segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

30 Melhores Discos Nacionais de 2023

Se tem uma lista que tenho muito carinho é a dos Melhores Discos Nacionais. E sempre considero que, com ela, vem a grande responsabilidade de tentar ouvir o máximo possível de lançamentos, a fim de divulgar uma relação que seja a mais democrática possível, explorando gêneros e artistas os mais variados - e que deem conta ao menos de parte da produção brasileira do ano. E, assim como ocorreu com o levantamento dos discos internacionais, a constatação é de que esse foi mais um ano espetacular para a nossa música que, ao cabo, nunca foi tão diversificada na história. Para além do sertanejo universitário, o ouvinte atento pode encontrar aqui obras variadas de indie, de rock alternativo, de R&B, de funk, de eletrônica, de trap e de MPB, claro. 

 


De artistas consagrados que saem de um hiato de tempos pra celebrar trinta anos de carreira - caso do Pato Fu -, passando por iniciantes que já chegam com cara de experientes (caso da Uyara Torrente, que deu um tempo n'A Banda Mais Bonita da Cidade pra investir na carreira solo), o caso é que temos aqui uma variedade de ritmos e de estilos, num levantamento elaborado com calma, tentando não deixar escapar nada. Tentando, como eu disse. Porque uma lista como essa pode não ser necessariamente sobre os melhores. E sim sobre aquilo que se conseguiu ouvir em um período de 365 dias. Com o mínimo de atenção e de dedicação. De repetição. E, se faltou alguma coisa, convido vocês a construírem juntos. Listas, afinal, muitas vezes são subjetivas. E certamente não se encerram em si.

 

30) Julio Secchin (Erupçando): Vamos combinar que a música do carioca Julio Secchin chega a ser quase irritantemente simples. E, por mais contraditório que isso possa parecer, esse é um elogio. Até mesmo porque não deixa de ser um mérito a capacidade de fazer música pop, ensolarada, descomplicada e que vai direto no coração. O artista, afinal, nunca negou o fato de conversar com os jovens por meio de sua arte - e os números impressionantes de Festa de Adeus (2019), seu primeiro trabalho, não deixam mentir. Agora, com Erupçando, a mistura de indie, MPB, música caribenha e funk parece ainda mais expandida, com as suas letras funcionando ao mesmo tempo como divagações cotidianas bem humoradas (e românticas), mas sem deixar de lado o poder do afeto quando tudo a volta parece estar desmoronando. "Pessoas nasceram, pessoas queridas partiram. Mas uma coisa ficou cada vez mais forte: acreditar e insistir no amor é um ato de resistência - pessoal e coletiva", salientou no material de divulgação que, inevitavelmente, alude aos tempos recentes, especialmente os do contexto da pandemia. Peça central do álbum, a divertida 1000 Contatinhos brinca sobre o amor nos tempos de muitas conexões, especialmente as virtuais, mas de escassez de apego emocional ou de responsabilidade afetiva. Acerto total.

 

29) Uyara Torrente (Montada em Seu Cabelo): Quem vê a vocalista d'A Banda Mais Bonita da Cidade esbanjando personalidade nas apresentações ao vivo do coletivo, que costumam arrastar fãs bastante devotos Brasil afora, quase nem acredita que ela começou no mundo da música meio que "no susto" - como ela revelou em entrevista ao Plural. Agora, doze anos depois de viralizar com o clipe da canção Oração, uma das mais queridas dos curitibanos, a artista finalmente lançou seu primeiro trabalho em carreira solo. "A Banda me preparou, me legitimou e me fortaleceu até que eu pude de fato assumir esse lugar, e, naturalmente, veio o desejo de descobrir outros caminhos", comentou no mesmo bate papo. O resultado são dez canções em que Uyara empresta a sua já tradicional habilidade vocal, expandindo a sua arte para além do caráter lúdico, que sempre caracterizou o seu grupo. Claro, não significa que estamos diante de uma grande revolução sonora, mas canções como a releitura de Sereia (de Lulu Santos e Nelson Motta), além de Ela Vem, Sol de Meio Dia e, especialmente, Pudera, com sua cadência refrescante, parecem explorar outros arranjos e possibilidades criativas. "Montar esse disco foi como fazer um quebra cabeças de mim mesma", resumiu no material de divulgação.

 

28) Troá! (Deboche): Já dizia o escritor Nick Hornby que o "sarcasmo e a compaixão são duas qualidades que tornam a vida na Terra tolerável". E, em alguma medida, é interessante notar como essa frase parece resumir à perfeição a experiência com o segundo trabalho das meninas do Troá!. Concebido durante e no pós pandemia, o projeto parece ser resultado daquele ideal de que rir (especialmente de si) pode ser mesmo o melhor remédio. E como Manuella Terra e Carolina Mathias, as integrantes da banda, têm uma amizade de mais de dez anos, é bastante palpável o entrosamento, que resulta em uma coleção de nove canções que mesclam MPB e rock alternativo, em que os sintetizadores se destacam. "Esse é um projeto onde, na sonoridade, a gente conseguiu encontrar a nossa essência. Acredito que a gente passou muito tempo pesquisando, indo a muitos shows, ouvindo muita coisa, vendo muita coisa, fazendo novos amigos, para entender qual era o corpo desse disco", explicou a dupla no material de divulgação. Um bom exemplo desse contexto pode ser percebido na pegajosa Vamo Misturar as Coisas, que tem melodia oitentista e, talvez, uma das melhores letras do ano  (Nada é mais urgente / Do que tudo que eu não digo / Dias, eras, ages, pesquisando um sentido / Pra descobrir um fato histórico / Tudo que foi em 97 é lindo / Menos você). Genial!

 

27) Rubel (As Palavras, Vol. 1 & 2): Tim, Bernardes, BK, Bala Desejo, Milton Nascimento, Liniker, Luedji Luna, Xande de Pilares. Quem olha pra diversidade de estilos das participações especiais do terceiro álbum de Rubel, pode ter certeza do caráter heterogêneo do trabalho. Pensado como um projeto que busca ampliar os horizontes para além dos limites da MPB, o disco parece olhar com mais carinho para os versos, para as frases, para as letras, utilizando-as como âncora para uma análise mais profunda do Brasil atual. "Eu acho o meu trabalho, e de algumas vertentes da música brasileira, comportados demais, sabe?", destacou em entrevista para a Revista Rolling Stone, citando como exemplo o diálogo com o funk, estabelecido em PUT@RIA, canção de título autoexplicativo. Aliás, os mais "puristas" poderão estranhar toda essa diversidade - uma cacofonia de fragmentos, de vozes e de estilos que se mesclam e promovem um encontro entre o forró, o pagode, o hip hop, a eletrônica, o spoken words, o funk e, claro, a MPB. Pode até soar confuso em uma primeira audição. Talvez até estranho, especialmente para quem se acostumou às ambientações que marcariam canções como Partilhar ou Quando Bate Aquela Saudade. Mas, ao cabo, Rubel mostra que não está estagnado. Que não está preso no mesmo lugar. E isso merece ser destacado.


26) Mahmundi (Amor Fati): Se há algo que podemos perceber no quarto trabalho de Mahmundi é a existência cada vez mais clara de uma personalidade própria - uma espécie de "cara" pra sua música. Que faz com que o material seja de fácil identificação. Quem acompanha a artista desde o começo da carreira talvez já esteja habituado com as suas melodias aconchegantes, que alternam instantes solares e otimistas com momentos mais poéticos e profundos. Aqueles que aguardam insistentemente por grandes novidades ou revoluções a cada novo disco talvez não vejam nada de mais nessa nova leva de canções que misturam MPB, pop, rock, soul e jazz. Ao mesmo tempo parece ser esse mesmo sentimento de familiaridade que torne a experiência com esse álbum tão agradável. Não há grandes invenções. E quando apertamos o play não demora para que estejamos ambientados ao novo projeto - com todo o estoicismo evocado pelo título. Misturando a filosofia de Nietzsche, com David Lynch e comédias românticas noventistas, a artista explica que o conceito de amor ao destino parece ser uma espécie de linha guia do disco. Um bom exemplo que resume esse expediente pode ser encontrado em Sem Necessidade - parceria com o gaúcho Taguá Taguá. É o tipo de música que flui redondinha, que flerta com a psicoldelia e que nos faz abrir aquele sorriso.

 

25) Tatá Aeroplano (Boate Invisível): Quem acompanha a carreira do paulista Tatá Aeroplano sabe exatamente o que vai encontrar a cada novo registro - no caso, aquela mistura saborosa de psicodelia oitentista, MPB e rock alternativo (que, aliás, já era a marca do Cérebro Eletrônico, banda da qual foi um dos fundadores). Mas qual seria o diferencial, então, deste sétimo registro solo? "Acho que a marca aqui é o improviso, com as músicas nascendo ora por meio da bateria, em outras por meio do baixo, do piano ou dos sintetizadores, com o Thales Castanheira gravando tudo", resumiu o artista no material de divulgação. Tatá explica que o álbum foi uma construção coletiva em parceria com Bruno Buarque, Dustan Gallas, Junior Boca, Kika e Malu Maria, tendo início em uma imersão em estúdio em que simplesmente não havia canção nenhuma. Esse estilo meio fluído pode ser percebido nos arranjos soltos, com aquela cara de "não sabemos bem onde vamos chegar, mas estamos indo" - o que é reforçado pelas letras cheias de repetições que emergem de músicas como Gente na Praia, Canto Mistério e No Fusca com T-Rex, além da ótima faixa-título, que cita New Order descompromissadamente, como um convite à celebração (mas sem perder a melancolia).

 

24) OUTROEU (A Mágica por Trás da Forma): Fosse uma banda do final dos anos 90 ou começo dos 2000 e o OUTROEU certamente estaria em todas as paradas de sucesso das rádios - muito provavelmente no mesmo bloco de LS Jack, Nila Branco e KLB. Isso significa que não haja espaço para a dupla Guto Oliveira e Mike Tulio? De jeito nenhum. Em linhas gerais o mundo anda tão cheio de complexidades, tão pesado, que parece que já não temos mais tempo de curtir música apenas por curtir. E é justamente esse clima nostálgico, de fim de tarde primaveril, que talvez remeta a tempos mais simples, que, paradoxalmente, é o grande trunfo, o ponto fora da curva dos músicos naturais de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro. No que diz respeito a sua discografia, esse terceiro registro também representa uma mudança de rumos - sutil, saindo um pouco do folk alternativo, que era a marca de Encaixe (2019), por exemplo, para adentrar em um terreno mais dançante, de sintetizadores polidos e efeitos eletrônicos aconchegantes. Tudo com muita personalidade, sem jamais pender pra breguice. O resultado são canções solares, cheias de ganchos, efeitos e refrões grudentos, daquelas de fácil identificação e feitas sob medida pra todo mundo cantar junto nos shows - casos de Da Boca Pra Fora, Ninguém Precisa Saber e Meu Bem.

 

23) Jaloo (Mau): Não foram necessárias muitas audições para perceber que, com Mau, a cantora Jaloo parece estar muito mais à vontade. Não que ela não estivesse nos primeiros trabalhos - os elogiados #1 (2015) e ft. (pt. 1) (2019) -, mas aqui ela surge muito mais segura. E muito mais madura. Especialmente na hora de celebrar o seu lado feminino. Como um ser em mutação, ela abandonou completamente o visual de cabeça raspada que se via nos materiais de divulgação do disco anterior - que a colocava num lugar que emulava mais o masculino -, para surgir de cabelos longos, maquiada, com salto alto. "Tudo faz parte de um ciclo, de um momento e também do meu processo criativo. Vivo em constante movimento", comentou em entrevista ao Ig, salientando ainda que o feminino já havia emergido há tempos. "Eu só não tinha compartilhado com o público", pontuou. O resultado são canções que, como de praxe, mesclam estilos variados de forma muito criativa - levando a estética tecnobrega, o forró e os ritmos latinos e periféricos até o limite, especialmente quando encontram a música eletrônica, o trap, o R&B e o dream pop. Nesse sentido, não é por acaso que alguns arranjos parecem saídos de algum filme de ficção científica gravado no região norte do País. É uma mistura coesa, rara, cheia de personalidade e que resulta em canções que já nascem clássicas, como Ocitocina.

 

22) Ava Rocha (Néktar): "Bebamos esse mel de manhã, esse rio de tarde, enchente de noite. Vazar pelos poros, navegar as próprias veias. Derramar entre as pernas, pingando nas línguas, dos amores aos venenos purificadores, até as orelhas virarem asas e pés em forma em forma de língua vestirem barcos para navegarem." O estilo poético com que a carioca Ava Rocha descreve o seu terceiro disco de estúdio dá algumas pistas sobre o tipo de música que o ouvinte encontrará em Néktar. Às vezes comercial em outras erudita, em certos momentos samba noutros música eletrônica alternativa, o caso é que poucas artistas conectam tão bem o acessível e o experimental, o popular e o fragmentado. "O meu popular quer dizer que ele é um disco mais direto, que está mais arraigado a uma alma cultural brasileira mais facilmente identificável", explicou em entrevista à Revista Noize, em que comentava também sobre os aspectos cinematográficos, um tanto teatrais, de sua obra. Um bom exemplo desses antagonismos pode ser encontrado em músicas como Seringueira na Veia, que mistura o bucolismo da percussão tribal, com efeitos eletrônicos minimalistas, em uma letra sobre o fluxo da natureza em metáforas sobre as veias que fluem como rios. O expediente se repete em Barco nos Pés com sua letra insinuante e metafórica (Vestindo a garoa, lavando a alma do País inteiro / Pra amanhecer).

 

21) Mateus Fazeno Rock (Jesus Ñ Voltará): Fazer uma espécie de junção entre o rock mais virtuosístico e o hip hop saído de periferia. É mais ou menos esse o cenário que movimenta o segundo álbum do cearense Mateus Fazeno Rock. Nascido na periferia e convivendo com as diferenças sociais desde muito novo, o artista encontraria em discos de bandas como Silverchair e Nirvana o primeiro contato com o rock. Só que, sendo preto,  o problema foi não se identificar com aqueles branquelos loiros, que muitas vezes apareciam em videoclipes ou em fotos nos discos, no auge do movimento grunge. O que o motivaria a mais tarde, contrapor esse modelo meio hegemônico (e até previsível) de produzir música. O resultado são discos como esse Jesus Ñ Voltará em que somos bombardeados por uma miscelânea de estilos - de punk e funk, passando por rap, dub, reggae e R&B. Um bom exemplo dessa complexidade se estende para a letra de Pose de Malandro / Me Querem Morto em que o cantor divaga sobre masculinidades negras e arquétipos envolvendo os "crias da comunidade". "É um lugar ambíguo, de empoderamento e de vulnerabilidade", explicou à Revista Noize. Há outros momentos de brilho em que o violão se mescla com percussões e batidas eletrônicas elegantes - caso de Nome de Anjo e Pode Ser Easy.


20) Marina Sena (Vício Inerente): Sim, a gente sabe que a Marina Sena se envolveu em uma série de polêmicas nesse 2023, com direito a algumas decisões, no mínimo, questionáveis. Mas, é preciso separar a obra da artista e, acusações de queerbait a parte, em seu segundo trabalho, a mineira segue fazendo música boa como poucas. A cantora, aliás, nunca escondeu o desejo de ser famosa e se o primeiro álbum, De Primeira (2021), atingiu em cheio os corações dos frequentadores de festivais alternativos foi com este disco que ela alcançou o grande público. Com melodias mais acessíveis, batidas urbanas e letras bem mais diretas, o resultado aqui são canções muito mais sensuais e confiantes do que no bucólico e levemente mais experimental disco anterior - algo que pode ser visto já na estética da capa do projeto. "Acho que é por ser ousado que eu ganho respeito, porque o público fala ‘Nossa, minha artista não morreu. Minha artista está ai'", comentou em entrevista à Revista Noize. Nesse sentido, singles como Tudo Pra Amar Você e Olho no Gato exalam um ar de modernidade, de atitude, que é evidenciado também pela mistura de estilos, que vão de pop e música eletrônica, passando por funk, drill e regaetton, com muito uso de autotune e uso da voz como instrumento. Temos a nossa Rosalía? Talvez. Se vocês estiverem preparados pra essa conversa.


19) Julia Mestre (Arrepiada): Talvez nem fosse necessário Julia Mestre verbalizar que Rita Lee foi a grande inspiração para o seu segundo registro em carreira solo. Afinal, bastam os primeiros acordes da faixa-título que abre o trabalho após uma pequena introdução, para que sejamos arremessados diretamente pra fase setentista da artista, que nos deixou em maio desse ano. O que é reforçado pelo vocal absurdamente semelhante da integrante do Bala Desejo. "Rita Lee é para mim a maior compositora do Brasil, uma grande referência. Tenho em casa quase um altar para ela", comentaria em entrevista à Carta Capital. Confinada por causa da pandemia, Julia se aplicou em audições frequentes dos álbuns de 1979 e 1980 de Rita Lee que, coincidentemente, levam apenas o nome da artista. Aliás, são desses registros músicas como Doce Vampiro, Mania de Você e Lança Perfume que, aqui e ali parecem se espalhar nas composições cheias de personalidade de Julia, evocando o estilo de romances entortados, por vezes sombrios e essencialmente brasileiros, que marcariam a obra de sua predecessora. Sem abrir mão de questões contemporâneas, Julia adiciona elementos bucólicos e eventualmente oníricos, mesclando estilos e instrumentos - de sanfona a triângulo, passando por sopros e cordas - e abordando feminilidade e gênero em um projeto cheio de camadas, que parece se revelar aos poucos.


18) Jards Macalé (Coração Bifurcado): Uma das coisas que me pega muito em discos como Coração Bifurcado - vigésimo da carreira bastante prolífica do octogenário poeta e compositor Jards Macalé - é o contraste entre a sofisticação das melodias e o estilo vocal embebido do artista, algo que vai no limite entre a música de cabaré e as rodas musicais improvisadas, como se saídas de peças de teatro encenadas em casas noturnas do subúrbio. Aliás, de forma complementar, não deixa de ser interessante notar como ele praticamente conclama o ouvinte a cantar junto na graciosa Cante, que fecha o trabalho (A melhor coisa do mundo além do amor). Aliás, a beleza evocativa dos versos está em todas as partes, por todos os cantos, e Macalé parece ser uma espécie de inegável voz da experiência na hora de cantar as coisas do amor, suas dores e incertezas, como comprova a dobradinha Amor In Natura e a faixa título, que abrem o álbum para nos lembrar que "Um amor faz sofrer / Dois amor faz chorar", mas também que "O amor tem asas longas de anjo / E ai de quem tem as pernas curtas". Mais adiante o expediente se repete em canções de títulos autoexplicativos, como Mistérios do Nosso Amor - esta com participação especialíssima de Maria Bethânia -, O Amor Vem da Paz e Pra Um Novo Amor Chegar. Com participações de Ná Ozetti, Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, Guilherme Held e outros instrumentistas da nova geração, o projeto é pura personalidade. De ouvir mais de uma vez.

 

17) Pato Fu (30): Devo confessar a vocês o fato de não ser fácil falar do Pato Fu sem ser tomado pela paixão. É uma das bandas da vida, e aí é aquilo: bastaram duas canções desse décimo registro de inéditas pra que eu já estivesse entregue ao irresistível carisma e à doçura indefectível do grupo. "Faz tanto tempo / Que não vejo você / Faz tanto tempo já / Que até dá medo de saber / O que anda pensando", anuncia já na abertura da inaugural Fique Onde Eu Possa Te Ver - como se fosse uma velha amiga, querendo saber das novidades, em uma canção prosaica com o DNA da banda. E como se já não bastasse a entrada triunfal, o ato seguinte é a política Silenciador, que faz um contraste perfeito entre a delicadeza da melodia e a fúria dos versos (Mais um milagre na capela / Da fé brotou o empreendedor / Deus fala pelo cano de meu revólver / E a bíblia é o meu silenciador). Aliás, assim como ocorreu no ano passado com o Planet Hemp, a impressão que temos é a de que sequer houve um hiato de quase dez anos. Ok, a desculpa pode até ser os trinta anos de carreira. Mas o Brasil anda dureza e é muito bom ver esse recorte mais afrontoso que resulta em canções imperdíveis como A Besta e Curral Mal-Assombrado. Claro, as baladas cotidianas, açucaradas e primaveris não deixaram de existir. Mas o mundo mudou. E é bom perceber que o Pato Fu caminha junto.


16) Ian Ramil (Tetein): Talvez tenha sido a paternidade. Ou mesmo um fiapo de esperança nesse 2023 que finaliza. Mas o caso é que com esse álbum, o gaúcho pareceu menos furioso do que no provocativo e iconoclasta Derivacivilização (2015), o trabalho anterior. Ao cabo, não é só certa delicadeza que parece emergir das melodias mais econômicas ou menos expansivas que parecem influenciadas pelo nascimento da pequena Nina, há seis anos. As letras também surgem mais polidas, menos inconsequentes. Não, não é que o pelotense tenha perdido o espírito questionador. Mas como disse a repórter Andressa Leonarczik, do Jornal do Comércio "quando nasce uma filha também nasce um pai". E em um álbum elaborado ainda antes da pandemia não parecia haver mais tanto sentido esse pendor mais urgente para certos debates. "Não é um disco que fala sobre a paternidade. Mas ele é por causa da paternidade", resumiu na mesma entrevista. O resultado é uma coleção de canções de ambientação mais sutil - como é o caso da própria faixa-título, que parte de uma palavra inventada pela pequena, ou mesmo a graciosa Cantiga de Nina, um samba-canção que homenageia Cartola e que foi concebida quando Nina não tinha nem um mês de vida. "Foi um processo bem diferente, muito mais delicado e tem a ver muito com o processo criativo que vem desse lugar" comentou em bate papo com o Estados de Minas


15) Letrux (Letrux Como Mulher Girafa): O estilo bastante teatral de Letícia Novaes, a Letrux, ganha tintas galhofeiras, coloridas e libidinosas em seu terceiro trabalho em carreira solo. Após o clima sorumbático do anterior - que tinha o título autoexplicativo de Letrux aos Prantos (2020) -, era a hora de, com o perdão do trocadilho, "soltar as feras". Talvez fosse a pandemia chegando ao fim. Ou a simples necessidade de sair da toca e mudar de ares. Mas o caso é que com o novo projeto, produzido por João Brasil, a artista utiliza a alegoria do animalesco pra falar de sentimentos visceralmente humanos. Construindo um projeto ao mesmo tempo divertido, selvagem e poético - numa montanha-russa artística que vai do pop ao psicodélico, com uma parada no rock mais direto e dançante, sem firulas. Literal em alguns momentos, abstrato em outras, o disco parece dar um novo rumo para a carreira da cantora e compositora, ainda que isso não represente necessariamente uma revolução. É pé no chão. O resultado disso é um passeio na floresta em que músicas de nomes, como, Zebra, Crocodilo, Aranha e Hienas se intercalam com pequenas vinhetas sonoras que funcionam quase como um rascunho musical (uma forma de aproximar o público do que acontece no mundo real das produções). É pura personalidade. 


14) Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo (Música do Esquecimento): "Eu não vou fazer / Qualquer canção / Só pra dizer / O que eu sinto agora". Vamos combinar que não deixa de ser um paradoxo uma banda marcada por certa anarquia, converter uma pequena música em um manifesto metalinguístico meio as avessas - como é o caso de Qualquer Canção. Mas talvez seja justamente essa ironia da coisa toda, esse bom humor acima de tudo, que torne o trabalho dos paulistas tão interessante. Um pouco menos caótico que o elogiado e homônimo álbum de estreia, aqui o coletivo parece apresentar uma maior coesão - mesmo com cada canção tendo personalidade própria. Se, no primeiro disco, cada música era um caminho à parte, agora a banda parece ter finalmente encontrado uma sonoridade própria. "Isso não significa menos diversidade estética: o que era pop ficou mais pop; o que era experimental, mais experimental; o que era lírico, mais lírico; e o que era rock and roll, mais rock and roll", explicou a banda no material de divulgação. Um bom exemplo dessa evolução que vai no limite entre o experimentalismo e o acolhimento está na lisérgica As Coisas que Não Te Ensinam na Faculdade de Filosofia que contrasta psicodelia minimalista na melodia com força poderosa na letra (O que fizemos pra chegar aqui / E quem nós vamos enganar amanhã?).


13) ÀIYÉ (Transes): Conectar passado e presente, ancestralidade e porvir, em um caldeirão sonoro de possibilidades. Mais ou menos assim é possível resumir a experiência com o segundo registro de inéditas da carioca Larissa Conforto que, desde que saiu da banda Ventre, responde pelo nome de ÁIYÉ (que significa Terra na língua Iorubá). Nesse sentido, se por um lado as percussões tribais acenam para os orixás, para a espiritualidade, para o terreiro, por outro lado os sintetizadores cibernéticos movimentam as suas melodias para o futuro, numa espécie de cruzamento sofisticado entre Clara Nunes e Djavan, com Flying Lotus e Arca. "O disco carrega a minha pesquisa das histórias do tambor, por isso ele é diverso. Você vai achando as coisas, vai ficando com tesão de misturar tudo aquilo, de ver como soa" comentou em entrevista à Revista Noize. Um bom exemplo dessa diversidade, pode ser percebida na dobradinha Diablo XV e Flui. Se a primeira é um reggaeton que não faria feio em algum dos registros de Rosalía, a segunda bem que poderia ser um cântico religioso, marcado pela espiritualidade - mistura que também tem a ver com o fato de a artista ter morado por muito tempo na Europa. "Estou falando sobre sexualidade, vida e amor, então os orixás entram nesse lugar de auxílio", frisou no mesmo bate papo.

 

12) Rico Dalasam (Escuro Brilhante Último Dia no Orfanato Tia Guga): Só o fato de ter sido o primeiro rapper a ter se assumido gay nesse Brasil tão cheio de contradições, já coloca Rico Dalasam um patamar acima. E, como se não bastasse ser um negro periférico nascido e crescido em uma comunidade carente de Taboão da Serra, em São Paulo - o que resultaria em uma série de preconceitos e memórias desse orfanato -, o artista ainda teve de lidar com o cancelamento (após um rebu jurídico envolvendo direitos autorais de uma de suas músicas) e uma suposta fama de ter temperamento difícil. Só que nada disso é percebido em seus trabalhos que, na maioria das vezes, se equilibra entre a força que emana do amor e a felicidade das pequenas coisas. Novamente mesclando trap, hip hop e música eletrônica, Dalasam converte esse registro em uma peça complementar da jornada iniciada com Dolores Dala Guardião do Alívio - aliás, nosso primeiro colocado na lista de 2021 -, que foi seguido do EP Fim das Tratativas (2022). "Precisei ir ao máximo para trás e depois para frente, para dimensionar o que vivi até aqui e poder ter uma perspectiva de futuro", comentou em entrevista à Veja. O resultado são canções de essência festiva, dançante e esperançosa - como comprovam as saborosas Jovinho, Espero Ainda, Sol Particular e, especialmente, Paixão Nova e Imã, duas das melhores músicas do ano.


11) cabezadenego, Leyblack e Mbé (Mimosa): maximalista, experimental, cheio de improvisos. Em alguns momentos sombrio, noutros festivo. Em linhas gerais não é tarefa muito fácil definir o tipo de som proposto pelo multiartista Luiz Felipe Lucas - o cabezadenego -, em parceria com os beatmakers e produtores do Rio de Janeiro, Leyblack e Mbé. Como se fosse uma grande colcha de retalhos que mistura terreiro de candomblé com samba, passando por ritmos diversos como hip hop, drum and bass, industrial e funk, a obra parece o veículo ideal para a reconfiguração de estilos, rompendo com o modelo tradicional. Não por acaso, o próprio trio trata o trabalho como uma espécie de disco manifesto sobre a potência dos ritmos afrobrasileiros - resultado aliás de uma residência feita pelos artistas no Etopia Centro de Arte e Tecnologia. Assim, percussões tribais se cruzam com paisagens eletrônicas afrofuturistas que, aqui e ali, conectam passado e presente, interligando ideias em uma verdadeira viagem pela música negra. Já nas letras - poucas, cheias de repetições, pequenas inferências e fragmentos que às vezes soam quase aleatórios -, corpo, identidade de gênero e sexualidade se convertem em ato político em instantes ao mesmo tempo divertidos e cheios de potência. Como ocorre, por exemplo, em Chora, Quinta, Dfb, Taca, Matuta e Tik Tik.


10) Sara Não Tem Nome (A Situação): "Pare pra eu descer / Essa viagem já foi longe demais". Repetida como um mantra na marchinha de carnaval Pare, faixa de abertura do segundo disco da mineira Sara Não Tem Nome, a frase acima funcionaria como um pequeno recorte, que ecoaria por todas as curvas do trabalho. Lançado apenas uma semana depois dos atos terroristas ocorridos em 08 de janeiro em Brasília, o registro não poderia ter melhor timing, com suas canções que vão no limite entre o deboche e a crítica social, como no caso da imperdível Agora (Será que o mercado vai lavar / Suas mãos invisíveis?). Apostando na mistura de shoegaze, dream pop e folk rock, a cantora mescla divagações cotidianas e bastante íntimas que, ao cabo, jogam luz no contexto político, social e cultural de um Brasil caótico, que precisa lidar com o delírio coletivo de uma extrema direita raivosa e completamente descolada da realidade. O resultado são canções de títulos autoexplicativos, como é o caso de Cidadão de Bens, que reflete de maneira exemplar o mundo doente, perverso, hipócrita e falsamente moralista que vivemos (Morto / Por dentro / Sua alma já se foi / Faz tempo / Cidadão de bens / Cidadão de bens). O ano começaria da melhor forma possível com um disco que fazia a crítica, enquanto sorria cinicamente, de ladinho, pra quem o escutava.

 

9) Dadá Joãozinho (Tds Bem Global): Como se fosse uma espécie de sonho febril psicodélico ocupado por 13 movimentos distintos. É assim que o próprio Dadá Joãozinho resume sua estreia solo. Dub, reggae, hip hop, punk, samba e outros estilos sendo reinventados e reinterpretados como forma de abarcar esse ideal da globalização. De algo que, a partir da arte, quebra fronteiras. O resultado é uma coleção de canções que buscam burlar os limites da música latina, periférica, das ruas. Natural de Niterói, o artista se mudou para São Paulo aos 23 anos, em plena pandemia, deixando para trás aquele ideal meio idílico da Zona Sul do Rio como um espaço de beleza e de influências ingênuas. "A utopia da música popular brasileira dos anos 70 não fazia mais sentido, então esse projeto precisava refletir esse espaço de escuridão", divagou no material de divulgação. Nesse sentido, canções como Habitual surgem como eco potente de um movimento estimulante, que cruza melodia feroz com letra urgente, que reflete sobre o marasmo cotidiano (Nós, como essa casa, a pose do gato / Tudo fica habitual / Hora de sexo [...] Tamo colado o tempo inteiro, um dia atrás do outro / Vamo ver novela). Desequilibrado, até irregular em certos momentos, esse é um disco que emerge como uma viagem delirante, empilhando vocais e mantras em uma jornada tão exaustiva quanto satisfatória.

 

8) Iara Rennó (Orí Okàn): "Aqui estou eu / Com minha voz recebendo a luz desse chão / Sagrado caminho que corre infinito / Pros braços abertos do mar". Não são necessários muitos segundos de audição do mais recente trabalho de Iará Rennó para que adentremos em um terreno místico, povoado por orixás, fenômenos da natureza e entidades de caráter enigmático. Com uma sonoridade ao mesmo tempo minimalista e potente, temos aqui um registro em que o violão, as percussões tribais e os efeitos eletrônicos cheios de sutilezas parecem fortalecer a comunicação com o candomblé e os aspectos ritualísticos de suas canções - como podemos perceber já em Iemanjá, que abre o disco e que é de autoria de Serena Assumpção. Outro bom exemplo nesse sentido é Baragbô, feita diretamente do terreiro, como forma de homenagear o terreiro do qual ela faz parte, o Ile Axé, Opo Baragbô, em Camaçari. Em entrevistas de divulgação, a artista explicou ainda que este é um álbum "irmão" do igualmente belo Oríkì, lançado no ano passado. "Eu já tinha uma relação e muita admiração pela cultura de orixá, com a cultura do candomblé, mas ainda não era iniciada. Quando me deparei com as traduções dos Oríkì, que são esses poemas de saudação (aos orixás), aquilo foi muito inspirador. Foi mais uma característica muito marcante dessa cultura, que me fisgou", explicou em entrevista ao El Cabong.


7) Lucas Santtana (O Paraíso): Quem acompanha a carreira do baiano Lucas Santtana sabe que a versatilidade de sua música não está relacionada apenas à estilos - que saltam da bossa nova ao pop solar, com uma escala sem concessões no "MPB de novela" -, mas também às letras, invariavelmente atentas ao que acontece ao redor. Sim, aqui e ali ele pode até falar de amor ou investir em dilemas mais cotidianos, com seu violão cru sempre à tiracolo. Ainda assim, ele parece incapaz de ficar alheio à temas relevantes, sejam eles políticos, sociais, culturais - como no caso do recente O Céu É Velho Há Muito Tempo (2019) que, por trás das melodias harmoniosas e sutis, escondia uma visceralidade cheia de potência. Já em seu nono disco de estúdio, o debate margeia o aquecimento global, as crises ambientais e a conscientização sobre o assunto. O resultado é uma coleção de canções mais movimentadas que as do trabalho anterior, com o acréscimo de percussões, sopros e sintetizadores solares que, ainda que preservem a homogeneidade, também mantém a rotação mais em alta. Elegante e onírico, lírico e contemplativo, o registro parece querer redefinir o conceito de Paraíso, utilizando a própria Terra como metáfora para esse espaço idílico. O que resulta em canções soberbas como Vamos Ficar na Terra e a inacreditavelmente linda La Biosphère. Discaço.

 

6) Ana Frango Elétrico (Me Chama de Gato Que Eu Sou Sua): "Eu sou o garoto de Stranger Things / (Menino, menino, de Stranger Things) / Eu não sou a garota que você pensa." Talvez um pouco mais direta e muito mais confiante do que nos trabalhos anteriores - especialmente na abordagem de temas ligados à identidade de gênero e a expressão da subjetividade queer. Mais ou menos assim pode ser resumido o efervescente terceiro registro da carioca Ana Frango Elétrico. Preservando a essência daquilo que foi apresentado especialmente em Little Electric Chicken Heart - o elogiado disco de 2019 -, aqui, a cantora e compositora mantém o diálogo com a tradição da música brasileira, sem ignorar a importância do diálogo com o moderno, cruzando boogie, com pop sofisticado, MPB classuda e dance music cintilante. Do início, com a explosiva e setentista Electric Fish, à conclusão com a divertida Dr. Sabe Tudo, o trabalho representa ainda um ponto de maturidade, especialmente na hora de expor sentimentos de amor LGBTQIA+. Como disse o site The Needle Drop em sua elogiosa resenha, Ana é um daqueles nomes que consegue soar como ela mesma, independente do gênero explorado. O que pode ser percebido em canções distintas como a cinematográfica Nuvem Vermelha, passando pela indie Coisa Maluca, até chegar ao art pop de Dr. Sabe Tudo.

 

5) Garotas Suecas (1 2 3 4): Talvez um pouco menos efervescente, colorida ou "escaldante" do que em trabalhos anteriores. Assim pode ser resumida, ao menos em partes, a experiência com o quarto álbum de estúdio dos paulistas. Famosos pelo bom humor e irreverência que marcariam projetos como Escaldante Banda (2010), em 1 2 3 4 o coletivo entrega uma safra de canções de tonalidade mais sóbria - ainda que a personalidade do quarteto permaneça intacta. "Foi um disco que foi feito com nós quatro nos encontrando da maneira que dava, de máscara" explicou o guitarrista Tomaz Poliello, em entrevista ao site Mad Sound. E ainda que os temas possam soar mais sérios, isso não significa necessariamente um aceno à melancolia. Mesmo em letras poeticamente reflexivas, como no caso do divertido single Gentrificação (Onde havia uma oficina, abriram um brechó / O restaurante estrelado já foi casa de uma avó), há um aceno para certo deboche, que se estende para a sonoridade que mescla power pop, surf music dos anos 60 e Jovem Guarda. Com duas metades bem delimitadas, o álbum insere o ouvinte em crônicas cotidianas, relacionamentos complexos e dores da vida adulta na primeira parte, para avançar para discussões políticas e sociais em seu lado B - o que fica claro a partir da trinca What U Want, Como É Que Pode e Bala. Talvez melhor disco do Garotas Suecas? Vocês decidem. 

 

4) FBC (O Amor, O Perdão e a Tecnologia Irão nos Levar Para Outro Planeta): Quem escutou (e se apaixonou) por Baile (2021), colaboração do rapper FBC com o Vhoor e que foi sucesso instantâneo em tudo quanto é canto, talvez se surpreenda com o novo direcionamento desse registro solo do artista mineiro. Bebendo na fonte da disco music e investindo em uma sonoridade menos direta sem deixar de dialogar com o moderno, FBC presta aqui uma homenagem aos mestres da música. "Muito do que tem ali no disco foi inspirado nessa minha paixão por Jorge Ben Jor, sabe? Esse meu estudo, eu escutei todos os álbuns, eu vi dezenas de entrevistas, eu me aprofundei mesmo na obra do Jorge e isso refletiu nesse trampo", exemplificou em bate papo com o pessoal do Tenho Mais Discos Que Amigos. Cruzando estilos que vão do hip hop ao house, passando pelo boogie e pelo funk, o artista converte cada canção em uma oportunidade de fortalecer manifestações culturais diversas - da dança ao grafite, até chegar à literatura. Um bom exemplo nesse sentido, é a magnética Estante de Livros, parceria com Don L. Na canção, em meio a citações à Baudelaire e a Machado de Assis ambos divagam sobre decepções amorosas sob perspectivas literárias (Na estante de livros que você divide com outra pessoa / Em sua nova hospedagem / Logo você que só lê livros no Kindle). Já nasceu clássico.

 

3) Luiza Lian (7 Estrelas / Quem Arrancou o Céu?): "A minha música é uma paisagem / Pra você entrar e fazer sua viagem / Pra você entrar e fazer sua viagem / Luzes que nela correm são um espelho / Pra cada um iluminar o próprio caminho". Os primeiros versos do quarto registro de inéditas da paulista Luiza Lian, não poderiam ser mais convidativos. Sim, cada um pode dar a sua interpretação pra música e a cantora e compositora parece consciente disso já nos instantes iniciais do projeto. Ainda assim esse caráter convidativo de A Minha Música É - a primeira faixa - é diluído em uma melodia densa, cheia de efeitos eletrônicos ruidosos, que contrastam com a voz limpíssima da artista. E, honestamente, não precisa muito para que sejamos impactados por essa mescla entre placidez e balbúrdia, com essa dicotomia sendo admitida pela própria Luiza no material de apresentação: "sempre tive pra mim que o encontro com o espírito se dava pelo corpo", afirma. Ao cabo esse é um disco de corpo e de alma, de concreto e de abstrato, de tecnologia e de espiritualidade, de futuro e de passado. Barulhinhos modernos que se misturam à percussões africanas, vocais robotizados em letras repletas de devaneios divinos, que se chocam com os prazeres da carne. "O disco fala sobre a dificuldade de acessar a espiritualidade em um mundo tão desconectado" resumiu em entrevista para a Revista Noize.


2) Alessandra Crispin (O Peso da Pele): "Não me chamaram para estar aqui / Mas eu não ligo sou fruto da resistência / Foi assim que eu sobrevivi". Bastam os primeiros versos da música que dá título ao segundo trabalho da mineira Alessandra Crispin, para que percebamos que as coisas mudaram, desde o seu primeiro disco, Meu Nome É Crispin (2016). De essência mais festiva e de exaltação da identidade negra, aquele álbum parece fruto de um passado distante. De lá para cá, a artista sentiu na pele o preconceito ao viver um episódio de injúria racial em 2018. O assassinato de Marielle Franco também foi um baque. "Naquela época pensei, ou me recolho ou desabrocho de vez pra falar das minhas demandas", comentou em entrevista ao Tribuna de Minas. Parte do resultado é encontrado em O Peso da Pele. Fruto de uma série de estudos da obra de autoras como Conceição Evaristo - que cunhou a palavra "Escrevivência" - a compositora se aproximou de temas ligados à ancestralidade, raízes e religiosidade, entre outros. Em decorrência tem-se uma obra exuberante e sofisticada que parte de um violão intimista que se expande, promovendo um encontro entre samba, pop, eletrônica e ritmos africanos. "Dá pra perceber um momento de maturidade", comentou na mesma entrevista. O que pode ser comprovado em obras-primas como a festiva Guerreira Oyá, Malandro Pilantra, Pretas Vidas e na já citada faixa título.


1) Marcelo D2 (IBORU): "Agora tem esse caminho sem volta para o samba. É mais sobre a minha carreira do que sobre o disco". Foi dessa maneira que Marcelo D2 resumiu, em entrevista à Carta Capital ainda no começo do ano, como seria a sua experiência com o espetacular IBORU que, a época, ainda estava sendo finalizado. Com uma proposta de ser "mais samba e menos rap", o artista carioca realiza uma retomada de temas ligados à ancestralidade, a resistência e a cultura popular entregando uma coleção de canções que atualizam o samba, ao mesmo tempo em que reverenciam o passado e os expoentes do estilo. Dividido em três atos, o álbum inicia com uma maravilhosa sequência de samba mais tradicional, em que se sobressaem canções como Povo de Fé, Até Clarear e Só Quando Meu Samba Morrer. No segundo terço, D2 vai para a Bahia, para um samba mais experimental, saído do terreiro de candomblé, em que ritmos e batidas africanas se juntam a bases eletrônicas modernas e cheias de personalidade - sendo o melhor exemplo a visceral Tambor de Aço, um rap que ajudou o artista a se reconectar com Ogum. Na última parte, a música popular se torna mais festiva, como sugerem músicas de título autoexplicativo como O Samba Falará + Alto e Bundalelê. Com participações de nomes diversos como Zeca Pagodinho, Alcione e BNegão, o projeto acerta em cheio no encontro da arte popular com a religião, sem deixar de lado assuntos políticos. É o melhor de 2023.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

30 Grandes Filmes Lançados no Cinema ou no Streaming em 2023

Assim como ocorre com as listas de discos, a dos filmes também não costuma ser muito fácil elaborar. Especialmente porque, nos dias de hoje, as formas de consumo e mesmo a disponibilidade de certas obras, parece obedecer mais ainda uma lógica mercadológica. Sim, porque se na era do DVD precisávamos torcer para que a nossa locadora de estimação comprasse essa ou aquela produção, hoje em dia ficamos reféns das plataformas de streaming - e da sua boa vontade em investir em filmes que, vá lá, talvez não deem tanto retorno. Quando o assunto é o cinema, a coisa é ainda pior: primeiro há o atraso da chegada, especialmente de obras que trafegam no circuito alternativo - sejam elas nacionais ou estrangeiras. Nesse sentido não são poucos os filmes produzidos, por exemplo que são exibidos em festivais, mas que chegam ao grande público dois, às vezes três anos depois - um dos casos gritantes, nesse sentido, é o do nacional O Homem Cordial, que foi concluído em 2019, mas que só deu as caras nesse ano.

Depois há a disputa por salas - especialmente em um contexto de audiência infantilizada, que aguarda ansiosamente o mais novo filme da Marvel, com suas máquinas de propaganda poderosas, que renderão milhões aos cofres dos produtores, com a venda de bonequinhos, lanches do McDonalds temáticos e outros badulaques. Todo esse contexto complexo dá conta da dificuldade de organizar uma lista como essa, porque a gente quase se perde na lógica temporal. Lá pelas tantas eu posso estar conferindo um filme lançado na Mubi, ao mesmo tempo em que me questiono: "esse é o lançamento dessa obra?". Ou ela já circulou antes? Esteve em cartaz? Ou foi direto pro streaming? E todo esse preâmbulo serve pra dizer que a nossa lista com 30 Grandes Filmes é um recorte daquilo que de mais recente chegou às telonas ou ao streaming, na tentativa de ser o mais plural e o mais atual possível. Salientando também que este é um pequeno recorte daquilo que tivemos acesso, já que muitas obras que já estão sendo faladas, ainda não deram as caras por aqui - como é o caso do incensado Vidas Passadas, por exemplo, que deve figurar provavelmente na lista do ano que vem. Boa leitura!

 

30) Triângulo da Tristeza (Triangle of Sadness): Em uma das primeiras sequências dessa obra do sempre ótimo Ruben Östlund, o jovem e lindo casal formado pela influencer Yaya e pelo aspirante a modelo Carl discute longamente sobre quem deve pagar a conta de um jantar em um restaurante chique em que estão. Ela, pelo visto, ganha mais do que ele e ele culpa o "feminismo de merda" como uma mera muleta inútil no que diz respeito a essas questões mais práticas do dia a dia. "Se os direitos são iguais, as contas não deveriam ser divididas por igual?" é o que parece haver em seu cérebro ruminante. A cena segue, vai pro táxi onde o debate continua, em meio ao barulho incômodo de um limpador de para-brisas velho - que serve para ampliar o caráter caótico (e até absurdo) daquela conversa. Era pra ser uma noite feliz, que não fosse pautada apenas por dinheiro. Não é o que acontece. Assim, bastam alguns minutos do filme para que percebamos que Östlund aponta sua câmera, novamente, para a natureza mesquinha das classes mais abastadas, para a hipocrisia desses estratos sociais e para o abuso de poder que decorre desse cenário. O resultado é uma obra sórdida, mas bem humorada, que não tem vergonha de colocar o dedo na ferida em relação a temas, como, falhas do capitalismo, inutilidade do debate político e podridão humana. Leia a resenha completa.


 

29) Ela Disse (She Said): "Por quê você tocou os meus seios ontem? Por que eu estou acostumado." Em uma das sequências mais repugnantes desse elogiado drama ficamos chocados com a naturalidade com que Harvey Weinstein assediava suas vítimas. Na gravação vazada pela modelo Ambra Gutierrez transparece toda a angústia de quem, nos jogos de poder dos bastidores de Hollywood, era a ponta mais fraca no que dizia respeito aos casos de violência sexual. Que em 05 de outubro de 2017 viriam à tona no que seria um dos maiores escândalos da história do cinema, encorajando movimentos como o #metoo e Time's Up. Denunciar abusadores, ao cabo, não é tarefa fácil. E é por isso que, ao trazer à tona esse assunto, é preciso valorizar a ousadia não apenas esse filme, mas também quem se debruçou sobre o tema para fazer jornalismo de verdade - caso da dupla de jornalistas Jodi Kantor e Megan Twohey, do The New York Times. Confrontar poderosos dá trabalho. E exige bravura. Ainda mais quando o que está em jogo é o objetivo de interromper um ciclo quase infinito de violência. De alguma maneira é uma obra dolorida mas inspiradora - assim como são outras experiências viscerais de jornalismo, que fazem emergir escândalos. Leia a resenha completa.

 


 

28) Broker: Uma Nova Chance (브로커): Quem acompanha a carreira do diretor Hirokazu Koreeda sabe que, no cerne de muitas de suas obras, costuma estar a completa desconstrução do conceito de família. Na trama de Broker, uma jovem se aproxima de uma Igreja para deixar useu próprio filho bebê em uma espécie de caixa (um abandono institucionalizado). Junto ao pequeno, apenas um bilhete com a promessa de que ela voltará. Ela volta. Já no dia seguinte, quando ela descobre que o bebê já está em posse de uma dupla de trambiqueiros - um trabalha em uma lavanderia o outro opera um esquema de tráfico de recém nascidos (ambos voluntários da paróquia local). Nesse meio tempo So-young chama a polícia, que passa a investigar o caso nos bastidores. E como se já não bastasse toda a complexidade do caso, a jovem protagonista, sem ter muito pra onde ir, resolve se juntar à dupla na missão de tentar encontrar pais adequados e que estejam dispostos à adotar seu próprio filho. E por mais que no centro da narrativa esteja a ocorrência de um grave crime, o que Koreeda faz, com sua habitual habilidade, é subverter a ordem quando a ideia é apontar mocinhos e bandidos. A trama é intrincada e requer uma boa dose de suspensão da descrença. Mas o resultado compensa. Leia a resenha completa.

 


 

27) Verdades Dolorosas (You Hurt My Feelings): Existe uma cena central nesse filme da diretora Nicole Holofcener que, em alguma medida, fornece um resumo do tipo de dilema que move a narrativa. Nela, a escritora Beth resolve fazer uma surpresa ao marido e ao cunhado em meio a uma tarde de amenidades, em que ela está acompanhada da irmã Sarah. Quando chegam em uma loja meio às escondidas, escutam, por acidente, uma conversa entre Don e Mark - justamente o instante em que Don, o marido de Beth, revela a Mark, que é seu cunhado que, bom, talvez ele não tenha gostado tanto assim do novo livro da esposa que, na realidade é apenas um manuscrito que, mais adiante, talvez se torne o seu primeiro romance. Para Beth, que tem no ofício da escrita algo fundamental em sua vida, não poderia haver maior afronta. Com tudo piorando quando Beth escuta algumas duras verdades de uma editora com quem ela está em contato. Será ela uma farsa? Sim, parece um fiapo de história - um "filme sobre o nada", como brincaram alguns críticos estrangeiros, em uma alusão à antiga série estrelada por Julia Louis-Dreyfuss. Mas ao mesmo tempo é uma obra que faz interessantes divagações sobre temas como incertezas profissionais, autossabotagem, crises de meia idade e até esgotamento e desencanto nos tempos modernos. Não é pouco. Leia a resenha completa.


 

26) O Conde (El Conde): Um filme simples mas, ao mesmo tempo, muito eficiente no retrato dos representantes da extrema direita como essas figuras putrefatas, que insistem em se perpetuar através dos séculos. Mais ou menos assim podemos encarar a experiência com esse ótimo filme do sempre audacioso Pablo Larraín, que converte o general Augusto Pinochet em um vampiro que se arrasta pelos cômodos de seu palácio decadente, como um espectro que é incapaz de, simplesmente, morrer. Algo que, aliás, expressa à perfeição a alegoria do fascismo como uma cadela sempre pronta a entrar no cio, como dizia Bertolt Brecht. Com esse sentimento sendo ampliado justamente pela impunidade, mesmo diante de um sem fim de atrocidades, repressões, torturas, violações dos direitos humanos e assassinatos. Só que, por mais incrível que possa parecer, num mundo que elege Donald Trump e Jair Bolsonaro, e mais recentemente o ultradireitista Javier Milei, na Argentina, esses ideais radicalmente conservadores, intolerantes, excludentes e extremistas, permanecem vivos. Em meio a temores abstratos relacionados a comunismo, Guerra Fria tardia, marxismo cultural e outras variedades de delírios, Larraín constroi uma alegoria sombria mas debochada sobre a natureza recorrente dos sistemas totalitários. De rir de nervoso. Leia a resenha completa.


 

25) Rimini: Se tem um tipo de cinema que me fascina é aquele que adiciona camadas por baixo de uma superfície que parece ser rasa. Em muitos casos o resultado costuma ser um filme que parte de um microcosmo para, aqui e ali, ir nos fornecendo algumas pistas de que há algo maior do que sugere a eventual simplicidade narrativa. E talvez esse seja o caso desse sugestivo drama agridoce, sobre um cantor decadente que sobrevive de apresentações para idosos saudosistas, que é surpreendido pelo ressurgimento de sua filha, anos depois de tê-la abandonado. Só que este é um projeto alemão, dirigido por Ulrich Seidl. O que significa que esse cenário que abarca as tragédias familiares, talvez seja apenas uma boa desculpa para uma análise mais elaborada da própria Alemanha, com suas feridas históricas que, em tempos de ascensão da extrema direita, ainda alcançam a contemporaneidade. Uma memória que, ao cabo, não se apaga tão facilmente. Porque, por mais que o protagonista seja uma figura excêntrica e carismática há que se admitir o fato de ele funcionar como uma espécie de ponte alegórica entre o arcaico e o contemporâneo, entre o antiquado e o moderno. Somos pessoas complexas e esse filme cheio de graça, de poesia e de comentários sociais potentes, amarra todas essas questões a contento. Leia a resenha completa.


 

24) Os Banshees de Inisherin (The Banshees of Inisherin): Vamos combinar que, ainda nos dias de hoje, a gente tende a romantizar as relações de amizade. Como se, uma vez estabelecido esse tipo de vínculo, ele teria de durar a vida toda. Dá pra dizer adeus a um amigo de longa data? Sem remorsos, sem dores, sem rancores? Pois o que o diretor Martin McDonagh pareceu pretender nesse oscarizado projeto foi teorizar um pouco a respeito disso. E se num certo dia o seu melhor amigo acordasse e, ao encontrar você, naquele bar de sempre, dissesse um "deu, não quero mais, daqui pra frente é cada um pro seu canto". É isso que Colm faz com Pádraic em um dia nebuloso qualquer, em uma ilha no costa da Irlanda, em meio à Guerra Civil local. Como sempre faz em sua rotina, Pádraic acorda cedo, faz o manejo dos animais e vai até a casa de Colm para convidá-lo para a taverna do pequeno vilarejo - o que fazem juntos a sabe-se lá quantos anos, religiosamente. Só que Colm cansou dessa rotina. Dessa vidinha vazia. E comunica isso à Pádraic com uma sinceridade excruciante. A partir daí e com esse fiapo de história, temos uma narrativa que se aproveita dessa rotina ordinária de seus personagens para tecer uma teia cheia de simbolismos sobre duas personalidades diametralmente opostas que colidem. Uma preciosidade. Leia a resenha completa.


 

23) Tenho Sonhos Elétricos (Tengo Sueños Electricos): "Tenho sonhos elétricos. Onde meu pai, quando não pode consertar algo, arrebenta-o no chão. Ele fica bravo, grita, xinga. Nos amamos aos gritos, às vezes com golpes. É isso que somos. Uma horda de animais selvagens sonhando com seres humanos. Às vezes é preciso várias vidas pra entender que a raiva que nos atravessa não nos pertence". É quase no final desse filme costarriquenho premiado no último Festival de Locarno, que Martín lê um poema improvisado que, de alguma maneira, resume a sua relação turbulenta com a própria filha, Eva. Ambos parecem estar sempre aos trancos e barrancos, no limite entre o amor e o ódio, entre o carinho amoroso e o conflito cheio de agressividade. É a complexidade do ser humano que parece estar no centro da estreia da diretora Valentina Maurel. Somos imperfeitos, afinal, e que atire a primeira pedra quem nunca exagerou na dose quando o assunto são as relações familiares. E, em alguma medida, esse é um projeto pequeno, que parte de um microcosmo, para uma análise mais ampla desse tipo de vínculo. O resultado é uma obra intimista e naturalista, angustiante mas afetuosa. Um tipo de cinema que não nos deixa alheios. E que reforça a potência da produção latino-americana. Leia a resenha completa.

 


22) Os Cinco Diabos (Les Cinq Diables): Vicky é uma menininha de oito anos com uma habilidade especial: por meio de cheiros, de aromas, ela consegue viajar no tempo. E assim vivenciar experiências do passado de uma forma meio mágica. Quase mística. E, não bastasse esse dom, ela tem um comportamento de verdadeira devoção quando o assunto é a sua mãe Joanne (Adèle Exarchopoulos), uma instrutora de natação. A premissa desse filme, não dá pra negar, é curiosa. E te captura de uma forma quase instantânea. Na trama, mãe e filha residem em uma pequena cidade montanhosa que está ao redor de um enorme lago gelado (o Les Cinq Diables do título original). E é nele que Joanne, acompanhada da filha, tem o hábito de nadar. Para conter os efeitos do frio na pele, a professora utiliza um produto - uma espécie de creme selante. Que é espalhado no corpo da mãe pela filha. A sobra dessa pasta, Vicky coloca dentro de um vidro (uma etiqueta indica que aquele é o frasco com os cheiros da mãe). Após mais algumas alquimias, que envolvem outras misturas, a pequena inala o conteúdo do pote. E desmaia. Sendo justamente esse o instante em que ela consegue viajar para o passado. E será em meio a esses sonhos bastante realistas, que Vicky descobrirá como uma tragédia abalaria a vida de sua família. Impactante. Leia a resenha completa.

 


21) O Cafetã Azul (Le Bleu du Caftan): Em uma das mais belas cenas desse filme marroquino, o casal Mina e Halim está em uma conversa bastante íntima, reveladora daquilo que pode ter sido um importante recorte de suas vidas. Aos prantos, Halim afirma ter tido muito medo de desonrar a esposa, por não ter conseguido superar aquilo que, aparentemente, ele acredita ser uma espécie de "mal". Naquela altura, o espectador já tem ciência da homossexualidade mantida em segredo pelo homem - como revelam os encontros às escondidas em saunas locais. E que se estendem para a forma afetuosa com que ele lida com o seu jovem funcionário, o dedicado Youssef. A resposta de Mina diante da manifestação do marido? O acolhimento. "Eu não poderia ter tido mais orgulho de ter sido sua esposa", retruca, de forma enternecedora. Um direcionamento diferente do previsto. E que eleva a obra a um outro patamar. Como se fosse uma alegoria para os próprios cafetãs - que são túnicas lindamente ornamentadas, com costuras complexas e que costumam ser utilizadas por muçulmanos e judeus -, a obra da diretora Maryam Touzani é pura sutileza e suavidade na abordagem de seu tema. O que dá uma dimensão da potência do projeto, que arrancou aplausos em sua exibição no Festival de Cannes. Leia a resenha completa.


 



20) Still: A História de Michael J. Fox (Still: A Michael J. Fox Movie): Existe uma cena desse valioso documentário que dá uma dimensão da forma como o astro da trilogia De Volta Para o Futuro encara, atualmente, o fato de conviver com a Doença de Parkinson. Nela, é resgatada - de forma muito breve - a participação do ator na série Curb Your Enthusiasm, em 2011. É um instante pequeno em que Fox interpreta a si próprio, entregando uma lata de refrigerante a Larry David (na trama do episódio eles são vizinhos). Quando este tenta abri-la ela simplesmente explode na sua cara - e a sua reação indignada é absolutamente hilária. E nem é necessária uma explicação sobre como os movimentos espasmódicos incontroláveis, que são típicos de quem sofre da doença, devem ter agitado a lata. É claro que até ser capaz de brincar com sua própria condição, o astro que foi um dos mais incensados dos anos 80, viveu um período de profunda dor e, naturalmente, até de negação a respeito do Parkinson. E toda essa trajetória de ascensão como estrela mirim até a impossibilidade de exercer a profissão que ama, formam a matéria-prima do filme dirigido por Davis Guggenheim - uma experiência que nunca minimiza os efeitos devastadores do Parkinson, mas, ao mesmo tempo enche a tela de ternura, de afeto, de bom humor e até de esperança. Leia a resenha completa.

 


19) Passagens (Passages): Quem acompanha a carreira do diretor Ira Sachs sabe que muitos de seus filmes têm como principal matéria-prima a complexidade das relações humanas - e não é diferente com esse. Aqui, a trama versa sobre as nossas incertezas na seara amorosa e sobre como parecemos ser seres eternamente insatisfeitos. Ou que nunca sabem bem o que querem - o que invariavelmente resultará em sofrimento, em irresponsabilidade afetiva e em escolhas nem sempre acertadas. Com aquele senso de urgência metropolitana típico do cinema alternativo, o filme já abre de forma metalinguística: Tomas (o sempre ótimo Franz Rogowski) está concluindo seu mais novo projeto e, em uma festa, conhece a jovem professora de séries iniciais Agathe (Adèle Exarchopoulos, que sempre é uma presença luminosa em tela). Após uma noite de diversão, os dois acabam transando. Só que tem um detalhe: Tomás é casado com o professor de inglês Martin (Ben Whishaw) há quinze anos e, quando chega em casa ao amanhecer não apenas revela o que ocorrera na noite passado, como ainda garante ter sentido algo que não sentia há muitos anos. A partir daí o que vemos é uma série de idas e vindas, de dúvidas e de incertezas, em um caleidoscópio cheio de intensidade, que expande e comprime um dos temas mais universais do cinema. Vale cada segundo. Leia a resenha completa.

 


 

18) Crescendo Juntas (Are You There God? It's Me Margaret): Uma das produções mais carismáticas, cativantes e divertidas da temporada. Assim pode ser resumida a experiência com esse filme de Kelly Fremon Craig. Aliás, essa é a prova viva de que não é preciso muita invencionice na hora de fazer uma obra sobre amadurecimento. Sobre as dores e incertezas que surgem na pré-adolescência. É tudo muito gracioso, singelo, realista - o que também envolve as interpretações de todo o elenco, especialmente da jovem Abby Ryder Fortson. É ela que é a Margaret, do título original. Que, sim, do alto de seus onze anos, evocará Deus de uma maneira meio torta, sempre que tiver alguma dúvida, medo ou anseio. Aliás, a sua primeira angústia real ocorre quando, ao retornar de um passeio de escola, seus pais anunciam que se mudarão de Nova York para Nova Jersey. E quem já teve de se mudar na infância sabe o quão doloroso isso pode ser. Novos amigos, novos colegas de aula, nova vizinhança. Nova casa. Novo tudo, na real - e caberá à nossa simpática protagonista lidar com tudo isso. A gente vê por aí tantas comédias simplesmente forçando a barra na hora de tentarem (em vão) ser engraçadas. Essa aqui consegue naturalmente. Sendo apenas nostálgica e agridoce. Imperdível. Leia a resenha completa.

 


17) Doente de Mim Mesma (Syk Pike): Uma metáfora perfeita para o transtorno da personalidade narcisista - que parece estar bem em alta, especialmente nas redes sociais. Assim podemos resumir a experiência desse filme norueguês, que leva até o limite a ideia de fama e de vaidade a qualquer preço. Misturando a sátira do comportamento mesquinho das classes abastadas de Ruben Ostlund com o body horror de David Cronenberg, a obra nos apresenta ao casal Signe e Thomas - ela funcionária de um bar de Oslo, ele um artista plástico especializado em produzir esculturas feitas com móveis materiais roubados. Só que o problema é que Signe está com ciúmes da atenção que Thomas tem recebido. E a oportunidade de atrair algum "holofote" pra si surge quando uma mulher é atacada por um cachorro, sendo a protagonista a primeira a socorrê-la. Com sua roupa manchada de sangue, a jovem vaga pela cidade, enquanto relata aos amigos a história do salvamento épico - uma narrativa que vai ganhando tintas a cada dia mais exageradas. Em tempos em que influencers fazem de tudo para chamar a atenção pensar em uma alegoria do tipo nem parece ser um exagero. Vale tudo pela fama? Aqui, o que percebemos é que o comportamento perturbado de Signe pode ser ao mesmo tempo repugnante e patético em sua busca desenfreada por migalhas em formato de cliques. Leia a resenha completa.

 


16) Oppenheimer:  Talvez o maior filme do ano. Gigantesco. Contado em três linhas narrativas distintas, que talvez exijam um grau de atenção um pouco maior, para que nenhum detalhe escape. Sim, são três horas que talvez virem seis, pela necessidade de repetir a experiência para uma maior apreciação. A complexidade é um mérito? Não sei. Alguns críticos gastam tempo falando do quão problemático é o caráter excessivamente expositivo das obras de Christopher Nolan. Afinal, não basta apenas apresentar as imagens - sempre exageradas, hiperbólicas. É preciso martelar aquilo que se vê, com um texto. Uma explicação a mais. Um diálogo que reforça. Mas é um filme sobre mecânica quântica! Que volta no tempo para contar os bastidores de um dos mais controversos projetos científicos da história quando, em meio a Segunda Guerra Mundial, um grupo de cientistas conduziria o desenvolvimento das primeiras armas nucleares de destruição em massa. Claro que em meio a discussões éticas e de fundo moral, o caráter questionável do protagonista quase se dilui em meio ao pano de fundo político. Com todas as suas contradições, traições e reviravoltas. Ao cabo, aqui, temos uma obra exuberante também tecnicamente - e que deverá lavar a baia no Oscar. Leia a resenha completa.




15) Alcarràs: Agricultura familiar x agronegócio. Êxodo rural x sucessão. Tradição x modernidade. São muitos os antagonismos que surgem, sutilmente, no filme de Carla Simón, que foi o enviado da Espanha para a mais recente edição do Oscar. Ao cabo esta é daquelas obras em que até parece que não tem muita coisa acontecendo, mas que ganha força justamente por apresentar as complexidades da vida no campo de forma extremamente orgânica, naturalista. Aliás, poucas vezes assisti a um filme sobre as dificuldades (e burocracias) que envolvem a rotina de uma família de produtores - no caso, os Solé - que fosse tão realista. Na trama, a rotina idílica da colheita de pêssegos é quebrada por um problema na documentação das terras que a família arrenda. Sem a formalização eles perdem qualquer possibilidade de barganha quando o filho do dono anuncia o desejo de retomar o terreno (após a morte do pai) para a instalação de uma usina de energia fotovoltaica (com dezenas de placas solares). Contemplativa, vibrante, ensolarada e autêntica, mas que utiliza seu microcosmo para uma análise mais ampla da sociedade, a obra funciona mais ou menos como os painéis solares que geram tanta discórdia - reservam energia, resgatando-a de onde nem parece haver. Um achado. Leia a resenha completa.

 


 

14) Contratempos (À Plein Temps): Em uma das cenas centrais desse filme francês, a protagonista Julie está em uma importante entrevista de emprego. Durante a conversa, a recrutadora estranha o fato de ela morar em um bairro afastado do centro de Paris e, mesmo sendo mãe de duas crianças, estar pleiteando um emprego ali. "Você poderia passar longos dias por semanas por aqui, mesmo morando tão longe?" questiona a funcionária do RH. Julie nem titubeia em afirmar que isso não lhe preocupa. Que está focada na realização de seus projetos a longo prazo. Julie tenta não demonstrar, mas no momento da entrevista ela está devastada por dentro. Está em um trabalho que lhe consome física e psicologicamente - não bastassem as horas e horas dentro de ônibus e trens, ainda precisa lidar com o assédio moral constante de sua chefe e com os caprichos excêntricos dos hóspedes do hotel de luxo em que atua. Depois, há a angústia de, como mãe solo, ter de articular de forma permanente a estada de seus filhos em babás improvisadas. Julie está sempre correndo. Correndo literalmente. Sem dinheiro, sem ânimo, sem forças, sem vida. Ao cabo, esse é um filme pequeno mas de grande força sobre como o capitalismo pode destroçar a cabeça do cidadão comum. Dia após dia, indefinidamente. Dolorido é pouco. Leia a resenha completa.

 

 

13) Tár: Em uma das tantas ótimas sequências do premiado filme de Todd Field, a maestrina Lydia Tár (papel de Cate Blanchett) discute longamente com um dos seus alunos no conservatório Julliard, sobre a possibilidade de reger uma obra de Johann Sebastian Bach. De forma meio envergonhada, tímida, o jovem se enche de coragem para dizer à Lydia que não possui nenhum interesse em Bach. "Honestamente como uma pessoa de cor, não binária, eu diria que a vida misógina de Bach torna meio impossível para mim levar sua música a sério". Lydia na sequência debocha do assunto lembrando que, sim, Bach deixou 20 filhos para o mundo. Assim como um volume considerável de composições. O que a faz questionar em seguida o que as suas prodigiosas habilidades no leito conjugal teriam a ver com sua arte. É possível separar a obra do artista? Pode até soar como tema menor dentro de uma obra tão cheia de floreios, de magnitude e de volúpia como é o caso dessa, mas a atual cultura do cancelamento e as decorrentes campanhas de ódio que se instalam nas redes sociais com o intuito de destruir reputações, parece estar no cerne desse ambicioso projeto. Ao cabo, essa é uma obra que discute a complexidade humana, suas incongruências e virtudes. O que não é pouco. Leia a resenha completa.

 

 

12) Afire (Roter Himmel): Alguém brincou no Letterboxd que esse filme poderia muito bem se chamar "Retrato de Um Incel em Chamas", dado o comportamento ressentido do escritor Leon - personagem central desse filme de Christian Petzold, premiado pelo Júri no Festival de Berlim. Na trama, Leon vai com seu amigo Félix até uma casa de praia junto ao Mar Báltico. A ideia do primeiro é concluir seu segundo romance, enquanto o segundo busca inspiração para construir um portfólio fotográfico. Só que no local se deparam com a inesperada presença de Nadja, uma jovem carismática, de sorriso irresistível que perturbará a rotina de Leon. Pouco habilidoso socialmente, o jovem se incomodará com absolutamente tudo que não lhe diga respeito: idas à praia, transas alheias, ou qualquer atividade cotidiana. Com tudo piorando com a presença do salva-vidas Félix. Utilizando o fogo - simbolizado pela onipresença de incêndios florestais no entorno - como uma alegoria para conflitos internos, Petzold mira nesse microcosmo para um exame do comportamento humano, com seus preconceitos, irracionalidades, incômodos e egocentrismos. Leon, ao cabo, é um narcisista que sequer percebe o mundo à sua volta desabando. "Nem tudo é sobre você" lembra Nadja em certa altura. Uma lição que o hostil Leon, com sua arrogância indecente, levará para a vida.


 

11) Paloma: "Eu num sei nem por onde começar... [...] Seu Papa. Meu nome é Paloma. Vivo e trabalho aqui em Saloá como agricultora e, às vezes, faço bico de cabeleireira. Vivo amigada com o meu marido Zé. Com ele crio a minha filha Jennifer, o presente mais maravilhoso que Deus me deu. Nasci homem, mas sou mulher. Me considero fia de Deus como qualquer outra pessoa. Já me batizei, fiz a primeira eucaristia, a crisma, agora só falta realizar o meu maior sonho que é casar na Igreja. E eu sei que só o senhor pode autorizar isso." Vamos combinar que não poderia ser mais comovente o instante em que Paloma dita à sua amiga Kelly uma carta com esse pedido singelo: o de poder casar. Com véu, grinalda, Igreja decorada e tudo que se tem direito. Como mulher trans, ela já está familiarizada com as barreiras impostas pela própria Igreja e seus dogmas um tanto ultrapassados. Aliás, ela sequer pode entrar na Igreja, numa daquelas contradições legítimas do Brasil - esse País conservador e cheio de fé, capaz de converter pessoas periféricas e minorias em admiradores da extrema direita, das elites e de outras instituições poderosas. Pode ser difícil entender por quê Paloma, como mulher negra, nordestina, trans, analfabeta e pobre deseja tanto se casar da forma mais tradicional possível? Pode. Mas o filme do sempre ótimo Marcelo Gomes ajuda a entender. Leia a resenha completa.


 

10) Holy Spider (عنکبوت مقدس): Vamos combinar que nos últimos anos a gente cansou de ouvir os representantes de extrema direita do País afirmarem que estavam em uma "cruzada do bem contra o mal". Embalados em uma aura supostamente sacra - o que envolveu um verdadeiro aparato religioso de templos evangélicos, pastores e bíblias - os bolsonaristas investiram-se da suposta missão divina de extirpar do País a demoníaca ala de esquerda do Brasil. A mistura de fanatismo religioso e pânico moral retroalimentados por fake news, se consolidaria como uma das principais estratégias dos grupos conservadores no sentido de tentar moldar uma sociedade que estivesse de acordo com suas crenças. Estado laico? Nada disso. O tipo de radicalização que, evidentemente, encontrava eco entre os fanáticos. Sim, a gente sabe que o Irã não é o Brasil - e que lá a obstinação religiosa pode ter desdobramentos ainda mais controversos (pra dizer o mínimo). Nesse sentido, o enviado da Dinamarca no último Oscar é um trabalho poderoso sobre uma jornalista obstinada que chega a Teerã com a missão de investigar uma onda de crimes violentos, que pode ter a ver com intolerância. Fascismo, misoginia, preconceito - às vezes mais perto do que imaginamos. As discussões são amplas nessa obra que lembra que o extremismo tem de ser permanentemente combatido. Leia a resenha completa.

 


9) Sem Ursos (Khers Nist): Um filme sobre alguém tentando fazer um filme em que as coisas dão muito errado, em meio a um contexto político de opressão, de censura e de proibições. Pode até parecer uma distopia crítica ao totalitarismo, mas é apenas a vida do diretor iraniano Jafar Panahi, que segue em sua luta (quase) solitária no sentido de tentar exercer a sua profissão. Preso em 2010 sob a alegação de "cometer crimes contra a segurança nacional do País e propaganda contra a República Islâmica" (também conhecido como tentativa escancarada de silenciamento por parte do Governo), Panahi também foi proibido pelo Tribunal Revolucionário Islâmico de dirigir qualquer obra, escrever roteiros, dar entrevistas e sair do Irã. Por 20 anos. Em meio a respostas internacionais e apoio de organizações, o realizador se empenha em, às escondidas, dirigir filmes. É desse cenário conturbado que resulta essa comovente e provocativa produção, vencedora do Prêmio do Júri no Festival de Veneza. Rodado secretamente no Irã e estrelado pelo próprio Panahi, o filme se aproveita de suas limitações técnicas e geográficas para um exercício metalinguístico e semidocumental poderoso. Fazer filmes é um suplício para Panahi. Mas ele não desiste - o que não deixa de ser um alento. Leia a resenha completa.

 


8) Decisão de Partir (헤어질 결심): Existe uma sequência bastante simbólica desse filme de Park Chan-wook que, instantaneamente, se tornaria uma das minhas preferidas do ano. Nela, um detetive reconstrói o trajeto que, ele supõe, possa ter sido percorrido até a ocorrência de um assassinato - o que envolve a escalada de um rochedo bastante íngreme. Em certa altura ele atinge um local conhecido como Pico do Óleo, um espaldar bastante liso, que o faz escorregar, quase cair. Como uma espécie de Sísifo do Oriente ele persiste, resvalando aqui, avançando ali. Tal qual o personagem do ensaio clássico do existencialista Albert Camus, ele pretende encontrar algum sentido - nesse caso, em um crime sem solução. Mas, ao cabo, parece se deparar apenas com um ambiente desconexo, sem lógica. A escorregada metafórica talvez demore para servir de evidência para algo que parece estar sendo esfregado desde o começo em sua cara. E essa demora em perceber, pode fazer com que seja tarde demais. Sim, pode parecer meio filosófico mas, aqui e ali, isso também é parte da experiência dessa obra que foi a enviada da Coreia do Sul no último Oscar. Um thriller hitchcockiano, fragmentado, enigmático e cheio de ambiguidades, que brinca com conceitos narrativos, aproximando e afastando, confundido e organizando. Filmaço! Leia a resenha completa.

 


7) A Menina Silenciosa (An Cailín Ciúin): Em tempos de tanta brutalidade e violência como os que vivemos, é sempre bom assistir a uma obra tão afetuosa como esta, a enviada da Irlanda ao último Oscar. Aliás, esse é o tipo de produção que nos faz refletir sobre a importância da cortesia e da civilidade como um caminho para nos livrar do ódio. Na trama, a jovem Cáit é uma menina de olhos curiosos, que parece mais acostumada a ouvir do que falar. O que talvez se explique pela existência em meio a turbulência de uma família numerosa, chefiada por um pai negligente e abusivo e por uma mãe estressada e aflita - que está novamente grávida. E, como uma forma de tentar desafogar a casa, Cáit é enviada para a casa da prima da mãe - uma carismática e elegante senhora de nome Eibhlín que, ao lado do taciturno marido Séan, toca uma propriedade de produção de leite. E não demora para que a cautela inicial da pequena, evidenciada pelo seu olhar sempre amplo, ainda que tímido, vá dando lugar à confiança conforme os dias passam naquele verão do começo dos anos 80. De forma hábil, o diretor estreante Colm Bairéad pontua os contrastes entre ambas as casas, mostrando a importância do acolhimento como alternativa para a efetivação da convivência pacífica. Um filme evocativo, singelo. E brilhante. Leia a resenha completa

 

 

6) Close: Léo e Rémi são dois meninos na faixa dos 13 anos, que moram na zona rural da Bélgica. Melhores amigos, fazem absolutamente tudo juntos: brincam, andam de bicicleta, tocam oboé, dormem. Aliás, dormem até na mesma cama. A relação é íntima, cheia de afeto e bastante naturalizada pelas famílias de ambos os garotos. Tudo corre mais ou menos bem até o final do verão, quando eles começam a estudar no Ensino Médio. Novas vivências, experiências. Amizades. Em certo dia uma das colegas pergunta, de forma bastante despretensiosa, se eles estão juntos. Se são namorados, uma vez que o carinho entre eles é palpável. Léo estranha a pergunta. Fica incomodado. Nega veementemente. Tudo piora quando eles passam a sofrer bullying de outros colegas. Comentários homofóbicos. Que brotam do entorno. Léo resolve que, talvez, seja melhor se afastar de Rémi. Uma decisão que, definitivamente, impactará a vida de todos. Poucas vezes a construção da noção de masculinidade na juventude foi abordada de forma tão impactante como nesse ótimo filme do diretor Lukas Dhont. Disponível na Mubi, essa obra comovente e primaveril é cheia de sutilezas, de silêncios e de planos fechados, sendo paradoxalmente potente em sua abordagem. Leia a resenha completa.


 

5) Retratos Fantasmas: Uma obra nostálgica, metalinguística e poética, que funciona como uma espécie de fluxo de consciência sobre uma sociedade em transformação que, ao mesmo tempo que parece evoluir em alguns aspectos - como no caso da tecnologia -, retrocede em outros. Mais ou menos assim é possível resumir - e de acordo com a minha leitura, já que esse é um projeto amplo, cheio de camadas, de caminhos e de possibilidades - a experiência com o documentário de Kleber Mendonça Filho. Enviado para representar o Brasil no Oscar, este é um trabalho evocativo, sensível e bastante autobiográfico não apenas sobre o processo de fazer cinema, mas sobre como a nossa bagagem ou as vivências pessoais influenciam em nossa caminhada. Em alguma medida, compreenderemos como grande parte das obras de Mendonça partem de memórias da sua infância e da juventude no Recife. Sons, cheiros, objetos, luzes, a arquitetura dos espaços, as relações familiares e até mesmo os latidos do carismático cachorro do vizinho, contribuirão nessa colcha de retalhos que formará cada roteiro, cada narrativa pensada pelo diretor. O resultado é uma obra alegórica e afetuosa, que reverencia o passado, ao mesmo tempo em que olha com certo desalento para o futuro. Leia a resenha completa.

 


4) Assassinos da Lua das Flores (Killers of the Flower Moon): um épico ao estilo da Hollywood clássica, estilo Assim Caminha a Humanidade misturado com Sangue Negro. Assim pode ser resumida a experiência com o mais recente filme de Martin Scorsese - e um dos grandes favoritos à indicações na próxima edição do Oscar. Imponente, mas sem deixar de ser intimista, a obra volta cem anos no tempo para mostrar como a Tribo Osage, de Oklahoma, se tornou uma das mais ricas do planeta, meio que do dia para a noite, após a descoberta de petróleo em suas terras. E, claro, o óleo que jorra do chão atrairá não apenas trabalho, dinheiro e crescimento, como muita ambição. É nesse contexto do pós Primeira Guerra que chaga ao local um certo Ernest (Leonardo DiCaprio), que passará a trabalhar como motorista de um poderoso proprietário de terras chamado William King Hale (Robert De Niro). Só que os problemas, de fato, iniciam quando Ernest se aproxima de Mollie (Lily Gladstone), se apaixonando por ela. O que, paradoxalmente, resultará em uma sequência inexplicável de mortes entre os Osage. Cheio de ambiguidades, o projeto deixa o espectador em dúvidas sobre a real intenção do protagonista - especialmente diante da voluptuosa herança que está em posse de Mollie. Um filme espectacular, que dá conta da complexidade das relações no nascedouro do Século 20.



3) Anatomia de Uma Queda (Anatomie D'une Chute): "Eu não dou a mínima para a realidade. O julgamento não é sobre a verdade. É sobre o que parece a verdade". A frase dita pelo advogado Vincent surgirá, com pequenas variações, mais de uma vez durante os quase 150 minutos do filme dirigido por Justine Triet, que foi exibido no Festival Varilux. Na trama, Sandra é acusada de, talvez, ter matado seu próprio marido em circunstâncias misteriosas e de difícil explicação para a Justiça. E, depois do surgimento de uma gravação que envolve uma pesada discussão entre o casal, apenas um dia antes da morte de Samuel, o advogado tenta de toda a forma lembrar Sandra que, vá lá, talvez a realidade dos fatos não seja tão importante assim. O que vale mesmo é a aparência da coisa toda. E, em alguma medida, é possível afirmar que é é nesse contexto que reside o brilhantismo da obra, que venceu a mais recente Palma de Ouro do Festival de Cannes. Ao cabo, essa é uma produção que nos arremessa de lá para cá o tempo todo, nos deixando em dúvida sobre os acontecimentos. Sandra é culpada mesmo? Ou a queda que resulta em morte foi um acidente? São muitas perguntas e não haverá respostas óbvias nessa obra cheia de ambiguidades e de um magnetismo irresistível. Leia a resenha completa.

 

 

2) Barbie: Ao sair do cinema a sensação que ficou foi a de que esse era o único filme possível para a boneca mais famosa do mundo. Estamos no final de 2023 e ainda parece meio incrível que pautas feministas ou que envolvam questões ligadas à importância da igualdade de gênero precisem ser permanentemente lembradas, marteladas. Mas o caso é que o óbvio, em muitos casos, precisa ser dito. Reiterado. Que isso seja feito justamente (e paradoxalmente) por meio de um brinquedo que funcionaria, por décadas, como o exemplar máximo do estereótipo feminino fetichizado é algo digno de aplausos. "Ãin, porque a Mattel vai ganhar rios de dinheiro com o hype em cima da obra". Sim, vai. E ela ri meio que na nossa cara dessa contradição. Mas é também preciso elogiar a percepção de que o mundo evoluiu e, vá lá, talvez nos dias de hoje já não faça mais sentido uma comédia agridoce com a Barbie e o Ken feita somente para agradar adolescentes vestidas de rosa. Em meio a tantas discussões de twitter, o caso é que nenhuma obra mobilizou tanto - de tiozões cringe incomodados com o discurso à mães horrorizadas que se identificaram no sigilo com aquilo que viam (por mais que Igreja e a família de bem dissesse o contrário). Barbie foi um evento. Que nós amamos. Leia a resenha completa.

 

1) As Bestas: Vamos combinar que essa joia do cinema espanhol, exibida no mais recente Festival Varilux, não é apenas um filme. É uma aula de cinema. Daquelas que deveriam ser discutidas em cursos superiores para estudantes que se pretendem cineastas. Em alguma medida, e nas aparências, essa poderia ser apenas uma narrativa sobre a desavença entre duas famílias vizinhas com filosofias, ideais e projetos - históricos, de agricultura, institucionais, de vida em sociedade - distintos. E que, não demorará muito, colidirão de maneira inescapável. Em uma análise mais ampla, porém, não deixa de impactar a forma como o diretor Rodrigo Sorogoyen insere temas como, xenofobia, tradições, colonialismo e meio ambiente, tornando aquele microcosmo uma espécie de reflexo do todo. Parece que a cada dia estamos mais dispostos a odiar, a sermos intolerantes. E para, a partir daí, a coisa descambar pra violência, é um passo. E nessa obra cheia de camadas o que temos é a complexidade do sujeito e suas motivações apresentadas nunca de forma maniqueísta. Com longos planos sequência, diálogos íntimos e potentes e uma ambientação cinzenta, essa é uma experiência evocativa, que cresce justamente em suas sutilezas. Ninguém sai igual depois desse filme. Leia a resenha completa

 


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