sexta-feira, 28 de junho de 2019

Lado B Classe A - Rhye (Woman)

Registros como Woman da banda canadense Rhye são daquele tipo capaz de expandir a importância do sussurro. Que tornam ampla a sutileza. Que transformam o minimalismo em matéria-prima para composições que, ainda que doces, resguardam força. Para a banda menos é mais e é na irresistível economia que o trabalho se sobressai. Para quem gosta do R&B anos 90, tente pensar num Everything But The Girl sem os excessos eletrônicos. Ou numa Lisa Stansfield sem o sintetizador que vibra no ritmo da pista de dança. Uma guitarrinha melódica aqui. Um tecladinho ali. Tudo posicionado de forma branda, trazendo calmaria para o coração e transformando a voz do vocalista Mike Milosh (sim, acredite, trata-se de um homem) no principal "instrumento musical" do registro, um amálgama de emanações vocais que ficam no limite entre o etéreo e o sensual, entre o melancólico e o luxurioso.

É um álbum agradável de se ouvir e, ainda que beba de fontes já há tanto exploradas na década já citada - é impossível não lembrar de artistas como Sade ou Des'ree, por exemplo - é impressionante o frescor trazido pelo disco. É como se todos aqueles referenciais que a gente já conhece fossem enfiados dentro de um liquidificador, para resultar num caldo que foi devidamente depurado, decantado, para que o melhor seja "bebido". Em uma playlist digamos, mais quente, o trabalho não faria feio ao lado de outros contemporâneos, como The xx, Cigarettes After Sex, Jessie Ware ou Miguel ainda que, com personalidade própria, as canções ecoem suas próprias angústias existencialistas. Dilemas do homem moderno distribuídas em pequenas doses, para serem saboreadas com calma, sem pressa - assim como provavelmente será um jantar romântico, com o melhor vinho e a melhor companhia.


Peça central do trabalho, a sinuosa segunda composição do disco, chamada The Fall, servirá como uma espécie de guia natural para as idas e vindas que encontraremos na audição do material. Com seu teclado angustiado, até meio apressado, o vocal de Milosh se torna o contraponto discreto, que acalma, que coloca as coisas no lugar, em maio as confusões imprevisíveis do coração. Oooh, faça amor comigo / Mais uma vez, antes de você ir embora / Porque você não pode ficar? praticamente suplica um eu lírico dolorido, que mostra que o amor tem suas complexidades, formatos difusos. O mesmo tipo de expediente é repetido em canções levemente mais animadas, como Hunger (Eu não estou sozinha / Só me sinto como uma sombra) ou na inaugural Open (Quero fazer isso dar certo / Oh, eu sei que você está desbotando).

Após o lançamento de Woman, o Rhye, como que enfeitiçado pelo trauma das bandas que surgem para o mundo com um grande álbum de estreia, jamais conseguiu repetir o feito nos registros seguintes. Se o trabalho inaugural foi saudado pela crítica - o Pitchfork lhe concedeu uma nota 8,5, considerando-o um material "gentil, suave e fácil de se perder" e "que tem arranjos e canto que raramente se elevam acima do nível de uma conversa" - Blood (2018), o trabalho seguinte, chegou a público de forma bastante discreta. O mesmo valendo para o pequeno EP Spirit (2019), lançado em maio desse ano. Mas nada que apague o que Pilosh alcançou com o classudo álbum de estreia. Uma obra que materializa musicalmente os tapetes felpudos e acolhedores, os abajures de luz ambiente e os lençóis de cetim que, certamente mais tarde, serão bagunçados.


quinta-feira, 27 de junho de 2019

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - Timbuktu (Mauritânia)

De: Abderrahmane Sissako. Com Ibrahim Ahmed, Toulou Kiki e Layla Walet Mohamed. Drama, Mauritânia / França, 2014, 96 minutos.

Em uma das tantas cenas desoladoras do melancólico Timbuktu (Timbuktu) um grupo de crianças joga futebol. Mas com um detalhe: sem a bola. Dezenas de crianças e adolescentes com abrigos falsificados da Adidas e camisetas de craques como o Messi correm desvairadamente em uma espécie de balé em que o esporte mais popular do planeta é apenas um faz de conta. A bola foi confiscada pelos militares, afinal de contas é proibido jogar futebol no norte de Mali, local ocupado por extremistas religiosos jihadistas e onde ocorre a ação do filme. Aliás, não é só o futebol que é proibido. Ouvir (e produzir) música também é. Fumar. Enfim, existir. Para as mulheres é ainda pior: além de terem de conviver com uma sociedade patriarcal que lhes determina praticamente tudo que ocorre em suas existências - do casamento arranjado até o que elas devem vestir -, ainda há o risco de morrer em caso de tentativa de fuga desse sistema.

Não é preciso ser um especialista em contextos político/religiosos/sociais de países africanos para saber que a equação fanatismo religioso mais militarismo dificilmente dá certo em algum lugar. E se esses seis meses de Bolsonaro já nos deram uma mostra do que é um Governo ditatorial - com imprensa sendo censurada, políticos de outras correntes sendo ameaçados de morte e cortes generalizados em políticas públicas e programas que destroçam as camadas mais vulneráveis da população -, o que dizer de um povo em que quase a totalidade de seus habitantes vive abaixo da linha da pobreza, muitos deles morando em regiões áridas que, de quebra, ainda são controladas por militares? A situação parece ser ainda mais crítica ao norte onde milícias armadas tornam o local uma espécie de terra sem lei - ou melhor, com o Islã (e o que determina Alá) e os jihadistas sendo a lei.


Sobre o filme, é preciso salientar que não há um protagonista específico, havendo um núcleo em que a morte "acidental" de uma vaca se torna o principal episódio. Só que Kidane (Ibrahim Ahmed) o proprietário do rebanho que teve a vaca sacrificada resolve ir tirar satisfação com o responsável pela morte do animal. Resultado: após uma briga entre os dois sujeitos, o reclamante mata o outro. E, tomado como assassino, ele fica a mercê das duras leis locais, que prevem pena de morte para esses casos. Não adianta ter esposa, ter uma filha e estar arrependido do ocorrido. Está tudo nas mãos de Alá e, Alá, tal qual o Deus do Velho Testamento, parece gostar é de ver sangue derramado. E enquanto o julgamento do protagonista não ocorre, outros pequenos episódios vão se descortinando, caso da morte por apedrejamento de um casal adúltero, da punição a um homem que jogou futebol e de uma sequência infinita de chibatadas para um grupo de jovens que INVENTOU de tocar violão e percussão.

O filme é dolorido porque mostra que nessas terras sem lei, a lei na verdade é subjetiva, como atesta a cena em que um dos líderes dos militares aparece fumando (o que é proibido). E se o adultério é proibido, por que pessoas ligadas a autoridades religiosas locais insistem em assediar Satima (Toulou Kiki) uma mulher casada? Na obra, pequenos momentos de resistência - como o da mulher que pede que suas mãos sejam cortadas (ela se recusa a usar luvas) ou de uma mãe que nega entregar a sua filha para ser desposada por um desconhecido - são apenas pequenos respiros que, de forma circular, farão com que a ponta mais fraca dessa equação acabe sofrendo as consequências mais adiante. No fim o que fica nem é tanto a crítica à ocidentalização dos países islâmicos e sim a interminável guerra entre diferentes vertentes religiosas do islã. No diálogo inicial entre Kidane e Satima as dúvidas sobre o futuro, sobre fugir desse local, sobre se libertar - o que de maneira simbólica é, de alguma forma, alcançado na espetacular sequência final desse poético e arrebatador filme.

terça-feira, 25 de junho de 2019

Lançamento de Videoclipe - Emicida (AmarElo feat. Majur e Pabllo Vittar)

Se depender daquilo que assistimos no espetacular clipe de AmarElo, lançado hoje pelo Emicida, é possível afirmar que vem disco FODA do rapper pela frente. A canção integrará o terceiro registro de inéditas do paulistano, que deverá chegar no começo do segundo semestre, interrompendo um pequeno hiato desde Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa (2015). O vídeo, dirigido por Sandiego Fernandes, tem participação especial da baiana Majur e de Pabllo Vittar. Nele, o compositor inicia com um sampler da música Sujeito de Sorte, que integra o disco Alucinação (1976) do Belchior, para espalhar (e até ampliar) ideias otimistas de superação de dificuldades, disseminadas pelo artista há mais de 40 anos. "A nossa intenção é a de que as pessoas observem ao redor e se enxerguem maiores do que os seus problemas, independente de quais sejam", destacou Emicida, no material de divulgação do vídeo, que teve como uma de suas locações o Complexo do Alemão.



Novidades em DVD - O Gênio e o Louco (The Professor and The Madman)

De Farhad Safinia. Com Mel Gibson, Sean Penn, Natalie Dormer, Jennifer Ehle e Eddie Marsan. Drama / Biografia, EUA, 2019, 125 minutos.

Filme que passou meio despercebido pelas salas de cinema do País, O Gênio e o Louco (The Professor and The Madman) é daqueles que merece ser (re)descoberto na telinha. Não apenas por reunir dois astros do calibre de Sean Penn e Mel Gibson em grandes interpretações, mas também por apresentar ao mundo uma excelente história: a do ambicioso projeto iniciado em 1857, que visava à criação da primeira edição do Dicionário Oxford de língua inglesa. Um trabalho árduo, longo, exasperante, que contou com a colaboração de dezenas de pessoas até a sua conclusão, mais de 70 anos depois, com mais de 400 mil verbetes inclusos. Em cena, duas figuras que realmente existiram: o professor James Murray (Gibson) e o doutor W.C. Minor (Penn), traumatizado veterano de guerra que comete um crime logo no começo da película, ao confundir a vítima com outra pessoa.

Enviado para uma espécie de sanatório para criminosos, Minor tenta superar o sentimento de culpa, ao passo em que se aproxima da viúva Eliza (Natalie Dormer) que, agora sem o marido, luta para sustentar os seis filhos. Já Murray, se oferece para a laboriosa tarefa do dicionário - e a angústia em evoluir apenas na letra "A" já dá uma boa dimensão da dificuldade enfrentada pelo grupo que se empenha na atividade. O cenário muda quando Murray resolve convidar, literalmente, qualquer pessoa que esteja disposta a auxiliar na elaboração dos tomos. Uma dessas cartas chegará até Minor que encontrará nesta tarefa uma forma de se ocupar, enviando milhares de verbetes para o dicionário que se constituía. Ali nasce uma amizade. Uma amizade entre dois sujeitos que têm suas vidas ligadas pela ambição, pela loucura e pelo desejo de concluir algo nada menos do que genial.


Nesse sentido, o filme do estreante Farhad Safinia se consiste em uma verdadeira homenagem aos vocábulos, com seus significados saltando da boca dos protagonistas, escapando pelos ares, fazendo curvas e retornando - e nos fazendo pensar no quão lindo pode ser o estudo da linguagem, a constituição de sentido ou a revelação de sinônimos. Metaforicamente, palavras como "Arte" aparecem como sendo daquelas de difícil fruição, com mais exigências, mais revisões e mais reencontros com volumes do passado, que poderão auxiliar na questão. É uma obra que homenageia as letras, o simbolismo da importância da leitura e que é representada não apenas por personagens que presenteiam outros com livros, mas que também sugerem ensinar um ao outro a ler (que é o caso de Minor, que propõe o tutoramento a Eliza como uma forma de se redimir da culpa carregada e de tentar fazer com que a jovem lhe perdoe).

A propósito do perdão, a obra também trata deste tema. E da amizade. Na aproximação de Murray e Minor, uma excêntrica parceria (e os poucos encontros entre os dois sujeitos se constituem de pontos altos). Já Eliza aparece, inicialmente, como uma figura naturalmente amargurada, mas que aos poucos vai dando espaço para a absolvição de Minor - especialmente ao descobrir que ele sofre de um severo caso de esquizofrenia. Com bom desenho de produção, que recria de forma fidedigna a segunda metade do século 19, uma fotografia acinzentada (que dá conta da melancolia que rege a existência daqueles que assistimos em cena) e ótimos e carismáticos atores em papeis secundários (Eddie Marsan e Jennifer Ehle, especialmente), O Gênio e o Louco é um filme gostoso de assistir e que, provavelmente, seria ainda melhor se fosse uns 20 minutos mais curto (às vezes tudo se torna meio arrastaaaado). Mas nada que comprometa.

Nota: 7,5

segunda-feira, 24 de junho de 2019

Picanha.doc - Democracia Em Vertigem

De: Petra Costa. Documentário, Brasil, 2019, 119 minutos.

Em uma das tantas passagens marcantes do incrível Democracia em Vertigem da diretora Petra Costa, a presidente Dilma Rousseff está em vias de sofrer o impeachment. Diante de um bando de "homens de bem", defensores da família engravatados, uma estadista de cabeça erguida afirma que sentiu medo da morte apenas duas vezes na vida: quando foi torturada durante a Ditadura Militar e quando padeceu de um câncer, cerca de 10 anos atrás. "Hoje, eu só temo a morte da democracia", finaliza ela. Esse momento hoje já clássico da nossa política moderna, talvez seja o resumo perfeito do espírito que rege o documentário: o de perceber como a nossa ainda jovem democracia pode estar, diante de tantos desastrosos eventos recentes, sucumbindo. O que nos direciona, nas palavras da própria Petra, "para um futuro tão sombrio quanto o nosso passado mais obscuro e que faz cair a máscara da civilidade".

Para narrar essa história da derrocada da democracia como a conhecemos, a documentarista traça um paralelo em que a sua vida pessoal e a de sua família se cruzam com os eventos políticos recentes. O que humaniza (ainda mais) a obra, afinal de contas a história de esperança dela, poderia ser a história de esperança de cada um de nós. Tomando como ponto de partida as eleições que culminariam no primeiro governo do presidente Lula - ocasião em que Petra votou pela primeira vez -, a diretora recorda, com vibrantes imagens de arquivo, as manifestações dos metalúrgicos do ABC em 1979 e as sequenciais derrotas em pleitos até que, em 2002, ocorre a primeira vitória de Lula nas urnas. As conquistas sociais, com famílias vulneráveis saindo da linha de pobreza extrema, o desemprego em apenas 4% e estabilidade econômica também são recordados. Ao mesmo tempo, o filme não ignora eventos como o Mensalão - que prendeu líderes do PT -, e as alianças com desastrosas siglas, ligadas à velha oligarquia do País, caso do PMDB que, no fim das contas, culminaria no Golpe.


Todo esse didatismo da diretora, é apresentado com grande riqueza de imagens de arquivo, conversas de bastidores, entrevistas variadas e mesmo belas tomadas de câmera (especialmente aquelas de Brasília vista de cima, desde a sua construção, até os dias de hoje). Petra adota um tom melancólico em sua narrativa e chama a atenção para questões que passaram despercebidas por todos nós - caso do "abismo" que havia entre Temer e Dilma quando da posse da segunda como presidente ou mesmo episódios constrangedores como o dos procuradores da Lava-Jato admitindo não haver provas contra Lula em relação a ele ser proprietário do triplex, fazendo ao mesmo tempo a opinião pública acreditar que a ausência de provas seria a prova em si. (e, nesse sentido, não poderia haver melhor timing para o lançamento da obra do que esta ocorrer na mesma semana em que tiveram início os vazamentos de documentos do Intercept, que comprovam a farsa da operação como um todo).

Durante o filme, a diretora repassa diversos episódios recentes e marcantes de nossa política, caso dos protestos pelo aumento das passagens em 2013, dos equívocos - especialmente na seara econômica - da Dilma, da ascensão de uma extrema-direita difusa e incendiária (que gestaria Bolsonaro) e da vergonha que perpetrou um impeachment baseado em "pedaladas fiscais". No decorrer da narrativa, Petra obtém ricas entrevistas - especialmente com Dilma que recorda, de forma comovente, a prisão e a tortura durante a ditadura (impossível não se emocionar na cena em que ela "explica" como aguentava as agressões de seus torturadores), a resistência em se tornar candidata a presidência e a forma como recebeu a notícia de que estava sendo destituída do cargo. Tudo se descortinando sem sensacionalismo, de forma naturalista, com a câmera próxima do rosto dos envolvidos, o que confere um espírito de cumplicidade ainda maior com aqueles que assistimos.


Utilizando-se de citações à Kafka (O Processo) e Shakespeare e com trilha sonora que conta com composições como Canto de Ossanha, do Vinícius de Moraes, Petra Costa constrói um verdadeiro documento de nosso tempo, que apresenta a democracia conquistada como uma espécie de "sonho efêmero". Recheado por frases fortes, imagens impactantes (e revoltantes) e eventos marcantes, a película dá conta de um País que se mostra atualmente dividido, com seu tecido social fissurado e com pouquíssima possibilidade de conciliação. "Democracias frágeis tem uma vantagem sobre as sólidas: elas sabem quando acabam", narra Petra sem esconder o desalento. Ainda é cedo para saber se a nossa, de fato, acabou, mas seguimos esperando que a primavera chegue e assim se acabe a matança de rosas. E o que esse filme monumental - que já tem sido apontado como um dos possíveis candidatos para a categoria Melhor Documentário no próximo Oscar - consegue, é nos fazer prestar ainda mais atenção nisso tudo.

sexta-feira, 21 de junho de 2019

Novidades em Streaming - Democracia em Vertigem (Filme)

Os leitores do Picanha têm nos parado nas ruas e ABARROTADO as nossas caixas de e-mail para perguntar "tá, e aí, cadê a resenha do Democracia em Vertigem"? Sim, não estamos em um universo paralelo de desinformação ou mesmo alheios à obra da diretora Petra Costa - que está sendo contada, inclusive, para a próxima edição do Oscar, como projetou o site Indie Wire -, mas, o caso é que ainda não assistimos à película, o que deverá ocorrer neste final de semana. E, assim que assistirmos, evidentemente faremos as nossas considerações! De qualquer maneira, uma obra que trata do colapso da democracia que viria a gestar tempos tão sombrios como estes que estamos vivendo, é o legítimo caso de "nem vi, já gostei". E, enquanto não fazemos a nossa análise da obra que está disponível lá na Netflix, convidamos vocês a prestigiar o o ótimo texto do nosso parça Carlos Eduardo Lima, lá no Célula Pop, que analisa os acontecimentos vistos em tela. Vale conferir!


Grandes Filmes Nacionais - Cinema, Aspirinas e Urubus

De: Marcelo Gomes. Com João Miguel, Peter Ketnath, Hermila Guedes e Irandhir Santos. Drama / Aventura, Brasil, 2005, 101 minutos.

Uma velha caminhonete cruza o sertão nordestino. Em meio a estradas curtas e arenosas o barulho de motor se mistura com o zumbido dos insetos. O calor escaldante é palpável. A aridez é opulenta, em meio a uma vegetação rala, disforme, sem vida. O suor que escorre do rosto. A água e a gasolina escassas. A caminhonete e seu motorista - um alemão de nome Johann (Peter Ketnath) que está no Brasil para fugir dos horrores da Segunda Guerra - persistem. Tentam chegar em algum lugar, em meio ao nada. E no nada encontrarão um caroneiro. Na forma que o diretor Marcelo Gomes apresenta o preâmbulo do espetacular Cinema, Aspirinas e Urubus, há uma palpável sensação de desalento que percorrerá toda a película. Um Nordeste difícil, seco, distante. Tão distante que a "guerra não alcança", como constatará mais tarde Ranulpho (João Miguel), o seu involuntário parceiro de negócios (e de viagem). O caroneiro em questão.

Septuagésimo quinto melhor filme brasileiro da história, de acordo com votação feita pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine), Cinema, Aspirinas e Urubus é uma obra sobre amizades improváveis, que podem brotar em locais mais improváveis ainda. Mas é também um filme sobre resiliência (ou perseverança) em tempos difíceis. E até mesmo sobre a esperança por dias melhores. E, talvez ainda e em menor medida, essa verdadeira obra-prima do nosso cinema nacional possa ser considerada uma verdadeira homenagem a sétima arte em si. E não apenas pela película possuir uma atmosfera artisticamente superior, mas também pelo caráter mágico que se estabelece na relação entre os moradores dos pequenos povoados visitados por Johann e Ranulpho, quando colocados diante dos filmes publicitários que pretendem vender a aspirina - uma novidade que, aos poucos, começava a chegar ao País.


É muito provável que muitos moradores gastassem os seus parcos contos de réis em um remédio que prometia milagres, muito por conta da comoção causada pelos filmes publicitários exibidos por Johann - esse, no caso, é o "Cinema", do título. E, não por acaso, considero bastante comovente a sequência em que um morador de um dos tantos povoados visitados pela dupla protagonista, solicite que o filme seja repetido, de tão maravilhado que este está (e a homenagem ao cinema prossegue nas cenas em que, secretamente, Ranulpho investiga os equipamentos utilizados por Johann em suas exibições, os rolos de filme, o cinematógrafo, entre outros). São instantes em que pequenos choques de realidade se estabelecem de forma contrastante, assim como é contrastante o cenário de guerra que ocorre na Alemanha, com a aridez do Nordeste, a fome, a sede, a falta de provisões.

Nesse sentido, o filme se estabelece como uma série de instantes em que, de povoado em povoado, Johann e Ranulpho conhecerão outras pessoas, que lhes ajudarão nos momentos de dificuldades (como na cena em que o alemão é picado por uma cobra), lhes darão de comer, lhes bajularão (sempre haverá um empresário ambicioso de olho no negócio) e lhes "amarão". No meio do caminho um encontro com a retirante Jovelina (Hermila Guedes), pequenas mudanças de rota, idas e vindas e a certeza de que uma amizade se fortalece em meio a um cenário inóspito. E tudo isso, é preciso que se diga, dá conta da força de um filme que parece pequeno, mas que fala "grande" quando o assunto é a abordagem do absurdo da guerra - que faz com que um alemão prefira se esconder nos confins do Brasil, já que ali não "caem bombas".


Com uma verdadeira coleção de músicas de artistas como Carmen Miranda e Francisco Alves (impossível não se comover enquanto a desalentadora Serra da Boa Esperança é tocada), a obra ainda diverte ao trazer boletins de rádio do Repórter Esso, exibidos na época - e que, de forma surpreendente, abordam a participação "involuntária" do Brasil na Segunda Guerra, quando do episódio do bombardeio de submarinos brasileiros no litoral de Pernambuco. Trazendo ainda a ufanista mensagem que faz com que carreguemos um eterno "complexo de viralata" (repare no desdém de Ranulpho com os próprios moradores do Nordeste), o filme ainda conta com interpretações naturalista (João Miguel é destaque sempre) e um desenho de produção tão crível, que temos a real impressão de estarmos em meio ao Brasil da Era Vargas. Um filmaço que merece ser (re)descoberto e que está disponível na Netflix.

quarta-feira, 19 de junho de 2019

Lançamento de Videoclipe - Dingo Bells (Tudo Trocado)

A gurizada gente fina da Dingo Bells lançou recentemente um clipe para a canção Tudo Trocado - música que faz parte do álbum Todo Mundo Vai Mudar (nosso terceiro colocado na lista de melhores nacionais de 2018). Parte da série Videoclipers, organizada pelos cineastas Léo Longo e Diana Boccara (da produtora Couple Of Things), o vídeo, gravado todo em um plano-sequência, tem como cenário o espaço cultural Vila Flores, complexo arquitetônico que congrega artistas, produtores e outros em Porto Alegre. O clipe, bastante colorido, é pura diversão e brinca com a ruptura proposta pela letra (o que pode ser visto nos figurinos excêntricos e no comportamento das personagens). "Quisemos nos desafiar a fazer algo que nos tirasse da zona de conforto e digamos que dançar uma coreografia foi como um arremesso pra fora dessa zona", comentou o vocalista/baterista Rodrigo Fischmann. O resultado pode ser conferido abaixo, então, bora clicar!

7 Discos que a Crítica Odeia (Que Nós Amamos)

Resolvemos aproveitar ofato de que parte da crítica está descendo a LENHA no novo álbum da Madonna - Madame X -, para fazer um pouco de justiça nesse mundo musical. Afinal de contas, não é porque os especialistas não referendaram, que necessariamente é ruim. Aqui para nós, importa menos a opinião do Pitchfork e muito mais o que a gente tá sentindo, ao escutar aquele disco que tá sendo esculachado em resenhas maldosas mundo afora. Eis a nossa listinha com os 7 Discos que a Crítica Odeia (Mas Que Nós Amamos).

#1 Keane (Hopes and Fears): acredite, o disco de estreia dos ingleses recebeu uma inacreditável nota 2,8 do Pitchfork, que o chamou de "imitação pálida do Coldplay" ou da "banda que tocou naquele casamento do seu primo" (por conta da formação que conta apenas com vocal, teclado e bateria, como se isso por si só fosse um demérito). Nós, do lado de cá, não cansamos de ouvir nunca a banda capitaneada por Tom Chaplin. São desse disco hits imperdíveis como Somewhere Only We Know, This Is The Last Time e Everybody Is Changing, entre outros. Equilibrando a melancolia e as letras tristonhas, com um clima de festa febril repleta de sintetizadores, o álbum é uma rara proeza que faz os fãs cantarem desavergonhadamente todas as canções, berrando os refrões grandiosos, crescentes, retumbantes. Pode até soar kitsch, mas é um kitsch com estilo.


#2 Moby (18): eu sinceramente não entendo qual é o RANÇO que o Pitchfork tem com o Moby. Absolutamente NENHUM disco do artista recebeu uma nota muito superior a cinco e este trabalho aqui, que orgulhosamente, já figurou no nosso Lado B Classe A, recebeu um inacreditável 2,6 do crítico David Pecoraro. "Há muito mais para não se gostar em 18, como as batidas monótonas de baterias eletrônicas já datadas, a natureza dolorosamente repetitiva de tantos desses sons, ou o teclado simplista no fundo de metade dessas músicas. Ou (ainda) as letras inconsequentes como aquelas na faixa de abertura", tascou o crítico, no texto publicado no site. Bom, nós discordamos com TODAS as forças, afinal de contas, como não gostar de um disco que possui verdadeiras gemas da música eletrônica/ambiental/etérea/futurosta, como, In My Heart, In This World e One Of These Mornings?

#3 The Gaslight Anthem (Get Hurt): mais um disco achincalhado pelo pessoal do Pìtchfork, que resolveu dar uma sonora nota 3,0 a Brian Fallon e companhia. Em seu texto, o crítico musical Ian Cohen faz duras críticas à mudança de rota da banda, algo que poderia até soar engraçado se a própria banda encarasse tudo como uma brincadeira. "Com cada tentativa frustrada de pop, metal ou pop-metal, Get Hurt apenas reescreve seu próprio pior cenário", escreveu o crítico, que ainda pontuou o fato de o registro ser uma maçaroca que mistura Bruce Springsteen e Jon Bon Jovi, mas sem nenhuma autenticidade. É claro que aqui no Picanha a gente discorda frontalmente disso tudo, como atesta o apaixonado texto que figurou num longínquo 2016 no nosso Lado B Classe A. Para nós esse é um trabalho tocado com paixão, com garra, nos moldes do rock americano de raiz, com guitarras no talo e que traz de volta uma nostalgia e uma vontade de percorrer novamente uma estrada em que não sabemos exatamente onde vamos parar.


#4 Muse (Black Holes and Revelations): em geral parece haver uma certa pré-disposição geral da crítica em falar mal da banda de Matt Bellamy e companhia - e, em muitos casos, nem o seu disco mais popular escapa. "Soando como um tributo ao Radiohead", tascou a Spin. "O que o Muse não tem de carisma, ele tenta compensar em volume", destacou o Pitchfork, que não teve nenhuma pena de dar uma nota 4,2 para o registro (e não vou deixar de admitir que o parágrafo em que o crítico Sam Ubi fala de Knights Of Cydonia é realmente engraçado). Mas a gente gosta do Muse. E gosta desse álbum, que tem algumas das melhores faixas formuladas pela banda, casos de Starlight, Supermassive Black Hole e Map Of The Problematique. Vem ni nóis excessos modernosos, crítica ao uso da tecnologia e vocal em falsete. Aqui não recusamos banda, só porque ela soa exagerada.


#5 Of Monsters and Men (My Head Is An Animal): é inacreditável como alguns críticos conseguiram ser maldosos com esse trabalho absurdamente imperdível. "Existe talento aqui. Só foi uma pena que ele não foi combinado com ideias originais", afirmou o crítico da Q. "Esse álbum de estreia é vazio demais para excitar, com seus momentos mais estranhos e calmos sendo sufocados pela rocha ventosa", retrucou o Observer. "Imitação emocional do Mumford & Sons", comparou a Uncut. É claro que nem tudo foi tragédia - e, curiosamente, a nota geral do registro no Metacritic é 66 (baixa, mas não tenebrosa). Só que como gostamos muito do som dos islandeses, achamos que eles mereciam mais. É um trabalho descaradamente pop, com refrões grudentos, palminhas, lalalás e toda a parafernália de arranjos naturalmente acessíveis e que nos acertam em cheio o coração. Um disco irresistível, como comprovam hits do quilate de King and Lionheart, From Finner e Little Talks.


#6 Imagine Dragons (Evolve): o Imagine Dragons é uma das bandas mais legais do planeta - só tá faltando a crítica descobrir isso. No Metacritic, que condensa notas dadas pela crítica musical em uma única avaliação, nenhum dos discos do coletivo alcança aquilo que seria uma honrosa nota 6,0. E, pior, este terceiro trabalho, que possui grandes hits como Believer, Whatever It Takes e Thunder possui média geral de 4,7. QUATRO VÍRGULA SETE. Vocês sabem o que é todos os sites do mundo avaliando e a nota geral não passar disso? Em meio a comparações como a de um Michael Bolton dançando para o Justin Timberlake em um casamento de família (feito pela Classic Rock Magazine), a gente prefere lembrar daquilo que a banda sabe fazer de melhor: rocks de arena meio à moda antiga e com imperdíveis refrões ganchudos.


#7 The Killers (Hot Fuss): vamos combinar que a banda de Brandon Flowers e companhia nunca empolgou muito a crítica. Quando do lançamento do disco de estreia, o Pitchfork concedeu uma pálida nota 5,2 ao registro - até hoje lembrado pelos fãs por hits como Mr. Brightside, Smile Like You Mean It, On Top e Jenny Was A Friend Of Mine. "Apenas a banda mais recente a nascer muito rápido dentro do vácuo da música popular, onde as expectativas de acessibilidade ampla matam o potencial dos garotos para uma criatividade mais profunda", descreveu, de forma assombrosamente ferina, o crítico Johnny Loftus. A despeito de ser um álbum tão querido pelo público, o registro foi totalmente ignorado em uma lista que compilou os 1001 discos para se ouvir antes de morrer - o que dá conta do desprezo generalizado dos especializados, por esse incrível trabalho.

E pra você, quais os discos mais injustiçados pela crítica?

terça-feira, 18 de junho de 2019

Tesouros Cinéfilos - Nós (Us)

De: Jordan Peele. Com Lupita Nyong'o, Winston Duke, Elizabeth Moss, Anna Diop e Evan Alex. Suspense / Terror, EUA, 2019, 116 minutos.

Nas aparências, Nós (Us) é um terror/suspense de estrutura bastante convencional. Em cena assistimos uma família tradicional americana indo passar as férias em uma casa de praia. Há algum trauma relacionado ao passado e não demora para que pai, mãe e os dois filhos passem a ser assombrados por seres do mal, vindos sabe-se lá de onde. Mas o caso é que este é um filme do Jordan Peele - o primeiro depois do sucesso alcançado com o espetacular Corra! E, portanto, por baixo do véu de normalidade dentro daquilo que se espera em uma película do gênero, parece haver uma análise muito mais aprofundada das estruturas que regem a sociedade americana, seus dilemas morais, suas feridas abertas e o mal-estar generalizado que parece sustentar um tecido social em que se sobressai o individualismo, a falta de empatia e, em até certo ponto, a falência do capitalismo como modelo.

As pessoas que atacam a família protagonista moram nos subterrâneos - e atuam como se fossem a sua sombra, reivindicando o seu lugar de direito. Reivindicar o seu lugar, especialmente para uma família negra, dá conta de algo muito maior do que o "vocês estão aí vivendo no bem bom, enquanto nós estamos no submundo, a margem da sociedade". Tem a ver com história, com a escravidão dos negros e a luta por um sistema mais igualitário. Com uma dívida difícil de ser quitada por séculos de atraso e de injustiça racial. O fato de a família acossada pelos seres "do mal" ser também negra - na realidade trata-se de seus duplos - força o espectador a interpretar este simbolismo para algo muito além da simples desigualdade entre brancos e negros (algo que era mais nítido em Corra!), mas para a percepção de que as diferenças estruturais da nossa sociedade são muito mais amplas, com pobres e ricos em lados opostos e uma permanente sensação de medo de alguma coisa (não se sabe o quê) que, em muitos casos, parece acompanhar as classes mais abastadas.


Diferenças sociais. Medo. Paranoia. As classes altas, a gente sabe bem, temem a revolta popular. A "ameaça comunista". Uma tomada de poder. De seus bens. De sua vida luxuosa, hedonista e individualista. E vamos combinar que iniciativas como o Hands Across America - citada no começo da película e que tinha o nobre objetivo de juntar dinheiro para o combate à fome, na África -, não passam de formas de garantir a manutenção do status quo. Por um lado eu faço a caridade e sou bem visto pelos meus pares, pela comunidade. Por outro, vocês continuam pobres. Miseráveis. E não é por acaso que os seres das sombras não têm voz - repare no espetacular trabalho de Lupita Nyong'o na composição de Red e no contraste que se estabelece com Adelaide, a sua versão "família de bem". É o que acontece com os vulneráveis, invisíveis para a sociedade. Falta ser ouvido.

Afora todo o contexto social estabelecido pela película - e, vamos combinar que nada é definitivo nessa análise, já que uma obra dessa envergadura parece abraçar muita coisa ao mesmo tempo, nos fazendo refletir bastante -, o filme também funciona muito bem como suspense. Das sequências de invasão da casa, a tentativa de escapada da família, com direito a busca de ajuda nos vizinhos (que são assassinados pelos seus duplos) há uma série de vertiginosos (e vigorosos) pequenos instantes em que acompanhamos a luta de todos pela sobrevivência. Com ótima trilha sonora, movimentos de câmera e enquadramentos inteligentes e excelentes interpretações dos atores centrais - vamos combinar que não é nada simples compor personalidades totalmente distintas em um mesmo trabalho - Nós passa o recado de forma sutil, fazendo pensar sem esfregar na cara. Já dizia Jeremias 11:11: "eu vou trazer um desastre do qual eles não podem escapar. Apesar de eles chorarem para mim, eu não irei ouvi-los". Sim, tá lá na Bíblia. E a hipocrisia religiosa, de ir à missa aos domingos ao passo que se ignoram os problemas sociais existentes, também está inserida nesse contexto.



segunda-feira, 17 de junho de 2019

Cinema - Obsessão (Greta)

De Neil Jordan. Com Isabelle Hupert, Chloë Grace Moretz, Maika Monroe e Stephen Rea. Suspense, EUA / Irlanda, 2018, 96 minutos.

Histórias de stalkers que perseguem suas vítimas levando-as à exaustão física e psicológica não chegam a ser exatamente uma novidade no cinema. De pequenos clássicos modernos como Atração Fatal (1987) e Louca Obsessão (1990), passando ainda por alternativos como O Talentoso Ripley (1999) não foram poucas as vezes em que acompanhamos personagens com algum tipo de trauma, que as levam a se tornar obcecadas por outras pessoas, seus comportamentos ou estilos de vida. Para nós, espectadores, obras desse subgênero também parecem ser capazes de nos levar a algum tipo de catarse em que se sobressai um tipo de suspense muito mais psicológico do que aquele que apela para os sustos mais "fáceis". Não é diferente com o recém-chegado Obsessão (Greta), mais recente trabalho do diretor Neil Jordan (do surpreendente Traídos Pelo Desejo) e que representa a entrada da veterana Isabelle Hupert no universo dos perseguidores psicologicamente alterados.

O filme começa com cenas prosaicas da vida da jovem Frances (Chloë Grace Moretz), que trabalha como garçonete em um luxuoso restaurante de Nova York e divide um apartamento com a amiga Erica (Maika Monroe). Em um certo dia, voltando do trabalho, Frances se depara com uma bolsa que está perdida em um banco do metrô. Ao recolher o acessório e identificar a sua dona, após a verificação dos documentos, ela vai até o endereço para a entrega do objeto. No local lhe atende uma simpática senhora de nome Greta (Isabelle Hupert), que lhe oferece uma xícara de chá em agradecimento. Tudo corre relativamente bem: Greta é viúva, tem uma filha que não mora com ela, gosta de tocar pequenas árias ao piano... e se torna uma amiga involuntária de Frances, convidando-a outras vezes para a sua casa, para visitas ou mesmo para jantar.


Em um desses jantares, Frances faz uma descoberta dentro de um armário da casa de Greta, que lhe faz perceber que a bolsa "perdida", não passava de um estratagema para atrair pessoas para perto de si. De preferência jovens garotas que atendessem a um certo perfil, que tivessem perdido a mãe ou que tivessem dificuldades de relacionamento com os familiares. É quando Frances assustada tenta se afastar da mulher de todas as formas, que o seu calvário começa: ligações e mais ligações em seu celular, mensagens na secretária eletrônica, uma conversa sobre a necessidade de serem amigas como forma de substituir outras pessoas que não estão mais em suas vidas, aparições em lugares inadequados (em frente ao seu trabalho, no corredor do prédio em que mora)... enfim, Greta passa a transformar a vida de Frances em um inferno. E ao chamar à polícia, a jovem enfrenta a burocracia de um sistema de segurança que não lhe ouve e, pior: não vê crime na "mera perseguição".

Ainda que não traga alguma novidade no que diz respeito ao gênero, Neil Jordan entrega uma obra correta, com boa atmosfera, excelente trilha sonora e detalhes que tornam agradável a experiência. Da vizinhança decrépita de Greta (ponto pro criativo desenho de produção), às pequenas nuances do olhar ou da inflexão de voz que alteram o comportamento de Isabelle de "velhinha querida" para "demonho em pessoa", a película tem na presença da premiadíssima veterana uma de suas atrações - e talvez o filme nem funcionasse tanto, se não fosse a presença magnética da atriz, que encarna com naturalidade a maluca que ataca violentamente a sua vítima, enquanto dança ensandecidamente ao som de Chopin. Com uma pequena reviravolta nem tão surpreendente no final, a obra tem estrutura convencional, mas cumpre seu papel, com um suspense crescente e uma permanente sensação de que algo está prestes a sair do controle. O que em filmes sobre stalkers, é tudo o que precisamos.

Nota: 7,5

sexta-feira, 14 de junho de 2019

Na Espera - Keane (Disco)

Uma de nossas bandas preferidas, o Keane, finalmente está de volta! Depois de um hiato de sete anos desde Strangeland, a banda anunciou na última semana o disco Cause and Effect - que tem data de lançamento prevista para o dia 20 de setembro. No registro serão onze canções inéditas, entre elas The Way I Feel, que recebeu videoclipe e vem sendo trabalhada como single. A canção, pelo que se pode perceber num primeiro momento, mantém o clima pop roqueiro, com pitadas ensolaradamente eletrônicas e o tradicional vocal "aberto", prontinho pra ser cantado a plenos pulmões pelos fãs.


Outra boa notícia que envolve o grupo capitaneado por Tom Chaplin é que ela já está em turnê pela Europa, com temporada em países como Holanda, Portugal, Inglaterra e Espanha. A expectativa para o segundo semestre é de que a banda possa incluir a América do Sul na sua agenda, assim como ocorreu em 2013, ano da última apresentação dos caras por aqui. É aguardar!

Cine Baú - Tootsie (Tootsie)

De: Sydney Pollack. Com Dustin Hoffman, Jessica Lange, Teri Garr, Bill Murray e Geena Davis. Comédia / Drama / Romance, EUA, 1982, 116 minutos.

Em uma recente pesquisa feita pela revista britânica Time Out, atores de 20 países diferentes votaram nos melhores filmes de todos os tempos. O resultado: Tootsie (Tootsie) do diretor Sydney Pollack encabeçou a lista dos 100 mais, desbancando outros clássicos que costumam figurar nas primeiras posições. Difícil atribuir quais os aspectos que possam ter contribuído para a expressiva votação, mas é possível conjecturar alguns deles. Em primeiro lugar é um filme metalinguístico, sobre um ator perfeccionista mas de temperamento difícil (um inspiradíssimo Dustin Hoffman) que tenta se adequar a um sistema em que ninguém lhe quer contratar. Depois, há o carismático elenco, que conta com nomes como Jessica Lange, Bill Murray, Geena Davis e Teri Garr, além do já citado Hoffman e do próprio diretor Sidney Pollack, que interpreta o empresário sincerão do protagonista.

Há também um roteiro inteligente, conduzido de forma dinâmica e com uma criativa edição: quando Michael Dorsey (Hoffmann) percebe que a sua carreira pode estar sendo comprometida por conta de sua personalidade difícil, ele resolve se vestir de mulher, dando vida à Dorothy Michaels, na tentativa de obter um papel para uma novela matinal (as conhecidas soap operas americanas). Aliás, que ela consegue, claro! E há ainda um palpável debate sobre o feminismo que perpassa todo o filme e que ganha força quando Dorothy começa a questionar algumas decisões do roteiro da atração que protagoniza, alterando falas inteiras, improvisando e redefinindo as questões de gênero. Afinal de contas, agora, na pele de uma "mulher", Michael perceberá que a vida delas nesse meio é ainda pior, com assédios de todos os tipos, submissão e estereótipos, como o da mulher sendo o "sexo frágil".


E é muito provável que, por tudo isso, o filme envelheça tão bem. Talvez a exceção da anacrônica trilha sonora - impressionante como os filmes dos anos 80 são ultrapassados nesse sentido -, essa pequena joia mantém o seu charme levemente subversivo, seja nos diálogos divertidos, no figurino e na maquiagem excêntricas ou no respeito que a narrativa mantém por sua personagem principal, jamais tratando-a como uma caricatura. E o melhor, mesmo nas sequências mais sérias, como no caso em que Jeff (Bill Murray) faz uma piadinha ao surpreender Dorothy sendo violentamente assediada por um colega de elenco, Hoffman - agora já com a voz de Michael - olha-o com severidade lembrando-o "não, Jeff, estupro não tem graça". Bom, nunca é demais lembrar também que Julie (Jessica Lange, que ganhou o Oscar por sua caracterização) interpreta uma atriz que é mãe solo - em uma época em que esse conceito era ainda muito pouco conhecido. Mais um tema tabu, incluído com sutileza na trama.

Mas no fim das contas, são muitos os aspectos que tornam o filme divertidíssimo - que já começa engraçado com uma festa surpresa em que Michael conhece apenas cinco dos mais de cinquenta convidados. E o que dizer das divagações de Jeff nessa mesma festa? Ele que preferiria que os teatros abrissem somente à noite, porque ele aí saberia que os verdadeiros fãs de teatro, os resistentes com suas capas de chuva, é que estariam lá. Há a relação conturbada de Michael com Sandy (a inesquecível Teri Garr), as conversas impagáveis com o empresário (você era um tomate!), a paixão impossível por Julie e as tentativas de Dorothy em tornar o programa matinal menos quadrado do que é, em meio a uma equipe machista, com um diretor idem. Tudo ocorrendo de forma fluída, com edição ágil, o que faz com que nem percebamos o tempo passar. Não por acaso, o filme foi escolhido o 62º melhor da história, em votação feita em 1998 pelo American Film Institute (AFI). Mais do que justo.


quinta-feira, 13 de junho de 2019

Disco da Semana - Bárbara Eugênia (TUDA)

Escutar qualquer disco da Bárbara Eugênia é como abrir um armário em que estão empilhadas roupas levemente empoeiradas, docemente amarrotadas e talvez até com algum cheiro nostálgico de "guardado". Mas são peças que você ainda deseja usar, que sabe que se der uma repaginada nelas, lavar, passar, elas ainda servirão. Terão lá seu charme. Enfim, funcionarão. Essa metáfora, meio boba até, serve para estabelecer a artista carioca como uma das que melhor dialoga com a música feita no passado, mas que nem por isso deixa de envernizar os seus trabalhos com uma personalidade própria, cheia de vigor. O que é capaz de conferir certo frescor até mesmo a covers do cancioneiro (brega?) nacional, como é o caso de Por Que Brigamos?, lançada em 1972 pela Diana, e que no álbum É O Que Temos (2013) reaparecia com uma bem-vinda energia, uma intensidade ao mesmo tempo lânguida e voluptuosa.

O expediente agora se repete com Sol de Verano, lançada em 1983 pela britânica radicada na Espanha Jeanette, e que figura entre as canções do mais recente registro da compositora, o maravilhoso TUDA. Funcionando como uma espécie de "deslocamento temporal", as canções lançadas em décadas distintas também parecem servir para reposicionar Bárbara musicalmente, que deixa para trás o flerte com a sonoridade setentista e mais amplamente romântica, para investir ainda mais no diálogo com os anos 80, bem como seus sintetizadores, batidas mais eletrônicas e um clima mais festivo. "Não sei se [era] mais doce...mais anos sessenta certamente! Acho que desde sempre foi pop, só era mais vintage mesmo. Agora dei uma modernizada. Fui lá pros anos 80, 90. As influências continuam muito as mesmas, só dei mais espaço para coisas que não chegavam no resultado final. Como, por exemplo, a musica eletrônica ou ritmos mais especificamente brasileiros, como o ijexá, samba-reggae, e outras cositas más", revelou em entrevista ao site Omelete.


Nesse sentido, interessante notar como o trabalho dialoga de forma natural com os mais variados estilos. Se as regionalistas Saudação e Eu Vim Saudar abrem e fecham o disco respectivamente, como se fossem cânticos folclóricos, Perdi e o single Bagunça, são as músicas dos anos 80 por excelência. Mas não os anos 80 óbvios, de toneladas de sintetizadores e sim aqueles que trafegam livremente sem vergonha de adicionar outros elementos, como pequenos fragmentos e colagens instrumentais capazes de retirar as mesmas músicas de uma caixinha fechada de definições. As Maçãs que Vêm é MPB indie com base eletrônica que não faria feio no álbum Tropix (2016) da Céu. Já Querência é um surpreendente reggae, ao passo que a ótima Confusão é o cancioneiro popular que também tem espaço entre os fãs da artista. E há ainda Perfeitamente Imperfeita que, com clima de axé, surge como uma das melhores canções desse ano.

Contando com uma série de participações especiais - do Bloco Pagu a Tatá Aeroplano, passando por Zeca Baleiro (que participou da composição de Bagunça) e o coletivo Onda Vaga, na linda Por La Luz Y Por Tierra - Bárbara ainda alcança com suas letras absurdamente confessionais e poéticas, a maturidade de quem já está há dez anos na estrada, tendo trabalhado com, entre outros, Edgard Scandurra, Otto, Karina Buhr, Tom Zé e Heitor Dhalia, em projetos distintos como um tributo ao cantos francês Serge Gainsbourg ou a websérie Absurda: Lado A. Eu só vou fazer / Daqui pra frente / O que me faz bem / Me faz bem, canta a artista na já citada As Maçãs Que Vêm, como se resumisse o espírito que provavelmente vai reger, daqui pra frente, as suas escolhas artísticas. Os fãs agradecem!

Nota: 8,8


terça-feira, 11 de junho de 2019

Pérolas da Netflix - A Antena (La Antena)

De Esteban Sapir. Com Alejandro Urdapilleta, Florencia Raggi, Valeria Bertuceli e Ana Moreno. Drama / Ficção Científica, Argentina, 2007, 99 minutos.

O trocadilho é óbvio, mas necessário: A Antena (La Antena), essa verdadeira joia do cinema argentino, é um filme que nos deixa sem palavras. Não apenas pelo visual fantástico - que pega elementos do expressionismo alemão, mistura com quadrinhos do Frank Miller e acrescenta uma pitada de Jean Pierre Jeunet (versão sem cores) -, mas também pela criativa história, que faz a crítica mais do que necessária a alienação promovida pela mídia. A trama nos joga para uma sociedade distópica em que as pessoas não podem mais utilizar a sua voz para se expressar. As palavras existem, continuam presentes, mas surgem no formato de curiosas legendas, enquanto as pessoas conversam. É tudo silencioso nesse mundo em que o Sr. TV (Alejandro Urdapilleta) comanda tudo. Ambicioso, o sujeito pretende sequestrar uma cantora (Florencia Raggi), única pessoa do planeta que ainda consegue se expressar pela fala.

A ideia do Sr. TV, na realidade, é utilizar uma espécie de engenhoca para capturar todas as palavras ditas pela cantora, processá-las na indústria e comercializá-las como produtos que detém a sua marca. Aliás, tudo nesse universo é "Alimento TV" - e, bom, talvez aí esteja uma das metáforas mais óbvias da película: a de que, muitas vezes, recebemos tudo mastigadinho de nosso aparelho televisor, sendo incapazes de questionar, colocar um contraponto ou desafiar aquilo que assistimos. Nesse contexto, quem desafiará o Sr. TV será o próprio filho do magnata (Valeria Bertucelli) que, após um equívoco, será enviado pela prisão por seu próprio pai. Ele se juntará a uma enfermeira (Julieta Cardinalli), seu ex-marido (Raúl Hochamn) e sua filha (Ana Moreno) que, por um acaso, descobrirá que a "voz", possui um filho, também capaz de falar.



Pode parecer meio confuso, mas o que mais interessa nesse filme é se deixar levar pelo visual absolutamente mágico dele. O preto e branco é magnífico, há um clima de mistério, uma névoa permanente, uma melancolia da falta de cores, sensação ampliada pela trilha sonora envolvente. Há ainda uma série de referências à filmes antigos - de Metropolis (1927), passando por Tempos Modernos (1936), até chegar a Viagem A Lua (1902) - que tornam a experiência ainda mais saborosa. E há ainda a fortíssima crítica aos sistemas totalitários e o absurdo da necessidade de poder - e não é por acaso que, quando assistimos a cantora sendo presa ao equipamento que lhe pretende "sugar" as palavras, conseguimos perceber claramente uma suástica desenhada junto deste.

É uma obra com um tipo de linguagem diferente, mas que te conquista já nos primeiros minutos, com sua concepção visual à moda de um "filme do Tim Burton" feito na época do Gabinete do Dr. Caligari (1920). Recheado de imagens enigmáticas, labirínticas, geométricas, o filme nos apresenta a um universos quadrado, tecnológico mas sem graça, moderno mas sem vida. Sem voz e sem cores. Em que as pessoas não podem se expressar. Afirmar suas ideias. Se posicionar. Dialogar, que seja. A solução? Ativar uma antiga antena que está em uma espécie de descampado, o que poderá ecoar (e consequentemente devolver) novamente a voz do povo, afinal de contas, as palavras não foram perdidas. Elas ainda existem. Cheias de significados. Amplas de sentidos. Como podemos constatar no formidável terço final.

Novidades em Streaming - Black Mirror (Quinta Temporada)

Passou meio batida a chegada da quinta temporada de Black Mirror - e, confesso que acho meio estranho chamar uma trinca de episódios de "temporada". Bom, assistindo aos episódios, a impressão que fica é a de que a série criada por Charlie Brooker esgotou as suas possibilidades - e, sinceramente, não haveria nenhum mal em reconhecer isso. Os episódios são irregulares (o terceiro, intitulado Rachel, Jack and Ashley Too chega a irritar de tão arrastado) e parece começar a haver uma reciclagem de idéias que, ironicamente, quase afasta a série de seu propósito inicial, que é a de fazer a crítica à interferência da tecnologia em nossas vidas. Não por acaso, o já citado episódio, estrelado pela cantora Miley Cyrus, chega a soar infantil, se lembrarmos o impacto causado por outros, como The National Anthem, por exemplo. Pra não dizer que nada se salva, Striking Vipers tem pegada interessante, ao passo que Smithereens mais parece um longa de suspense em que a mensagem geral é "não use o celular enquanto você dirige". Convenhamos, muito pouco pra uma série que já nos surpreendeu tanto.

segunda-feira, 10 de junho de 2019

Tesouros Cinéfilos - Nós, Os Animais (We The Animals)

De: Jeremiah Zagar. Com Evan Rosado, Josiah Gabriel, Isaiah Kristian, Raúl Castillo e Shiela Vand. Drama, EUA, 2018, 94 minutos.

Pouco conhecido no Brasil, Nós, Os Animais (We The Animals) é aquele tipo de filme que merece ser descoberto. Trata-se de uma obra de grande sensibilidade, dotada de um lirismo quase poético e que utiliza a força da imagem para abordar os dilemas naturais da juventude de forma inteligente, mas com uma sutileza quase onírica, transcendental. A trama é centrada na rotina de três meninos muito unidos - Manny (Isaiah Kristian), Joel (Josiah Gabriel) e Jonah (Evan Rosado), este último o caçula e narrador da história. Como qualquer jovem da faixa dos 10 anos, eles brincam, correm, nadam, aprendem, apanham (da vida), sofrem... e querem mais, sempre mais. "Mais volume, mais músculos, mais família". Ou será que de vez em quando eles não gostariam de ter menos? E ter apenas paz?

Como jovens que são, ainda não sabem das coisas da vida. Quando a mãe (Sheila Vand) aparece com o olho roxo e um corte na boca, acreditam na história contada pelo pai (Raúl Castillo) sobre um dentista pouco habilidoso que lhe teria ferido quando esta foi tirar os dentes do siso. Não compreendem as questões de gênero, os tipos de violência sofrida pela mãe e a importância do respeito às mulheres. Ao mesmo tempo não compreenderão o sumiço do pai, ou o sumiço dos dois. As suas brigas e idas e vindas, transformando a rotina em um sem fim de instantes instáveis, áridos, duros. Também não terão a total dimensão daquilo que lhes ocorre com o corpo, com o sexo e com o desejo que começa a despertar, latente, urgente. E como lidar com esse desejo quando, no caso do jovem e sonhador Jonah, ele surge direcionado aos meninos? Como poder "voar" e ser aceito por aquilo que se é em seu íntimo, se mal se sabe se haverá o que comer?


Nesse sentido, o diretor Jeremiah Zagar transforma essa valiosa película em uma série de pequenos recortes em que discutirá temas os mais variados - do machismo na sociedade, passando pelo respeito às diferenças (entre elas as sexuais) até chegar à vulnerabilidade social que afeta camadas mais pobres. Há ainda aqui e ali um tênue debate sobre Complexo de Édipo, sobre ser o provedor da família, sobre ser homem e sobre crescer homem - lutando o tempo todo contra algum tipo de instinto mais animalesco, e aceitando o código moral que, por fim, lhes guiará as atitudes. É uma obra que abarca muito e que, talvez por isso, também peque por alguma eventual falta de profundidade em seu debate. E que apresenta seus personagens como uma coleção de figuras com virtudes, defeitos, medos, anseios e instantes de alegria, de celebração - como é o caso daquele em que a família dança junta.

Ainda longe de compreender aquele emaranhado de estímulos que lhe rodeia, Jonah utiliza as suas habilidades artísticas - desenhos criativos e cheios de significados - para se expressar. Algo que, somado à uma fotografia amarelada e empalidecida, a uma trilha sonora sinuosa e a um clima bucólico (repare na cena em que Jonah mergulha em um buraco se misturando com a terra úmida e com as minhocas), tornam a obra uma experiência puramente sensorial, que burla os limites entre arte e entretenimento. São fragmentos que, por vezes, funcionam quase como se fossem sonhos, arrastando o filme (e consequentemente o espectador) para fora da realidade pura e simples. Há algo maior no mundo e é ele que desejamos explorar, no fim das contas. Especialmente quando tomamos consciência disso - como comprova a belíssima sequência final.

quinta-feira, 6 de junho de 2019

Curta Um Curta - Fantasmas

Trigésimo primeiro colocado na eleição feita Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine), para a escolha dos 100 Melhores Curta-Metragens Nacionais, o ótimo Fantasmas, do diretor André Novais Oliveira (que mais tarde realizaria Temporada), brinca com o conceito do "fantasma da ex". Utilizando-se de uma estrutura nada convencional, uma câmera parada acompanha uma rua em que se vê uma esquina próxima a um posto de gasolina, no final da tarde/começo da noite. Na trama, dois amigos conversam descompromissadamente sobre a pelada do fim de semana e sobre outras amenidades. Mas o objetivo de um deles, ao posicionar o equipamento virado para a rua, é a intenção nada "nobre" de stalkear os passos da ex (por mais que o relacionamento possa ter sido traumático). O filme respeita a inteligência do espectador, transformando a personagem Camila em uma espécie de improvável espectro que ronda a vida do Maurílio. Bora clicar e conferir?



Cinemúsica - Trainspotting: Sem Limites (Trainspotting)

Impossível pensar em Trainspotting: Sem Limites (Trainspotting) e não lembrar do amontoado de cenas icônicas que essa verdadeira joia do cinema alternativo e da cultura pop possui. Seja o bebê que caminha ameaçadoramente no teto do quarto decrépito de Renton (Ewan McGregor) ou mesmo o clássico "mergulho" em um vaso sanitário naquele que provavelmente é o pior banheiro de bar de Edimburgo (ou da história), o caso é que a película de Danny Boyle é uma verdadeira coleção de sequências delirantes a respeito dos efeitos do uso (e da abstenção) de heroína, por um grupo de desajustados que tem como único propósito de vida levantar, decidir qual vai ser a maracutaia do dia para garantir a manutenção das doses diárias da droga, e seguir a vida. De forma letárgica, torpe, sem propósito. Uma existência vazia, oca, pálida, como é a cara pálida do inesquecível protagonista.

Na época do lançamento do filme houve muita discussão a respeito de uma suposta glamourização do uso de drogas mas, vamos combinar que não. E assistir às doloridas sequências em que Renton está "preso" pelos pais em seu quarto como forma de garantir a sua reabilitação, em completa abstinência, são a prova disso. E nem precisamos comentar a cena em que o já citado bebê morre, resultado da negligência de um grupo de jovens que se entope de drogas, como forma de fugir de um mundo de merda. Por outro lado, é inegável a crítica que a película faz às convenções sociais que exigem das pessoas um bom casamento, uma casa (com hipoteca), uma vidinha ordinária com filhos, uma tevê de tamanho grande, a programação dominical, uma máquina de lavar, boa saúde, colesterol baixo, plano odontológico, salário fixo, Natal em família, tudo de acordo com o script, até o dia da morte. Os "vícios morais" da sociedade, se é possível fazer um trocadilho.


Mas vamos combinar que talvez o filme não funcionasse tão bem, se não fosse a sua inesquecível trilha sonora. Cada momento - divertido, urgente, violento, urbano - é movido por uma trilha sonora quase onipresente, que contribui de maneira genuína para a fluidez narrativa, saltando de uma sequência a outra de forma natural, por mais que o caos esteja estabelecido naquilo que assistimos. Aliás, a película já começa com Renton em fuga enquanto a sinuosa Lust for Life do Iggy Pop ecoa ao fundo com suas letras sobre ter "tesão pela vida" por motivos como trago e drogas - alguma semelhança com o que assistiremos naqueles 90 minutos seguintes? Aliás, nesse sentido, é inacreditável a capacidade que a trilha, selecionada por Tristram Penna, tem de "traduzir", seja com com seus ruídos, sintetizadores, pegada roqueira e letras foderosas, as sensações a respeito daquilo que acompanhamos. É como se fosse um espelho, uma paisagem sonora, permanente, natural, orgânica, diegética. Mas sem ser.

Isso é algo que fica claro, por exemplo, nas emanações etéreas de Deep Blue Day de Brian Eno, que transformam o já mencionado mergulho no vaso em um devaneio transcendental em meio à bosta. No andamento da película, um encontro com artistas variados, como Ice MC, Pulp, Elastica, Lou Reed, Damon Albarn e Underworld - esta última emprestando a sua hipnótica Born Slippy (Nuxx) para uma inesquecível e borbulhante viagem em um clube local. É tudo como se fosse uma aula de música junto com um filme - e é uma verdadeira pena que David Bowie não tenha aceitado participar da trilha, em um filme que combinava tanto com o espírito daquilo que ele pregava (não da apologia ao uso de drogas em si, mas da vida encarada com um espírito mais iconoclasta, subversivo e que questionava o status quo). Uma revisão de Trainspotting faz com que percebamos que a obra de Danny Boyle - que recebeu uma bem-vinda continuação recentemente - não envelheceu nadinha. Assim como não envelhece jamais a crítica a hipocrisia dominante em nossa sociedade.


terça-feira, 4 de junho de 2019

Cinema - Anos 90 (Mid90s)

De: Jonah Hill. Com Sunny Suljic, Na-Kel Smith, Katherine Waterson e Lucas Hedges. Comédia dramática, EUA, 2018, 85 minutos.

Existe uma cena emblemática em Anos 90 (Mid90s) - a vigorosa estreia do ator Jonah Hill como diretor - que resume bem o sentimento de dúvida sobre tudo, ou mesmo as inseguranças, anseios e a necessidade de aceitação que rege os movimentos de qualquer pré-adolescente na faixa dos 12, 13 anos. Nela, o jovem Stevie (o ótimo Sunny Suljic) está PUTAÇO com a sua mãe, que, a seu ver, faz um papelão lhe repreendendo na frente de seus novos amigos - uma galera do skate mais velha do que ele, que lhe abraça, mesmo que essa amizade parece o mais improvável dos cenários. Após um acesso de fúria, o agregador Ray (Na-Kel Smith) senta ao seu lado e, com toda a calma do mundo lhe diz: "se você olhar bem no interior de algumas pessoas, você não trocaria as suas merdas, pelas merdas deles". Todos têm as suas próprias merdas, afinal. Ainda mais quando se é jovem e tudo parece uma grande e retumbante merda ao quadrado.

O que Ray está tentando dizer a Stevie é que o cenário pode não ser perfeito - e não é, já que o garoto tem uma jovem mãe distante (Katherine Waterson) e um irmão mais velho que lhe espanca, como forma aliviar as suas próprias frustrações (Lucas Hedges). Mas os outros amigos da dupla também tem problemas. Fourth Grade (Ryder McLaughlin) não tem onde cair morto de tão pobre. Já Fuckshit (Olan Prenatt) é tão ferrado que só pensa em qual será o próximo local das bebedeiras e em que festa se entupirá de drogas. O próprio Ray perdeu o irmão na juventude, em um acidente automobilístico besta. Sim, a vida é cheia de atribulações e a gente vai aprender na marra a se virar com ela - e no caso da moçada que assistimos nessa pérola do cinema alternativo, o que os une é o universo do skate, sua linguagem própria, suas roupas, apetrechos, gírias, músicas, etc. Stevie não é "aceito" em casa, mas será com essa improvável turma, seus chegados, aqueles que lhe compreenderão.


Nesse sentido, a obra é um verdadeiro achado sobre o amadurecimento - ainda que essa vertente, a dos coming-of-age, não seja exatamente uma novidade. Nas ruas, Stevie aprenderá a beber, a fumar, a andar de skate, a transar, a perceber que a vida não é fácil e ela vai lhe dar várias porradas, o tempo todo. É um filme nostálgico, mas não porque todo o mundo já andou de skate ou escutou Cypress Hill ou A Tribe Called Quest. É um filme que vasculhas as nossas memórias porque, em meio a coleção de discos bem organizada, as roupas largas e coloridas, a MTV, os walkmans e a cultura urbana de uma década efervescente, todo o mundo já se ferrou em algum momento. Caiu e depois levantou. Sacudiu a poeira e foi de novo. E de novo. E de novo. E por isso foi tão bonita a cena de Stevie aprendendo, sozinho no quintal de sua sua casa, uma manobra difícil no skate. Ou se empenhando em chegar no horário em que sua mãe lhe disse para voltar. Ou compreendendo que dizer um simples "obrigado" não lhe torna gay.

A película é um recorte bacana sobre as ruas, sobre a energia da vida, sobre vivências - e cada um terá a sua. A trilha sonora pode ser delicada - como no momento poético em que a turma anda de skate ao som de Dedicated To The One I Love do Mamas and The Papas -, ou mais visceral, como na sonoridade das pistas, com seus barulhos, skretchs e hip hop onipresente. A fotografia amarelada e granulada, o estilo de filmagem, os figurinos, o desenho de produção... tudo contribui para criar a atmosfera de um filme sobre lembranças até daquilo que não se viveu. Os diálogos podem divertir (a cena do grupo confrontando um policial é um deleite), mas nos fazer pensar, como no caso do trecho já citado no começo da resenha. E haverá ainda um episódio específico que modificará um tanto os rumos da história, aumentando a compreensão de que os amigos são a família que a gente escolhe - como diz aquele antigo chavão. E todos amadurecerão, também, a partir dele. A estreia de Hill, em um filme tão pequeno, é promissora. Que venham os próximos.

Nota: 8,0

segunda-feira, 3 de junho de 2019

Pérolas da Netflix - The Perfection

De: Richard Shepard. Com Allison Williams, Logan Browning e Steven Weber. Suspense / Drama, EUA, 2019, 90 minutos.

É preciso entrar na viagem para gostar do The Perfection. Aceitar que mais ou menos uma dúzia de "licenças poéticas" estão ali pelo bem da história - muitas delas surgindo no formato de plots twists inacreditáveis, alguns previsíveis, outros nem tanto. Aliás, acho que esse é o primeiro caso de Pérolas da Netflix em quase cinco anos de Picanha Cultural em que não se está diante de uma obra exatamente formidável ou inesquecível. É diferente. Excêntrico. Levemente trash. E por ser tudo isso, as pessoas precisam ver. Tirar suas conclusões. Gostar ou não gostar. Eu nem sei direito o que dizer. Aqueles noventa minutos passaram voando e, quando viu, o filme já estava no fim, com uma sequência final tão delirantemente surreal, um tipo de sonho onírico meio macabro, que eu só conseguia pensar: WTF!

A trama parece uma coisa e depois vira outra. Parece indicar um caminho, para depois fazer uma marcha a ré, retroceder e nos mostrar que, bem, pode ser que as coisas não eram bem assim como estávamos pensando. E, aqui, um ponto para a montagem e a trilha sonora, que conferem dinâmica a uma película que poderia ser mais convencional do que era. A narrativa se centra no universo da música e dos seus conservatórios que, com seus métodos ortodoxos, levam os alunos ao limite da exaustão, na busca da perfeição (daí o título em inglês). Uma dessas alunas era Charlotte (Allison Williams, vista em Corra! e com uma atuação soberba), uma violinista prodígio que teve de desistir de uma carreira promissora para cuidar da mãe, que tinha uma doença terminal. Quando a mulher morre, dez anos depois, ela reencontra, no Japão, o seu mentor Anton (Steven Weber) que, agora, possui uma nova pupila, de nome Lizzie (Logan Browning).


Bom, o retorno de Charlotte movimenta o conservatório. Ela se aproxima de Lizzie - uma das melhores musicistas do País, na atualidade - para descobrir mais tarde que, na juventude, Lizzie, ainda uma postulante a estudante de música, a idolatrava. As duas tem um caso de uma noite e resolvem viajar juntas. Mas na viagem tudo desanda porque Lizzie, com uma ressaca infernal, começa a passar mal após a ingestão de doses cavalares de ibuprofeno. Dentro de um ônibus ela vomita, tem tenebrosas dores pelo corpo e na cabeça, começa a ter alucinações a respeito de insetos povoando seu corpo, discute com passageiros do coletivo e é abandonada junto com Charlotte no meio do nada, pois há a suspeita de uma nova doença mortal que tem se alastrado pelo Oriente (como mostra uma cena envolvendo um idoso, ainda no começo do filme).

[SPOILER ALERT: só leia esse último parágrafo se você já tiver visto o filme] Na realidade é muita coisa chamando a atenção ao mesmo tempo e talvez mais tarde percebamos que Charlotte é que é a responsável por "medicar" Lizzie, de forma irresponsável. Mas com qual objetivo? Ciúmes? Rivalidade no meio da música? Busca da fama que, agora, ela não tem mais? O filme brinca com essas idéias fugindo do óbvio, misturando elementos de drama, de comédia, de filmes de terror B, de suspense, de romance e até de ficção científica para, no fim das contas, construir uma fábula sobre a importância da sororidade e sobre a necessidade imediata de enfrentar homens brancos, religiosos e da "família de bem", que na verdade não passam de abusadores de todos os tipos - sexuais, psicológicos, morais. A obra exagera nos seus acontecimentos, para chamar a atenção para o tema? Talvez sim. Mas eu não cobro realismo de um filme. Talvez verossimilhança. E pela importância da discussão que esse filme diferentão do Richard Shepard propõe, ele merece ser descoberto.