sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Tesouros Cinéfilos - Tempo de Cavalos Bêbados (Zamani Barayé Masti Asbha)

De: Bahman Gohbadi. Com Ayoub Ahmadi, Madi Ekhtiar-Dini e Amaneh Ekhtiar-Dini, Drama, Irã, 2000, 80 minutos.

Se existe um filme doloroso de uma forma quase insuportável, este é o iraniano Tempo de Cavalos Bêbados (Zamani Barayé Masti Asbha). Produzida de forma assombrosamente realista, a obra não hesita em mostrar desde maus tratos a animais, passando por descaso com a saúde das crianças, até chegar a desolação de habitar um ambiente completamente inóspito - e que, enfim, é invisível aos olhos do mundo (o que torna uma experiência como esta não apenas impactante, mas extremamente relevante). A "ação" se passa em uma pequena (e gélida) aldeia curda, na divisa entre o Irã e o Iraque, onde o adolescente Ayoub (Ayoub Ahmadi) assume a frente da família remanescente de cinco irmãos, após a morte da mãe e do pai. Vivendo aqui e ali de contrabandos realizados junto à fronteira, os pequenos se esforçam para ter o que comer - em um cenário de incertezas, de violência, de instabilidade e de abusos generalizados.

E como se a tragédia estrutural não fosse o suficiente, há um problema a mais quando Ayoub descobre que seu irmão deficiente Madi (Madi Ekhtiar-Dini) possui uma doença degenerativa que lhe levará à morte se ele não realizar uma cirurgia logo. Pior do que isso, mesmo que consiga o dinheiro para a operação, o menino é informado de que a sobrevida de Madi não deverá superar alguns meses. Desesperado, o protagonista sai a procura de qualquer trabalho que possibilite o acesso aos cuidados médicos do irmão. Só que, bom, evidentemente não será fácil, já que eles precisam se alimentar, se vestir (o frio é tão palpável que parece saltar da tela) e sobreviver. Com pouco ou nenhum amparo de algum adulto, do Estado, de alguma entidade ou instituição. No limite do desalento, uma das irmãs de Ayoub será ofertada em um casamento arranjado com alguém mais velho e melhor posicionado financeiramente. Mas sem que haja qualquer garantia para a solução do caso.

Primeiro longa-metragem do diretor curso-iraniano Bahman Gohbadi, Tempo de Cavalos Bêbados receberia o Prêmio Câmera de Ouro no Festival de Cannes, distinção que ampliaria a visibilidade para questões geográficas, políticas, sociais e culturais da região (e a minha crença é a de que quanto mais pessoas tiverem acesso a esse tipo de história, maiores as chances de nos humanizarmos). Longe do glamour e do entretenimento dos filmes de Hollywood, o realizador constrói uma fábula ás avessas, de supressão da infância, de responsabilidades de adultos assumidas por crianças e de sofrimento real que consome aqueles que acompanhamos. Aliás o tom documental é tão ostensivamente verdadeiro, que as sequências em que Madi resmunga de dor e de frio, que chora por ter de engolir um comprimido a seco, que expressa indignação por algum desconforto são tão realistas, tão longe de qualquer efeito especial, que assistir a tudo aquilo nos deixa não apenas abismados, mas envergonhados. Pelo mundo desigual que vivemos. Caótico. Cheio de riquezas na mão de poucos e de pobreza na mão de muitos.

Hábil na construção de sua narrativa, Gohbadi coloca as crianças em caminhões pouco cômodos, em cenários inóspitos em que a neve cai de forma ostensiva, em montanhas íngremes e nada convidativas. Andando pra lá e pra cá, Ayoub se empenha em uma meta impossível, que não lhe levará a lugar nenhum - enquanto expressa um amor genuíno por seus irmãos, o que torna impossível não derrubar lágrimas a cada nova desventura. Ao cabo, trata-se de uma experiência nada fácil, totalmente incômoda, mas que aposta em algum exagero como forma de chamar a atenção para as chagas do mundo. Sim, na narrativa os cavalos bêbados funcionam como a metáfora perfeita para aqueles que batem cabeça na tela e que parecem se sentir impelidos a se mover ainda que forma trôpega, meio sem sentido, quase sem direção. Ao lado de obras como as de Asghar Farhadi e Abbas Kiarostami, a obra de Gohbadi parece um filme de terror. E talvez seja.


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