quarta-feira, 30 de março de 2022
Cinema - A Pior Pessoa do Mundo (Verdens Verste Manneske)
terça-feira, 29 de março de 2022
Curta Um Curta - The Long Goodbye
"Eles sempre perguntam a você: de onde você é? [...] / A pergunta parece simples, mas a resposta é meio longa / eu poderia dizer a eles Wembley, mas eu não creio que seja isso que eles querem". Em meio a ascensão de grupos extremistas de direita que propagam ódio, xenofobia e preconceitos de todos os tipos, a sequência final do poderoso curta The Long Goodbye - o grande vencedor em sua categoria no Oscar desse ano - ganha ainda mais força. Produzido por Riz Ahmed - astro de Hollywood de ascendência paquistanesa -, o filme narra, em pouco mais de dez minutos, um dia normal da família de Riz, o protagonista.
Em meio a prosaicas discussões cotidianas envolvendo questões domésticas, a rotina com os filhos e outros acontecimentos, a televisão ligada exibe uma marcha de extremistas que avança. Avança até chegar à casa de Riz, com resultados simplesmente devastadores. A mudança brusca que envolve os instantes lúdicos dentro de casa para o desespero com a iminência da morte motivada pela intolerância racial é assombrosa. O barulho, a gritaria, o caos, a incapacidade de diálogo. Tudo reverbera como uma verdadeira metáfora do mundo, nos dias de hoje. Difícil permanecer igual depois de assistir a essa experiência que, no mínimo, nos faz refletir.
Novidades em Streaming - Deserto Particular
segunda-feira, 28 de março de 2022
10 Considerações Sobre a Cerimônia do Oscar 2022
sábado, 26 de março de 2022
Oscar 2022 - Apostas
Na categoria máxima do cinema pode haver uma surpresa – uma boa surpresa, por sinal -, tem se fortalecido nas últimas semanas, já que No Ritmo do Coração andou faturando prêmios prévios como os dos sindicatos dos produtores (PGA), dos atores (SAG) e dos roteiristas (WGA), além do Bafta na categoria Roteiro Adaptado. Antes disso, parecia meio consolidada a ideia de que a principal estatueta da noite iria para Ataque dos Cães, especialmente pelas vitórias no Bafta e no Critics Choice. Belfast até corre por fora, mas qualquer coisa diferente disso é zebra.
Quem gostaria que ganhasse: Ataque dos Cães (mas não ficarei triste se No Ritmo do Coração vencer)
Quem ganha: No Ritmo do Coração
DIRETOR
Aqui parece meio difícil de o prêmio fugir da Jane Campion pelo primoroso trabalho em Ataque dos Cães – e a expectativa de vitória aumentou depois da conquista no sindicato dos diretores. Já Steven Spielberg corre por fora pela sua ótima recriação de Amor, Sublime Amor, que elevou o clássico de Robert Wise a outro patamar. Mas quase dá pra cravar que essa vai de barbada pra Campion, que deve se tornar a terceira diretora da história a faturar o carecão (as outras foram Chloe Zhao por Nomadland e Kathryn Bigelow por Guerra ao Terror).
Quem ganha: Jane Campion, por Ataque dos Cães
Quem gostaria que ganhasse: Jane Campion
Parece que é chegada a hora de Will Smith vencer o seu primeiro Oscar, ainda que o seu trabalho em King Richard não chegue a ser exatamente uma unanimidade. A vitória no Bafta e no SAG deu gás ao favoritismo, que já era alto. Benedict Cumberbatch corre por fora, mas com poucas chances, sejamos honestos.
Quem ganha: Will Smith, por King Richard
Quem gostaria que ganhasse: Benedict Cumberbatch, por Ataque dos Cães
ATRIZ
No SAG e no Critcs Choice a grande vencedora foi Jessica Chastain, pelo trabalho no curioso Os Olhos de Tammy Faye, o que lhe deixa um passo na dianteira das demais. Particularmente adoraria ver a estatueta nas mãos de Olivia Colman ou de Penelope Cruz por A Filha Perdida e Mães Paralelas respectivamente. Mas a única que parece capaz de tirar de Chastain o prêmio é Kristen Stewart. E verdade seja dita, sua atuação em Spencer é assombrosa!
Quem ganha: Jessica Chastain, por Os Olhos de Tammy Faye
Quem gostaria que ganhasse: Olivia Colman, por A Filha Perdida
ATOR COADJUVANTE
Nas prévias, Troy Kotsur desponta como o favorito, depois das vitórias no SAG, no Bafta e no Critics Choice, por seu esforço comovente e divertido em No Ritmo do Coração – e vale lembrar que se trata de um ator efetivamente surdo. Talvez em outro ano Kodi-Smit McPhee vencesse por Ataque dos Cães, até porque sua caracterização é um dos destaque da obra de Campion. Mas deve dar mesmo Kotsur.
Quem gostaria que ganhasse: Troy Kotsur, na real será espetacular vê-lo vencer
Aqui tem uma barbada pro bolão: Ariana DeBose, que ganhou o Bafta, o SAG e o Critics Choice por sua interpretação completa, fervilhante e divertida em Amor, Sublime Amor. Kirsten Dunst até poderia ameaçar esse favoritismo em Ataque dos Cães, mas na reta final já chega sem muita força.
Quem gostaria que ganhasse: Ariana DeBose
Paul Thomas Anderson venceu o Bafta por Licorice Pizza, Kenneth Branagh conquistou o Critics Choice por Belfast e Adam McKay faturou o WGA, o prêmio do Sindicato por Não Olhe Para Cima. Na hora de votar você arremessa os três pra cima e o que cair primeiro ganha.
Quem gostaria que ganhasse: A Pior Pessoa do Mundo
Nessa categoria só dá No Ritmo do Coração. Aliás, ter vencido o WGA, o Critics Choice e o Bafta é algo que lhe credencia fortemente para a premiação máxima da noite. Um belo indicativo. Quem corre por fora é justamente Ataque dos Cães, que tá na briga pelos principais prêmios da noite.
Quem gostaria que ganhasse: Drive My Car
No Critics e no Bafta foi o japonês Drive My Car que saltou na frente e o fato de ele ter sido indicado também em outras categorias – inclusive Melhor Filme – é a maior credencial. A categoria tem ótimos filmes, aliás, vale conferir qualquer um deles. Mas qualquer coisa diferente de Drive My Car será uma pequena zebrinha.
Quem gostaria que ganhasse: A Pior Pessoa do Mundo (Noruega)
Por mais que Encanto seja o mais badalado – ele ganhou o Bafta e o PGA -, as vitórias no Critics Choice e, especialmente no Annie Awards, credenciam A Família Mitchell e A Revolta das Máquinas à, no mínimo, emparelhar a disputa. Já Flee, primeiro filme na história a receber indicações à Animação, Filme em Língua Estrangeira e Documentário recebeu o Annie de Melhor Animação Independente. É um bom prêmio de consolação.
Quem gostaria que ganhasse: Raya e o Último Dragão
Por mais que Summer of Soul (...ou Quando a Revolução Não Pôde ser Televisionada) tenha faturado muitas premiações prévias, o contundente Attica foi o vitorioso no DGA – mais precisamente seu diretor Stanley Nelson. De qualquer forma a obra de Questlove, que comoveu às plateias com sua mistura de música, crítica social e história deve vencer nessa categoria.
Quem gostaria que ganhasse: Summer of Soul (...ou Quando a Revolução Não Pôde ser Televisionada)
O prêmio dos editores é dividido nas categorias drama e comédia e a vitória ficou, respectivamente, com King Richard e tick, tick...BOOM! Já o Critics deu a vitória a Amor, Sublime Amor, mas a obra de Spielberg sequer foi indicada ao Oscar nessa categoria. Particularmente, acho o trabalho em Duna fantástico e acho que só na hora saberemos de fato quem ganha porque eu já não sei mais nada!
Quem gostaria que ganhasse: Duna
Greig Fraser ganhou várias premiações prévias – como o Camerimage e o Bafta – e, assim, Duna salta na frente nessa categoria (e justiça seja feita, o trabalho técnico no filme de Denis Villeneuve é primoroso). Eu ia gostar se Beco do pesadelo ganhasse, porque gosto dessa mistura sombria e onírica que Guillermo Del Toro aplica em suas obras quase como uma marca. Mas talvez o único que possa tirar a estatueta de Duna é A Tragédia de Macbeth.
Quem gostaria que ganhasse: O Beco do Pesadelo
Acho que aqui até seria sacanagem não premiar Duna - e a vitória no Visual Effects Society, no Bafta e no Critics Choice o torna o favoritaço. Free Guy corre por fora mas as chances são mínimas.
Quem gostaria que ganhasse: Duna
A impressão que dá é que a engenharia de som de Duna tem mais força justamente pelo estilo de filme, que depende bastante desse tipo de efeito – e, convenhamos, novamente este é um dos destaque do filme de Denis Villeneuve. O novo 007 – Sem Tempo Para Morrer é o único capaz de tirar a estatueta de Duna. E vai que tire?
Quem gostaria que ganhasse: Duna
É provável que o apelo de Billie Eilish tenha peso 2 na hora de decidir, o que deixa 007 – Sem Tempo Para Morrer em ligeira vantagem. Ainda mais com a conquista do prêmio da Sociedade dos Compositores. Mas não se pode negar: Encanto tem encantado plateias – perdão, não resisti – e muito dessa paixão se deve ás canções (entre elas Dos Oruguitas).
Quem gostaria que ganhasse: King Richard
Hans Zimmer por Duna contra Jonny Greenwood por Ataque dos Cães. Taí uma disputa que promete, de dois trabalhos bastante distintos, mas impecáveis em suas propostas.
Quem gostaria que ganhasse: Ataque dos Cães
No Art Directors Guild O Beco do Pesadelo levou o prêmio de Melhor Direção de Arte em Filme de Época enquanto Duna faturou a distinção na categoria Fantasia. A Tragédia de Macbeth corre por fora.
Quem ganha: Duna
Quem gostaria que ganhasse: Amor, Sublime Amor
Aqui, Cruella e Duna saltam na frente pelas vitórias no Costume Designers Guild nas categorias Filme de Época e Fantasia. Só que Cruella também venceu o Bafta e o Critics Choice e isso deve decretar a sua vitória.
Quem ganha: Cruella
Quem gostaria que ganhasse: O Beco do Pesadelo
CABELO E MAQUIAGEM
No Bafta e no Critics Choice deu Os Olhos de Tammy Faye. Já Um Príncipe em Nova York 2 andou faturando alguns prêmios como o do sindicato. Deve ficar entre os dois.
Quem ganha: Os Olhos de Tammy Faye
Quem gostaria que ganhasse: Os Olhos de Tammy Faye
quinta-feira, 24 de março de 2022
Novidades em Streaming - Amor, Sublime Amor (West Side Story)
De: Steven Spielberg. Com Ansel Elgort, Ariana DeBose, David Álvarez, Rachel Zegler e Mike Faist. Drama / Romance / Musical, EUA, 2021, 156 minutos.
Quem assistiu e gosta da versão clássica de Amor, Sublime Amor (West Side Story) talvez considere meio desnecessária essa refilmagem produzida por Steven Spielberg. Mas, ao mesmo tempo em que a essência da história permanece a mesma, não deixa de ser curioso perceber como, neste caso, uma nova adaptação faz muito bem. Sim, eu tendo a ser meio ranzinza quando o assunto é a falta de originalidade de alguns roteiros, afinal, será que precisa? Precisa um novo Homem Aranha todo santo ano? Mas aqui a desconfiança vai pro saco já na primeira e grandiosa tomada aérea do bairro de Upper West Side, em um plano sequência de uma Nova York meio em ruínas, que passa por um processo de gentrificação. É nesse local que duas gangues, os Jets, o grupo dos branquelos liderados por Riff (Mike Faist), e os Sharks, os porto-riquenhos comandados por Bernardo (David Álvarez), disputam o território, sendo incapazes de conviver de forma pacífica
E tudo piora quando, durante um baile, os dois grupos se encontram e organizam uma briga de rua que promete decidir o futuro de todos. Ao mesmo tempo em que Tony (Ansel Elgort) e Maria (Rachel Zegler), que estão em lados opostos nessa disputa, se apaixonam. Sim, extraída dos palcos da Broadway no final dos anos 50, Amor, Sublime Amor é a história shakespereana por excelência - e, não por acaso, foi inspirada em Romeu e Julieta. Tecnicamente soberbo, o filme parece consertar alguns pontos do clássico de Robert Wise que, nos dias de hoje, poderiam soar meio datados. Na obra dos anos 60, por exemplo, parece haver uma menos disposição para o debate sobre xenofobia e a possibilidade de convivência pacífica entre povos diferentes - e a presença de Rita Moreno, que interpretou a Anita no original, funciona como uma espécie de esteio que conecta esses lados opostos (especialmente por não recair na mera nostalgia).
Já Ariana DeBose entrega uma Anita muito mais empoderada - sim, eu sei que a palavra anda meio batida - no que diz respeito à comportamentos e atitudes, e confesso que é simplesmente apaixonante vê-la em cena, pelo equilíbrio perfeito que ela alcança entre a entrega física e de personalidade (e a indicação ao Oscar na categoria Atriz Coadjuvante, nesse sentido, não é por acaso). Ainda sobre a premiação máxima do cinema - que ocorre no próximo domingo (27/03) -, a obra foi nominada também nas categorias Filme, Direção, Fotografia, Figurino, Desenho de Produção e Som. E se há algum motivo real para conferir essa refilmagem este certamente envolve o aparato tecnológico, que transforma Amor, Sublime Amor em uma experiência artística imersiva, colorida e musical, mas sem deixar de lado os aspectos mais sombrios de sua história (e o equilíbrio de cores e tons entre os instantes mais divertidos, mais alegres e aqueles mais soturnos também é um dos tantos méritos).
Um bom exemplo das pequenas inovações trazidas por Spielberg estão nos cenários - como no caso do depósito de sal, que serve como base para a disputa central, e que deixa o episódio mais claro, mais limpo, aos olhos dos espectadores. O mesmo vale para as coreografias empolgantes e executadas à perfeição, que são complementadas pelas canções que integram-se à narrativa de forma orgânica - e eu adoro a forma como músicas como America, I Feel Pretty e Gee, Officer Krupke parecem ter outras tintas na refilmagem. Discutindo de passagem temas como sororidade, violência doméstica e preconceito racial, o filme se aproveita de seu recorte narrativo para passar uma mensagem bastante clara em um contexto de polarização: e só esse fato já justificaria a existência de uma obra como essa. Feita pelo Spielberg, então, um dos maiores diretores de cinema vivos, é a cereja do bolo. Veja. Pra ontem. Mesmo que você não tenha assistido o do Wise. Na real, nem será necessário.
Nota: 9,0
terça-feira, 22 de março de 2022
A Volta ao Mundo em 80 Filmes - Um Homem Que Grita (Chade)
Pitaquinho Musical - Luneta Mágica (No Paiz das Amazonas)
Um mergulho em uma sonoridade que evoca o contraste entre o ancestral e o contemporâneo, o bucólico e o urbano, o antigo e o tecnológico. Resumir a experiência de ouvir No Paiz das Amazonas, o terceiro trabalho da banda manauara Luneta Mágica é trafegar num universo em que contradições se aproximam, em que as diferenças parecem somar, em que a distância é logo ali. Se afastando do pop mais comercial entregue no disco No Meu Peito - nosso quarto melhor álbum na lista de melhores nacionais de 2015 -, o coletivo se reaproxima do experimentalismo psicodélico que marcaria a estreia, com o esplêndido Amanhã Vai Ser o Melhor Dia da Sua Vida (2012). Diferente de tudo o que já foi feito pelo grupo, o registro imprime "uma visão conceitual, partindo de referências da própria floresta amazônica, que vão ao encontro de sons que ecoam pelo mundo inteiro", como resumiu a banda no material de divulgação. O resultado é uma espécie de caos organizado que conecta passado, presente e futuro de uma forma nunca óbvia, mas sempre instigante, provocativa (inclusive no que diz respeito às letras), como comprovam as faixas Águas Poluídas, Conduzido (haux, haux), Tuiuiú e Além das Fronteiras. Vale descobrir!
segunda-feira, 21 de março de 2022
Novidades em Streaming - Os Olhos de Tammy Faye (The Eyes of Tammy Faye)
sexta-feira, 18 de março de 2022
Novidades em Streaming - Luca (Luca)
De: Enrico Casarosa. Com Jacob Tremblay, Emma Berman, Jack Dylan Grazer e Sacha Baron Cohen. Animação / Aventura, EUA, 2021, 95 minutos.
Lançada pela Pixar, a animação Luca (Luca) é um bom exemplo de como menos pode ser mais. Ou de como uma ideia bastante simples pode render uma experiência formidável. Em geral é possível afirmar que os trabalhos do estúdio seguem um certo padrão no que diz respeito às suas mensagens de aceitação, de respeito às diferenças ou de persistência diante das dificuldades. Mas o que vale, em muitos casos, é o caminho que percorremos ao lado dos personagens que acompanhamos. Se eles forem carismáticos, se nos arrancarem algumas risadas e se nos fizerem derrubar algumas lágrimas já é meio caminho andado. Aqui tudo isso acontece e com sobras: o protagonista (voz de Jacob Tremblay de O Quarto de Jack e Extraordinário) é uma espécie de monstro marinho que vive com a sua preocupada família abaixo da superfície da água. Só que ele sonha com mais do que a rotina ordinária que está submetido e, num episódio meio ao acaso, acaba por saber que existe todo um mundo fora da água.
Numa alegoria que remete ao Mito da Caverna, de Platão, Luca descobre que, fora das águas, ele muda de aparência: sai a figura meio réptil, meio peixe, entra o humano. Ao encostar novamente na água, ele retoma as características monstruosas. E lidar com esse contraste será justamente um dos desafios, já que, em terra firme, o protagonista descobre que os moradores de um pequeno povoado da Riviera Italiana, onde se passa a trama, estão caçando os monstros marinhos, que recebem o apelido de underdogs (um tipo de gíria para excluídos ou desajustados). Só que ao fazer amizade com um outro monstro marinho de nome Alberto (Jack Dylan Grazer), Luca percebe a oportunidade de explorar o mundo - o que a dupla poderá fazer a bordo de uma vespa (sim, a moto é uma espécie de premiação para um campeonato de triatlo que rolará no local). Na Riviera eles se aliam à Giulia (Emma Berman), uma nativa que não sabe que seus novos amigos são monstros marinhos. E, bom, não é preciso ser nenhum adivinho pra saber que essas circunstâncias darão todo o sabor ao filme.
Aliás, um "sabor" quase palpável já que, como a narrativa se desenrola em terras italianas, não são poucas às referências à cultura do povo - sua língua, costumes, gastronomia, arquitetura, paisagens -, o que rende boas piadas e instantes genuinamente engraçados (e eu, particularmente, gosto da forma como é retratado o pai de Giulia, aquele típico gringão taciturno e de bom coração, que faz miséria na cozinha e no preparo dos mais variados tipos de massas). Intercalando uma rotina que envolve o retorno para o ambiente marítimo - para que seus pais não fiquem preocupados -, com a existência do lado de fora, Luca e Alberto começam a treinar para o campeonato, ao mesmo tempo em que se esforçam para não serem desmascarados em meio aos humanos. A chegada de um tio psicólogo para tentar demover Luca de viver na superfície - um excêntrico ser abissal vivido por Sacha Baron Cohen - também é um bom momento da trama.
Um dos cinco indicados ao Oscar de Animação, o filme é daqueles que não apresenta um vilão mais palpável - ainda que Ercole (Saverio Raimundo) se esforce nesse sentido. O desafio aqui consiste em superar as diferenças, os preconceitos ou a intolerância entre povos - e em tempos de guerra é simplesmente impossível não se emocionar com o terço final. A mensagem é óbvia e, se for preciso, esfrega-se ela na cara de quem assiste. No mais, Luca é divertido, direto e tem aquele traço típico das animações da Pixar, não fazendo um grande esforço para ser mais do que é. Para os pequenos será um achado. Para os adultos uma oportunidade de voltar o olhar para os temas ambientais, sobre espécies em extinção e sobre a necessidade urgente de preservar a natureza. Sim, essa intenção subjacente pode não ser tão clara assim. Mas a alegoria também nos lembra de que o ser humano não está sozinho nesse planeta. Independentemente do ecossistema que ele está e de quem o habite. Vale a reflexão.
Nota: 8,5
Curta Um Curta - Onde Eu Moro (Lead Me Home)
Um lado bem menos glamouroso dos Estados Unidos é o que acompanhamos no comovente curta em documentário Onde Eu Moro (Lead Me Home) - um dos indicados ao Oscar em sua categoria, e que está disponível na Netflix. Na Terra do Tio Sam são mais de 500 mil pessoas que não possuem um teto pra chamar de seu e o que esse filme dirigido por Jon Shenk e Pedro Kos (que é brasileiro) faz é mostrar um pouco da triste realidade que acompanha os moradores de rua. É uma obra desalentadora, que envolve um severo problema de saúde pública, que parece bem longe de ter alguma solução.
Em cidades como Los Angeles e Seattle o contraste entre as áreas mais nobres e as precárias habitações de quem depende do Estado, dos poucos abrigos e da boa vontade de quem não está em vulnerabilidade, é gritante. Os motivos que tornam alguém um habitante das ruas também assombram - e a gente tende a achar que a maioria são pessoas que tem problemas com álcool e drogas. Mas não. Há desempregados, pessoas com deficiência, transgêneros, ex-presidiários e outros, que convivem diariamente com o preconceito e com o descaso da sociedade que, em muitos casos, ignora o fato de ali estar um ser humano. É uma produção tecnicamente bem feita e que, ao fim, deixa uma sensação de que poderia ter avançado mais no debate.
quinta-feira, 17 de março de 2022
Novidades em Streaming - Spencer (Spencer)
terça-feira, 15 de março de 2022
Lasquinha do Bernardo - A Dicotomia do Futebol e da Educação
Todo brasileiro é especialista em futebol e/ou educação. Adoramos sofrer e chorar pelo nosso time, paramos o país durante a Copa do Mundo e, lógico, nos tornamos autoridades (in)certificadas quando o assunto é arbitragem. Basta abrir sua rede social favorita e lá estão os comentários mais embasados envolvendo técnica e performance, divergências conceituais, teses homéricas sobre times reativos, linhas altas e baixas e sobre a capacidade do extrema esquerda em quebrar linhas e propor alternativas ao ataque em profundidade. Além disso, nutrimos um ódio fervoroso contra qualquer treinador que não enxergue a obviedade natural da titularidade dos nossos onze iniciais. Mas, apesar do interesse e fervor, o brasileiro médio é apenas um teórico-amador das quatro linhas.
Já, na educação, os papéis se invertem muito por conta dos nossos anos de experiência prático-profissionais. Afinal, vivemos boa parte da infância e adolescência em uma sala de aula. Os noventa e poucos minutos diários do fã mais convicto de futebol não fazem frente às quatro ou cinco horas diárias dos alunos. É um fato, há milhares de frequentadores profissionais de aulas aposentados com grande conhecimento de causa. Apesar da antítese (pouquíssimos foram/são atletas e quase todos foram/são alunos), uma semelhança aproxima os dois universos: a falácia da dicotomia. No jogo, se perdeu, é ruim. Se ganhou, é bom. Somos sempre nós contra eles. Na escola, nota baixa, é burro. Notas altas, ótimo aluno. O vice deveria ter se esforçado mais. O aluno que não entendeu o conteúdo precisa estudar mais. Tão simples, fácil e prático quanto chutar uma bola.
É justamente por sermos parte deste universo dualista/lugar-comum de alta performance, que o filme Entre os Muros da Escola (Entre Les Murs), vencedor da Palma de Ouro em 2008, adaptação do livro homônimo de François Bégaudeau, escritor e protagonista, encaixa tão bem. São raras as obras que retratam a sala de aula de maneira tão honesta e realista. Deixando de lado toda a romantização dos professores, que passam longe dos “guerreiros inspiradores” da maioria das representações à la Sociedade dos Poetas Mortos (1990), o filme francês apresenta personagens radicalmente verossímeis em situações corriqueiras das escolas: adolescentes gritando, dormindo, desinteressados e professores cansados, estressados e no limite da paciência. É o anticlichê dos filmes sobre educação e, por isso, beira ao documentário e não à ficção. Absolutamente naturalista, a narrativa se apresenta através de uma câmera que observa os alunos e professores no seu habitat natural, com todos os seus conflitos éticos e sociais, como racismo, desigualdade e imigração, e com as famosas discussões inflamadas sobre regras e disciplina entre alunos e professores. É de desconforto o sentimento que aflora à medida em que aquele retrato fiel vai se desenhando dentro de um ambiente escolar efervescente. Passando longe do senso comum, a obra é, antes, um choque de realidade, ninguém está certo ou errado, todos ali estão apenas sobrevivendo.
E este peso da realidade que é apresentado no filme acaba sempre se impondo no mundo concreto da educação e também no futebol. Inclusive na cena final (não é spoiler!), em que os professores e alunos disputam uma partida. Entre os Muros da Escola é necessário porque reflete justamente a natural obviedade dos documentários: não há heróis ou vilões, somos todos selvagens, adultos ou adolescentes, animalizados pelas nossas paixões. Na vida sempre buscamos soluções simples, demite-se o treinador e o professor, afasta-se o aluno e o jogador. Ou deixa-se tudo como está, ou muda-se tudo, completamente. Amadores ou profissionais, teóricos ou práticos, ainda carregamos uma semelhança ainda mais clara e cristalina: torcemos muito para que dê tudo certo.
segunda-feira, 14 de março de 2022
Pitaquinho Musical - Terno Rei (Gêmeos)
O final de tarde na cidade, os dias cinzas de outono, a escadaria do colégio, a mistura de sensações que nos invade em meio a divagações cotidianas. Definir a música feita pelos paulistas do Terno Rei é colocar uma série de referências no liquidificador, para extrair de lá uma sonoridade cheia de personalidade, de vigor. No limite entre a urgência dos tempos atuais e a nostalgia oitentista, o coletivo percorre cenários palpáveis, eventualmente melancólicos, em que dilemas afetivos e existenciais colidem com uma estética vibrante, pop e quase juvenil. Em seu mais recente trabalho, intitulado Gêmeos, esse tipo de expediente pode ser percebido já no saboroso single Dias de Juventude - com sua melodia curvilínea e letra que não faria feio na abertura daquele seriado adolescente que, agora, parece deslocado no tempo (Eu quero te lembrar / Dos dias da juventude / Da noite legal, viagem sem fim / Da boca no ouvido e a cabeça na Lua). Outras canções como Sorte Ainda, Brutal e Olha Só reforçam esse conceito, representando ainda um avanço em relação aos primeiros e enfumaçados álbuns (caso de Essa Noite Bateu Como Um Sonho). Não por acaso deverá ser figurinha fácil nas listas de melhores do ano.
Cinema - Belfast (Belfast)
quinta-feira, 10 de março de 2022
Na Espera - Não! Não Olhe! (Filme)
Quem acompanha a carreira do diretor Jordan Peele - de Corra! (2017) e Nós (2019) - sabe que cada novo projeto é aguardado pelo público com grande expectativa. E não teria como ser diferente com Não! Não Olhe! (Nope), novo filme do realizador, que teve seu trailer divulgado recentemente (durante o Superbowl, aliás). Com estreia prevista para o dia 22 de julho de 2022, a obra marca o reencontro de Peele com Daniel Kaluuya (que recentemente venceu o Oscar por Judas e o Messias Negro) e, novamente, deverá discutir temas como racismo estrutural e preconceitos em uma trama misteriosa, que parte de um evento misterioso no céu - e que é classificado pelo personagem de Kaluuya como um "milagre ruim".
Ainda sobre o trailer, ele é instigante ao propor uma colagem de imagens que parece desconexa, mas que provoca uma série de sensações no espectador - condição ampliada pelos curiosos ângulos de câmera, pela trilha sonora envolvente, pelo isolamento dos envolvidos e pela mescla de humor e tensão sugerida pela narrativa. Nem precisamos dizer que a expectativa é alta para o projeto que tem ainda no elenco Keke Palmer, Steven Yeun, Barbie Ferreira e Michael Wincott. Deve vir coisa boa por aí!
quarta-feira, 9 de março de 2022
Novidades em Streaming - A Tragédia de Macbeth (The Tragedy of Macbeth)
De: Joel Coen. Com Denzel Washington, Frances McDormand, Brendan Gleeson e Kathryn Hunter. Drama, EUA, 2021, 105 minutos.
De Orson Welles, passando por Akira Kurosawa até chegar em Roman Polanski: somente no cinema foram mais de 20 adaptações da clássica peça Macbeth, escrita no começo do século XV pelo dramaturgo William Shakespeare. Isso sem contar as centenas de vezes que a obra foi levada aos palcos por companhias de teatro mundo afora. Ou revisitada de outras maneiras, em musicais, especiais, reinterpretações ou paródias. Mas então por quê, em pleno ano de 2021, filmar mais uma vez a clássica história do ambicioso general que dá nome a obra? Há ainda o que contar? Ângulos a explorar? Atualizações a se fazer? Bom, como esta é uma das mais conhecidas tragédias de Shakespeare - é a mais curta e, admito, a única que li -, penso que nunca é demais a ideia de apresentá-la para novos públicos. Ainda mais com a direção de Joel Coen - pela primeira vez na vida sem a companhia do inseparável irmão Ethan, com quem produziu verdadeiras obras-primas modernas como Fargo (1996) e Onde Os Fracos Não Têm Vez (2007).
Só que quem imaginava encontrar nesta versão intitulada A Tragédia de Macbeth (The Tragedy of Macbeth) algo que trouxesse a assinatura dos irmãos - o que envolveria uma boa dose de excentricidade, um senso de humor cínico e um apelo ao inusitado -, talvez se decepcione um tanto. Já quem for para a sessão sem maiores expectativas, querendo apenas o "teatro em estado bruto", se deparará com uma adaptação elegante, tecnicamente soberba e que aposta em soluções narrativas que conferem personalidade ao projeto. Afinal todos sabem que uma das marcas desse texto de Shakespeare é um certo rebuscamento no linguajar - e a transcrição literal da peça pode confundir e até afastar espectadores. Mas com algumas (poucas) liberdades criativas Joel ajusta esta questões soando, em alguns momentos, até excessivamente expositivo. O que jamais se constitui como algo problemático dado o hermetismo natural do enredo, que mistura guerra, criaturas místicas, dramas familiares, traições, cadáveres, punhais, sangue e lágrimas.
Um bom exemplo deste expediente está na ótima sequência em que o general Macbeth (Denzel Washington), movido pela ganância, tem a impressão de enxergar um punhal alinhado a uma porta que está no fundo de um amplo e bastante geométrico corredor em seu castelo - e que é resultado de uma curiosa ilusão de ótica que o leva a confundir a estrutura da fechadura com uma arma. Toda essa cena serve para evidenciar as intenções do protagonista que, incitado por Lady Macbeth (Frances McDormand), resolve levar à cabo o seu plano de assassinar o Rei Duncan (Brendan Gleeson) da Escócia. Pior, montando o cenário de forma que seja possível incriminar os criados do monarca, que estão em sua companhia e que tinham participado de uma bebedeira na noite anterior. O escândalo é revelado no dia seguinte, o que faz com que outros nobres, como Lennox (Miles Anderson) e Macduff (Corey Hawkins), e o filho de Duncan, Malcolm (Harry Melling) fujam de Inverness, já que desconfiam das atitudes do ambicioso anfitrião.
E, bom, tudo isso nos é apresentado com artifícios técnicos que ampliam a sensação de tensão, caso da requintada fotografia em preto e branco e do desenho de produção que recria castelos, estradas, charnecas e outras estruturas, optando por uma ambientação eventualmente fantástica, numa espécie de flerte com o cinema de Ingmar Bergman e com o expressionismo alemão - e, não por acaso, Bruno Delbonnel e Stefan Decbant foram lembrados entre os indicados ao Oscar desse ano (assim como Washington, que concorre na categoria Ator). Classuda, cheia de contrastes envolvendo luzes e sombras, com uma montagem que possibilita a rápida compreensão dos saltos temporais e mesmo de suas rimas (sonoras e visuais), a obra centra a sua força no poderoso texto que, pouco mexido, permite que os atores centrais brilhem - e a forma como Macbeth mergulha em suas alucinações, no limite entre o pesadelo sombrio e a realidade lúgubre e abstrata, é um espetáculo a parte, que certamente honra a tradição desse tipo de adaptação. Aliás, sobre interpretação, vale ainda uma menção à Kathryn Hunter, que faz uma entrega física impressionante no papel das feiticeiras (e talvez não fosse surpresa uma lembrança como Coadjuvante no Oscar). No mais, o filme tá disponível na Apple TV+. Vale conferir.
Nota: 8,0
segunda-feira, 7 de março de 2022
Novidades em Streaming - Madalena
De: Madiano Marcheti. Com Chloe Milan, Natália Mazarim, Rafael De Bona e Pamela Yulle. Drama, Brasil, 2019, 85 minutos.
Vocês já devem ter ouvido falar que o Brasil é o País que mais mata pessoas trans no mundo. É assim há 13 anos - e esse deveria ser o tipo de "título" a nos envergonhar. Só que no Brasil de Bolsonaro, que só em 2021 registrou 140 assassinato do tipo, há também uma carência de informações, que converte a transfobia em um crime invisível. O que dificulta a elaboração de políticas públicas que possam, ao menos, amenizar a questão. Muitas ocorrências não são reportadas. Há uma ausência completa de dados e, em uma nação que legitima o ódio, o preconceito e a intolerância, há ainda a reafirmação do padrão heteronormativo - o que parece contribuir ainda mais para o sentimento de apagamento das minorias. O descaso, afinal, é generalizado. E é exatamente sobre isso que trata o ótimo Madalena, de Madiano Marcheti - uma das recentes estreias da Netflix.
O apagamento de pessoas trans é, ao cabo, o assunto da enigmática experiência proposta pelo diretor. Nesse sentido, pouco se sabe sobre a Madalena do título (vivida por Chloe Milan em aparição discreta). Aqui e ali recebe-se pistas que indicam que ela pode ter morrido. Não apenas isso, ter sido assassinada de forma violenta. O cenário é uma pequena cidade do Centro Oeste, cercada por grandes fazendas de plantio de soja. Esse contexto tão brasileiro que envolve o agro pop que que se alia ao padrão hétero, branco, de latifúndios e de caríssimos maquinários agrícolas - que traduz à perfeição o "cidadão de bem" da região, que parece apenas interessado em viver a sua vidinha de festinhas topzeras de final de semana, passeios de caminhonetão e uso de drogas com a broderagem. A morte de Madalena funciona como uma espécie de assombração a rondar a região. E a todos que ali estão.
Nesse sentido, Marcheti faz um exercício de estilo e de contrastes que nos deixa o tempo todo em estado de suspensão. Há algo no ar que sugere o tempo todo uma certa quebra de lógica, que vai no limite entre o deserto verde que bordeja o asfalto (ou a estrada de chão) a parte central da cidade. Em meio a aplicação de agrotóxicos por monumentais implementos - ou mesmo com drones -, há a mata, o rio e o vento que insiste em soprar. E que pode até deixar a tragédia fora do quadro, ainda que ela soe onipresente. Como espectadores não sabemos também como lidar. O assassinato de uma trans que ressurge como um espectro é evidenciado pela música insistente de Tetê Espíndola que toca repetidamente num rádio "abandonado" em uma casa, ou mesmo pela surpresa de um jovem agricultor que se depara com algo inesperado em meio à lavoura. O filme escavoca sensações e nos deixa desconfortáveis. O apagamento, afinal, é esfregado na nossa cara. Morreu alguém. Ninguém viu. Ninguém vê. Alguém verá?
Em entrevista à Rádio França Internacional (com partes reproduzidas no Observatório G) Marcheti explicou que o filme "questiona como nós, como sociedade, permitimos que isso aconteça, e isso continua acontecendo. Então, o espectador fica em uma posição desconfortável porque não sabe o que houve com Madalena e fica imaginando hipóteses para as quais não vai ter as respostas. Tudo isso nos leva a refletir sobre o nosso papel diante os crimes de transfobia no Brasil". Com tintas autobiográficas, a obra também reflete sobre lugares e sobre a tentativa de se encaixar quando não se é parte do padrão. E sobre como o desaparecimento de uma figura que vive à margem pouco alterará na rotina da comunidade. A sensação é de desamparo. De quebra de lógica, de instabilidade. As pessoas trans, afinal, vivem em média 35 anos no Brasil. Mas o diretor evita o panfleto pelo panfleto. O que resulta em uma obra complexa, reflexiva e que rende bastante em uma mesa de discussão.
Nota: 8,0
sexta-feira, 4 de março de 2022
Pitaquinho Musical - Stereophonics (Oochya!)
Cine Baú - O Poderoso Chefão (The Godfather)
De: Francis Ford Coppola. Com Marlon Brando, Al Pacino, James Caan, Diane Keaton e Robert Duvall. Drama / Policial, EUA, 1972, 177 minutos.
Acho que é possível afirmar, sem muita chance de erro, que é mais ou menos lá por meia hora de O Poderoso Chefão (The Godfather) que a mitologia da Família Corlone, bem como o modo como operam seus "negócios", se estabelece. Don Vito (Marlon Brando) está insatisfeito com o fato de o cineasta Jack Woltz (John Marley) ter negado um papel de destaque a seu apadrinhado Johnny Fontane (Al Martino). Para tentar solucionar a questão, o chefão envia à Los Angeles o seu "filho"/advogado Tom Hagen (Robert Duvall). O jantar é pacífico, amistoso. Jack e Tom andam pela propriedade, conversam, com o segundo tentando dissuadir o primeiro a voltar atrás em sua decisão. Sem sucesso. A noite cai, o dia amanhece. O tom é plácido, os grilos cantam em meio a calmaria do pátio. Os movimentos de câmera sugerem tranquilidade, enquanto no quarto Jack está dormindo. Só que algo o desperta. Algo que ele não consegue distinguir com precisão. Ele está banhado em sangue. Ao puxar as cobertas, a revelação: a cabeça do seu valioso cavalo Khartum, ali jaz. É uma sequência assombrosa, apavorante, magnética. Assim como são os gritos do cineasta. Johnny, a gente nem precisa dizer, obtém o papel. E, nós, espectadores, temos um filme. Um clássico. Uma verdadeira ópera cinematográfica.
Aliás, qualquer expressão que se utilize pra definir a obra-prima de Francis Ford Coppola - construída a partir do livro de Mario Puzo -, não será suficiente. A propósito, o que ainda não foi dito sobre o filme que completa 50 anos agora em 2022? Trata-se ao cabo da experiência cinematográfica completa que nos apresenta aos Corleone como um organismo sólido, que procura marcar território enquanto preserva e perpetua seu nome, sua identidade. Toda a sequência inicial, com Vito utilizando o casamento de sua filha Connie (Taila Shire) para solucionar uma série de pequenas questões em seu escritório, dá conta de como colidem esses universos. Por sinal o patriarca quase nem consegue aproveitar a festa em si, já que há uma verdadeira fila de pessoas que lhe aguardam algum conselho, algum favor, sempre concedido a partir de um código de ética próprio, que vai no limite entre o respeito, a honra, a religião e a própria família. Um tipo de troca em que, em tese, todos ganham. Padrinho e apadrinhados.
Só que a coisa começa a desandar quando Don Vito recebe um representante do tráfico de drogas local - um mercado promissor, em expansão. Diferentemente das outras cinco famílias de mafiosos com quem realiza suas negociações, o protagonista não está interessado em levar adiante esse tipo de comércio (os negócios ligados aos jogos de azar sempre foram o seu campo de atuação). O que significa também reduzir a influência política e policial que poderia facilitar a chegada dos narcóticos á cidade. É a deixa para que Corleone seja traído em uma emboscada - aliás, a cena é inesquecível, com o chefão sendo alvejado por tiros enquanto compra frutas e verduras na feira. Bom, não demora para que uma sequência de atentados, executadas de parte a parte, transforme a vida dos mafiosos em um jogo permanente de vingança. A coisa vai mal e fica ainda pior quando Sonny (James Caan), um dos filhos, é executado. É a deixa para que Michael Corleone (Al Pacino), um veterano de guerra, retorne ao convívio da família, na intenção de colocar a casa em ordem.
Com um sem fim de cenas icônicas - além da já citada do "cavalo", há aquela em que o capanga Luca Brasi (Lenny Montana) é morto em um restaurante que serve peixes (com o comunicado do assassinato sendo feito de forma excêntrica e até divertida), além da bela sequência final, com uma rima visual arrebatadora envolvendo o batismo não apenas do sobrinho de Michael, mas dele mesmo -, tudo é executado de forma elegante, com uma fotografia cinza amarelada (daquelas típicas dos anos 70), uma trilha sonora memorável e uma composição de quadros nunca óbvia. Até os figurinos, se alternando entre o sóbrio e o colorido - algo que pode ser percebido especificamente em Kay Adams (Diane Keaton) - são cheios de simbolismos, bem como os diálogos ambíguos ("farei uma proposta que ele não pode recusar") e o roteiro bem costurado. Complexo, monumental, iconoclástico, o filme receberia um sem fim de prêmios, entre eles o Oscar de Melhor Filme em 1973. Além de figurar em dezenas de listas de melhores, a obra inaugural pavimentaria o caminho para O Poderoso Chefão 2 (1974) e 3 (1991), que converteriam esta em uma das maiores trilogias da história do cinema.