terça-feira, 31 de março de 2020

Festival Vale em Casa Programa Música Para a Quarentena

Inspirada em uma ideia surgida em Portugal, o Festival Vale em Casa promete movimentar a cena musical do Vale do Taquari, durante a quarentena. A partir da próxima quinta-feira (02/04), 16 artistas da região se apresentarão por meio de lives em seus perfis de Instagram, com o objetivo de transmitir esperança e a alegria por meio da música. O festival se estende até domingo (05/04) e ocorre sempre a partir das 20h, com apresentações de cerca de 50 minutos por artista. "A intenção é a de não apenas valorizar os artistas da região, mas também sensibilizar as pessoas para a importância de ficarem em casa durante a pandemia", salienta o músico Gustavo Kikee, um dos idealizadores do projeto. Todos os detalhes podem ser conhecidos no perfil @valeemcasa e quem quiser espalhar a ideia pode utilizar a hashtag #valeemcasa. Detalhe: o músico Henrique Oliveira, escritor aqui do Picanha, também está nessa, ou seja, temos um motivo a mais para conferir!


Pérolas da Netflix - O Décimo Homem (El Rey de Once)

De: Daniel Burman. Com Alan Sabbagh, Usher Bailka, Julieta Zylberberg e Elvira Onetto. Comédia / Drama, Argentina, 2015, 82 minutos.

"O que há de melhor no homem somente desabrocha quando se envolve em uma comunidade". Pode até parecer meio piegas a frase atribuída à Albert Einstein, mas ela se aplica direitinho a essa pequena joia do cinema argentino chamada O Décimo Homem (El Rey de Once). Por que às vezes a gente pode estar querendo dar algum sentido a nossa existência e somos pegos de surpresa quando esse "sentido" surge de onde menos se espera. E talvez esse seja o caso de Ariel (Alan Sabbagh), o protagonista da película dirigida por Daniel Burman (Ninho Vazio, Dois Irmãos). Ele é um economista bem sucedido que já há muitos anos reside em Nova York, tendo deixado para trás as suas origens judaicas. Com a desculpa de apresentar a sua namorada - uma bailarina cheia de compromissos - aos seus familiares, programa uma viagem para o bairro em que nasceu, em Buenos Aires.

A programação começa a dar errado quando a namorada é impedida de lhe acompanhar, por conta de sua agenda lotada. E tudo só piora quando Ariel chega ao local: com a impossibilidade de ser recebido por seu atarefado pai - um certo Usher (Usher Barilka), responsável por gerenciar a instituição de caridade do bairro -, se vê aos poucos absorvido por uma série de compromissos que, inicialmente, não lhe dizem respeito mas que, aos poucos, vão dando sentido à sua existência. À distância, sempre por telefone, o pai lhe incumbe de uma série de pequenas tarefas: levar um calçado para um excêntrico enfermo, cobrar do (furioso) açougueiro a entrega de carne, ocupar um apartamento não habitado... e será por meio desses pequenos instantes, somados a outros tantos que ocorrem na rotina barulhenta da entidade mantida pelo patriarca, que darão, ainda que por vias meio tortas, alguma cor à sua vida tão esquemática, de sujeito bem sucedido.


Parece um filme minúsculo, e pra falar a verdade é: mas que se torna grande ao valorizar os pequenos instantes, a nostalgia e a sensação de pertencimento a alguma coisa. Na memória afetiva de Ariel, os biscoitos com doce de leite que ele consumia, de forma peculiar, quando criança, serão relembrados em uma cena tocante em seu novo habitat. O absurdo do vazio das relações humanas será suplantado pela balbúrdia das pessoas humildes que rondam a instituição de caridade em busca de comida, roupas e outros suprimentos e pelas pessoas que ali trabalham e trafegam, como a belíssima judia ortodoxa Eva (Julieta Zylberberg), que ganhará importância na segunda metade da obra. É um filme que se passa em apenas uma semana, mas que transforma a vida de seu protagonista, que volta a beber da fonte do judaísmo, seus rituais e seus costumes, para encontrar em sua origem, a essência de algo parecia perdido.

Sim, os mais céticos talvez discordem daquilo que o filme se propõe: ser uma espécie de homenagem às tradições, as memórias e as atitudes boas - sem olhar para quem. Num misto de ingenuidade com pasmaceira, a vida de Ariel parece estar fora de controle, em alguns momentos, para no instante seguinte surgir ordenada, cartesiana, plena de sentido. É uma película que não sobrecarrega nos aspectos técnicos - a trilha sonora é quase nula, o desenho de produção é correto e nunca exagerado (a cidade é muito verdadeira), a fotografia não tem grandes trucagens -, mas que passa seu recado de forma simples, honesta, divertida. Não é o melhor filme argentino - aliás, talvez nem seja o melhor filme de Daniel Burman. Mas ao direcionar novamente a sua lente para o homem comum, que deve lidar com uma situação "nova" em sua vida (assim como ele já fizera no ótimo Abraço Partido), o diretor acerto em cheio. E entrega uma película maior do que sugere seus pouco mais de 80 minutos.



segunda-feira, 30 de março de 2020

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - O Despertar de Motti (Suiça)

De: Michael Steiner. Com Joel Basman, Noémie Schmidt, Inge Maux, Udo Samel e Lena Kalisch. Comédia / Drama, Suíca, 2018, 94 minutos.

Filmes recentes como Desobediência (2017) ou clássicos literários como Complexo de Portnoy, de Philip Roth, já utilizaram o conservadorismo das comunidades judaicas, suas tradições e hábitos - muitos deles antiquados - como matéria-prima. Em O Despertar de Motti (Wolkenbruchs Wunderliche Reise in Die Arme Einer Schickse), o representante da Suiça na última edição do Oscar, o tema volta à carga em uma comédia meio bobinha (mas divertida) que conta a dura história do jovem Motti (Joel Basman), que precisa fugir de sua mãe dominadora (a ótima Inge Maux) para tentar decidir os rumos de sua vida. Sim, por que para os judeus ortodoxos, os caminhos de um homem já estão traçados desde o berço: crescer, rezar, estudar, dar continuidade aos negócios do família, participar de um casamento arranjado (meio a contragosto) com uma outra mulher judia e procriar. Ter vários filhos, de preferência. Se dedicar a eles. Envelhecer. Morrer. Fim.

Bom, é evidente que ninguém gosta de nascer já sabendo exatamente como vai ser a sua vidinha e será ao ir para a faculdade que a persona "travada" de Motti vai começar a dar uma arejada. Especialmente após conhecer a jovem Laura (Noémie Schmidt), uma colega de aula não-judia (conhecida como shiksa no linguajar iídiche), que vai despertar aquela paixonite juvenil no rapaz. Só que o casamento com pessoas que não integram a religião judaica é terminantemente proibido pelos ortodoxos. Aliás, é um ato impuro. Só que Motti começa a ficar meio de saco cheio quando, próximo dos 20 anos de idade, percebe que a sua mãe decide tudo na sua vida: dos óculos que usará a roupa que vestirá. Aliás, fazer a barba, usar uma armação de óculos mais "ousada", serão pequenas subversões que mostrarão a nós, espectadores, que o jovem está mudando. E ao se distanciar das tradições anacrônicas da religião dos pais, estará estabelecido o conflito. O que renderá boas risadas.


Ok, não é uma comédia inesquecível que vá mudar o planeta. Mas tem seus momentos. A quebra da quarta parede, por exemplo, é uma clara homenagem ao judeu mais famoso do cinema (aliás, ele é citado como uma referência em um hilário debate em meio a um jantar de família) e que renderá instantes de pura graça, como na parte em que Motti narra o quão previsível é a vida de um jovem judeu. Os encontros frequentes com Michèle (Lena Kalisch), impedem o projeto de resvalar para o machismo, já que fica claro que os casamentos arranjados são um problema, independente de gênero. E a relação de pura cumplicidade entre o jovem protagonista e seu pai (Udo Samel) também rendem risadas, já que eles estabelecem uma espécie de aliança, que visa a confrontar a mãe dominadora. E há ainda uma outra personagem, vivida por Sunnyi Melles, que representa o ponto de equilíbrio: em seu leito de morte, ajudará Motti a tomar decisões a partir da leitura as cartas e de outras trucagens.

Ainda que eventualmente o projeto possa parecer meio esparso e até resvale em um ou outro momento para o melodrama barato, ele tem a sua lógica de funcionamento no batido clichê que diz que os filhos são "criados para o mundo" e que sua independência deve ser preservada - por mais que isso doa para algumas religiões mais fechadas. A ida de Motti a Tel Aviv, por exemplo, pretendia "curá-lo" de um mundo de perdição (imagina só um jovem beber, ir em festas e conhecer garotas?), mas na capital israelense ele descobre o contrário: que a vida é imprevisível e que é por isso que ela é bela. E a sua mãe terá que, definitivamente, lidar com isso. Com boa montagem e uma leveza contagiante, o filme serve direitinho para aplacar as nossas dores nesses tempos de corona: nos faz sorrir descompromissadamente e ainda brinca com a ironia de acompanharmos um protagonista que se liberta de uma situação incômoda. E que descobre, ainda em tempo, que nunca é bom se sentir preso.



quarta-feira, 25 de março de 2020

Pérolas da Netflix - O Poço (El Hoyo)

De: Galder Gaztelu-Urrutia. Com Ivan Massagué, Zorin Eguileor e Antonia San Juan. Ficção científica / Terror, 2020, 94 minutos.

Não deixa de ser uma baita ironia do destino uma obra com uma mensagem tão potente sobre o comportamento individualista e egoísta dos humanos, estar sendo lançada justamente no mês em que o coronavírus se torna uma pandemia mundial. A realidade é que não são necessários mais do que quinze minutos de exibição para que percebamos do que se tratam as metáforas embutidas em O Poço (El Hoyo). Em uma prisão vertical com cerca de 200 níveis, os detentos recebem o alimento de cima para baixo em uma espécie de plataforma que se movimenta entre os andares. Quanto mais em cima você estiver, mais fartura você terá a sua disposição. Mais abaixo e os tempos serão de escassez. Os presos, muitos deles acordando no local sem nem saber do que se trata, ficarão um mês em cada andar, aleatoriamente. Assim, terão muita ou pouca comida, de acordo com o nível em que estiverem. O que ampliará ou não as suas angústias.

Quando acorda na prisão, o protagonista Goreng (Ivan Massagué) está no 48º andar. Será a partir de seu "companheiro" de cela Trimagasi (Zorion Eguileor), que ele descobrirá, inicialmente, que sua situação não é tão desesperadora. Não sabe exatamente por que está ali - os flashbacks ajudam a dar alguma luz -, os recursos são poucos e a comida será consumida depois de 94 pessoas acima deles se fartarem. E assim que eles comerem a plataforma migra pro andar de baixo, que come seus restos. E a de baixo os restos da de baixo. E assim, sucessivamente. Bom, não é preciso ser nenhum gênio para saber que, quanto mais baixo for o andar, mais escasso será o alimento. E quando Goreng e Trimagasi que, inicialmente, até estabelecem uma excêntrica relação amistosa, acordam duzentos andares abaixo recebendo somente pratos, copos e talheres destroçados, eles percebem que apenas medidas extremas poderão fazê-los ter uma sobrevida.


Bom, trata-se de um filme com uma mensagem quase ESFREGADA em nossas caras: não seria melhor se, no mundo, dividíssemos a nossa comida, para que todos tivessem acesso a ela com qualidade e segurança? Por que algumas pessoas em m cenário de pandemia como o que estamos vivendo pensam apenas em si, enchendo carrinhos e carrinhos de supermercado ignorando as necessidades dos outros? E se o alimento como um todo fosse melhor aproveitado pra que ninguém passasse necessidade? Bom, não são respostas fáceis, especialmente quando Goreng - que tem um comportamento ambíguo - constata que as pessoas que estão nos extratos superiores estão pouco se lixando para aquelas que estão nos andares de baixo. Como mudar essa mentalidade? Como socializar? É o desafio de Goreng, que chega a ser chamado do "comunista" por Trimagasi a certa altura, por conta desse ideal subversivo de divisão da comida.

E fora as mensagens, trata-se de uma obra soturna, com ótimo desenho de produção - a gente acredita de fato que um ambiente assim poderia existir - e uma boa dose de terror estilo gore, que pode não ser totalmente recomendável para todos os estômagos. Há uma série de personagens secundários, de comportamentos esquisitos, que mantém o suspense em alta. E, ainda que o projeto pareça perder um pouco de fôlego em sua reta final, a primeira metade é a que se torna mais impactante pelo fato de descobrirmos junto do protagonista, qual é a verdadeira natureza daquele local. Foi o primeiro filme do diretor espanhol Galder Gaztelu-Urrutia e tem feito uma barulheira na internet, com teorias e mais teorias, especialmente sobre o final em aberto - aliás, alguns elementos fazem lembram o ótimo Cubo (1997), de Vincenzo Natali. Convido vocês a assistirem. E a comprarem menos papel higiênico na próxima vez que forem às compras da quarentena.




terça-feira, 24 de março de 2020

Novidades em Streaming - The Weeknd (Disco)

Os tempos de coronavírus são tão estranhos que, em meio à pandemia, o The Weeknd acaba de lançar o seu melhor disco. Como se juntasse todas as referências e experiências testadas anteriormente em uma coisa só, o artista parece alcançar a maturidade com After Hours. Hedonista, soturno, dançante, quente... o trabalho que dá sequência ao mediano Starboy (2016), impressiona pela facilidade com que trafega entre um estilo e outro, convidando o ouvinte para acalentar o coração com gemas pop como Hardest to Love, que mistura R&B e música romântica dos anos 80 com inacreditável sofisticação, ou mesmo In Your Eyes, que parece prontinha pra se expandir em um tipo de psicodelia à moda de um Michael Jackson. Mas absolutamente NADA se compara à Save Your Tears: com sua letra abusadamente melancólica (Você poderia ter me perguntado por que eu parti seu coração / Você poderia ter me dito que desabou / Mas você passou por mim como se eu não estivesse lá), produção limpíssima e sintetizador vibrante, é séria candidata a ser uma das músicas do ano, resumindo o espírito que rege o ótimo registro. Vale ouvir!





Novidades no Now/VOD - Turma da Mônica: Laços

De: Daniel Rezende. Com Kevin Vechiatto, Giulia Barreto, Gabriel Moreira, Rodrigo Santoro, Monica Iozzi e Paulo Vilhena. Comédia / Aventura, Brasil, 2019, 97 minutos.

Preciso dizer q vocês que é simplesmente impossível analisar Turma da Mônica: Laços como analiso qualquer outro filme. Por que bastou cinco minutos de projeção e eu, invadido pela nostalgia, quase fui as lágrimas. É sério. Eu cresci lendo os gibis da turminha criada por Maurício de Souza. Mais do que isso: eu aprendi a LER de posse dessas revistinhas. Com cinco anos de idade. É muito provável que, ainda criança, eu tenha me "tornado" jornalista por causa da Mônica, do Cebolinha, do Cascão, da Magali. Então ao ver o Cebolinha (Kevin Vechiatto) e Cascão (Gabriel Moreira) elaborando em live action um daqueles planos bobos para derrotar a Mônica (Giulia Barreto), mas que SEMPRE dão errado, só me restou sorrir (e me emocionar). Foi uma espécie de carinho à minha infância - o que, em tempos de Corona Vírus, parece ter o seu valor ampliado. Aliás, eu sequer tinha cogitado assistir à película de Daniel Rezende (Bingo: O Rei das Manhãs). E é impressionante o bem que me fez.

Sobre a trama, ela não poderia ser mais absurdamente simples: após o plano mal sucedido contra a Mônica, Cebolinha e a sua família tem o Floquinho roubado. Ele some, sem muita explicação. É claro que essa é a desculpa perfeita pra turminha se empenhar na busca, que envolverá a entrada em uma sinistra floresta, que lhes levará até o seu algoz. Em linhas gerais pode-se dizer que o filme tem duas partes bem definidas. A primeira, claramente, busca dar um afago nos fãs. Em meio a correria da Mônica atrás dos meninos, com o coelhinho Sansão em punho, ocorre um desfile de personagens secundários - Xaveco, Titi, Aninha, Jeremias, as irmãs Cremilda e Clotilde -, que servirão para que brinquemos de identificá-los. É também na primeira parte que um iluminado Maurício de Souza aparece em uma ponta, que contribui para o caráter quase idílico das homenagens.


Já na segunda parte, somos envolvidos na aventura em si, com a narrativa ficando levemente mais séria, conforme a turminha se aproxima do sequestrador do Floquinho. O que não impedirá que a jornada em si seja divertida, como comprova a maravilhosa sequência em que o Louco (Rodrigo Santoro) aparece, fazendo as suas maluquices, sempre acompanhado do Cebolinha. E, ainda que a intenção seja a de fazer rir, não deixa de haver no projeto uma série de mensagens, especialmente sobre a importância das amizades - o que se consolida a partir do instante em que todas as crianças percebem que precisarão trabalhar juntas para derrotar o inimigo. E além dessas duas partes e que acompanhamos os meninos, há ainda um arco dramático paralelo em que os pais, preocupados, se ocupam das buscas das crianças que estão desaparecidas - e não deixa de ser legal ver atores como Mônica Iozzi interpretando a dona Luíza (a mãe da Mônica) e Paulo Vilhena e Fafá Rennó encarnando o senhor e a senhora Cebola.

Em relação à parte técnica, o caprichado desenho de produção se ocupa em dar ao fictício bairro do Limoeiro todas as cores que lhe são características nos quadrinhos, o mesmo valendo para os figurinos. No mais, outras questões que se poderiam se tornar meio difíceis de digerir no live action, se tornam motivo para ótimas piadas - como no momento em que Cebolinha censura os demais por sempre perderem os seus pares de tênis, ou no instante em que uma pessoa pergunta algo sobre a cor do cachorro que todos procuram: "mas, ele é verde?" Sim, eu sei que a trama é boba, sim, eu sei que os meninos não são os melhores atores do mundo (o Cebolinha às vezes até esquece de não falar o erre), mas o caso é que senti completamente envolvido. Tocado. E já estou ansioso pela continuação Turma da Mônica: Lições que está, inicialmente, programada para o final deste ano. Na real eu tinha meio que esquecido como era apaixonado por essa turminha. Redescobri agora. E valeu a pena.

Nota: 8,0


segunda-feira, 23 de março de 2020

Grandes Filmes Nacionais - O Auto da Compadecida

De: Guel Arraes. Com Matheus Nachtergaele, Selton Mello, Denise Fraga, Fernanda Montenegro, Diogo Vilela, Lima Duarte, Rogério Cardoso e Paulo Goulart. Comédia, Brasil, 2020, 104 minutos.

É muito provável que vocês já tenham assistido uma das tantas adaptações de O Auto da Compadecida. Talvez até mais de uma - pro teatro, pra TV, pro cinema. Muitos de vocês devem ter lido o livro. Aliás, essa é a legítima obra que dispensa comentários. Mas então por que falar do trabalho mais importante do Ariano Suassuna? Bom, no curso normal dos posts do Picanha ele já seria naturalmente reverenciado em 2020 já que o filme dirigido por Guel Arraes. tão carinhosamente recordado pelo público, completa 20 anos de seu lançamento em setembro. Sim, vinte, acredite! Mas o caso é que resolvemos antecipar um pouco a homenagem, afinal de contas, em tempos de Coronavírus, acho que é bacana revisar uma obra que dá valor as coisas simples, que é divertidamente malandra, que é iconoclasta, provocativa, regionalista. Que nos faz rir do absurdo, que nos faz crer numa espécie de surrealismo à brasileira. Enfim, em tempos de caras fechadas e distanciamento social, O Auto da Compadecida nos faz o favor de lembrar que ainda temos motivos para sorrir. Aliás, teremos muitos motivos para sorrir, ainda!

Sobre o filme em si, Guel Arraes reuniu um dream team de atores, para contar a história de João Grilo (Matheus Nachtergaele) e Chicó (Selton Mello), dois sertanejos pobres, que adotam a brejeirice como estilo de vida. Chicó é um pouco mais medroso, sempre desconfiado dos planos de João Grilo, que é a "cabeça pensante" da dupla e que armará uma série de estratagemas para tentar se dar bem - especialmente em um cenário de aridez e de indigência. Aliás, o comportamento errático da dupla já é estabelecido nas primeiras sequências quando enganam a dona Dora (Denise Fraga), esposa do padeiro Eurico (Diogo Vilela) - que são seus patrões -, para tentar comer a comida do cachorro (que é mais caprichada que a deles). Aliás, em meio a maracutaia todo o bichinho morre, já abrindo espaço para a próxima maracutaia: tentar convencer o padre local (o falecido e sempre ótimo Rogério Cardoso) a fazer o enterro. O que será obtido com uma boa dose de ofertas financeiras, obtidas de maneira escusas.



E aqui está, a meu ver uma das marcas de O Auto da Compadecida: a de fazer a crítica social na base do deboche, em suas entrelinhas, sem um panfletarismo escancarado, que poderia afastar o espectador médio. E, nesse sentido, são vários os exemplos até já comentados: o do bife do cachorro do patrão ser melhor do que a comida do empregado, o das estreitas relações (e interesses) da Igreja com as classes mais abastadas, que são melhor tratadas - aliás, a cena em que Lima Duarte muda de ideia sobre o enterro do cãozinho ao descobrir quem, supostamente, eram seus donos, é uma das melhores -, a suposta necessidade de o homem ser sempre um "machão". E há ainda, claro, o papel da mulher na sociedade - com a ruptura do caráter de submissão sendo representado pelo papel de Rosinha (Virgínia Cavendish), que ajuda João Grilo e Chicó a enganar o seu pai, o fazendeiro Major Moraes (Paulo Goulart, que está ÓTIMO), para tentar casar com Chicó.

Para que tudo flua com mais graça, Arraes emprega um estilo dinâmico de montagem com cortes secos, elipses, idas e vindas. Muitas câmeras em close que ressaltam os dentes podres e olhar enviezado de João Grilo e a timidez desconsolada, misturada com medo permanente de Chicó. Com desenho de produção bastante naturalista e figurino eventualmente colorido, a obra ainda envereda para um faroeste "tupiniquim" em seu terço final, quando o bando do cangaceiro Severino (Marco Nanini), invade a cidadela, toca o terror e mata um monte de gente - incluindo boa parte dos protagonistas. Aliás, o próprio Severino morrerá, em mais uma arapuca de João Grilo (lembram da gaita de boca?). E será no outro plano que a Compadecida em pessoa (Fernanda Montenegro e quem mais seria, né?) aparecerá para fazer uma espécie de julgamento dos justos, que também contará com a mediação do diabão (Luis Melo) e de Jesus Cristo (Maurício Gonçalves).


Sexagésimo terceiro melhor filme brasileiro da história, de acordo com lista divulgada em 2016 pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) - o que para um filme de comédia é certamente um feito -, a película ainda é marcada pelos diálogos rasgantes, recheados por um regionalismo de raiz. É o caso, por exexplo, do instante em que um dos capangas do bando de Severino afirma que matar padre da azar, ao que o religioso responde: "especialmente para o padre". E ainda que a marca da obra de Ariano Suassuna seja a graça, jamais devemos esquecer que trata-se de um trabalho pontuado por críticas sociais bem construídas, de pessoas lutando pra sobreviver em meio as dificuldades e que, de quebra, ainda traz valiosas lições sobre perdão, amor, importância da amizade e religiosidade. Um dos melhores filmes de nossa história, sem dúvida.



sexta-feira, 20 de março de 2020

Picanha.doc - Apollo 11 (Apollo 11)

De: Todd Douglas Miller. Com Neil Armstrong e Buzz Aldrin. Documentário, EUA, 2019, 92 minutos.

Nos Estados Unidos da Era Trump, não deixa de ser perfeitamente compreensível o fato deste documentário estar sendo tão falado - aliás, era um dos favoritos ao Oscar mas perdeu força no final, sequer chegando entre os indicados. Apollo 11 (Apollo 11), afinal de contas, é uma grande celebração do evento ocorrido há 50 anos e que levou, em uma missão muito bem sucedida, três astronautas para a lua. E o que ele tem de diferente de tantos outros filmes do tipo já feitos? Bom, o principal é que o filme se utiliza, em sua totalidade, de cenas de arquivo do antes, do durante e do depois, sem muita enrolação. E serão esses pequenos recortes que contarão a história. Não há narrações em off, grandes explicações científicas de cada um dos detalhes da expedição, ou entrevistas com especialistas (políticos, jornalistas, personalidades). Há apenas Neil Armstrong, Buzz Aldrin e Michael Collins indo para a sua jornada rumo ao desconhecido. Como teria de fato acontecido.

Patriótica ou não - e é inevitável perceber esse movimento, seja nas bandeirinhas americanas que celebram seus "heróis", seja nas palavras do presidente Richard Nixon direcionadas à tripulação, seja naquelas salas da Nasa povoadas por homens brancos, héteros, orgulhosos de sua nação e do seu feito -, mas o caso é que o documentário tem sua relevância, sendo riquíssimo no que diz respeito a material de arquivo. Com exceção de um ou outro gráfico de apoio que nos ajuda a nos situarmos em relação à narrativa, o filme todo é um condensado que inicia nas salas imponentes da Nasa, passando para a parte interna dos módulos da Apollo 11 e alternando entre um e outro ambiente. Como consequência da magnitude do fato, a obra também se ocupa de mostrar a mobilização dos americanos, que se reuniram aos milhares, junto a estação em que fica a Plataforma Kennedy - local do lançamento.


A despeito de ser um documentário sobre um tema que tem lá sua densidade - há uma série de siglas que não entendemos, de comandos técnicos nem sempre fáceis de captar -, a película do diretor Todd Douglas Miller se desenrola sem complicações. Há espaço para instantes clássicos - como é o caso da famosa frase dita por Armstrong quando se preparava para colocar o pé na lua ("um pequeno passo para o homem, mas um grande passo para a humanidade") e para outros recortes pequenos, bem humorados, íntimos, especialmente do interior da nave. Mesmo sabendo do sucesso da missão, não deixa de haver uma genuína sensação de tensão em algumas sequências - em especial, destaco o momento em que o módulo lunar Eagle quase fica sem gasolina, no momento em que estava prestes a pousar. É um alívio quando esta etapa é bem sucedida!

Teorias conspiratórias gostam de afirmar que a missão Apollo 11 foi um filme feito por Stanley Kubrick, e eu não vou negar que me divirto com esta possibilidade (e é provável que os mais ligados encontrem indícios disso nas imagens de arquivo apresentadas). Por outro lado, os terraplanistas apaixonados pelos States provavelmente entrarão em parafuso ao perceberem que, vejam só, a Terra é realmente redonda! Independente da corrente em que cada um de nós acredita, o fato é que a exploração do desconhecido sempre nos causou grande fascinação - por mais que, no caso das expedições feitas nos anos 60, o objetivo fosse muito mais exibir poderio bélico aos "inimigos" russos, do que trazer para casa algum resultado prático, que pudesse encadear algum encaminhamento mais relevante. De qualquer maneira, nos restam os filmes. E este documentário tem seu valor.

quinta-feira, 19 de março de 2020

Curta Um Curta - Explicando (A Próxima Pandemia)

Sim, a gente já sabe que vocês não aguentam mais o assunto do vírus - e prometemos que esta será uma das poucas vezes em que sugeriremos algo relacionado ao tema. Mas o caso é que o episódio A Próxima Pandemia, que integra a série Explicando da Netflix, chega a ser quase profético. Em um tempo em que ainda não se falava de Coronavírus, o pequeno documentário nos alerta para um dado assustador: o de que convivemos com mais de 1,5 milhões de tipos de vírus no mundo todo, e que mais de 99% deles são completamente desconhecidos. E que não há vacinas. E que não saberemos lidar! Voltando ao passado, o filme de apenas 20 minutos mostra como em um mundo tecnológico como o nosso, as pandemias se espalham rapidamente, com a falta de informação contribuindo para que houvessem milhares de mortes em surtos como o do SARS - ocorrido entre 2002 e 2003. Mas há uma lição nisso tudo, e o episódio - narrado pelo ator J.K. Simmons e com opiniões de lideranças mundias como Bill Gates - nos lembra algo que é quase óbvio: quanto mais pesquisa e conhecimento na área da saúde, melhor. Em tempo: Explicando é uma série muito bacana da Netflix e vale ser descoberta!




Pérolas da Netflix - Whisky (Whisky)

De: Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll. Com Andrés Pazos, Mirella Pascual e Jorge Bolani. Comédia dramática, Uruguai, 2004, 94 minutos.

Num primeiro momento Whisky (Whisky) pode parecer um filme meio "torto". Talvez até indefinido, ainda que alguns de seus temas - importância das relações humanas, dar sentido a vida a partir de experiências (ainda que pequenas) satisfatórias -, saltem aos olhos. Como filme uruguaio, a obra dos diretores Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll vai ao encontro da América Latina raiz, lançando um olhar de ternura para os seus extratos mais vulneráveis. Na busca pela felicidade em meio a uma rotina ordinária de trabalho e pouco movimento, valerá qualquer coisa que modifique algo na existência daqueles que assistimos. Qualquer fiapo que se constitua em algum tipo de deslocamento de tempo, de espaço, de quebra de lógica. O que, no caso de Jacobo (Andrés Pazos) e Marta (Mirella Pascual) - que são patrão e empregada - acontecerá a partir de uma visita do irmão de Jacobo, um sujeito de nome Herman (Jorge Bolani).

Jacobo é um senhor introspectivo de 60 anos, que vive sozinho desde a morte de sua mãe. Ele é dono de uma fabriqueta de meias meio decadente - daquelas que funcionam em uma espécie de garagem de bairro. Na sua rotina, tudo SEMPRE igual. Marta, uma supervisora do local - há ainda mais duas funcionárias -, chega, sobe as escadas, coloca o avental, lhe faz o chá, enquanto Jacobo luta com uma persiana velha e emperrada, que lhe impede qualquer entrada de luz exterior, no ambiente. Aliás, a fábrica em si é o retrato da melancolia e da mesmice que ronda a vida daqueles que assistimos - e palmas para o desenho de produção, que torna as paredes amareladas, os espaços macambúzios e desgastados pelo tempo e as teias de aranha, o cenário perfeito para a exemplificação da claustrofobia. Aliás, não é só o desenho de produção que merece aplausos: a edição de som, com o barulho das máquinas em operação somado com o zumbido dos refletores, compõem um panorama externamente caótico, quase opressor, mas que dialoga com a bagunça interior daquelas figuras que apenas existem, em uma perspectiva taciturna.


Bom, como já dito a chegada do irmão modificará um tanto as coisas. Talvez por vergonha ou por algum outro motivo que fica exatamente claro, Jacobo pedirá a Marta que finja ser sua esposa, durante a estada de Herman. Aliás, parece haver algum tipo de ressentimento no ar entre os irmãos - e que aparentemente tem a ver com o fato de que Herman já está há 20 anos sem viajar a Montevidéo (ele atualmente mora no Brasil). Em terras uruguaias, participará da matzeiva, um tipo de cerimônia judaica para a colocação da pedra no túmulo de sua mãe. Mas essa será apenas a desculpa para que ressentimentos aflorem de forma sutil: muito mais bem sucedido que Jacobo, Herman também tem uma fábrica de meias e resolve aproveitar a viagem para convidar o casal "improvisado" para um passeio a praia. Herman é um bom vivant: gosta de bom vinho, de boa gastronomia, passeios. Tem boa conversa, é mais extrovertido. E despertará o interesse de Marta, que verá sua existência transformada pela presença daquele sujeito tão afável..

E é assim que a gente percebe que Whisky também é uma obra certeira na abordagem de sentimentos, especialmente os guardados, os não revelados (e não vividos). E isto se tornará ainda maior, quando constatarmos que Jacobo tem ciúme de Herman não apenas pelo fato de ele ser mais interessante do que o irmão, mas TAMBÉM por causa de Marta. E a construção desse arco dramático não poderia ser mais primorosa - seja na cumplicidade do toque entre as mãos durante uma partida de hóquei sobre a mesa, seja no "carinho" dado pela própria Marta, que transforma a casa decrépita de Jacobo em um espaço minimamente habitável. Enfim, não é obra para todos os paladares, ainda que o tema do amor, das relações e das trocas seja caro a todos nós - e pensar sobre isso em tempos de Corona se torna ainda maior. Mas quem se aventurar pelas curvas dessa pequena joia do cinema sulamericano, certamente concluirá que nem sempre é fácil amar. E que devemos ter resignação para seguir em frente.


terça-feira, 17 de março de 2020

Novidades em Streaming - Boniface (Disco)

Em tempos amargos como os que vivemos - de pandemia, de avanço de uma agenda reacionária, de escassez de recursos e de paranoia - é sempre bom descobrir um artista novo que ainda nos faça sorrir e é esse o caso do Boniface. Seu homônimo álbum de estreia é uma daquelas belezuras pop que carregam nos sintetizadores, nas tintas otimistas e nos refrões pra cantar junto. Lembrando uma variação do The Killers misturado com o M83, o artista - cujo nome é Micah Visser -, injeta uma boa dose de personalidade naquilo que a gente já viu muita gente fazer: uma coleção de músicas dançantes, líricas, catárticas. Nas letras se sobressai o tema geral do abandono da vida frugal nas pequenas cidades para a busca por novos horizontes em outros espaços, que representarão maturidade, crescimento - como comprova a ótima Stay Home (I dream about you in that old home / It's been forever since I forgot you / They say that Jesus has a plan for us / But it seems sloppy to me), uma das prováveis melhores músicas do ano. Vale demais.



Novidades no Now/VOD - A Camareira (La Camarista)

De: Lila Aviles. Com Gabriela Cartol, Teresa Sanchez e Agustina Quinci. Drama, México, 2019, 104 minutos.

Existe um tipo de opressão, especialmente direcionada à massa trabalhadora, que é demonstrada de forma soberba (e sutil) no ótimo A Camareira (La Camarista) - obra que foi a enviada pelo México para concorrer na categoria Filme em Língua Estrangeira no Oscar desse ano. Esse tipo de abuso é muito mais estrutural, está presente no tecido social, o que faz com que muitas pessoas vivam uma vida de invisibilidade. Aliás, pior: na intenção de obter o mínimo para o atendimento de suas necessidades mais básicas, abdicam permanentemente de suas vidas pessoais, abrindo mão de seus sonhos, anseios e desejos para existir, em muitos casos, a existência do "outro". E, nesse sentido, não poderia haver ambiente mais adequado para o desenvolvimento da ação da película de estreia da realizadora Lila Aviles, do que um hotel de luxo de uma grande metrópole.

É esse hotel de luxo que nos permitirá nos ver confrontados com tantos contrastes - seja ele nos figurinos que, no caso das camareiras, são sempre o uniforme cinza e sem vida fornecido pela empresa, seja na própria rotina das pessoas que ali trafegam, em si. E, nesse sentido, talvez não haja um exemplo mais ostensivo dessas diferenças, como no instante em que a camareira Eve (Gabriela Cartol, em excelente intepretação) é chamada por uma turista argentina da classe mais abastada (alta, magra, de pele e cabelos bem cuidados), para ficar por dois minutos em seu quarto, no hotel, cuidando de seu bebê de dois meses, enquanto ela toma uma ducha. Eve atenderá o pedido da mulher, por mais que esteja atarefada, tendo um andar INTEIRO do hotel para limpar. Eve amparará o bebê da mulher. Eve, que há semanas, talvez meses, não vê o próprio filho de quatro anos, por que está na grande cidade, trabalhando num emprego de que ela não gosta, mas se empenhando em juntar as economias, que talvez lhes permitam um futuro melhor. Ah, detalhe: o pai da criança? Aparentemente não existe.


O encontro fortuito de Eve com a mulher argentina será uma das tantas interações que ocorrerão entre ela e os hóspedes do hotel, em pouco mais de uma hora e meia de filme. Hóspedes naturalmente mal educados, monossilábicos, que se consideram pessoas moralmente superioras (e quase nunca são) pelo simples fato de terem mais dinheiro do que a camareira. Que terão um eventual ar condescendente por meio de diálogos hipocritamente pensados para lhes conferir um ar de generosidade burguesa, de filantropia à moda rotariana (como no caso em que a mesma mulher argentina oferece a Eve um emprego em seu País, como se isto representasse uma revolução nas relações trabalhistas ou mesmo entre pobres e ricos). Nos corredores bem acabados do hotel, Eve se deparará o tempo todo com o abismo que existe entre sua existência e a daquelas pessoas, que mal lhes direcionam um bom dia, que estão sendo confortavelmente individualistas em seus pensamentos, enquanto aquela camareira lhes invade seus espaços, suas vidas, seus hábitos.

Trata-se de um filme inteligente pelo simples fato de, por meio de seu microcosmo (um hotel de luxo), estabelecer, metaforicamente, um recorte maior da sociedade. As tentativas de crescimento interno na própria empresa - sempre frustradas -, a busca pelo ensino ou pela leitura tardia que pudessem representar algum tipo de redenção, ou mesmo a persistência em conseguir um vestido vermelho que foi esquecido por um hóspede e que está no setor de achados e perdidos, nada mais são do que os estratos mais vulneráveis da sociedade lutando para sair da invisibilidade, tentando, em meio a selvageria do capital, algum reconhecimento. E talvez não seja por acaso que seja tão representativo de algum tipo de libertação pessoal, o instante em que Eve invade o tão cobiçado 42º andar para, ali, reconhecer enfim a distância que suas mãos calejadas se encontram de tudo - o que não será resolvido por um simples creme, evidentemente. É uma obra que tem uma fluência um pouco mais lenta, uma sutileza que berra e que nos lembra o tempo todo que vivemos em uma sociedade em que poucos têm muito e que muitos têm pouco. Vale conhecer.

Nota: 8,5

segunda-feira, 16 de março de 2020

Novidades no Now/VOD - A Vida Invisível de Eurídice Gusmão

De: Karim Aïnouz. Com Carol Duarte, Julia Stockler, Gregorio Duvivier, Fernanda Montenegro e Maria Manoella. Drama, Brasil / Alemanha, 2019, 149 minutos.

Existe uma frase que está no prólogo do livro de Martha Batalha, no qual o filme dirigido por Karim Aïnouz (Madame Satã, O Céu de Suely) se baseia, que resume bem o espírito de A Vida Invisível de Eurídice Gusmão: "[...] o mais real deste livro está na vida das suas protagonistas, Eurídice e Guida. Elas ainda podem ser vistas por aí. Aparecem nas festas de Natal, onde passam a maior parte do tempo sentadas, com o guardanapinho nas mãos. São as primeiras a chegar e as primeiras a ir embora. Comentam sobre os temperos do bacalhau, sobre os calores ou chuvas do dia ou sobre se o marido vai bem e se a sobrinha-neta já tem namorado. Eurídice e Guida foram baseadas na vida das minhas, e das suas avós". Bom, é o condensado de uma vidinha simplória que resultará em uma terceira idade de frustrações, de sonhos jamais alcançados e de anseios engavetados. São mães, tias e avós que se tornaram invisíveis em uma sociedade patriarcal e altamente machista, com ambas as obras tentando lançar um olhar de ternura para estas mulheres - num contexto que deveria ter ficado no passado, mas que de vez em quando insiste em permanecer.

E na história de Eurídice e Guida isso fica muito claro, afinal de contas, no Rio de Janeiro dos anos 50 o destino das mulheres já estava traçado: casar, ser mãe, cuidar da casa. Deixar para o marido as provisões, mantendo o lar organizado. Trabalhar? Nada. Estudar? Coisa de mulher perdida. E é assim que a gente vai ver como os sonhos e objetivos de vida das irmãs vão sendo despedaçados aos poucos, especialmente neste tipo de tecido social que estabelece o homem como o sujeito forte e a mulher como o sexo frágil. E é por isso que quando Guida (Julia Stockler) resolve fugir de casa para se casar em segredo com um grego de nome Yorgos, o pai Manuel (António Fonseca) lhe renega, afinal de contas não cumprir com as tradições, com as convenções típicas de uma família de bem, implicaria em uma "mancha" para os Gusmão. E tudo piora quando ela retorna anos depois para a casa dos pais, abandonada pelo marido (e pelas promessas de um futuro feliz) e, ainda por cima, grávida. Um conflito que envolve reputações destruídas (ao menos é o que pensam os homens) e mulheres fragilizadas. Aliás, como sempre foi. Segue sendo até hoje.


Já a situação de Eurídice (Carol Duarte) não é diferente: quando a irmã foge de casa, ela se sente abandonada por ela, indo encontrar refúgio em um casamento meio arranjado com o funcionário dos correios Antenor (Gregorio Duvivier) - um sujeito meio pateta, mas que representa um futuro de segurança e estabilidade financeira (que era o que mais interessava na época). Eurídice claramente não ama Antenor com todas as forças. Aliás, o que ela ama mesmo é tocar piano. Gosta demais disso. E, se no livro a oportunidade de tocar com Heitor Villa-Lobos em pessoa é abandonada já na origem, com a jovem tendo embates homéricos com seus pais, no filme esse conflito migra para mais adiante: Eurídice já está casada quando faz uma espécie de teste em um conservatório local. Ela tira o primeiro lugar. Está eufórica para contar para o marido e para o pai a novidade! A euforia se vai embora quando ela conta. "Quem cuidará da casa, da filha?", argumenta Antenor. "Quer que eu passe o espanador?", debocha, fazendo Eurídice retornar efetivamente para a invisibilidade. Para uma vida que ela não deseja. Que ela nunca desejou. Ela nem queria ser mãe. Foi. Por que era o que se esperava das mulheres naquela época. Que respeitassem as convenções sociais. Os patriarcas das famílias.

E se no livro a separação das irmãs é amenizada com um retorno meio inesperado, com Guida contando todos os seus percalços após ter sido expulsa da casa dos pais - indo morar com a prostituta Filomena (Bárbara Rodrigues Santos) e ela mesma se prostituindo para garantir remédios para a própria Filó e para seu filho Chico -, no filme a distância entre as duas é utilizada como um recurso narrativo que funciona, pelo fato de nos importarmos com elas e desejarmos que elas se encontrem em algum momento. Afastada da irmã, Guida lhe envia uma dúzia de cartas que jamais chegam ao seu destino. Pior, uma mentira dita pelo pai faz com que ela acredite que a irmã mora em Viena e que, lá, estuda música. Se por um lado Guida fica feliz com as decisões tomadas pela irmã (que jamais se concretizariam), por outro lhe angustia a distância, que dificilmente permitirá um reencontro. E é nesse ínterim que ambas lutam por alguma coisa em suas vidas. Duas vidas de infelicidades, jamais desejadas, de lutas, de pobreza (financeira e de espírito) e de doenças. De invisibilidade e de nenhum suporte dos homens que lhes rodeiam - que enxergam nelas apenas um amontoado de carnes, ossos, peitos, bundas e coxas que lhes servirão para dar prazer. Mulheres sem escolhas. Senhorinhas do guardanapinho no colo.


Comparando uma vez mais o livro e o filme há muitas escolhas que os diferenciam, bem como personagens abandonados e arcos dramáticos inteiros suprimidos - e eu até não considero isso um problema, já que são duas linguagens completamente diferentes. Sobre o estilo adotado, o material escrito pode até ter um senso de humor, mas esse surge de forma mais dura, menos escancarada, ao passo que no filme, em alguns casos, se sobressai  deboche, o absurdo (como é o caso da primeira cena de sexo entre Antenor e Eurídice, tão patética quanto constrangedora). Sobre as interpretações há um esforço coletivo na aposta em sutilezas, olhares, dito pelo não dito, rancores e tristezas transmitidos por meio de silêncios ou pequenas inflexões na expressão - e, vamos combinar, que a Julia Stockler está espetacular. Já a Fernanda Montenegro aparece menos d dez minutos no filme, mas quando ela aparece... vale a pena preparar os lenços. Por fim, algumas pessoas reclamaram do tamanho do filme - e talvez eu até concorde, diante das opções narrativas. Mas com um ótimo desenho de produção, figurinos e um Prêmio do Juri no Festival de Cannes nas costas, só posso dizer que, por tudo o que representa, A Vida Invisível de Eurídice Gusmão é um filmaço que atesta a qualidade de nossa produção atual.

Nota: 9,0

sexta-feira, 13 de março de 2020

Pérolas da Netflix - Entre Realidades (Horse Girl)

De: Jeff Baena. Com Alison Brie, Molly Shanon, Debbie Ryan, John Ortiz e Paul Reiser. Drama / Suspense, EUA, 2019, 104 minutos.

Existe uma lógica aqui nas Pérolas da Netflix, que faz com que a gente geralmente indique algum filme BOM que esteja lá meio escondido (ou perdido) na plataforma de streaming. Não chega a ser uma exigência, mas tradicionalmente tem sido assim, sendo a equação estabelecida a do filme alternativo ou de arte, quase nunca um blockbuster, talvez até eventualmente em língua estrangeira, que merece ser descoberto. Pois ocorre que no decorrer de Entre Realidades (Horse Girl), eu fiquei o tempo todo na dúvida se esta era uma obra que deveria figurar nesse quadro. Ela tem qualidade? É diferente? Desperta a curiosidade? Bom, eu confesso que esse é um caso em que eu adoraria que vocês assistissem e me dissessem alguma coisa depois. Especialmente pelo fato de este ser um filme com múltiplas possibilidades de interpretação, muito mais sensorial do que lógico, cheio de idas e vindas e estranhezas e esquisitices. E de lugares que nem sempre chegamos.

Na trama somos apresentados a jovem desajustada Sarah (Alison Brie). Com uma vida social pouquíssimo movimentada, divide seus dias entre o local em que trabalha - uma loja de artesanatos, cuja especialidade parece ser a venda de tecidos -, um haras em que visita uma égua por quem nutre certo carinho (!), as aulas de zumba e a sua minúscula sala de estar, onde ocupa suas noites maratonando uma série de gosto duvidoso chamada Purgatório. Um combo que torna a existência de uma mulher na faixa dos 35 anos, não menos do que melancólica. As coisas mudam um pouco de figura no dia de seu aniversário, quando Nikki (Debby Ryan, famosa pela série Jessie), resolve chamar um amigo de seu namorado para tornar a festa minimamente mais movimentada. A noite rende, as conversas fluem, mas Sarah parece ter algum tipo de condição psicológica que faz com que ela sonhe com coisas esquisitas, que influenciarão na vida real.


Bom, sonhar com coisas esquisitas todos nós sonhamos. Só que o sonho de Sarah costuma ser num quarto branco, onde participam outras duas pessoas que ela não consegue enxergar direito. Quando acorda, pode estar em algum outro lugar bem diferente: na rua, na sala de sua casa, no trabalho. E o pior, junto com o sonho a noção de tempo parece ser embaralhada: estamos no passado? No futuro? Por que o relógio parece não ter andado? Por que eu estava aqui tomando banho e, agora... estou aqui pelada, no meu ambiente de trabalho? A confusão que se estabelece na mente da protagonista, faz com que ela elabore uma espécie de teoria conspiratória governamental, em que ela seria a própria avó ressuscitada (um clone), o que envolveria ainda abduções alienígenas, realidades paralelas e alguma dose de esquizofrenia. O candidato a namorado? Baterá em retirada, conforme a loucura for aumentando.

Não é um filme fácil, mas inegavelmente é esforçado. Nos faz pensar o tempo sobre o que estamos vendo, misturando algumas boas doses de suspense, de drama e de humor involuntário. A rilha sonora é opressiva e o desenho de produção é enigmático, com trocas de cenário excêntrica e uso das cores de forma orgânica e expositiva (com o laranja, que representa a criatividade, o fascínio, o estimulo e o entusiasmo, tendo destaque). E há ainda Alison Brie, que se despe de qualquer vaidade para surgir como uma garota incomum, meio antissocial e que se empenhará com todas as forças para encontrar algum sentido em suas alucinações. Sim, há pontas soltas. Sim, há uma boa dose de respostas não dadas e de subtramas abandonadas, ou que parecem abandonadas, no decorrer. Mas é uma narrativa curiosa, que nos faz ficar naquele clima de "o que foi que eu vi, aqui?". O que foi que vocês viram? Eu, não sei. Mas acho que essa pérola ainda pode ser descoberta.

quarta-feira, 11 de março de 2020

Picanha em Série - The Morning Show (1ª Temporada)

De: David Frankel, Kevin Bray, Linn Shelton, Michelle MacLaren, Mimi Leder, Roxann Dawson e Tucker Gates. Com Jennifer Aniston, Reese Whitersponn, Steve Carell, Billy Cudrup, Mark Duplass e Marcia Gay Harden. Drama, EUA, 2019, 585 minutos.

Lançada no final do ano pela Apple TV+ - o que a fez entrar oficialmente na "briga" pela atenção entre os serviços de streaming -, a primeira temporada de The Morning Show já está justificando o falatório. Primeiro, tem um tema mais do que atual: o dos casos de má conduta sexual em grandes corporações e que, muitas vezes, ainda são acobertados por empresários que não querem ver a imagem de seus negócios comprometida. Depois, tem um grande elenco, de nomes como Jennifer Aniston, Reese Whiterspoon, Steve Carell, Billy Crudup e Marcia Gay Harden, entre outros. E pra finalizar tem uma história que oxigena e atualiza o movimento #metoo, contando ainda com ótimos diálogos, roteiro inteligente e sinuoso e muita metalinguagem - isso sem falar no já tradicional embate entre o conservador e o progressista, o moderno e o arcaico. É o programa completo que, de quebra, ainda desnuda as entranhas dessa verdadeira fábrica de ídolos e estrelas que é a indústria do entretenimento.

Na trama, Steve Carell é Mitch Kessler, famoso apresentador de um programa matinal da TV, que é afastado da emissora após um episódio de assédio sexual o envolvendo, vir a tona. Enquanto a emissora se empenha em tentar buscar, imediatamente, um substituto, a jornalista Alex Levy (Aniston), sua companheira de programa, tenta se recuperar do trauma provocado pela chocante notícia. Em meio ao falatório nacional sobre o caso, acaba viralizando nas redes sociais um vídeo em que uma jovem jornalista de nome Bradley Jackson (Whiterspoon) discute com um sujeito em meio a uma pauta sobre a instalação de uma mina de carvão. O surto de Bradley atrai a atenção dos produtores do The Morning Show, que a convidam para uma entrevista: pressionada por Alex, que acredita que ela possa ter forjado a filmagem, a jornalista responde a todas as perguntas com naturalidade, elegância e inteligência (dando, inclusive uma alfinetada na veterana). O que chamará a atenção de um dos chefes do canal, o novato Cory Ellison (Crudup).


Bom, num primeiro momento pode parecer intrincado, ou até confuso, mas não é. A rede de televisão deve prosseguir enquanto Mitch está afastado e Bradley inicia uma aproximação com a emissora (para desespero dos executivos mais conservadores, que a veem como uma figura imprevisível, instável e distante do estilo quadrado das atrações matinais). Com uma série de idas e vindas, Bradley acaba sendo anunciada como coapresentadora, em um dos melhores momento da temporada (e quem viu o trailer sabe que isto não era exatamente uma novidade). Além de terem personalidades completamente distintas, Alex e Bradley terão de lidar com suas diferenças, ao passo que acompanham o turbilhão de um canal de que tenta se reerguer - e que está muito próximo de perder a liderança da audiência no horário. Como não poderia deixar de ser, os problemas pessoas e as eventuais dificuldades de relacionamento - com a família, especialmente - também representarão barreiras para as duas mulheres.

Com uma quantidade de reviravoltas e intrigas de bastidores formidável, a série tem fotografia elegante e desenho de produção que nos faz efetivamente acreditar na UBA como um possível canal real de televisão. Marcando posição no (relevante) debate feminista, jamais soa excessivamente panfletária - o que pode ser visto na forma como Mitch é apresentado (um sujeito meio à moda antiga, "tiozão do pavê", que faz aquelas piadinhas de mau gosto e que conduz as suas vítimas sem excessos, o que talvez torna o método ainda mais repulsivo e absurdo). Já Aniston tem, finalmente, a oportunidade de deixar para trás os trejeitos à moda Rachel Green, tornando Alex uma figura complexa, fragilizada em alguns momentos, fortalecida em outros, mas que precisa "mexer os pauzinhos" depois que a emissora acena para algum tipo de limpa interna, como forma de tentar salvar o que resta de sua reputação.



Aliás, não é só elenco principal que é carismático - Whiterspoon quase dispensa comentários, já que me impressiona a quantidade de ótimos papéis em sua carreira. Crudup é o CEO charmoso e manipulador que tem um plano maior (e imprevisível) para a emissora, ao passo que Mark Duplass consegue emprestar toda a insegurança a um produtor veterano que pode ter sua cabeça a prêmio, no menor deslize. E há, além de toda a discussão proposta pela série, uma verdadeira aula de jornalismo nos bastidores - e eu, particularmente, adorei o sexto episódio, em que um grande evento exige da equipe todo um esforço diferenciado na condução da notícia. Nesse sentido é uma série real, com figuras possíveis, cheias de dilemas, anseios e sonhos e que ainda devem lidar com um grave problema: o da "cultura do silêncio", que ainda reina nas grandes corporações, quando o assunto são os escândalos sexuais. Que venha a segunda temporada.

terça-feira, 10 de março de 2020

Na Espera - Tenet (Filme)

Se tem uma coisa que a gente não pode reclamar é dos trailers dos filmes do Christopher Nolan, já que eles não costumam entregar muitacoisa sobre a produção - e não é muito diferente com Tenet, que tem estreia prevista para o dia 23 de julho de 2020. Aliás, a trama está sendo guardada tão a sete chaves, que sequer a sinopse oficial foi divulgada (ao menos eu não a encontrei). No trailer dá para perceber que o protagonista (vivido por John David Washington, visto em Infiltrado na Klan) morre deliberadamente, o que o fará participar de uma espécie de programa experimental pós-morte, numa mistura meio maluca de espionagem, suspense e drama. Aliás, aqui e ali dá pra encontrar ecos de projetos anteriores de Nolan, como Amnésia (2000) e A Origem (2010) - e este provavelmente será mais um daqueles projetos que levarão os cinéfilos para longos debates após cada sessão.


Aliás, tanto os fãs quanto a turma que gosta de atacar o estilo pouco convencional de Nolan, já trataram de, antes da estreia, transformar as redes sociais em um tribunal - com a obra sendo amada e odiada em igual medida, mesmo que ainda esteja longe de ter sido vista! Fora as referências metafóricas aos palíndromos, que já tem rendido debate. Com um elenco que ainda com nomes como Robert Pattinson, Elizabeth Debicki, Michael Caine, Aaron Johson, Clémence Poésy e Kenneth Branagh, a película já tem movimentado a bolsa de apostas para o Oscar da próxima temporada, devendo ser figurinha fácil não apenas na categoria principal, mas também em outras, como, Diretor e Roteiro Original. Bom, a expectativa é alta, não podemos negar!


Cine Baú - O Anjo Azul (Der Blaue Engel)

De: Josef Von Sternberg. Com Marlene Dietrich, Emil Jannings, Ilse Furstenberg e Kurt Gerron. Drama / Musical, Alemanha, 1930, 107 minutos.

Poucas vezes a degradação de um homem apaixonado, incapaz de dominar os próprios sentimentos, foi tão bem retratada como no clássico O Anjo Azul (Der Blaue Engel), de Josef Von Sternberg. Lançado há 90 anos, tinha como protagonista o ator Emil Jannings, que interpreta o respeitadíssimo professor Immanuel Rath, que conduz a sua turma com disciplina e mão de ferro. Em certo dia, durante uma aula, flagra seus alunos em um momento de "galinhagem", trocando figurinhas - o que faz com que ele descubra a existência de uma casa de espetáculos chamada Anjo Azul, que é desvairadamente frequentada pelos estudantes. Em uma investida para tentar livra-los das tentações, o professor acaba tendo sua atenção fisgada por Lola (Marlene Dietrich) que, de forma sinuosa, o conduzirá para uma espiral de decadência - o que reduzirá o homem a uma figura patética, deprimente.

Bebendo na fonte do expressionismo alemão, Sternberg não se furtará em jogar a câmera quase "dentro" de suas personas, desnudando assim seus sentimentos, angústias, medos e anseios, a partir de olhares, inflexões, sorrisos dados ou não. Rath, por exemplo, passa de sujeito sisudo, até eventualmente poderoso (naquele época professor ainda era uma atividade respeitada), para se tornar um palhaço que mendiga atenção, que está sempre com a cabeça baixa ou inferiorizado, em relação femme fatale que o seduz - e a cena em que Lola arremessa uma calcinha na cara dele é exemplar, nesse sentido. Andando por ruas escuras, tortas, que quase oprimem - trata-se de um belo trabalho de fotografia -, o professor também deverá se readequar à uma mudança espacial - em que se retira aos poucos de um ambiente que domina (a sala de aula) para outro em que ele é dominado (o bordel).


Muito se fala da atuação de Dietrich nesse filme, porque esta foi a obra que lhe alçou ao estrelato - e de fato a assistir cantando a sinuosa canção Falling In Love Again, com sua letra cheia de ambiguidades (Os homens rodeiam-me / como mariposas à volta de uma vela / Se por acaso se queimam / Eu não posso evitar) é um dos atrativos. O mesmo valendo para seu olhar enfumaçado. Mas quem dá o show MESMO é Emil Jannings, que trafega com naturalidade entre duas personas tão distintas - e que nos assombra no terço final, quando surge fantasiado de palhaço, numa metáfora quase óbvia que e que é capaz de dar conta da natureza de sua existência naquele momento. E, nesse sentido, a película chega a ser quase dura com os "cegamente apaixonados": sem uma solução fácil, resta o desejo íntimo do retorno para uma vida anterior e de busca de aconchego naquilo que desperta familiaridade.

E ainda que seja eventualmente pessimista, a película encontra várias brechas para a oferta de um humor quase involuntário, seja no histrionismo das discussões que ocorrem dentro da casa de espetáculos (com personagens secundários relevantes), seja na relação cheia de contradições com os alunos - e eu, particularmente, adoro a cena em que Rath se esforça para ensinar uma simples palavra do inglês a um dos estudantes, com a sequência terminando de forma histericamente divertida. Após este, Sternberg faria ainda uma série de outros filmes importantes, tendo destaque A Vênus Loira (1932) e A Imperatriz Vermelha (1934), ambos com Marlene Dietrich. Mas talvez poucos sejam lembrados com tanto carinho pelos cinéfilos, que encontram na decadência de seu protagonista, uma espécie de alegoria para a Europa (e para a Alemanha) daqueles tempos. Pronta para entrar em uma dura e patética guerra, o País também mergulharia em uma espiral descendente de devastação. A vida, afinal, imita a arte. Não é de hoje.

segunda-feira, 9 de março de 2020

Cinema - Você Não Estava Aqui (Sorry We Missed You)

De: Ken Loach. Com Kris Hitchen, Debbie Honeywood, Rhys Stone e Katie Proctor. Drama, Bélgica / França / Reino Unido, 2019, 104 minutos.

Quem acompanha a carreira do diretor Ken Loach sabe que seu cinema social costuma ser duro, áspero e extremamente realista. Não há desafogo para a paisagem que se estabelece, seja na análise do cidadão comum que luta contra a burocracia de um sistema que lhe exaure, como no anterior Eu, Daniel Blake (2018), seja na abordagem da precarização do trabalho, caso deste Você Não Estava Aqui (Sorry We Missed You). Na trama voltamos um pouco no tempo, mais especificamente para os anos que se sucederam a crise de 2008, que resultou em um sem fim de trabalhadores desempregados. Um destes é Ricky (Kris Hitchen), que adquire (meio a contragosto) uma van para trabalhar de forma autônoma com entregas. Já a esposa Annie (Debbie Honeywood) trabalha como cuidadora, como forma de complementar a renda. Ambos os trabalhos precarizados, sem direitos, com jornadas exaustivas, que chegam próximas das 14 horas diárias.

É o tipo de cenário que a gente enxerga bastante no Brasil do Bolsonaro - e das reformas Trabalhista e da Previdência. Sob a desculpa de manter a estabilidade econômica - o que, dado o frustrante resultado do PIB nacional, já percebemos ser uma falácia (isso era óbvio) -, os trabalhadores assistem as suas conquistas sociais sendo suprimidas, ao passo que devem se submeter a subempregos, sem carteira assinada em que, de quebra, ainda é vendida a ideia de "autonomia" - como se trabalhar mais de 80 horas por semana representasse uma conquista, uma vantagem ou a tão sonhada independência. O que não passa de uma mentira, claro, como perceberemos conforme o filme avança. Com hora marcada até mesmo para URINAR, Ricky conviverá com uma série de metas absurdas, inalcançáveis, sendo vigiado de perto para que não cometa uma falha sequer. Aliás, se falhar, se algo estragar ou alguma entrega não for feita, o prejuízo sairá diretamente do seu bolso. E se ficar doente, é pior: cada dia não trabalho incorrerá em multas estratosféricas, que só pioram, caso não haja substituto para a sua atividade.


E é óbvio que uma jornada tão excruciante, tão massacrante de trabalho para ambos - Annie, por sua vez, chega a cuidar de até seis pessoas enfermas, deficientes ou idosas em seus dias -, respingará no núcleo familiar, que se verá desestabilizado, especialmente pela ausência dos pais. Claramente desgostoso com a situação, o filho mais velho Seb (Rhys Stone) tentará de todas as formas chamar a atenção dos progenitores, seja matando aula, fumando maconha, ou cometendo pequenos delitos. Aliás, não demorará para que o comportamento anárquico do jovem se torne excessivamente intempestivo, o que comprometerá qualquer possibilidade de entendimento entre todos. Já a jovem e doce Lisa (Katie Proctor), uma menininha de apenas 11 anos, se encontrará em meio as tensões domésticas, enquanto tenta, a sua maneira, trazer um pouco da "normalidade" de volta a casa - e talvez por isso que consideremos tão melancólica a sequência em que o chefe de Ricky o proíbe de levar a filha junto para o trabalho.

Filmado com o habitual naturalismo de seu cinema - a fotografia é empalidecida, melancólica -, a obra não faz concessões na hora de nos esfregar na cara o absurdo de um sistema desigual, que torna os ricos mais ricos e os pobres mais pobres. Lutando para colocar comida na mesa da família (reparem como é triste a cena em que todos conseguem uma refeição melhor, a partir das gorjetas conquistadas por Lisa e que é interrompida pelo chamado de um dos enfermos cuidados por Annie), o núcleo se vê aos poucos destruído, com todos ficando impacientes uns com outros, especialmente a partir da constatação de que as perspectivas estão longe de melhorar. Aliás, a dolorida cena final tem uma dose ainda maior de escárnio, especialmente quando nos damos conta de que, para um autônomo, não existe autonomia alguma: dia sem trabalho é dia sem dinheiro. Dois dias sem trabalho são dois dias sem dinheiro. Mais multas. Mais prejuízos. E mais necessidade de viagens de uber ou de entregas de Rappi de bicicleta, para compensar. Penoso é pouco.

Nota: 9,0

sexta-feira, 6 de março de 2020

Lançamento de Videoclipe - Kikee (Monóxido)

É um trabalho absolutamente soberbo aquele alcançado pelo amigo Gustavo Kunzel - que tem como nome artístico Kikee -, no videoclipe de Monóxido, um dos primeiros singles do já aguardado Transição, primeiro disco de inéditas, que chega às plataformas e aos serviços de streaming no dia 24 de maio de 2020. No clipe, Kikee consegue levar para o espectro visual toda a sensibilidade que acompanha o seu trabalho, com o resultado ficando no limite entre o tecnológico, o misterioso e o aconchegante. Não bastasse a música ter melodia lindíssima, com o sintetizador e a bateria eletrônica ecoando à moda de um Silva na fase Vista Pro Mar misturado com algo tipo, sei lá, o Purity Ring no disco Another Eternity, a letra ainda faz o complemento para o refrão grudento, hipnótico, que faz com que a canção permaneça conosco, assim que finalizada. Sendo, com orgulho, amigo pessoal do artista, só posso desejar sorte nas futuras empreitadas. Por que se depender do que foi apresentado até o momento para o público, Transição tem tudo para ser um dos grandes registros de estreia desse ano.


Livro do Mês - Fahrenheit 451 (Ray Bradbury)

Faz pouco mais de um mês que circulou pelas redes sociais uma notícia que parecia saída de algum livro de ficção científica daqueles que envolvem governos totalitários que oprimem a população. E por mais que o governo Bolsonaro pareça TODO ELE uma distopia, a notícia de que a Secretaria de Educação do Estado de Rondônia pretendia banir mais de 40 livros de autores consagrados brasileiros, das escolas estaduais, deixou todo mundo de cabelos em pé. Isso significava que obras clássicas como Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, Macunaíma, de Mário de Andrade, e Os Sertões, de Euclides da Cunha, deixariam de figurar nas bibliotecas, sob a desculpa de conter "conteúdos inadequados para as crianças e adolescentes". Pois sabe quem bania livros por considerá-los subversivos? O nazismo. E foi exatamente no pós-guerra, que Ray Bradbury concebeu aquele que talvez seja o seu mais famoso livro até hoje: o ótimo Fahrenheit 451.

Esse preâmbulo todo tem um motivo: assim como no governo de Rondônia - o coronel Marcos Rocha é do PSL, claro, antiga sigla do "mito" -, na obra de Bradbury, acompanhamos o trabalho de uma Brigada que é destacada para exterminar os livros. Considerados uma ameaça ao sistema vigente, os exemplares devem ser queimados pela manutenção da ordem, que "impedirá que o conhecimento se dissemine como uma praga". Sabe aquela história de precarização da educação, de ataque sistemático ao conhecimento e de apologia ao emburrecimento da população, que estamos assistindo no governo Bolsonaro? Pois é, Bradbury escreveu Fahrenheit 451 justamente como uma crítica aos sistemas totalitários e a repressão política, que se utilizam do medo e da paranoia como uma forma de controle. Sem livros, a ocupação do povo é assistir a televisão - que surge como uma espécie de reality show de família -, enquanto os dias passam duros, frios, nada poéticos.



Pois essa dureza parece transparecer, inclusive, no estilo de escrita de Bradbury, um pouco mais seca, ainda que com eventuais floreios. Guy Montag, o bombeiro que protagoniza o livro, vive uma vida de alienação até o dia em que conhece a sonhadora vizinha Clarisse - uma jovem de espírito libertário, que reflete sobre o mundo, questiona procedimentos, preenchendo, nem que seja momentaneamente, o vazio existencial e Montag. Pois quando a garota desaparece misteriosamente e o protagonista participa de um evento traumático, em que uma senhora é queimada pelos bombeiros JUNTO com os seus livros (por não encontrar sentido na vida sem eles), Montag resolve se rebelar. Faz amizade com um certo Faber, que pretende lhe ajudar e se aproxima novamente, e perigosamente, dos livros, encontrando na resistência do sistema em que ele mesmo está integrado, o completo desmantelamento de suas ideias revolucionárias. "Antigamente os bombeiros apagavam o fogo. Hoje são eles que o provocam", reflete, afinal.

Trata-se de uma obra pessimista, eventualmente complexa e extremamente realista - além de ser recheada por uma série de episódios que mexem com a nossa imaginação, nos deixando absolutamente tensos (e não é por acaso que o volume gerou um bom filme dirigido por François Truffaut). Além disso, possui uma série de personagens secundários relevantes, caso da mulher de Montag, Mildred, e do bombeiro chefe Beatty, todos com arcos interessantes, que fazem com que a obra trafegue com naturalidade entre o suspense, o drama e até o deboche. Aliás, Bradbury parecia ser um sujeito muito engraçado, franco, brincalhão. Nesse sentido, talvez a frase dita por Freud, em 1933, quando os nazistas queimaram livros em praça pública, e que é lembrada no prefácio de Manuel da Costa Pinto faça tanto sentido: "que progressos estamos fazendo. Na Idade Média, teriam queimado a mim; hoje em dia, eles se contentam em queimar meus livros". Talvez seja o que nos resta diante de notícias como esta de Rondônia e de tantos outros absurdos relacionados à ataques a cultura, do governo Bolsonaro: rir, questionar, ser iconoclasta. Os livros, afinal, também nos estimulam a isso.

quarta-feira, 4 de março de 2020

Lado B Classe A - Radiohead (Kid A)

Bug do milênio, tecnologia desenfreada, superpopulação, novas mídias, degradação do meio ambiente, individualismo, doenças, mal estar, paranoias... poucos discos conseguiram traduzir a ansiedade coletiva do mundo, na virada dos anos 2000, quanto este Kid A, do Radiohead. Era um tempo de mudanças, definitivamente - algo que se estendia também para o mundo da música. O pós-grunge do Creed e o hardcore melódico de coletivos como Blink 182, já tinham nascido desgastados e bandas como Red Hot Chili Peppers e Foo Fighters persistiam, já naquela época, em tipo de rock de estrutura mais convencional. Na eletrônica não era diferente já que parecia faltar aquele aceno para a modernidade, mas de forma mais imersiva, transformadora - algo que fosse para além dos celebrados inferninhos trazidos à tona por bandas como Underworld e Spiritualized. Era preciso buscar algum oxigênio nesse contexto que mergulhava em algo que não sabíamos mais aonde iria parar. E que vinte anos depois, vamos combinar, parece que ainda não sabemos. Ou sabemos menos.

Nesse sentido foi estranho ouvir o Kid A quando ele foi lançado. Na mesma época em que conseguia comprar o meu primeiro celular - uma coisa meio rudimentar da Nokia, que levava o nome de 5120 -, começava a ler as primeiras e elogiosas resenhas nas revistas do coração (especialmente a finada Bizz). E eu já sabia que o Radiohead era diferente por que, naquele momento, o Ok Computer, já era um dos discos da vida. Um registro que me apresentou à lógica de mundo daquele universo torto, de yuppies capitalistas persistentes e trabalhadores, de naves alienígenas que podem aparecer, de decadência e de melancolia, de reações químicas e de rotina, de corações sofridos e de doenças que não curam. A verdade é que o trabalho de 1997 - talvez empatado com Nevermind do Nirvana na estante dos melhores dos anos 90 -, já se apresentava como um grande ensaio para o Kid A. Um ensaio que tentava diagnosticar o mundo - e que retirava definitivamente da lógica guitarra, baixo e bateria, a estrutura do rock convencional como a conhecíamos até então. Bom, não é exagero dizer que aquilo tudo meio que reinventou o rock para o novo milênio.


Sobre as músicas, um caldeirão de estilos, de texturas, de melodias, de andamentos. Quebras de lógicas. Idas e vindas no tempo. Estruturas alteradas. Ausência total de refrões. Ideais que se repetem e se repetem, como no caso da abertura com Everything in Its Right Place em que a frase que nomeia a canção é repetida como um mantra polifônico, enquanto uma base feita ao piano aproxima a música para as tensões da ficção científica cheia de suspense das megalópoles cosmopolitas. Aliás, um tipo de ideia geral que se repetirá em outros momentos e que servirá de norte para o registro - como no caso da autoexplicativa (e fantasmagórica) How to Disappear Completely ou na ruidosa The National Anthem, com sua linha de baixo e seus sopros envolventes. Até chegarmos a colorida (se é que se pode chamar assim) Motion Picture Soundtrack, - que parece extraída de algum filme da Disney na deep web -, há espaço para a dança hipnótica no bunker durante a era do gelo de Idioteque, para a psicodelia onírica de Morning Bell e até para algo que se pode considerar uma canção comercial, a despeito da letra pessimista, caso de Optimistic (que parece um Lado B de Ok Computer).

Bom, se você nunca escutou na vida o Kid A, é muito provável que as palavras não sejam suficientes para consolidar o poder transformador desse registro absolutamente diferente de tudo que já tínhamos ouvido até aquele momento. Bom, pra se ter uma ideia, corria uma lenda na época (e eu não consegui confirmá-la na internet), de que as pessoas estavam devolvendo o disco às lojas, falando que ele estava com problema, que as canções pulavam, que eram estranhas - e uma audição nem muito atenta da já citada Everything in Its Right Place faz com que essa história seja perfeitamente crível. O que dá conta também das técnicas de gravação nada ortodoxas, eventualmente robóticas, ainda que, paradoxalmente, orgânicas, calorosas. Pode não ser um álbum fácil. Bom, não é um álbum fácil. Mas quem se entregou a ele, persistiu, descobriu definitivamente a música que resumiu a década passada em 53 minutos de duração. Não foi por acaso que o Pitchfork o escolheu o melhor daquele período. Não é por acaso que ele figura em tudo quanto é lista de melhores daqueles anos. Um trabalho que segue ecoando. Ecoando como uma antena que capta e replica fragmentos e transmissões que conversam com um universo que ainda não sabemos qual será. E isso não é pouco.


terça-feira, 3 de março de 2020

Novidades em Streaming - Caribou (Disco)

Vamos combinar que se tem alguém que lança disco BOM é o canadense Daniel Snaith - que responde pelo nome artístico de Caribou. Não é por acaso que cada um de seus registros, cheios de curvas eletrônicas sinuosas e efeitos multicoloridos e psicodélicos, é aguardado com carinho pelos fãs - e não é diferente com o recém-chegado Suddenly, o oitavo trabalho da carreira. Deixando um pouco para trás a urgência do anterior Our Love (2014), Caribou investe agora um pouco mais na economia e nas ambientações oitentistas e até primaveris - como comprova o ótimo single You and I. Claro que o espectro eletrônico sempre bem produzido, polido, não é deixado de lado e o disco conta com uma série de efeitos, loops e barulhinhos que divertem ao mesmo tempo que funcionam organicamente. É um disco que não é hermético, fechado ou homogêneo. Aliás, em alguns instantes chega a ser docemente pop - como na irresistível New Jade -, ainda que flerte o tempo todo com estilos variados como hip hop, EDM, soul e até rock. É álbum que certamente vai figurar em listas de melhores no final do ano e que vale ser descoberto.



Novidades em DVD/VOD - Os Aeronautas (The Aeronauts)

De: Tom Harper. Com Felicity Jones, Eddie Redmayne, Himesh Patel e Anne Reid. Aventura / Drama, Reino Unido, 2019, 100 minutos.

Se você abre o Clima Tempo todos os dias para saber se vai chover, se vai dar sol, se estará frio ou calor, saiba que isso só é possível porque cerca de 150 anos atrás alguns malucos se aventuraram pelo espaço, em balões, munidos de cadernos, equipamentos de medição e muita força de vontade de desvendar o espaço. Sim, em 1862, ano em que se passa o filme Os Aeronautas (The Aeronauts), a meteorologia ainda não existia, mas havia um ambicioso cientista de nome de James Glaisher (Eddie Redmayne) que daria tudo para fazer uma investida aos céus para colocar os seus conhecimentos - e eventuais descobertas - em prática. Meio desacreditado por seus pares (e por potenciais investidores), James encontra na jovem, extrovertida e (quase) inconsequente Amelia Wren (Felicity Jones), a parceira exata para uma improvável empreitada: a de tentar alcançar a maior altitude já registrada em um voo de balão (o que possibilitará, talvez, ampliar as formas de se prever eventos meteorológicos).

É um filme simples e divertido, leve e melancólico que, com suas arrebatadoras imagens nos deixa o tempo todo em suspense. O filme começa no grande dia em que Amelia e James farão o seu voo. Amelia surge como uma entertainer, com roupas coloridas e disposta as mais variadas acrobacias para alegrar o público. Já James é o completo oposto, um pesquisador "fechado", interessado em números, dados e outras informações que possam validar aquilo que busca. Não chegam a ser antagonistas, mas subirão aos céus meio que aos "trancos e barrancos", unindo-se em uma aventura perigosa. E será com o desenrolar da jornada, que conheceremos um pouco mais da vida de cada um em espertos flashbacks que mostram Amelia como uma veterana do balonismo que convive com um duro trauma, ao passo que James é a pessoa que busca provar que não é apenas um nerd desajeitado.


Na internet já apareceram os metidões que afirmam que a história não é fiel ao que, de fato, teria acontecido naquele período - existiria um certo Henry Coxwell que seria parceiro de James e que teria se empenhado junto com ele em uma série de voos experimentais que consolidariam a meteorologia como uma ciência de fato. Mas, quer saber? Para efeitos de entretenimento isso pouco importa. Aliás, para haver um filme, é muito mais interessante a criação de uma figura "oxigenada" como Amelia, do que a inclusão de mais um sisudo cientista - não esqueçamos que trata-se de uma obra de ficção que é baseada em fatos reais (e que as licenças poéticas, nesse caso, são mais do que bem-vindas). Por sinal, licenças essas que transformam Os Aeronautas não apenas em um prosaico (e até filosófico) filme sobre balonismo, mas também numa tensa experiência nas alturas, que quase não é recomendada para quem sofre de acrofobia (meu caso).

Com excelentes efeitos visuais (e película chegou a figurar na pré-lista do Oscar na categoria), confesso que considerei uma pena o filme ter sido lançado diretamente no catálogo da Amazon - seria demais ver as arriscadas decisões da dupla nas alturas, lutando por suas vidas em meio a tempestades, ventos fortes, cordas e facas, na telona. Mas nada que apague a vivacidade da experiência que tem no desenho de produção criativo, no roteiro bem conduzido e na química do "casal" central - que fica no limite entre a paixão recolhida, o respeito mútuo e a cumplicidade -, , algumas de suas fortalezas (e Eddie Redmayne e Felicity Jones já haviam trabalhado juntos no oscarizado Teoria de Tudo). Agora você já sabe: sempre que assistir na TV aquela moça simpática do programa matinal dizendo que será bom levar um guarda-chuva na bolsa para não se molhar, é porque no passado houve figuras destemidas que desafiaram os céus em busca de descobertas relevantes como essas. Não é pouco.

Nota: 8,0

segunda-feira, 2 de março de 2020

Cinema - O Preço da Verdade (Dark Waters)

De: Todd Haynes. Com Mark Rufallo, Anne Hathaway, Tim Robbins, Bill Camp e Bill Pullman. Drama, EUA, 2019, 126 minutos.

Ainda que não seja assim tão bem executado do ponto de vista técnico, O Preço da Verdade (Dark Waters) tem como uma de suas fortalezas o seu tema mais do que relevante - especialmente em um momento em que o ativismo ambiental, as discussões sobre a importância da manutenção dos ecossistemas e o debate sobre como nos alimentamos estão em alta. Na trama, Mark Rufallo é Robert Billot, um advogado acostumado a defender corporações, especialmente em casos que envolvem a indústria química. Num certo dia ele recebe a visita de dois agricultores que garantem estar perdendo o seu rebanho bovino para aquilo que acreditam ser um caso de envenenamento. As suas propriedades fazem divisa com um aterro sanitário da DuPont, uma das maiores empresas do mundo e que atua em áreas diversas - de insumos agrícolas a polímeros. Para os produtores, a água consumida por bois e vacas nos mananciais dos arredores pode estar matando os animais. Bom, um deles perdeu quase 200 cabeças para doenças que nem os veterinários conseguem definir direito quais são. É coisa grande em uma daquelas clássicas brigas de "Davi contra Golias".

Tocado pelo fato de os agricultores terem sido indicados a ele pela sua vó - a infância, não adianta, nos deixa nostálgicos -, Robert resolve pegar para si a causa, o que significa também ir contra tudo aquilo em que acredita o escritório de advocacia em que trabalha. Sob o olhar desconfiado de seu chefe Tom (Tim Robbins em interpretação cheia de ambiguidades), o jurista empreende uma jornada que envolve a leitura de centenas de milhares de documentos relativos ao "comportamento corporativo" da DuPont, realizando também visitas àqueles que está defendendo - especialmente ao turrão Wilbur Tennant (Bill Camp) -, e também a ex-empregados e a pessoas ligadas à indústria. E será cruzando todos esses dados e informações que Robert descobrirá algo alarmante (e que não chega a ser bem uma novidade): os produtos químicos, sintéticos, despejados pela DuPont não apenas em mananciais ou aterros, mas também em nossas casas, fazem mal também para os humanos, ocasionando doenças, deformidades e uma série de outras condições que comprometem - e comprometerão - a saúde de milhares de famílias.


Nesse sentido, O Preço da Verdade é um filme relevante e corajoso, que coloca o dedo na ferida a respeito das crenças que temos na indústria como aquele ente bonzinho, que gerará empregos e que garantirá, nem que seja com documentos falsos, lobby e apoio de políticos e lideranças locais, que tudo estará bem, em ordem, e que não haverá nada de moralmente duvidoso ou corrupto sendo feito - e há um diálogo absurdamente revelador sobre como as grandes indústrias tratam a obediência às leis como apenas um pró-forma ligado a relação "custo x benefício". Como um exemplo, a gente sabe que o teflon, tão presente no nosso dia a dia, faz mal. E o pior: a indústria também sabe. Mas é mais barato para eles saber dessa informação, guardá-la e arcar com futuros e cínicos processos, enquanto despejam pesquisas falsas que buscam moldar a opinião pública sobre efeitos não tão negativos de seus produtos. E aqui cabe um elogio ao esforço feito pelo protagonista, que terá uma paciência de Jó para que as suas teorias sejam confirmadas (o que explica também os motivos de o filme ficar tão arrastado no terço final já que, sabemos bem, na esfera jurídica as coisas podem ser demoradas, aliás, bastante demoradas).

E mesmo com uma trilha sonora convencional e até eventualmente ostensiva, uma fotografia obviamente acinzentada/azulada e melancólica e uma montagem excessivamente expositiva (em uma cena a gente já entendeu que os dentes pretos de habitantes locais podem ser um indício de que eles também possam estar sendo envenenados, mas isso é explicado e mastigado até o limite para os espectadores), o filme do diretor Todd Haynes (Carol) tem valor, como já dito, pelo seu tema. E, ainda que o assunto não seja assim tão bem explorado - tudo parece meio esquemático, inclusive algumas interpretações (aliás, o que faz a Anne Hathaway como uma esposa histérica e submissa no filme?) -, é importante as pessoas tomarem conhecimento dos pormenores jurídicos que envolvem o cidadão comum lutando contra grandes corporações que exaurem sua saúde (e suas existências). Por fim, achei estranha a ausência de alguma música do Neil Young - que fez um disco inteiro para criticar outra gigante dos insumos, a Monsanto -, na trilha sonora. Mas a onipresente Take Me Home, Country Roads, do John Denver aparece. E, na real, a gente sempre gosta.

Nota: 7,0