasci em 82, filho de um homem pobre. Tudo que ele deixou para mim foi a música, este cálice. Quando partiu, disse que estava indo para uma praia distante, que agora eu tinha a chave, mas precisava descobrir qual era a porta. Algum tempo depois a minha alma estava seca e triste, eu já não podia ouvir a sua voz, mas eu juro, eu o via em uma praia e ele dizia que a comunicação estava em mim, eu deveria ver através. E eu precisava matar minha sede, então tomei do cálice de meu pai. O gosto era de uma melodia, como se uma grande multidão cantasse de volta para mim que a comunicação está nos chamando, é o chamado do universo, é o que nos faz humanos. Só podemos ser melhores se aprendermos a olhar em nosso interior. No dia em que fui à praia e conheci aquele pescador sábio pude entender o que ele dizia e finalizar a minha canção. Era a voz dele: todos precisamos de amor…. e comunicação.

EVENING:

Deitado no chão, vejo que as nuvens estão sorrindo e uma brisa percorre o céu. As estrelas estão brilhando como se me dissessem “o dia acabou”. Sinto como se estivesse flutuando junto com os navios e lembro que quando nos conhecemos, éramos um farol para os solitários. Olhávamos o sol queimar o céu e nos aquecíamos, o mundo era nosso. Hoje, perdemos tudo. Mas o amor vai encontrar uma forma de florescer.

Eu me lembro, era 95 e eu dirigia até aquela pequena cidade. Você ficava me esperando na calçada de camisola. Ficávamos sentados na grama durante tanto tempo que eu via a grama crescer, poderíamos esperar lá até o inverno. Eu só queria que você soubesse. Viajamos à noite, pegamos qualquer estrada, cantamos nossas músicas favoritas e fazíamos de tudo para ficarmos sozinhos. Eu só queria que você soubesse. Era claro para mim: tudo estava como deveria ser. Olhávamos os fogos de artifício, fazíamos planos, quando fiquei de joelhos e peguei tua mão. Você se lembra da sensação? Eu só queria que você soubesse.

Você é o frio que congela meus ossos. Eu fico tão desarmado quando você me liga e quando você parte eu me sinto tão sozinho. Eu queria ter a poção para o feitiço que você causa em mim. Eu amo e odeio o jeito como você me deixa. Eu nunca soube que estava prestes a me deixar. E agora ela vai, na velocidade da luz. Era tudo um sonho? Ela fez tudo parecer um sonho. Ela era um sonho.

Eu comecei a dormir quase de olhos abertos. Ouvi uma quieta melodia de esperança que entrava pelos meus ouvidos. A gotículas de dor ressoavam a mesma coisa: durma bem, durma bem essa noite. Tudo em que eu acredito e tudo que eu sei que podemos fazer começa novamente com um novo dia e começa com nós dois. Vamos ficar quietos e roubar essas inúmeras horas de silêncio, afirmando que as estrelas são nossas. Eu sei exatamente o que elas cantarão: durma bem, durma bem essa noite. Você não vai dormir bem essa noite.



segunda-feira, 20 de julho de 2020

Novidades no Now/VOD - Palm Springs (Palm Springs)

De: Max Barbakow. Com Andy Semberg, Cristin Milotti, J. K. Simmons e Peter Gallagher. Comédia romântica, EUA, 2020, 90 minutos.

O tema de Palm Springs (Palm Springs) não chega a ser exatamente uma novidade, já que volta e meia aparece alguma obra em que os personagens se veem metidos em loops temporais - sendo o ótimo Feitiço do Tempo (1993), um dos mais lembrados. Mas esse aqui, apesar da premissa não tão inovadora, tem boas piadas, diálogos divertidos e é um bom passatempo. Especialmente pelo carisma da dupla central, vivida por Andy Semberg (de Brooklyn Nine-Nine) e Cristin Milioti (de How I Met Your Mother) - o que talvez explique o hype a mais do filme. A trama nos joga para o dia em que vai acontecer um casamento. Cristin vive Sarah, a irmã da noiva que não parece estar muito feliz no decorrer da festa. Já Semberg é Nyles, o namorado de alguém da família que, de forma meio inesperada, vai vestido para o evento de havaiano, faz um discurso arrebatador e atrai a atenção de Cristin. Só que ao final da noite, ocorre o equívoco: ambos entram no tal portal, que fica dentro de uma caverna, após Nyles sofrer um estranho ataque. Os dois passam a reviver o mesmo dia. Repetidamente. Tendo consciência disso.

Só que diferentemente do que ocorre com Bill Murray no fatídico Dia da Marmota, a dupla terá de lidar JUNTA com essa situação. Pior, não demora para que a gente descubra que Nyles já está anos ali (talvez décadas, séculos) e de que a entrada de Sarah no portal foi uma espécie de acidente que lhe levou àquele dia que se repete indefinidamente. Não era pra ela ter atravessado a caverna. Mas ela entrou. Sem querer. E em geral é um dia feliz, uma grande festa está prestes a ocorrer. Todos estão num hotel luxuoso, há comida, bebida, sol, piscina, um clima bacana... mas todos os dias serão a mesma coisa! E, bom, parte da mensagem de Feitiço do Tempo se repete, com uma abordagem um pouquinho diferente nesse caso, já que a película do diretor estreante Max Barbakow nos faz refletir sobre família, rotina, desgaste dos relacionamentos e até hipocrisia da sociedade. Sim, numa comédia romântica é possível perceber estas nuances, especialmente depois que alguns segredos envolvendo aquele dia vem à tona.


E é claro que aquela situação será a desculpa perfeita para várias piadas engraçadas, que envolvem de tentativas de suicídio a alteração completa da lógica estabelecida no casamento. É preciso tornar aquele dia "vivo" afinal. Diferente de outro. Em certa altura Sarah viajará centenas de quilômetros longe do local. Fugirá. Voltará para a sua casa distante dali. Tentará não dormir. Amanhecerá no mesmo lugar. Indefinidamente. E a cada pequena mudança, com famílias preocupadas, situações modificadas, encontraremos motivos para gracejar do absurdo da situação. E a naturalidade com que Nyles encara o seu inevitável "destino" torna tudo ainda mais leve. Ele age, briga, grita, transa - impossível não rir sobre a diversidade de experiências testadas -, curte cada dia, tornando-o diferente. Mesmo no contexto de rotina. E essa fórmula acaba oxigenando permanentemente a narrativa.

É, afinal, entretenimento, com um brilho cativante! A fotografia é quente, a produção é enxuta e a trilha sonora é ótima - vamos combinar que um filme que abre com Forever and Ever do Demis Roussos dificilmente dá errado! Há ainda os coadjuvantes interessantes - sendo o mais marcante um veterano de guerra que faz parte da família e que é vivido pelo ótimo J. K. Simmons (e a sequência em que entendemos como ele entrou no portal é hilária). Mas o principal de tudo, como já dito, é a química do casal central, que faz tudo acontecer a contento. E, como a gente sempre fala: comédia romântica que funciona, é aquela em que a gente olha com carinho para a trajetória daqueles que acompanhamos, torcendo por eles, sentindo empatia. E é o que ocorre aqui. A obra está disponível na plataforma Hulu e, bom, vale demais.

Nota: 8,0

sexta-feira, 17 de julho de 2020

Podcast do Picanha Cultural #12 - Festival Darth Vader de Plot Twist

É provável que não exista reviravolta mais conhecida na história do cinema - e da cultura pop em geral - do que aquela em que, durante a batalha final do filme Star Wars, Episódio V: O Império Contra-Ataca (1980), Darth Vader revela para Luke Skywalker que, na verdade, ele é... seu pai! Sim, e a gente não tem medo nenhum de dar esse spoiler porque, se você não conhece essa história, bom... onde você andou nas últimas décadas? E como forma de homenagear essa sequência que completa 40 anos na próxima semana, o Bernardo, o Henrique e eu resolvemos bater um papo sobre filmes com finais embasbacantes! Aquelas obras com algum plot twist tão inesquecível, que nos fizeram cair da cadeira, tirando os butiás do bolso e os fazendo rolar ladeira abaixo! De Psicose (1960) a O Sexto Sentido (1999), a gente faz um apanhado desses filmes que reservam grandes surpresas para o seu desfecho. E o melhor: sem NENHUM SPOILER que possa estragar a experiência de vocês com essas obras. Bora sextar?


Nove Filmes com Finais de Explodir a Cabeça!

Hoje em dia já não é mais tão comum, mas em meados dos anos 90 e começo dos anos 2000 o cinema foi pródigo em produzir bons filmes que, como cereja do bolo, ainda contavam com aquele final surpreendente, de EXPLODIR a cabeça! E, vamos combinar, a sensação de ser enganado por algum plot twist inteligente, fruto de alguma montagem cinematográfica bem feita, é realmente gloriosa! Nessa pequena relação, a gente relembra alguns desses casos em que o queixo ficou lá no chão - aquele instante em que a gente ficou imóvel na cadeira do cinema, paralisado com aquilo que tínhamos assistido. Mais ou menos o que aconteceu como quando Darth Vader revelou ser o pai de Luke Skywalker no inesquecível Star Wars, Episódio V - que completa 40 anos de seu lançamento na próxima semana!

#1 O Sexto Sentido (1999)


É simplesmente impossível fazer uma lista de obras com finais surpreendentes e não citar o filme que tornou o diretor indiano M. Night Shyamalan conhecido. Na trama, Bruce Willis é o psicólogo infantil Malcolm Crowe que, ao mesmo tempo em que tenta se recuperar do trauma de ter visto um paciente se matar na sua frente, atende um menininho introspectivo, que garante ver "gente morta" (papel de Haley Joel Osment). Sério, eu tinha apenas 18 anos quando vi o filme no cinema e jamais esqueci a reação da plateia - uma espécie de OHH!! generalizado -, quando da sequência em que a grande revelação do filme vem à tona! E o que acho mais divertido: são tantas as pistas dadas no decorrer da obra a respeito da natureza daquilo que estamos assistindo, que a experiência de ter sido enganado se torna ainda melhor. É insuperável.


#2 Psicose (1960)


De alguma forma, é possível afirmar que Alfred Hitchcock inaugurou o formato que adotava o plot twist no cinema - sendo Um Corpo Que Cai (1958) um dos exemplos mais marcantes. Mas foi com Psicose que ele aperfeiçoou esse procedimento, com uma trama tão engenhosa que, quando a surpresa final vem à tona, os butiás não apenas caem do bolso, como rolam tão longe que vão parar na rua de baixo. A história da secretária (Janet Leigh) que rouba o patrão e, em fuga, acaba parando num hotel de beira de estrada após uma tempestade, é bem conhecida. No local - o famoso Bates Motel - ela é atendida por um jovem excêntrico e atencioso (Anthony Perkins), que parece nutrir uma relação de amor e ódio com a sua mãe. Não bastasse a narrativa densa e cheia de possibilidades, o ato final, assustador e poético em igual medida, é daqueles pra ficar para sempre na memória.


#3 Seven: Os Sete Crimes Capitais (1995)


Aqui, a surpresa maior está na engenhosidade generalizada da narrativa. Na trama há um assassino lunático tocando o terror com uma metodologia bastante curiosa: mata suas vítimas tomando por base os crimes capitais. Para tentar desvendar o mistério, são designados dois delegados de personalidades completamente distintas - vividos por Morgan Freeman e Brad Pitt. A investigação avança sem muito sucesso, até o instante em que, inexplicavelmente, o criminoso se entrega. O estranhamento quanto ao ato vai ser só um detalhe que nos conduzirá a inesquecível "cena da caixa", que resultará em um dos desfechos mais explodidores de cabeças da história. Sim, a surpresa final é ótima, mas o filme é todo bom: tecnicamente bem conduzido, cheio de nuances, que se mesclam com uma construção quase sufocante do suspense. Ninguém sai igual depois da experiência de assistir Seven. Vale demais.


#4 As Duas Faces de Um Crime (1996)


Um padre morre num assassinato misterioso e brutal e o principal suspeito é um coroinha de fala mansa e modos contidos (Edward Norton). Tudo leva a crer que ele é o responsável pelo crime: em suas roupas, após ser capturado, há sangue da vítima e indícios de que ele realmente estava na casa paroquial (estaria lá para devolver um livro). Mas um advogado de defesa (Richard Gere) acredita na inocência do jovem. Há motivos para isso: a diocese estaria envolvida em um esquema de compra e venda de imóveis que fez gente grande da cidade perder muito dinheiro. Há também outros coroinhas que poderiam ter lá os seus motivos. E o próprio suspeito parece sofrer de um severo transtorno de personalidade - na condição de doente, talvez tivesse cometido o delito. Ou não. A obra não te deixa piscar, é conduzida com elegância e senso de humor e o desfecho é simplesmente arrebatador.


#5 Jogos Mortais (2004)


Justiça seja feita ao primeiro Jogos Mortais: é um ótimo terror! E continua sendo, mais de quinze anos depois de seu lançamento. Um vilão instigante (que usa um palhaço como interlocutor), uma trama engenhosa que ainda nos faz refletir sobre comportamento, medos, vida e morte. Boas sequências de tensão e de ação e aquele final, claro, pra nos deixar com o queixo lá no umbigo! Vocês lembram da história: dois homens "acordam" num banheiro fétido, presos por correntes e precisam resolver uma espécie de enigma pra tentar sair daquele lugar. Em paralelo a polícia investiga algumas pistas, enquanto tenta compreender os motivos para tantas mortes complexas, fruto de jogos macabros. O desespero vai aumentando quando a família de um dos protagonistas é capturada. A conclusão embasbacante ninguém jamais esqueceu! E fez o gancho para uma série de sequências absolutamente dispensáveis.


#6 Ilha do Medo (2010)


Ilha do Medo não costuma figurar no panteão das grandes obras de Martin Scorsese, mas pra mim ela segue no Top 5. É um filme absurdamente engenhoso, com um roteiro imprevisível - daqueles que, ao final, te deixa umas três horas paralisado no sofá, com uma vontade absurda de ver tudo de novo! A trama volta para o começo dos anos 50, onde uma dupla de agentes federais - Leonardo DiCaprio e Mark Rufallo - é designada para investigar o desaparecimento de uma assassina que estava hospitalizada. Tudo é muito misterioso, o que é fortalecido pela ambientação evocativa, resultado de uma fotografia soturna e de um excelente desenho de produção. O que amplia a sensação de claustrofobia. A verdade sobre tudo virá à tona mais tarde, depois que os dois ficarem presos na tal Shutter Island, por causa de um furacão. E a gente constatará que nada era como imaginávamos.


#7 Clube da Luta (1999)


Mais um filme do David Fincher na lista, porque o cara gosta dessa "brincadeira" da surpresa final - além de Seven, já citado nesse post, poderia muito bem entrar na lista o Vidas em Jogo (1997) e até o recente Garota Exemplar (2014). Só que Clube da Luta não é só explosão de cabeça: é um filmaço que discute temas, como, sociedade de consumo, paranoias generalizadas, tecnologia, violência urbana e propaganda (mais precisamente as mensagens subliminares), entre outros. Na trama um sujeito que sofre de insônia (Edward Norton) conhece um carismático vendedor de sabonete (Brad Pitt) que o apresenta a uma espécie de clube em que o ímpeto primitivo para a agressão é canalizado por meio de uma "terapia" bastante alternativa. A obra avança até a acachapante sequência final, ao som de Where Is My Mind? do Pixies. Antes disso, uma das maiores revelações da história do cinema é feita - momento em que o cu cai da bunda.


#8 Os Outros (2001)


Vamos combinar que o filme de Alejandro Amenábar nos enganou direitinho, com uma trama que nos fazia acreditar o tempo todo que estávamos vendo uma coisa, que na realidade era bem outra. Mas o final com uma reviravolta de explosões múltiplas no cérebro é só um detalhe: a narrativa engenhosa, o clima de suspense (e até de terror) sufocante, a ambientação sinistra, tudo contribui para uma experiência completa. A trama volta para os tempos da Segunda Guerra Mundial, onde uma mulher (Nicole Kidman) se muda para um casarão isolado nos arredores da Ilha de Jersey, com seus dois filhos, enquanto espera o retorno do marido. Os filhos possuem uma estranha doença que os impede de receber luz solar (qualquer luz, na real), fazendo com que vivam permanentemente na escuridão. E, bom, a chegada de um grupo excêntrico de empregados ocorrerá ao mesmo tempo em que terão início alguns eventos de origem aparentemente sobrenatural. Prepare-se pra cair da cadeira!


#9 Os Suspeitos (1995)


Quem afinal de contas era Keyser Soze? Essa é a pergunta que permanece durante os pouco mais de 90 minutos desse ótimo drama, com uma daquelas reviravoltas de mandar a cabeça cinéfila para o espaço! Sim, hoje em dia esse twist é bastante popular e talvez o filme do diretor Bryan Singer tenha perdido um pouco de sua força, justamente porque quem ainda não assistiu a obra, vai vê-la já sabendo que ela é famosa pelo final. De qualquer forma é instigante. Surpreende também pelo efeito "twist do twist" que é quando a gente pensa que tudo já está resolvido, mas tinha ainda uma coisinha a mais rolando ali. A trama se desenrola com uma investigação após uma explosão em um cais de porto com muitas mortes e o desaparecimento de US$ 91 milhões, em um esquema envolvendo traficantes argentinos. Quem conta a rocambolesca história é um certo Verbal Kint, vivido por Kevin Spacey em inesquecível caracterização. A montagem é genial e, quando você perceber, já será tarde!

E pra vocês, quais as grandes reviravoltas da história? Escreva pra gente nos comentários!