sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Novidades em Streaming - Carvão

De: Carolina Markowicz. Com Maeve Jinkins, César Bordon, Camila Márdila, Rômulo Braga e Jean Almeida da Costa. Drama, Brasil / Argentina, 2022, 108 minutos.

Vamos combinar que não são poucas as vezes em que o cinema pende para o maniqueísmo - até mesmo quando o assunto são as pessoas em vulnerabilidade social. E, evidentemente, não se deve jamais apagar o fato de que as minorias possuem as suas demandas e que a arte cumpre o papel, muitas vezes fundamental, de nos deixar alertas para este ou para esta ou aquela pauta. Ainda assim é importante que não percamos de vista a complexidade dos sujeitos - com suas imperfeições e dilemas morais -, ainda mais quando o que o está em jogo é a luta diária pela sobrevivência. Até onde se pode chegar na ânsia por uma existência menos miserável? Quando me deparei com um filme chamado Carvão, logo imaginei aquela experiência já quase batida de Brasil profundo, de denúncias de contrastes sociais, de escravidão moderna ou de outras questões relacionadas a um segmento famoso por não ser um fiel cumpridor de legislações trabalhistas - com direito a patrões carrascos e a peões sofridos, que nos deixariam estarrecidos, indignados.

E, sinceramente, importantíssimo esse tipo de projeto. Especialmente por dar visibilidade a temas relevantes em épocas de pós extrema direita, de precarização do trabalho, de perda de direitos há tanto conquistados, entre outros. Mas às vezes penso que pode haver certa saturação desse tipo de cinema que, ao cabo, é assistido sempre pelo mesmo público cinéfilo - no caso, os brancos classe média frequentadores de festivais ou do circuito alternativo, que estimularão o debate entre os seus, enquanto a coisa na raiz, efetivamente, pouco muda. Então o que Carvão faz, sem julgar se é certo ou errado, é subverter um pouco esse clichê. O cenário é sim uma comunidade rural do interior de São Paulo, onde uma família - pai, mãe, filho e avô moribundo - subsiste em meio a uma rotina de trabalho penoso de produção de carvão. Só que ao invés do simples drama familiar de superação de dificuldades, temos aqui um suspense cheio de reviravoltas, o que envolve uma série de decisões no mínimo questionáveis.

E isso arremessa o projeto pra um outro lado, meio inesperado, mas que não deixa de refletir as mazelas a que estamos acostumados. A obra já abre com uma certa sensação de desalento, que envolve um ambiente doméstico um tanto caótico, condição ampliada por uma música melancólica que sai de um rádio velho - que é escutado pelo pequeno Jean (Jean Almeida da Costa) e pelo seu avô, que parece ser alguém que sofre de severas complicações respiratórias, que certamente são fruto de anos e anos de insalubridade no trabalho nas carvoarias. Quando a assistente social (a ótima Rita Cortese) chega, ela é de uma sinceridade assombrosa: "aqui ele não vai melhorar não, com essas madeira podre caindo na cara, os cupim, esse lençol áspero ralando o c*, ele não vai melhorar da respiração não". E é justamente quando achamos que a profissional vai dar uma solução mais amistosa pra situação, somos surpreendidos pela primeira decisão questionável daquela família: e que envolverá abrigar, secretamente, em sua casa um traficante que está sendo procurado na região. O que renderá, óbvio e dado o risco da empreitada, uma polpuda quantia de dinheiro.

Bom, não é preciso ser nenhum adivinho pra saber que esse segredo que parecerá sempre pronto pra vir à tona movimentará a narrativa - especialmente quando a desconfiada vizinha Luciana (Camila Márdila) passa a rondar a propriedade da família, interessada em saber do avô doente. Com naturalismo impressionante, o que tem a ver também com as excelentes interpretações - é quase difícil acreditar que Jinkins e Braga não sejam carvoeiros de verdade, tamanho o realismo de suas entregas - a diretora Carolina Markowicz realiza uma obra nada óbvia que, a despeito de sua temática mais pesada, quase pende para um senso de humor meio histriônico e totalmente imprevisível. Especialmente no terço final, quando o cerco aperta e a família se vê refém daquele contexto. Com um desenho de produção eficiente - as locações reais e os elementos que compõem o cenário macambúzio e os figurinos paupérrimos são totalmente fidedignos -, o filme só peca na edição de som, o que é quase uma tradição de nosso cinema nacional, especialmente o mais contemplativo. No mais, excelente pedida, disponível pra aluguel no Now.

Nota: 8,0


quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Pérolas da Netflix - Leonera

De: Pablo Trapero. Com Martina Gusman, Laura Garcia, Elli Medeiros e Rodrigo Santoro. Drama, Argentina, 2008, 113 minutos.

Vamos combinar que é um tema bastante complexo aquele que assistimos no ótimo Leonera - filme do habitualmente competente diretor argentino Pablo Trapero (de Elefante Branco, 2012). No centro da narrativa, uma pergunta nada simples: como agir quando o assunto é a maternidade em uma prisão feminina? Uma mulher grávida que cumpre pena por algum crime eventualmente bárbaro - como é o caso de um assassinato - deve ter o direito de permanecer com o seu filho, assim que ele nasce? Se sim, por quanto tempo? E mais: essa criança inocente deve permanecer confinada sob a desculpa de necessariamente estar ao lado de sua genitora? O que talvez envolva crescer em um ambiente disfuncional, sujo e, em muitos casos, até violento? Não me parece ser muito fácil fornecer essas respostas de bate pronto, ainda mais que nessa equação está também o tratamento dado pelo sistema carcerário a esta mãe. O que deve, evidentemente, respeitar os direitos humanos, acima de tudo.

Admito que até pra pesquisar sobre o tema no Google tive um pouco de dificuldade. Não é um assunto que faz parte da nossa rotina. E num País que perdeu a vergonha de verbalizar que "bandido bom é bandido morto" - especialmente se este for preto, pobre, periférico, enfim, vulnerável -, não parece ser algo que vá ser discutido com muita tranquilidade no almoço dominical. Mas o que Trapero faz, antes de qualquer coisa, é jogar luz sobre essa temática (o que é sempre um mérito no que diz respeito à arte). No Brasil, o último levantamento parece apontar haver 622 mulheres presas que são ou gestantes ou lactantes. Que têm o direito de permanecer com seus filhos por um prazo máximo de seis meses - após esse período eles são destinados a um familiar, normalmente a avó. Ou um abrigo, se não houver alternativa. Nunca a solução parecerá das melhores, enfim.

No caso de Leonera, a protagonista Julia (Martina Gusman) é presa em circunstâncias um tanto quanto confusas - o que envolve a inesperada morte de seu ex-namorado, após uma noitada em que ela não parece lembrar de muita coisa. Há apenas a trilha de sangue, uma série de objetos espalhados - garrafas, bitucas de cigarro, aquele cenário meio caótico -, e uma terceira pessoa que sobrevive: no caso um suposto amante do morto, de nome Ramiro (Rodrigo Santoro). O que aconteceu de verdade a gente nunca consegue ter certeza. Fica o dito pelo não dito, mas tanto Julia quanto Ramiro acabam tendo suas prisões preventivas decretadas - enquanto advogados de parte a parte se empenharão para colocá-los em liberdade. Por estar grávida do ex, a situação de Julia é mais complexa: ela é enviada a uma ala destinada a gestantes, onde conseguirá ter o mínimo de condições (mas mínimo mesmo) para uma gravidez mais "tranquila", ao lado de outras mulheres em condições parecidas.

Em meio a crianças que choram o tempo todo, discussões por motivos inesperados e incerteza quanto ao seu futuro, Julia se ambientará aos poucos - especialmente após fazer amizade com Marta (Laura Garcia), sua solidária vizinha de cela, que também cria um filho pequeno. Na Lei local, mães como Julia podem permanecer com seus filhos por quatro anos. O que não deixará de ter um certo requinte de crueldade, ao pensarmos na possibilidade de o pequeno ser simplesmente retirado de suas mãos, após esse tempo ser expirado. Com tudo piorando quando entra em cena a mãe de Julia, Sofia (Elli Medeiros), que parece disposta a fazer por onde para que a criança seja criada do lado de fora da prisão. Em liberdade. Em contato com outras crianças e com o mundo. Sim, eu disse que era difícil. E o filme não facilita ao converter a prisão em um espaço de confinamento pouco convidativo e claustrofóbico. A gente só consegue torcer pra que Julia mostre as garras e se livre de uma vez daquele ambiente. Talvez o tipo de empatia que devêssemos ter mais vezes quando o assunto é o sistema prisional.


segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Tesouros Cinéfilos - Delicatessen

De: Jean-Pierre Jeunet e Marc Caro. Com Dominique Pinon, Jean-Claude Dreyfus e Marie-Laure Dougnac. Comédia / Ficção científica, França, 1991, 106 minutos.

Uma combinação eficiente de comédia com ficção pós-apocalíptica, com uma pitadinha de terror. Assim é possível resumir a experiência com Delicatessen - filme de estreia do diretor Jean-Pierre Jeunet (que ficaria famoso pelo clássico moderno O Fabuloso Destino de Amelie Poulain, 2001), em parceria com Marc Caro. Aqui, somos apresentados a uma espécie de distopia futurista em que nunca fica exatamente claro o contexto, ainda que alguns críticos tratem a obra como uma metáfora para a resistência durante a Segunda Guerra. A trama toda se passa em um único cenário, no caso um prédio em ruínas que abriga inúmeros apartamentos, que são comandados pelo severo senhor Clapet (Jean-Claude Dreyfus) que, ao mesmo tempo que é o senhorio, também atende como o açougueiro do local. Só que ali se vivem tempos de escassez. E não demora para que saibamos que a carne fornecida por Clapet aos inquilinos é de humanos - contratados pelo sujeito sob a desculpa de terem um emprego, para posteriormente serem mortos.

Só que após o mais recente assassinato, chega ao local um certo Louison (Dominique Pinon, que trabalhou em várias obras de Jeunet), um artista de circo desempregado que é designado por Clapet para a execução de serviços gerais do prédio decadente - e que podem ser de simples pinturas, passando por  reformas, até chegar à substituição de lâmpadas. Só que a ideia de dar cabo de Louison vai se complicar, especialmente depois de entrar em cena a filha de Clapet, Julie (Marie-Laure Dougnac), que se apaixona pelo novo "faz tudo", após um rebu envolvendo um pacote de deveria ser entregue a ela. Só que é preciso alimentar o pessoal do prédio - e tudo piorará quando os demais inquilinos passarem a se afeiçoar de Louison, dificultando as intenções de Clapet. Que, aliás, achará a solução com um pedido excêntrico a outro inquilino, Marcel (Ticky Holgado), que deve entregar a sua sogra idosa como moeda de troca.

Tudo parece meio complexo e talvez seja, mas o que pega aqui é não apenas o aparato técnico da produção - com suas cores amareladas e saturadas (que reforçam o aspecto decadente do ambiente) e seus ângulos de câmera geométricos e próximos -, que se somam a um sem fim de personagens e personalidades excêntricas que habitam o lugar. E que renderão, ao cabo, um sem fim de instantes tão aleatórios quanto inusitados. Há, por exemplo, em um dos apartamentos, uma senhora que insistirá em tentar dar cabo de sua própria vida (sempre sem sucesso). Há um outro que converte o seu apartamento em uma pocilga tão úmida, que sua principal companhia passam a ser os caramujos, os sapos e as pererecas. E há ainda dois meninos que trafegam de andar em andar, de ambiente em ambiente, conectando cada ato, em meio a estripulias variadas. E, como se não bastasse todo esse clima de devaneio, de sonho meio delirante, há ainda um sistema interno que permite a comunicação simultânea entre todos os os apartamentos.

É tudo bizarramente estranho, como se saído de uma peça do Teatro do Absurdo com um roteiro que bebe do realismo fantástico. Para uma estreia, não dá pra negar que Jeunet foi ousado, ao fugir do óbvio em uma roteiro que vai da alegoria política ao suspense de literatura pulp em segundos. Em alguma medida é meio difícil não se conectar com aquele cenário oniricamente macabro: os sujeitos são estranhos, a realidade é torpe. E há ainda um grupo de resistência que vive nos subterrâneos, de forma clandestina - os Troglodistas - e que, instigados por Julie, estabelecerão como meta sequestrar Clapet, o que poderia salvar a pele de Louison. Barulhenta, meio repulsiva e um tanto bizarra, essa é uma obra que une gêneros em uma grande coleção de sons, cores, imagens e que utiliza o seu microcosmo para um exercício que discute a quebra de sistemas opressores. O que é simbolizado pela perfeita sequência final, em que Louison e Julie executam juntos uma canção - com direito ao primeiro tocando... serrote. Impagável é pouco.


quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Novidades em Streaming - Cassandro

De: Roger Ross Williams. Com Gael García Bernal, Perla De La Rosa, Bad Bunny e Raúl Castillo. Drama, EUA, 2023, 106 minutos.

Disponível na Amazon Prime, Cassandro me apresentou a um universo que eu, honestamente, desconhecia. Quer dizer, não é que eu não soubesse da existência da lucha libre, essa mistura de arte e esporte em que homens fantasiados, mascarados - às vezes até de forma meio extravagante - executam uma mistura de lutas com coreografias acrobáticas. Tudo bastante dramático, pomposo, exagerado e latino, com vistas a entreter um público ávido por essa pancadaria arranjada. O que eu não sabia - ou, vá lá, se sabia não me lembrava - era que nesse universo tão iminentemente masculino, de disputas maniqueístas de bem contra o mal, havia um grupo de atletas, muitas vezes gays, que eram chamados pela alcunha de "exóticos". Sim, como se já não bastasse a problemática em si por trás desse vocábulo, ainda havia um outro fato: na lucha libre, os exóticos, muitas vezes, eram os violões da história.

Por que, onde já se viu subverter a lógica de um cenário onde brutamontes mascarados se pegam no pau (com o perdão do trocadilho) para se apresentar com vestes brilhosas, purpurinadas e bastante femininas? Baseado em um pessoa real, no caso o lutador Saúl Armendáriz (Gael Garcia Bernal, encarnando, como de praxe, personagens ambíguos com bastante naturalidade), o filme de Roger Ross Williams acompanha o esforço do protagonista na tentativa de desconstruir o personagem exótico, convertendo-o em uma figura simpática ao público. E menos vilanesca do que se supõe. Criado pela mãe Yocasta (Perla De La Rosa) Saúl é, até certa altura, apenas mais um competidor, que disputa lutas amadoras em garagens pouco empolgantes na divisa entre o México e os Estados Unidos. Por conta de sua pouca expressividade corporal e tamanho diminuto, se torna o sparring natural de grandalhões que lhe rodopiam ringue afora, até lhe nocautearem (ainda que, de brincadeirinha, com todos ganhando o seu dinheiro justo com isso).

Meio cansado da vida de "rudo" (como são chamados esses vilões que dificilmente têm seus nomes gritados pelo público), Saúl resolve assumir a sua real personalidade de exótico - o que envolverá, naturalmente, superar uma série de preconceitos (e é interessante notar como, mesmo sendo mais ou menos bem aceito pelos demais lutadores, ele ainda ouve piadinhas, ameaças e outros comportamentos nada amistosos). Sim, a intolerância e o ódio estão em toda a parte e não seria diferente nesse ambiente. Claro, o objetivo de Saúl também era pessoal, para além da libertação de sua sexualidade: queria crescer, subir na vida de wrestler, o que, se apresentando sob o apelido de El Mouse, definitivamente não seria possível. E a mudança de chave se dará quando ele conhece a sua nova treinadora, a determinada Sabrina (Roberta Colindrez), conhecida como Lady Anarquina. Será com ela que Saúl renascerá oficialmente, como Cassandro, O Exótico.

Negligenciado pelo pai e criado pela mãe, Saúl parece ter os próprios demônios pessoais a superar nesse processo - como se já não bastasse a homofobia do entorno (que, num Estado tão conservador como o Texas, poderia ser ainda pior). Mas ainda que a temática seja mais séria, o filme não força a mão, apresentando o protagonista como um sujeito abusadamente carismático, capaz de converter cada batalha nos palcos em uma verdadeira peça de teatro multicolorida, imprevisível e muito satisfatória para o público. E, mais confiante, ele também se sentirá mais à vontade para expressar a sua sexualidade na vida real, o que pode ser exemplificado nos encontros secretos com o colega Gerardo (Raúl Castillo). Com participação de Bad Bunny, a obra possui excelentes performances, sendo Bernal o grande destaque, com sua entrega absolutamente física - que vai boca cheia de batom aos desfiles debochados no palco. O que dá a essa produção comovente e de superação, um tempero a mais. Vale conferir!

Nota: 8,0


Pitaquinho Musical - Mitski (The Land Is Inhospitable and So Are We)

Talvez Laurel Hell, o expansivo e acessível disco anterior, seja uma das raras exceções na carreira da cantora Mitski. Famosa por certo hermetismo que envolve letras bastante poéticas e melodias com menor apelo comercial, a artista se soltaria mais no trabalho lançado no ano passado - aliás, nosso 15º preferido de 2022 -, flertando em alguma medida com o pop classudo e soturno dos anos 80. O que pôde ser comprovado em canções acessíveis como The Only Heartbreaker e Love Me More. Só que com o sinuoso The Land Is Inhospitable and So Are We, seu sétimo álbum, parece haver uma espécie de retorno para uma sonoridade menos previsível. O que não significa que não haja beleza. Só que para nós, brasileiros, é preciso que se diga que a coisa toda funcionará melhor com um pouco de paciência, absorvendo cada etapa com calma - e, de preferência, com as letras à tiracolo.

A canção inaugural, chamada Bug Like an Angel, por exemplo, poderia ser apenas um countryzinho genérico como qualquer outro, tocado ao violão. Nada que não tenhamos ouvido ainda. Mas como se já não bastasse o inesperado e vigoroso coral gospel que invade a canção no meio do caminho, nos jogando para uma espécie de outro plano metafísico, há ainda a letra metafórica em que temas ligados à família e a religião se cruzam em versos cheios de simbolismos (Há um inseto parecido com um anjo preso no fundo / Do meu copo, com um restinho sobrando / A medida que fui crescendo, aprendi a ficar bêbada / Ás vezes é um drinque é como uma família). Esse tipo de contraste entre a sofisticação e a suavidade do tom, que parecem colidir o tempo todo com os temas mais pesados, com reflexões e dores cotidianas. Claro que não significa que não haja espaço para um respiro, como podemos perceber na graciosa My Love Mine All Mine, uma das grandes músicas do ano.

Nota: 8,5


terça-feira, 19 de setembro de 2023

Cine Baú - A Bela da Tarde (Belle de Jour)

De: Luis Buñuel. Com Catherine Deneuve, Michel Piccoli, Pierre Clémenti, Jean Sorel e Geneviève Page. Drama, França, 1967, 105 minutos.

Uma jovem burguesa tentando aplacar o tédio e a falta de empolgação de seu próprio casamento - o que muito provavelmente também tem a ver com traumas sexuais do passado -, se convertendo em uma prostituta de luxo de meio período, que é requisitada por um sem fim de clientes, com seus fetiches, no mínimo, excêntricos. O resumo de A Bela da Tarde (Belle de Jour), um dos mais populares clássicos de Luis Buñuel, talvez sugira nas entrelinhas a iconoclastia e o espírito provocador que, quase sempre, marcaram a sua filmografia. Ainda assim, é curioso notar como esta é uma obra muito menos explícita do que se poderia imaginar. As tensões de dentro do bordel em que boa parte da narrativa acontece, em muitos casos se dão a portas fechadas, separadas por corredores distantes, entre frestas, enquanto do lado de fora as profissionais dialogam sobre amenidades ou tentam entreter clientes afoitos.

Claro, isso não significa que a obra - que venceria o Leão de Ouro no Festival de Veneza - reduz a sua ousadia, já que aqui a mera sugestão tem tanto poder quanto os atos em si. Catherine Deneuve como Sevérine é a representação daquela aristocracia fria que, a despeito de viver uma vida luxuosa e segura do ponto de vista financeiro - algo que se percebe inclusive pelos belos figurinos -, não consegue se sentir realizada quando o assunto é o sexo. Por mais que Pierre (Jean Sorel), o seu belo marido, pareça se esforçar para deixá-la confortável. Bom, eles sequer dormem juntos na mesma cama, mantendo distância e vivendo uma existência apenas protocolar, de dias repetidos, com pouca emoção. Resta a Sevérine, inicialmente, os sonhos, os devaneios, que parecem se confundir com a realidade. Em um dos primeiros, ela está com Pierre em uma carruagem, que percorre uma densa floresta. Após uma discussão, os homens - entre eles os cocheiros - passam a agredi-la, violentá-la. Até o instante em que ela irá despertar desse transe.

Esses episódios evidenciam o fato de que há algo que, vá lá, talvez perturbe a alma de Sevérine. Algum tipo de sentimento que lhe oprime. Uma frustração que, logo ali, se converte em impotência. Ou vai ver ela é apenas adepta de outras práticas que acredita impossíveis de cumprir com Pierre, casos do sadomasoquismo e de outras fantasias envolvendo dominação. Pode parecer apenas misógino ou machista. Mas a força da narrativa está justamente na forma como a protagonista busca superar o seu abalo emocional. E, de alguma maneira, se satisfazer. E que envolve justamente o bordel frequentado pela alta classe - local que é mencionado pelo atrevido amigo Henri Husson (Michel Piccoli), que não se furtará em elogiar os atributos físicos de Sevérine, na frente do marido desta. Perturbada ainda por memórias da própria infância, que sugerem algum tipo de abuso, a jovem vai parar no local, que é comandado pela carismática Madade Anaïs (Geneviève Page). Se convertendo ali na Belle de Jour do título original.

Ainda que seja um filme dos anos 60, é preciso que se diga que talvez este não seja um projeto para todos os paladares - especialmente para os espíritos mais conservadores ou menos adeptos de certos avanços. Em certa altura da projeção, por exemplo, um cliente leva Belle até a sua ampla propriedade - uma espécie de fazenda gigantesca - onde pede para que ela se finja de morta (com direito a caixão e tudo). Tão divertida quanto sombria, a sequência se encerra com o homem embaixo do caixão onde, aparentemente, se masturba. E, por mais que essas sequências possam soar grosseiras, elas são conduzidas com uma excêntrica elegância, com Sevérine flanando com delicadeza pelo ambiente, enquanto executa atendimento após atendimento a uma esquisitice atrás de outra. Estando entre os atendidos, um jovem de nome Marcel (Pierre Clémenti), que se apaixonará por Belle, e que lhe perturbará de todas as formas no terço final. Disponível na Mubi, A Bela da Tarde segue como uma experiência desafiadora, metafórica e cheia de ambiguidades que merece ser revisitada.


segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Novidades em Streaming - O Conde (El Conde)

De: Pablo Larraín. Com Jaime Vadell, Paula Luchsinger, Alfredo Castro e Gloria Münchmeyer. Comédia / Fantasia, Chile, 2023, 111 minutos.

Um filme simples mas, ao mesmo tempo, muito eficiente no retrato dos representantes da extrema direita como essas figuras putrefatas, que insistem em se perpetuar através dos séculos. Mais ou menos assim podemos encarar a experiência com o ótimo O Conde (El Conde), filme do sempre audacioso Pablo Larraín (dos sensacionais O Clube, Ema e Spencer), que converte o general Augusto Pinochet (Jaime Vadell) em um vampiro que se arrasta pelos cômodos de seu palácio decadente, como um espectro que é incapaz de, simplesmente, morrer. Algo que, aliás, expressa à perfeição a alegoria do fascismo como uma cadela sempre pronta a entrar no cio, como dizia o escritor Bertolt Brecht. Com esse sentimento sendo ampliado justamente pela impunidade - com julgamentos e condenações chegando tardiamente, em muitos casos (se é que chegam, né Brasil?), mesmo diante de um sem fim de atrocidades, repressões, torturas, violações dos direitos humanos e, claro, assassinatos (no caso chileno, cerca de 30 mil pessoas).

Só que, por mais incrível que possa parecer, num mundo que elege Donald Trump e Jair Bolsonaro, e mais recentemente a ultradireitista Giorgia Meloni, na Itália, esses ideais radicalmente conservadores, intolerantes, excludentes e extremistas, permanecem vivos. Pinochet, quando simplesmente direcionou o exército para o Palácio de La Moneda para tomar o poder do socialista Salvador Allende na marra, em 1973 - aliás, o Golpe Militar do País vizinho completou 50 anos justamente na última semana -, tinha aquele medo que costuma mover esses seres que se arrastam como mortos-vivos, prontos para "sugar o sangue" de suas vítimas. E que geralmente envolvem temores abstratos relacionados a comunismo, Guerra Fria tardia, marxismo cultural e outras variedades de delírios que, supostamente, resultarão em sonhos sombrios sobre trabalhadores que empunham foices e martelos para pintar as ruas de suas pátrias de vermelho. Oh!

Só que no filme de Larraín, Pinochet resolve, depois de 250 anos de uma vida de atrocidades e de vampirismo sanguinário como metáfora para o horror, que é hora de bater as botas. De abdicar da vida eterna. O que ele tentará realizar parando de se alimentar. Apostando no senso de humor cínico que contrasta com a ambientação contemplativa e carregada que deriva da fotografia em preto e branco, que se soma ainda a trilha sonora de notas tonitruantes, o realizador conecta a monstruosidade dilacerante dessas figuras, com uma decrepitude agonizante. Nesse sentido, talvez uma das sequências que melhor expressa esse contraste, é aquela em que o tirano protagonista confronta os seus cinco filhos que estão em visita ao seu castelo que mais parece uma pocilga - todos de olho no testamento, na herança ou em bens que possam estar em contas bancárias secretas ou em outras maracutaias ao redor do globo. Adentrando o ambiente em um passo capenga amparado por um andador, o sujeito preenche os espaços como o vilão tenebroso que é, ainda que a sua imagem sugira certa fragilidade.

Utilizando os próprios cenários, tanto internos quanto externos (quando o casarão surge como se fosse saído de algum filme de terror do expressionismo alemão) como elementos a fortalecer o ideal de isolamento, de poeira e de podridão, o diretor parte de um fiapo de história que nada mais é do que uma crise existencial de sua figura central (que talvez seja realmente incapaz de se ajustar aos novos tempos). Para deixar uma espécie de legado, confia ao seu mordomo Fyodor (Alfredo Castro), um operário dos campos de extermínio chilenos, uma "mordida" que perpetuará seus ideais. Atribuição que ele não confere à própria esposa, Lucía (Gloria Münchmeyer). Nesse contexto, surge ainda a jovem freira Carmencita (Paula Luchsinger), especialista em contabilidade, que é enviada pela Igreja para exorcizar o velho e tentar amenizar o desastre financeiro da paróquia. Igreja, exército, cidadão de bem ambicioso, tudo se conecta nessa narrativa sombria mas debochada, macabra mas hilária. Só que tem uma surpresinha no final, que nos faz refletir sobre a natureza recorrente dos sistemas totalitários. A gente ri em muitos momentos: mas é um riso incômodo, de nervoso. Tá na Netflix.

Nota: 8,5

 

quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Pitaquinho Musical - Olivia Rodrigo (GUTS)

Eu preciso ser honesto e dizer que eu não acreditava que a Olivia Rodrigo pudesse superar a famosa "prova do segundo disco". Depois do sucesso estrondoso de Sour - que continha os hits Deja Vu e Driver's License e que foi o nosso terceiro melhor internacional na lista de 2021-, era meio natural que rolasse certa pressão. Da indústria, dos fãs, da mídia, de todo o entorno. E o que a artista fez diante desse cenário? Não apenas converteu o próprio tema das incertezas diante da fama na matéria-prima ideal para as suas letras, como ainda deu a GUTS um sabor bastante agridoce, com um perfume juvenil à beira da vida adulta. Crescer e amadurecer, vamos combinar, nunca é fácil. E amadurecer nesse ambiente inóspito da fama parece ser ainda mais complexo. Nesse sentido, talvez não seja por acaso que muitas de suas letras não apenas dialogam com as dores e as incertezas de quem mal está chegando aos 20 anos - seja no campo dos relacionamentos, das amizades, das festas e bebedeiras -, como ainda parecem fazer um permanente aceno para o meio em que ela está inserida.

Um bom exemplo desse expediente pode ser encontrado na desgraçadamente bela balada Making the Bed, uma canção que bebe na fonte da Taylor Swift fase 1989, para divagar sobre as mudanças ocorridas na sua vida a partir do álbum anterior. "É uma coisa meio estranha quando você se torna bem sucedido e é notado por músicas que são super cruas e íntimas, então em um certo nível você sente que as pessoas realmente te conhecem, mas não da maneira como seus amigos ou familiares", refletiu em entrevista ao The Guardian. Muita gente tem mencionado o fato de esse disco estar supostamente mais roqueiro - e em alguma medida ele está, como comprovam as movimentadas All-american Bitch, Bad Idea Right? e Get Him Back!, que fazem uma misturada com notas de No Doubt, Weezer, Avril Lavigne e Icona Pop. Mas o que permanece aqui, independente do estilo, é a capacidade única que Olivia tem de falar de coisas tão íntimas, tão do universo dela, e ainda assim fazer o público de identificar. Eu tenho 42 anos e terminei o disco berrando que "tudo fica melhor, mas e se não melhorar?". Já faz uns 25 anos que eu não sou adolescente, mas senti que era pra mim. Acho que era pra todos nós.

Nota: 9,0


Livro do Mês - O Filho de Mil Homens (Valter Hugo Mãe)

"A Matilde, talvez por criar viúva o seu único filho, enojava-se do mesmo jeito mas agia diferente. Não teria coragem para desfazer um filho, o único filho, que tanto trabalho e sonho lhe dera. Se, pelo menos, o pudesse mandar embora, mesmo que não tivesse mais familiares, nem muito para onde ir. Ficariam sozinhos um do outro. A Matilde queria acreditar que, mandando embora, o filho poderia resolver o problema, como se longe dali não florisse, não gesticulasse, não subisse um tom nas sílabas mais bonitas das palavras quando falava a rir, talvez longe dali não fosse maricas. Talvez porque ela também tivesse culpa. Era culpada duas vezes, uma de ter o feito assim, outra de não encontrar solução e competir-lhe tanto encontrar solução. Respondia à vizinha que o Antonino era só um miúdo, e nem gostaria de rapazes porque ainda sequer tinha idade pra gostar de raparigas."

Quando a gente lê o trecho acima do livro O Filho de Mil Homens, do português Valter Hugo Mãe, a gente vai se dando conta que a obra é apenas nas aparências, e de acordo com a sua orelha, uma narrativa sobre um sujeito à beira de completar 40 anos, que deseja ardorosamente ter um filho. Sim, o pescador Crisóstomo quer aplacar a solidão vivenciada em sua casa isolada na beira da praia - indo encontrar no adolescente Camilo, um órfão de uma anã, a oportunidade de preencher a sua metade vazia. Mas quando outros personagens - marginalizados, minoritários, vulneráveis - vão se juntando àquela família meio improvisada, de almas tão excêntricas quanto generosas, percebemos que este é um livro sobre os excluídos sociais, os invisíveis, e a sua eterna busca por um lugar no mundo. Ao cabo essa é uma obra sensível e lírica pela capacidade de fazer emergir a esperança, a partir do amor.

Antonino, o "homem maricas", é renegado pela própria mãe. Crescendo num ambiente de preconceito e de intolerância, especialmente por ser um sujeito que não tem vergonha de expressar seus sentimentos, é tratado pelos demais como uma espécie de aberração. Um esquisito que quebra a ordem lógica dos homens de bem e a sua eterna busca pela heteronormatividade como padrão. Na ideia de se sentir menos odiado pelo entorno, improvisa um casamento com uma mulher enjeitada de nome Isaura - uma jovem magricela, esquálida. Incapaz de cumprir com suas obrigações matrimoniais na noite de núpcias, Antonino simplesmente foge. Isaura fica arrasada - com a sensação de dor sendo ampliada pela iminente morte de sua severa mãe, Maria. Meio sem rumo, Isaura vai parar no mesmo vilarejo litorâneo que abriga a casa de Crisóstomo, se juntando a este e a Camilo.

Só que, entristecido, o próprio Antonino se unirá ao trio, encontrando amparo naquele coletivo inusitado, na família escolhida. Camilo acha Antonino estranho mas vai aprendendo a conviver com ele, a respeitá-lo. Afinal, ninguém nasce querendo odiar. São coisas que se aprendem. Em casa. Nas frestas que fazem emergir discriminações travestidas de moralismo barato. E como se já não bastassem todos esse desencontros - que viram encontros -, há ainda a curiosa história de Rosinha, caseira de dona Matilde, que, de forma paralela se casa com o fazendeiro Gemúndio, que lhe promete mundos e fundos. Só que a coisa desanda quando, num jantar de celebração à união, Rosinha morre após comer um pedaço de carne de uma galinha gigante, supostamente mágica. O que faz com que sua filha Emília, assim como Matilde, também se junte ao grupo de Crisóstomo. Como resumiria o ensaísta argentino Alberto Manguel, cada personagem aqui "é símbolo de libertação e triunfo pessoal, que demonstra as infinitas possibilidades da alma e da imaginação humanas". Foi minha terceira obra de Mãe, lida. Tão boa quanto as anteriores.

terça-feira, 12 de setembro de 2023

Novidades em Streaming - Que Horas Eu Te Pego? (No Hard Feelings)

De: Gene Stupnistsky. Com Jennifer Lawrence, Andrew Barth Feldman, Matthew Broderick, Laura Benanti e Natalie Morales. Comédia romântica, EUA, 2023, 103 minutos.

Ok, a gente sabe que a Jennifer Lawrence não precisa ser intensa e oscarizada em tudo quando é papel, mas ter aceitado fazer uma comédia romântica oitentista meia bomba - e até meio conservadora -, em pleno 2023, só pode ter uma explicação: os boletos chegaram e é preciso honrá-los. Porque vamos combinar que Que Horas Eu te Pego? (No Hard Feelings) não tem lá muita graça. E nem muita química no que diz respeito ao "casal" central. Tudo bem que a ideia de uma mulher de trinta e poucos anos com perrengues financeiros sempre pode render alguma coisa - ainda mais quando há um pano de fundo que envolve certa crítica à gentrificação (um pano de fundo que poderia ser melhor explorado, diga-se). Mas, aqui, na maior parte do tempo a gente fica meio que esperando a hora de rir. É uma comédia, né? Só que quando ela chega é uma risada meio de lado, sem vigor. E não é por falta de carisma ou tino para o humor excêntrico, já que Lawrence, a gente sabe, tem isso de sobra. Aliás, foi o que me atraiu pro projeto dirigido por Gene Stupnistsky (do excelente Bons Meninos, 2019).

Na trama, a protagonista vive Maddie Barker, uma garçonete de um boteco de frutos do mar, que complementa renda como motorista de uber em Montauk, Nova York. Endividada por não conseguir quitar os impostos da casa de beira de praia que herdou da mãe, Maddie tem seu carro tomado pela Prefeitura. A solução bizarra dada pela amiga Sara (Natalie Morales)? Aceitar um emprego temporário como "namorada" do filho de 19 anos de um casal de ricaços investidores da área de tecnologia - papel de Matthew Broderick e Laura Benanti. A ideia dos pais é a de tirar o jovem Percy (Andrew Barth Feldman) do casulo, possibilitando a ele alguma experiência na seara amorosa (e sexual), antes de entrar para a faculdade de Princeton. E, claro, tudo isso sem que o rapaz saiba. Como contrapartida, Maddie receberá um automóvel Buick, que lhe permitirá voltar à sua rotina de motorista de aplicativo. Para quem sabe, ali adiante, saldar as dívidas.

E é evidente que a timidez agressiva de Percy, somada a desinibição ao mesmo tempo sensual e meio desengonçada de Maddie resultará em instantes em alguma medida cômicos. Percy não tem realmente nenhuma habilidade social: é o estereótipo do jovem introspectivo, que fica metido no seu quarto e que tem como únicos companheiros de convívio os seus parceiros de jogos online. Mais do que isso, não bebe, não se diverte e ainda tem uma caretice que escorre da alma, que faz com que Maddie pareça verdadeiramente descolada perto dele, mesmo ela tendo quase quinze anos a mais. Quando ambos resolvem nadar pelados na praia, por exemplo, é ele que fica tímido, quase encolhido, com medo da polícia, da falta de pudor, de qualquer coisa que possa lhe comprometer. Já a protagonista fará um esforço hercúleo para tentar dobrar o adolescente para que ele simplesmente transe com ela (um objetivo que, lá pelas tantas, parecerá quase impossível de ser alcançado).

E eu não vou negar que em matéria de comédia física e de situações inusitadas e de vergonha alheia, a obra tem lá algumas virtudes. Mesmo que elas sejam resultado mais de estranhamento do que qualquer outra coisa. Mas, ainda assim, parece que falta algum tempero. Um molho. Algo mais oxigenado. Que fará com que o espectador invista mais as suas expectativas naqueles personagens. Percy, por exemplo, parece tão deslocado que parece impossível qualquer tipo de conversão. Assim como parece ser necessária uma boa dose de suspensão de descrença pra imaginar uma mulher como Lawrence, investindo seus esforços num jovem nerd que, de quebra, empreenderá uma via crúcis na manutenção da virgindade. Claro que esse contraste tem potencial. Ainda que lá pelas tantas ele canse, inegavelmente - fruto de um roteiro meio claudicante e insosso, que resulta em piadas genéricas. As intenções talvez fossem boas. Só que não rolou tão a contento. E tá tudo bem. No hard feelings.

Nota: 5,0


Pitaquinho Musical - Tirzah (Trip9love...???)

Se tem uma artista que transita bem entre o experimental e o acessível, esta é a inglesa Tirzah. Se em alguns momentos as suas melodias sofisticadas parecem envoltas em névoas intransponíveis, em outros os elementos descomplicados dos versos parecem um convite à simplicidade. Foi assim com os elogiados Devotion (2018) e Colourgrade (2021), com o expediente se repetindo agora, com o ótimo Trip9love...???. Ao cabo, esse é aquele tipo de disco que vai te ganhando aos poucos, a cada repetição, a cada nova investida ao encontro dos sussurros hipnóticos da artista. Sim, a coisa toda pode parecer meio hermética num primeiro momento, dados os efeitos eletrônicos complexos, as quebras de andamento nunca óbvias ou a condução evidentemente enigmática, que fazem cruzar com naturalidade estilos como R&B, trip hop, bedroom pop e minimal wave. Mas o resultado é palatável, suave, harmonioso.

Um bom exemplo desse expediente pode ser encontrado na envolvente u all the time, que começa com um pianão classudo que, ali adiante, se encontrará com um sintetizador levemente poluído, que encaixará direitinho com o minimalismo dos efeitos e com o vocal límpido. Já their love é aquele tipo de canção que já começa com uma espécie de refrão improvisado, que se engancha numa ponte atmosférica, com tudo terminando com aquela sensação de que algo ficou incompleto - aliás, como em muitos casos são os relacionamentos, com suas complexidades e incertezas. Sombrio e melancólico em todas as suas possibilidades, o disco produzido por Mica Levi parece mergulhar em dores cíclicas, que martelam de forma vertiginosa. Mas ali adiante há um pontinho de esperança, que ilumina tudo.

Nota: 8,5


terça-feira, 5 de setembro de 2023

Na Espera - Quem Fizer Ganha (Filme)

Sim, pode ser que seja uma bomba, mas não vou negar que fiquei genuinamente empolgado com Quem Fizer Ganha (Next Goal Wins) - novo do diretor Taika Waititi (de Jojo Rabbit, 2019), que teve seu trailer divulgado nesta semana. Com um DNA anos 90 que envolve narrativas de superação, a obra conta a história inspirada em eventos reais sobre o treinador de futebol Thomas Rongen, um holandês ranzinza que é contratado para ser técnico da seleção de Samoa Americana - um coletivo despreparado de jogadores, que parecer ser incapaz de fazer um gol que seja. E que, mais do que isso, é conhecido por ter sofrido a pior derrota da história em uma partida de Eliminatórias da Copa do Mundo - um inapelável 31 a 0, contra a Austrália. 

 


Apostando num tom divertido, bem humorado - como é de praxe na carreira do realizador -, o trailer mostra os esforços do técnico, evidenciando diferenças culturais e dificuldades generalizadas, tudo ao som de uma versão envolvente de Take A Chance On Me, do ABBA. Com data de estreia no Brasil marcada para o dia 14 de dezembro de 2023, a obra - baseada em um documentário de mesmo nome - tem no elenco nomes como os de Michael Fassbender, Elisabeth Moss, Kaimana e Will Arnett. Em matéria de Oscar ainda é cedo pra fazer qualquer aposta, mas a produção for bem recebida nos festivais, pode ter a sua campanha fortalecida em categorias como Roteiro Adaptado e até Filme. Resta aguardar!


segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Novidades em Streaming - Mergulho (La Caída)

De: Lucía Puenzo. Com Karla Souza, Hernán Mendoza, Dèja Ebergenyi e Fernanda Borches. Drama, México / EUA / Argentina, 2022, 94 minutos.

A história sombria que assistimos no ótimo Mergulho (La Caída), muito provavelmente é a história de muitas atletas, nos bastidores do esporte. Em um ambiente tradicionalmente de grande cobrança, de esforços (quase) inalcançáveis e de assédios constantes - sexuais, psicológicos, morais -, se tornar um desportista de ponta parece ter um preço caríssimo. Ao cabo, é necessário se submeter a muita coisa pra chegar lá - e não estamos falando apenas das horas infinitas de treinos. No combo há desde a falta de investimentos, passando pela pouca visibilidade em certas modalidades, até chegar ao machismo e a misoginia que, ali adiante, não demorarão pra descambar pra violência. E quando refletimos a respeito de casos como a da ginasta norte-americana Simone Biles, que encabeçou uma luta quase inglória que envolvia não apenas o seu agressor, o ex-médico Larry Nassar, mas o próprio FBI, para percebermos a gravidade desses episódios. O escândalo de assédio sexual veio à tona em 2022. E, vamos combinar, surpreende um total de zero pessoas.

Porque junto com o poder também parece vir a reboque a certeza da impunidade. Ser técnico contratado por um País ou mesmo algum tipo de autoridade de alguma área parece colocar esses sujeitos acima do bem e do mal. E basta pensar na quantidade de pessoas "importantes" dos mais variados setores que, recentemente, foram acusados - e até condenados - por assédio. No filme da diretora Lucía Puenzo (do excelente XXY, 2007) e que é estrelado por Karla Souza, vista na série How to Get Away With Murder, temos mais um desses casos "isolados" - dessa vez envolvendo a equipe mexicana de saltos ornamentais, que se prepara para as Olimpíadas de Atenas, 2004. E é em meio às prévias para os jogos, que a parceira de Mariel (Souza) na modalidade sincronizada tem uma severa lesão que lhe retira da disputa. E é então que se técnico Braulio (Hernán Mendoza) recruta a jovem de apenas 14 anos Nadia (Dèja Ebergenyi) para substituí-la.



Só que isso gera certo desconforto em Mariel - uma veterana que foi medalhista olímpica com apenas 15 anos e que, por uma série de lesões e outros problemas, nunca mais conseguiu repetir a mesma performance. Em resumo, ela está indo para os seus últimos jogos antes da aposentadoria. E já com a experiência dos mais de 30 anos de idade, não gostaria de saltar com uma iniciante. E tudo piora quando, ainda no início da preparação, uma notícia cai como uma bomba: a mãe de Nadia, Irene (Fernanda Borches), acusa Braulio de ter assediado a sua filha. O que parece ir contra todas as possibilidades, dada a trajetória do treinador e o respaldo que ele tem em todos os setores. Nessa queda de braço sabemos qual é a ponta mais fraca da equação e qual o lado que sairá perdendo quando uma investigação tem início. E Lucía mantém o espectador o tempo todo em suspense, trafegando no limite da dúvida - como sempre costuma ocorrer nesses casos.

Em linhas gerais a obra pode até ser meio imprevisível em alguns aspectos, mas a construção é envolvente, em meio a idas e vindas e a aproximação dos Jogos. Braulio tem uma amizade de anos com a própria família de Mariel que acredita que, não fosse por ele, e ela nunca teria sido medalhista (e a insistência de todos em reassistir a sua performance vitoriosa do passado parece gerar apenas desconforto). E este aspecto adiciona em um elemento a mais, que nos lembra o fato de que, como muitas pesquisas mostram, em muitos casos o assediador é alguém próximo, que está no convívio diário. Utilizando o próprio mergulho - e o conceito de queda - para posteriormente se reerguer, a obra possui efeito catártico em seu terço final, quando Mariel toma decisões que modificarão a vida de todos ao se redor. Às vezes para que se tenha voz, é preciso alegoricamente se calar. E agir. Karla, aliás, está em uma interpretação belíssima, sendo capaz de transmitir força e vulnerabilidade em todos instantes. Um acerto que está disponível na Amazon.

Nota: 8,0