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segunda-feira, 15 de abril de 2024

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - O Cheiro do Papaia Verde (Vietnã)

De: Tran Anh Hung. Com Lu Man San, Thi Loc Truong, Gerard Neth e Thi Hai. Drama / Romance, Vietnã / França, 1993, 104 minutos.

Vamos combinar que é difícil analisar o tocante O Cheiro do Papaia Verde (Mùi Đu Đủ Xanh), sem levar em conta o aspecto sensorial da obra. Ao cabo, trata-se de um filme pequeno, que parte de um fiapo de história - aliás, como é bastante comum no cinema asiático -, mas que faz o espectador mergulhar em uma ambientação de cores vivas, de cenários bucólicos, de barulhos (mas de silêncios) e até de sabores e de cheiros que parecem saltar da tela. Assim como ocorre no cinema contemplativo de Apichatpong Weerasethakul, temos uma experiência com a sua própria fluidez de tempo. Entre um take e outro, com o uso de travellings, de planos sequência, de gruas e de câmeras próximas ao chão - que emulam o cinema de Yasujiro Osu -, temos uma natureza abundante que abraça os habitantes da vila vietnatima em que se passa a história. Sim, é um filme sobre contrastes sociais, infidelidade, memória, papel da mulher na sociedade, trabalho e tradições, mas é também uma produção naturalista e poética, profunda mas sutil.

O cenário ficcional é um pequeno vilarejo da Saigon do início dos anos 50, portanto um pouco antes da Guerra do Vietnã - ainda que ronde o espaço os toques de recolher e uma certa tensão do ambiente no contexto de outra guerra, a da Indochina. É nesse local que Mui (Lu Man San), uma criança de dez anos, chega para trabalhar como serviçal de uma família rica, mas que enfrenta um período de decadência financeira (as vendas já não estão das melhores e há ainda os episódios de infidelidade do patriarca, que, não bastasse dar suas escapadas, ainda leva a grana do comércio de tecidos). Curiosa e observadora sobre o mundo, Mui atua em trabalhos domésticos gerais, especialmente os que envolvem a preparação de legumes e a elaboração dos pratos da cozinha oriental - em especial aquele feito com o mamão que ainda não está maduro. Aliás, a alegoria sobre uma fruta que ainda verde surge como uma metáfora para a própria Mui, que desbrava os cantos daquela habitação, sendo mais ou menos adotada por aquela família - a matriarca (Thi Loc Truong) perdeu uma filha e parece ver nela uma forma de suprir a ausência.

 


 

Ao mesmo tempo, a protagonista se aproxima dos outros integrantes da família - especialmente o filho mais novo (de três), Tin (Gerard Neth) que costuma atormentá-la com seu comportamento imaturo, perturbador e até ressentido pelas seguidas ausências do pai (Ngoc Trun Tran). Já no andar de cima, a avó (Thi Hai) é uma senhora inválida, viúva, que raramente deixa o quarto que habita. Mui circula pelos ambientes, atende pedidos, encontra vizinhos e amigos, enquanto acompanha a derrocada dos patrões. O que envolverá uma tragédia futura e um salto temporal em que ela surgirá adulta, agora trabalhando como serviçal na casa de um amigo do filho mais velho da família, de nome Khuyen (Hoa Hoi Vuong) - um pianista casado com uma mulher aparentemente fútil, que ele não ama tanto assim. E, bom, a gente mais ou menos imagina o que vai acontecer, em meio a memórias, lembranças - carinhosas ou não - de um ambiente ingênuo, mas de aprendizado e que nos apresenta um País poucas vezes visto em produções que chegam ao Ocidente.

Aliás, esse foi o primeiro filme do diretor Tran Anh Hung, do recente O Sabor da Vida (2023), que, não apenas lhe apresentou para o mundo, como lhe deu notoriedade, com indicações a premiações (entre elas o Oscar) e vitórias no Festival de Cannes (na categoria Câmera de Ouro). Em um momento em que suspenses policiais e comédias mais escrachadas movimentavam a Hollywood dos anos 90, o realizador foi na contramão ao estacionar sua câmera como um meio de mostrar a vida regular, cotidiana do povo vietnatima - seus amores e sonhos, seu comércio, suas famílias, filhos, avós, fazendo uma espécie de contraponto à modernidade. "Eu queria mostrar a humanidade dessas pessoas, que ainda não havia sido vista no cinema", comentou Hung em entrevistas de divulgação, citando ainda que a obra também nascia de imagens que tinha da própria minha mãe, do frescor e da beleza de seus gestos. O resultado é uma experiência extremamente bem coreografada entre arabescos e balaústres, que se mesclam com folhagens verdíssimas, cantos de grilos, formigas e sapos despreocupados, percussões inesperadas, instrumentos de cordas e um todo estimulante, que burla os limites entre o dentro e o fora, o interior e o exterior. Tudo executado de forma inebriante, vívida e bastante fluída.

 

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - De Quem É o Sutiã? (Azerbaijão)

De: Veit Helmer. Com Miki Manojlovic, Denis Lavant, Paz Vega e Chulpan Khamatova. Comédia / Drama, Azerbaijão / Alemanha, 2018, 91 minutos.

Uma experiência ousada, curiosa e divertida que, em alguma medida, ainda comove em sua análise sobre a solidão no mundo e a respeito da nossa eterna busca por algum tipo de conexão humana. Sim, talvez eu esteja dando uma exagerada nas minhas impressões a respeito da comédia De Quem É o Sutiã (The Bra), obra do Azerbaijão que está disponível na plataforma Belas Artes A La Carte. Na trama, que não possui uma linha de diálogo sequer - um recurso que parece funcionar muito menos como homenagem e sim como artifício que ajuda a contar a história (os silêncios que dizem muito) -, acompanhamos o maquinista veterano Nurlan (Miki Manojlovic), em vias de se aposentar. Cruzando diariamente uma comunidade montanhosa na região do Cáucaso (próxima a capital Baku), ele tem como tarefa complementar de sua rotina levar de volta para os moradores do local as peças de roupa que, porventura, resultem penduradas, por "acidente", no trem.

O caso é que o trem passa muitíssimo perto das casas (e dos habitantes), tanto é que um menino tem a curiosa incumbência de alertar as pessoas do entorno a respeito das idas e vindas da composição - o que ele faz com apitos, gritos e gestos exagerados, que espantarão os moradores para fora dos trilhos. Aliás, um tipo de risco meticulosamente calculado, pelo visto. Só que isso não evita roupas de cama e blusas que, penduradas em varais muito próximos dos trilhos, resolvam "pegar uma carona" na enorme condução. Nurlan, como perceberemos, é um sujeito bastante solitário. E encontra nessa rotina de devolução de objetos, uma forma de aproximação com desconhecidos. Só que tudo se complica em seu último dia: após passar o bastão para o seu substituto Kamal (Denis Lavant), o homem perceberá a presença de um sutiã azul enroscado no motor do trem. O que lhe mobilizará a empenhar uma verdadeira via crúcis em busca da dona da peça.

Em alguma medida, esse é o tipo de experiência que parte de um fiapo de história para tentar avançar para além do microcosmo - o que ocorre em outros projetos do cinema asiático, como no caso dos iranianos (e mais pesados) Tempo de Cavalos Bêbados (2000) e Onde Fica a Casa do Meu Amigo? (1987). Especialmente no segundo caso, a história é minúscula e envolve um menino empenhado em levar um caderno perdido para o seu colega de sala de aula, para evitar que este seja punido por seu professor. Aqui não há necessariamente, uma motivação a mais para além da banalidade cotidiana, com o caráter documental do projeto o fortalecendo como uma produção naturalista. Por mais que o trem possa ser corpulento e exagerado, inclusive no que diz respeito à sonoridade de suas engenhocas, não deixa de ser interessante notar como o silêncio sepulcral forma um curioso paradoxo para o barulho exterior. Não há necessidade de diálogos para que tudo seja perfeitamente entendido.

Nas redes sociais, sempre prontas para aquela ação diária de cancelamento, foram criticadas algumas escolhas do diretor alemão Veit Helmer, especialmente por conta de uma suposta sexualização ou objetificação das mulheres. Afinal, nas andanças de Nurlan pela vila ele encontrará as mais variadas personalidades - que podem ser desde uma jovem carente, uma interessada dançarina, uma mulher de vida bastante humilde e uma casada que parece sempre estar sendo vigiada pelo marido opressor. Em cada encontro, uma tentativa de fazer ver se o sutiã serve ou não em cada uma delas, como um ideal talvez alegórico, metafórico do "par perfeito" (por mais que, evidentemente, nunca seja tão saudável tentar encaixar algo ou alguém em nossas vidas, forçadamente). Com ecos de Jean Pierre Jeunet e Jacques Tati, essa é uma obra carismática e eventualmente caricatural que, dado o seu tema, preserva uma ingenuidade e um senso de humor acachapantes. Condição reforçada por sua afetuosa conclusão.

 

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - Papicha (Argélia)

De: Mounia Meddour. Com Lyna Khoudri, Shirine Boutella e Amira Hilda Douaouda. Drama, Argélia / Qatar / França / Bélgica, 2019, 106 minutos.

"Irmã, cuide da sua imagem ou nós cuidaremos". "É pecado as mulheres se reunirem às sextas-feiras". "As mulheres devem ficar em casa, perto de Alá, sem se expor". "Não beba em pé ou com a mão esquerda, satanás pode ver". Todas essas frases proferidas no decorrer do filme Papicha podem até parecer saídas dos escombros da Idade Média. Mas na realidade é só Argélia, em meados dos anos 90. Foi nesse período que uma guerra civil entre representantes do governo e rebeldes islâmicos que integravam um grupo fundamentalista religioso, teria resultado na morte de cerca de 150 mil pessoas. Entre elas milhares de civis, de parte a parte. E como se já não bastasse o patriarcalismo estrutural em regiões que parecem pender para a opressão e para todos os tipos de violência possíveis, o radicalismo ampliaria o sensação de isolamento das mulheres. Acuadas, talvez tivessem apenas umas as outras, afinal. O que em alguma medida, é visto na obra dura e comovente da diretora Mounia Meddour.

E confesso que, sendo leigo no assunto, admito não ter a certeza de quando foi que a coisa começou a desandar no País africano. Mas o filme já começa com um senso de urgência - reforçado pela excelente e tensa edição - trepidante. Enquanto se empenham em dar uma escapadela da faculdade em que estudam, as jovens Nedjma (Lyna Khoudri) e Wassila (Shirine Boutella) colocam um plano bastante ousado de ir a uma casa noturna da capital Argel. O que envolve uma estratégia quase de guerra - com táxi clandestino, pagamento de propina para o vigilante do campus e uma sequência de mentiras, quando são paradas em uma barreira por um grupo militar islâmico. "Estamos voltando de um casamento", explicam, enquanto improvisam a colocação do Hijab (aquele pano típico árabe, que cobre o rosto das mulheres). O caso é que para os fundamentalistas, mulher não tem que estar na rua naquela hora da noite. Muito menos, sequer sonham eles, indo para uma boate. Dançar, se divertir, beber, fumar, curtir a vida.

Nedjma, a carismática protagonista, é apenas uma jovem de vinte e poucos anos que adoraria poder viver sem medo de morrer a cada instante, a cada esquina. De poder colocar a sua calça jeans e o seu all star - ou o seu vestidinho preto com sandália de salto, na cena noturna -, sem ser acossada por ninguém. Poder ver filmes, estudar, sair quando quiser, ouvir música. E ser estilista. É o sonho dela. E parte do processo de ir a uma boate também tem a ver com o seu trabalho e o seu sonho de ser uma profissional da alta costura. Meio ás escondidas ela adquire os tecidos e os adereços em uma espécie de mercado perto da faculdade onde, após cerzidas, as peças vestirão outras meninas (amigas que ela conhece da faculdade). Mas o problema para os fanáticos religiosos é que essa "liberdade" toda incomoda. Mulher de calça jeans? "Não sei lidar com toda essa nudez", argumenta um jovem amigo - que parece ter uma cabeça de votante misógino do PL jovem. Não há nudez ali. E se houvesse? O que teria o rapaz a ver com isso?

Esse é um dos tantos momentos em que Nedjma se exaspera ao perceber que o fundamentalismo dos grupos rebeldes parece se espalhar, inclusive entre pessoas da idade dela. Em uma outra sequência carregada de apreensão, Nedjma discute com um rapaz que está colando cartazes que propõem as supostas novas vestes das mulheres, em caso de vitória dos grupos de dissidência. Todas pretas ou marrons, cobertas, sem vida, sem personalidade, sem corte - como costumam ser as roupas absurdamente comportadas da doutrina islâmica. Diante de tudo isso, o simples sonho da protagonista, em meio a homens abusadores de toda a sorte, pressões diversas - inclusive de mulheres que apoiam esse regime totalitário e misógino - e uma sensação de impotência diante de tudo, é organizar um desfile na faculdade. Um desfile de moda, com suas colegas e amigas utilizando versões reimaginadas e ressignificadas do Hijab. Mas como fazer isso se o simples ato de não usar tais vestes pode significar, inclusive, a morte?

Revoltante, o filme não alivia ao evidenciar a violência que explode por todos os lados - inclusive de modo surpreendente, como revela a dolorida sequência que envolve a irmã de Nedjma, Linda (Meriem Medjkane). E quando os grupos islâmicos ameaçam fechar as faculdades - "você quer dominar as mentes delas", alega uma fundamentalista que invade uma aula sobre sociedade moderna (aliás, qualquer semelhança com projetos como Escola Sem Partido não é mera coincidência) -, a protagonista prossegue com seu sonho, sendo apoiada por suas amigas e colegas. O que resulta em um sem fim de instantes comoventes, que fortalecem o ideal de sororidade como um caminho absolutamente natural na hora de lutar contra sistemas patriarcalistas. Disponível na Mubi, e vencedor de vários prêmios internacionais, esse é daqueles projetos que nos deixam um gosto amargo. Ainda que, em tempos de ascensão da extrema direita e de grupos reacionários como um todo, seja totalmente necessário.

quinta-feira, 6 de julho de 2023

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - Sick of Myself (Noruega)

De: Kristoffer Borgli. Com Kristine Kujath Thorp, Eirik Sæther e Fanny Vaager. Comédia / Drama, Noruega / Suécia, 2022, 95 minutos.

Uma metáfora perfeita para o transtorno da personalidade narcisista - que parece estar bem em alta em uma era de individualismo, de baixa responsabilidade afetiva e de busca permanente por atenção a qualquer custo (especialmente nas redes sociais). Assim podemos resumir a experiência com o excêntrico Sick of Myself (Syk Pike), filme norueguês dirigido por Kristoffer Borgli e que leva até o limite a ideia de fama e de vaidade a qualquer preço. Misturando a sátira do comportamento mesquinho das classes abastadas à moda Ruben Ostlund com o body horror implacável de David Cronenberg, a obra nos apresenta ao casal Signe (Kristine Kujath Thorp) e Thomas (Eirik Sæther) - ela funcionária de um bar de Oslo, ele um artista plástico especializado em produzir esculturas feitas com móveis e outros materiais roubados. 

Só que o problema é que Signe está ficando com ciúmes da atenção que Thomas tem recebido pelo seu trabalho. E a oportunidade de atrair algum "holofote" pra si surge da forma mais aleatória possível: no caso, em um dia convencional de trabalho no bar, quando uma mulher é atacada por um cachorro sendo a protagonista a primeira a socorrê-la. Com sua roupa manchada de sangue, a jovem vaga pela cidade, enquanto relata aos amigos a história do salvamento épico - uma narrativa que vai ganhando tintas a cada dia mais exageradas, quase folclóricas (para estranhamento de amigos e conhecidos). Em meio a isso, Thomas consegue uma exposição em um renomado ateliê e, para não ficar pra trás, Signe finge estar tendo uma severa reação alérgica motivada pelo consumo de nozes. É nesse cenário que a barista percebe haver uma brecha: ficar doente poderá ser a desculpa perfeita para que ela se torne oficialmente o centro das atenções. Tendo algum tipo de admiração dos demais.



Mas como não é possível adoecer do nada, Signe vai pra internet. E descobre a existência de um medicamento para controle da ansiedade chamado Lidexol - que seria trazido da Rússia, via deep web, com um amigo traficante. Em doses cavalares, a droga tem severos efeitos colaterais que iniciam como manchas vermelhas na pele e avançam para verdadeiras deformidades no corpo. Bom, se a ideia da protagonista era chamar a atenção, talvez a medida drástica ajude? Em partes. O caso é que na atual máquina infinita de informação que vivemos, um assunto é simplesmente atropelado por outro - às vezes no mesmo dia. De nada adianta Signe fotografar a si própria como uma pessoa debilitada, que padece de uma doença desconhecida. Sair em um portal de notícias? De tarde, as manchetes já mudaram. E mesmo quando a jovem obtém um contrato para trabalhar com moda inclusiva, seu segredo parece sempre prestes a vir à tona (na mesma medida em que sua saúde se esfacela).

Em tempos em que influencers fazem de tudo para chamar a atenção - como no caso do youtuber que engordou 100 quilos enquanto era saudado por seus milhões de seguidores - pensar em uma alegoria do tipo nem parece ser um exagero. Uma pesquisa no Google e a gente localiza as mais variadas "personalidade de mídia" com seus comportamentos exóticos travestidos de iconoclastia. Vale tudo pela fama? Por aqueles quinze minutos de holofotes que alimentam o ego? Na produção de Borgli o que percebemos é que o comportamento perturbado de Signe pode ser ao mesmo tempo repugnante e patético em sua busca desenfreada por migalhas em formato de cliques. Com tudo piorando quando a disputa com Thomas se torna algo pessoal - a ponto de ela jamais conseguir celebrar as conquistas do parceiro. Você já viu alguém assim no seu entorno?  Alguém que se acha especial? Que exagera suas conquistas? Que não tem empatia? Que tá sempre atrás de aplausos? Que apenas explora os outros sem nenhuma reciprocidade? Que se vitimiza? Que só fala a linguagem do "eu, eu, eu"? Sim, tem bastante por aí. Talvez até nós mesmos sejamos essa pessoa. Vai saber. 


terça-feira, 6 de junho de 2023

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - A Lancheira (Índia)

De: Ritesh Batra. Com Irrfan Khan, Nimrat Kaur e Nawazzudin Siddiqui. Drama / Romance, Índia / França / EUA / Alemanha, 2013, 104 minutos.

Vamos combinar: a gente vive tempos tão individualistas que, por mais sonhadores e improváveis que filmes como A Lancheira (Dabba) sejam, eles ainda parecem renovar as nossas esperanças. Nem que seja em partes. O ato de almoçar, afinal, pode ser bastante solitário para o funcionário público Sajaan Fernandes (Irrfan Khan) que, em meio a papelada e as burocracias cotidianas, recebe a sua marmita deixada por um tradicional serviço de entregas de Mumbai (o Mumbai Dabbawallahs que, pelo que entendi não apenas existe de verdade, como é bem famoso). Em outro ponto da cidade, a dona de casa Ila (Nimrat Kaur) ocupa as manhãs no preparo do almoço do marido que, mais adiante, descobriremos que talvez a esteja traindo. O capricho dela na preparação do farnel tem a ver com isso: por meio do estômago, Ila pretende reconquistá-lo. A comida saborosa é o caminho, talvez. O aroma, o gosto, o visual, o amor. Tudo parece estar lá dentro naquela marmita metalizada envolta em uma sacola verde.

Só que um problema acontece quando a entrega vai para o destino errado - e a marmita enviada por Ila vai parar na mesa de Sajaan. Que a devora literalmente limpando o prato! Com trinta e cinco anos dedicados ao trabalho, Sajaan está para se aposentar. E comunica o serviço de entregas sobre não ser mais necessário o envio do almoço no próximo mês. Com gentileza, ele informa o atendente sobre a qualidade do preparo do dia. O preparo feito por Ila - não percamos de vista. No dia seguinte o equívoco se repete. Em meio aos esforços do protagonista em treinar o seu substituto - o expansivo e carismático Shaikh (Nawazzudin Siddiqui) -, a marmita é recebida. Só que dessa vez ela está levemente apimentada (a tia de Ila havia lhe dito algo sobre o ingrediente e sobre como deixar as coisas mais quentes em relação ao marido). Sajaan resolve enviar um bilhete para Ila. Sendo esse o instante em que eles iniciarão uma improvável amizade. Construída por meio de bilhetes subsequentes. Enviados por meio da marmita do dia.

Evidentemente, Ila perceberá que há um equívoco e que o alimento não está chegando ao marido. Só que, de um completo desconhecido, ela passará a receber o carinho que está, grosseiramente, em falta em casa. Ao passo que para Sajaan, as conversas com Ila darão cor (e sabor, claro) aos seus dias acinzentados em meio a arquivos, fichários e mesas abarrotadas. Pode parecer apenas inusitado, mas não deixa de ser simpático. Charmoso. A sensação de calor humano é ampliada pelo completo senso de solidão vivido mesmo quando se está em meio a multidão - com seus trens lotados, tráfego lento, arranha-céus intermináveis e outros elementos que formam uma paisagem sem vida, fria, apática, caótica. Na varanda de casa, Sajaan acende um cigarro atrás do outro enquanto observa o movimento da vizinhança. "Seria legal se você parasse de fumar", lembra Ila em uma das carinhosas cartas. Parecem migalhas que, para aquele homem tão traumatizado - um viúvo a caminho do ocaso de sua existência -, serão tudo.

Em alguma medida, é possível afirmar que esse romance epistolar dos tempos modernos funciona direitinho - ainda que, para o espectador, a ansiedade para um possível encontro só aumente a cada nova troca. Mas a obra do diretor Ritesh Batra (de Retrato do Amor, 2019) parece ter muito mais a ver com coincidências e com o compartilhamento de experiências do que necessariamente com o sonho de um grande amor. "Esquecemos as coisas que não temos a quem contar" comenta Sajaan a Ila em certa altura. Às vezes não precisamos muito para termos motivação para levantar da cama e prosseguir. Um afago, um carinho, o reconhecimento por algo, uma nova amizade ou um amor. Uma boa refeição com quem se gosta. Uma refeição enviada carinhosamente por quem se gosta. O filme não dará soluções óbvias ou fáceis como seria se essa fosse uma simples comédia romântica hollywoodiana. Melancólica e doce, sutil mas labiríntica, essa é daquelas experiências pequenas, mas que nos acompanham. Como se fosse um almoço gostoso demais. Tá no Mubi. É só saborear.


segunda-feira, 22 de maio de 2023

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - A Copa (Butão)

De: Jamyang Lodro, Orgyen Tobgya, Lama Chonjor e Nethen Chokling. Comédia, Butão / Austrália, 1999, 89 minutos.

"O futebol é a coisa mais importante entre as menos importantes", já diria a frase atribuída ao ex-treinador da seleção italiana Arrigo Sacchi. Mas talvez para um grupo de monges isolados em um monastério tibetano talvez ela seja a mais importante mesmo. De todas. Ou ao menos é assim quando o assunto é a Copa do Mundo. E na realidade pouco importa se o Butão, o Nepal ou mesmo a Índia não estão na disputa. Para os protagonistas de A Copa (Phörpa), essa saborosa comédia butanesa tida como o primeiro filme gravado no país asiático na história, o que vale é conseguir assistir as partidas de futebol. Ver Ronaldo, Zidane, Roberto Baggio e outros ídolos da época. O ano é 1998 e a efervescência do maior torneio parece estar por toda a parte. Sensação amplificada pelo sem fim de pôsteres dos ídolos do futebol, que estão espalhados pelo quarto do jovem noviço Orgyen (Jamyang Lodro).

Na obra dirigida por Khyentse Norbu - que foi assistente de direção de Bernardo Bertolucci na época que o italiano gravou O Pequeno Buda (1993) e que é um respeitado lama - acompanhamos as peripécias de Orgyen, que sempre dá um jeito de fugir da abadia a noite, para tentar conseguir assistir ao máximo de jogos possíveis. Durante as longas sessões de orações na eterna busca por elevação, o pequeno parece mais interessado em saber quem joga, os horários e outros detalhes, o que ele faz em troca de bilhetes com outros interessados. Sendo sempre observados com certo distanciamento por Geko (Orgyen Tobgyal), que espera que os noviços possam se preocupar com assuntos mais espiritualizados do que banalidades como o futebol (e eu que sou colorado deveria seguir pelo mesmo caminho). Como forma de ampliar o senso de compromisso do pupilo, Geko coloca em suas mãos outros dois meninos, que chegam refugiados do Tibete. Mas como não ser contagiado pela febre?


O caso é que num filme como esse a gente não leva em conta apenas a paixão pelo futebol, mas também o amor pelo cinema. O Butão, tido tantas vezes como um dos países mais felizes do mundo, levaria 104 anos produzir o seu primeiro filme. E a gente nota, aqui e ali, uma e outra inevitável imperfeição - de olhadas pra câmera que não eram pra ocorrer até posicionamentos incorretos na hora da tomada. Mas tudo é absolutamente superado pelo carisma do elenco central. Lodro, com suas caretas expressivas, é simplesmente cativante, e no terço final da obra a gente já está numa torcida alucinada para que ele não apenas consiga realizar o sonho de assistir à final da Copa - após um desdobre em Geko (que, ao cabo, também guarda em segredo certo fanatismo pelo esporte) -, como ainda desejamos que tudo dê certo em relação a promessa de reaver um relógio empenhado, que é parte de uma negociação tensa para que uma simples TV com antena parabólica enferrujada possa ser obtida para ver o jogo.

É uma obra tão simples, tão econômica, como costumam ser as obras asiáticas, com seus fiapinhos de história cheios de sentido, que a coisa toda quase pende pra ingenuidade. Mas é meio difícil ficar alheio. Ou não se comover. Há um instante em que Orgyen toma um banho de banheira e, sob suas vestes, está uma camiseta canarinho com o número nove e o nome de Ronaldo. Em épocas tão equivocadas no que diz respeito ao senso de patriotismo, não deixa de nos dar uma pontinha de orgulho saber que naqueles anos 90 agora tão distantes, o futebol brasileiro gerava tamanha euforia. A propósito do contexto político, social e cultural da região, Norbu não deixa de fazer um aceno, especialmente na abordagem indireta que envolve a ocupação chinesa dos países do entorno. De alguma forma o destemido esforço de Orgyen na tentativa de quebrar o status quo ou a ordem dominante, talvez funcione ainda como uma alegoria que coloca frente a frente tradição e modernidade, obsolescência e contemporaneidade. Ou mesmo a ponta fraca enfrentando destemidamente a mais forte. Tá no Mubi. E vale conferir.


segunda-feira, 6 de junho de 2022

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - A Bela e os Cães (Tunísia)

 De: Kaouther Ben Hania. Com Mariam Alferjani, Ghanen Zrelly e Anissa Daoud. Drama, Tunísia / França / Líbano / Noruega / Qatar / Suécia / Suiça, 2017, 100 minutos.

Um estupro aparentemente cometido por policiais. Esse é o ponto de partida de uma madrugada em que Mariam (Mariam Alferjani), a protagonista de A Bela e os Cães (Aala Kaf Ifrit) - filme tunisiano disponível no Mubi -, sofrerá um sem fim de abusos físicos e psicológicos enquanto se esforça em denunciar a violência sofrida. Afinal de contas, como que se denuncia um abuso que é cometido justamente por aqueles que deveriam defender o cidadão? Sim, unidades de polícia criminosas, corruptas, violentas não parecem ser exclusividade do Brasil e, em países ainda mais misóginos, machistas e patriarcais como a Tunísia, todo esse contexto parece ser ampliado. A dificuldade geral em relatar um crime sexual vai do hospital, passando pela delegacia até chegar à esfera privada, onde uma mulher violada ainda corre o risco, como consequência, de ser considerada impura, marginalizada (especialmente em nacionalidades em que o fanatismo religioso impera).

Filmada quase como se fosse um grande plano sequência, a obra da diretora Kaouther Ben Hania - do recente (e ótimo) O Homem que Vendeu Sua Pele (2020) - assume um caráter propositalmente documental, inserindo o espectador como uma espécie de observador a se deparar com a completa sensação de abandono vivida por Mariam. Tudo começa em uma festa, onde a jovem está curtindo uma noite com as amigas - com direito a socorro de uma delas para uma troca de vestido já que o outro rasgou em um "acidente" na boate (aliás, o tipo de detalhe que funciona como uma espécie de rima visual perfeita sobre a temática do filme). Mais adiante, a protagonista conhece Yousseff (Ghanen Zrelly), se interessando pelo sujeito. Quando ocorre um corte do primeiro para o segundo ato - de nove no total -, Mariam já surge desesperada, fugindo de algo muito traumático que parece ter ocorrido. E é aí que uma verdadeira via crúcis em busca de justiça tem início.

Realista ao abordar a sensação de abandono social em episódios do tipo, o filme nos conduz inicialmente ao hospital onde, em vão, Mariam e Yousseff se empenham em obter algum tipo de atestado, um documento qualquer, que possa ser a comprovação de que ela foi violada. O que permitiria dar encaminhamento a um boletim de ocorrência com mais informações. No hospital as perguntas e respostas de médicos e enfermeiros variam de "mas ela está mesmo doente?" a "isso eu não tenho como tratar por não ser algo da minha alçada". Na delegacia, tudo se torna ainda pior, mais agressivo, mais torpe, mais revoltante, com os "homens da lei" agindo como figuras debochadas, cínicas, que colocam o tempo todo em dúvida as denúncias citadas por Mariam. As provocações chegam a Yousseff que reage e acaba sendo preso por desacato. "Esse cara não deveria estar lá pra te proteger?", questiona um policial - o mesmo que, mais tarde, verbalizará o inevitável "mas também com essa roupa, como você acha que não vai ser estuprada?", no mais famoso argumento de culpabilização da vítima que conhecemos.

Dolorida, a experiência evidencia a completa falta de justiça em episódios do tipo. Tudo é filmado de forma urgente, com uma câmera meio trepidante, próxima dos envolvidos, o que amplia a sensação de incômodo generalizado. Em uma das tantas cenas chocantes, a jovem praticamente implora que a polícia não telefone para o seu pai, o que tornaria tudo pior. Sim, em um episódio envolvendo um estupro, a protagonista não encontrará amparo na própria família que, em uma sociedade fechada, conservadora, provavelmente concordará com a justiça a respeito de supostas roupas inadequadas, comportamentos sexualizadas ou atitudes depravadas. Afinal, onde já se viu a mulher ser dona do próprio corpo né? Decidir como quer agir, pensar, vestir? Isso me fez lembrar do famoso episódio em que o Rodrigo Constantino, esse projeto mal acabado de articulista político, afirmou que castigaria a própria filha se ela chegasse em casa denunciando um estupro (Constantino se referia ao famoso caso Mari Ferrer). Esse é o tipo de coisa que faz com que percebamos que, em tempos de Bolsonaro, o Brasil não está assim tão distante da Tunísia.

sexta-feira, 27 de maio de 2022

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - Onde Fica a Casa do Meu Amigo? (Irã)

De: Abbas Kiarostami. Com Babek Ahmed Poor, Amhed Amhed Poor e Kheda Barech Defai. Drama, Irã, 1987, 83 minutos.

Exemplificar o Novo Cinema Iraniano a partir de um único filme certamente não é tarefa fácil, mas eu tendo a acreditar que Onde Fica a Casa do Meu Amigo? (Khane-ye Doust Kodjast?), do diretor Abbas Kiarostami, possui muitas das características que resumem o movimento. Para começar trata-se de uma experiência absolutamente minimalista, que parte de um fiapo de história - e bota fiapo nisso - pra analisar o todo. Depois, há um forte caráter documental, capaz de converter o naturalismo em uma espécie de estética própria. Não há nada necessariamente grandioso em termos sonoros ou visuais. O virtuosismo técnico tem mais a ver com os movimentos inovadores de câmera do que com as ambientações que são simples, cotidianas. O ritmo pode até ser lento, mas há por trás um sem fim de significados em meio a alegorias e metáforas políticas, sociais, culturais, religiosas. Ao cabo, o cinema surgido após a Revolução Islâmica é plenamente dotado de sentidos. De um humanismo palpável. Ainda que arranque mergulhado em uma atmosfera modesta, quase meramente episódica.

Pois nessa pequena joia do cinema asiático, a narrativa começa em uma sala de aula, onde um grupo de alunos de apenas oito anos sofre uma carraspana de seu severo professor - o motivo é aquela baguncinha típica que rola antes da aula começar. Só que para o pequeno Nematzadeh (Amhed Amhed Poor) a situação é mais complicada já que já é a terceira vez que ele esquece o seu caderno e é nesse contexto que o educador ameaça: "se houver novo esquecimento, será expulso". Ao final da aula em meio a agitação e aos atropelos, Nematzadeh acaba machucando o joelho numa queda, sendo socorrido pelo melhor amigo Ahmad (Babek Ahmed Poor), um menino generoso e leal. No rebu que envolve passar uma água no ferimento, Ahmad se dá conta, ao chegar em casa, que ficou com o caderno do amigo por engano. O amigo que será expulso se não levar o material no dia seguinte. E, bom, é a partir daí que o protagonista empreende uma verdadeira via-crúcis na tentativa de descobrir onde fica a casa do amigo para tentar lhe entregar o caderno livrando-o, assim, de sua dolorida sina.


Olhando assim pode parecer quase ingênuo, simplório. Mas a partir da trajetória de Ahmad será possível perceber a discussão de uma série de temas nas entrelinhas - que vão do caráter arcaico do sistema educacional, passando pelo conceito de invisibilidade infantil, pelo poder da amizade, até chegar à carga vivida pelos pequenos, fruto de um modelo que visa a disciplina a partir do trabalho e do respeito pleno aos adultos, independente da circunstância. Em certa altura da projeção dois idosos dialogam sobre como educar uma criança. Um deles, o avô de Ahmad, lembra que, quando novo, seu pai costumava lhe dar uma bala toda a semana e uma surra a cada duas semanas. "Tinha dias que a bala ele esquecia, mas a surra não", garante, dando a entender de que esse padrão deve ser perseguido na formação da próxima geração. Ao que o outro homem retruca: "mas e se não houver motivos para uma surra?". É nesse tipo de contraste típico das narrativas iranianas, que reside uma boa parte da força argumentativa.

Indo de lá para cá com o caderno debaixo do braço, Ahmad atravessa montanhas, "viaja" a pé para cidades vizinhas, bate de porta em porta, investiga, pergunta, pensa que chegou no lugar certo mas não e até roda em círculos. Há um quê de mesquinharia nesse cotidiano em que ninguém se importa, ninguém ouve, em que o curso normal das coisas segue, enquanto a angústia do pequeno se expressa em pequenos gestos, em olhares tão doces quanto aflitivos, em um desespero que cresce. De alguma forma há uma instabilidade meio permanente que parece brotar da incerteza sobre tudo - tanto nos silêncios, como na repetição quase infinita das mesmas frases (normalmente em vão). Ao cabo trata-se de uma obra poética mas angustiante, morosa mas viva, que traça um paralelo com o tipo de drama visto em clássicos do neorrealismo italiano, caso de Ladrões de Bicicletas (1948), sobre um sujeito que tem a sua bicicleta roubada, o que o impede de trabalhar. Vale demais.


terça-feira, 17 de maio de 2022

A Volta ao Mundo Em 80 Filmes - Réquiem Para a Sra. J (Sérvia)

De: Bojan Vuletic. Com  Mirjana Karanović, Jovana Gavrilović, Danica Nedeljkovic. Comédia dramática, Sérvia / Bulgária / França / Macedônia / Rússia, 2018, 94 minutos.

Quando Réquiem Para a Sra. J (Rekvijem Za Gospodju J) tem início, a primeira imagem que surge a nossa frente é um plano conjunto de uma sala de estar de ares simples - com mesinha, uma televisão daquelas de tubo meio antiga, objetos empilhados, estantes empenadas, um ar geral de desordem em meio a uma iluminação capenga. Tudo está em silêncio e o único barulho que escutamos sai do canto do quadro onde uma jovem senhora, meticulosamente, maneja um revólver. Há um senso meio palpável de solidão que só piora quando entra em cena uma outra mulher, mais idosa, que cruza pelo caminho rumo a cozinha. Uma troca de olhares e basta para que se estabeleça o esvaziamento de qualquer vínculo mais afetuoso. A residência decadente é, ao cabo, apenas um reflexo daqueles que habitam o local, não demorando para que se instale um senso de desolação, de tédio que, aparentemente, levará a mulher que empunha a arma a pretender o suicídio.

Repleto de sutilezas, o filme de Bojan Vuletic - o enviado da Sérvia para a edição do Oscar de 2018 e que está disponível no Mubi (sempre ele) - é mais um daqueles que parte do microcosmo doméstico para analisar o todo. Não demora para que a gente compreenda que a solitária senhora J. do título (a mulher com a arma, que conduzirá a narrativa e que é interpretada por Mirjana Karanovic) está prestes a completar o primeiro ano como viúva. Em meio a letargia dos dias, ela anda para lá e para cá em busca de encaminhar a documentação que lhe permita ter acesso a uma indenização - ela foi dispensada sem muita explicação da fábrica em que trabalhava, que passará por um processo de privatização. Ao mesmo tempo, organiza todos os preparativos para que possa dar fim a sua existência, indo atrás de balas para o revólver e até da instalação de sua foto na lápide, junto a do marido (o que resulta em um instante ao mesmo tempo comovente e engraçado).


Aliás, a intenção bem clara do diretor aqui não é deixar o espectador necessariamente triste. Sim, estamos diante de uma suicida em potencial que zanza em estado catatônico pelo bairro, em meio a enquadramentos pouco óbvios e planos sequência que estendem ao máximo a sensação de dor na alma. Mas, aqui e ali, a narrativa é salpicada por momentos de um humor cínico, em que a crítica à burocracia estatal e ao absurdo de praticamente ter de encaminhar em cartório a própria morte, se cruza com o histrionismo dos familiares, especialmente da filha mais velha que é incapaz de compreender (ou perceber) a dor da mãe. E a cena em que a protagonista flagra a jovem transando para, mais tarde, revelar que está grávida é tão trágica, quanto cômica. "Que bom", afirma ela, mal movendo os músculos do rosto e nem se mexendo do sofá - onde está deitada -, ao saber da novidade.

São esses detalhes que enriquecem o todo ainda que talvez a obra, propositalmente arrastada - quase como um zumbi daqueles de filmes de morto-vivo -, não funcione para todos os paladares. Nesse sentido não são poucos os momentos em que o diretor enquadra por longos segundos (talvez até minutos) um grupo de pacientes que aguarda em alguma fila. A espera ali parece fazer parte. Mas espera pelo quê exatamente? Quando volta a indústria em que trabalhava para tentar reaver algum tipo de papelada a estrutura está sucateada, decadente (assim como são os remanescentes). As pinturas estão gastas, os galpões esvaziados, o som do vento é só o que se escuta. Mas, por incrível que possa parecer, ainda há espaço para algum otimismo no terço final, quando a trama quase flerta com o realismo mágico. É um fiapinho de esperança. Mas que funciona direitinho.

quinta-feira, 14 de abril de 2022

A Volta ao Mundo em Oitenta Filmes - White Building (Camboja)

De: Kavich Neang. Com Piseth Chhun, Hout Sithorn, Ok Sokha e Chinnaro Soem. Drama, Camboja / China / França / Qatar, 2020, 91 minutos.

Existe algo na atmosfera de filmes como White Building (Bodeng Sar) - o enviado do Camboja pra última edição do Oscar e que está disponível na plataforma Mubi - que faz com que fiquemos meio que desconfortáveis o tempo todo. Não há muito espaço pra respiro em um contexto de miséria, de doenças, de abusos de poder e de contrastes sociais, como os que vemos na estreia do jovem diretor Kavich Neang. A obra abre, por exemplo, com uma bela tomada aérea da capital Phnom Penh. Nela vemos um conglomerado de edifícios dispostos de forma meio caótica - uma confusão de cores, de objetos, de retalhos aleatórios, de fios de luz emaranhados, de cinza de reboco desorganizado, de restos de entulho que se acumulam. Aquela é a realidade dos moradores do "prédio branco" - vá lá, talvez ele já tenha sido branco em algum momento da vida - e que acompanharemos na próxima uma hora e meia.

Entre os moradores está o jovem Samnang (Piseth Chhun) que, ao lado de outros dois amigos sonha em ser dançarino de hip hop - a arte poderá ser um caminho para ganhar a vida, já que seu pai (Hout Sithorn) é um escultor aposentado, que trabalhava para o Estado. Só que essa é uma história de perdas. E de perdas permanentes. Quando um dos amigos de Samnang tem a oportunidade de se mudar para a França - há um familiar que reside lá -, a ideia de dançar é abandonada. A pobreza faz com que as necessidades mais básicas também deixem de ser atendidas: interessado no terreno em que está o prédio, o Estado oferece um valor patético de subsídios aos moradores para a compra. O que gerará longas discussões entre os habitantes do local, que dificilmente chegarão a um consenso. Em meio a tudo, o prédio parece apodrecer a olhos vistos. Falta infraestrutura, limpeza, água.

Pródigo em utilizar rimas visuais, o diretor esbanja uma eficiência quase exagerada na persistência em mostrar paredes embolorados, tetos com infiltrações, lixo acumulado. É a metáfora perfeita para uma sociedade desorganizada e cheia de disparidades, que mantém uma elite encastelada, enquanto o povão permanece na miséria. Aliás, qualquer semelhança com outros países de Terceiro Mundo não é mera coincidência. Enquanto os empresários de construtoras ligados ao Estado visitam o condomínio em seus carrões, Samnang vê se pai sucumbir aos poucos, vitimado por um quadro avançado de diabetes - e, admito que poucas vezes vi um filme tão realista na hora de abordar as dificuldades relacionadas à doença. Ter sido empregado do Estado não ajuda o idoso em nada. Indo pra lá e pra cá, precisará de uma cirurgia para a qual a família não possui a capacidade de arcar.

Nesse sentido, trata-se de uma experiência que é sutil na hora de apresentar os problemas políticos, sociais, culturais - não se esfrega na cara o absurdo de um País regido por uma monarquia, que ainda sofre os efeitos de uma série de conflitos internos. Ou mesmo o processo de gentrificação vivido pela população cambojana - especialmente aquela que está nos grandes centros. E a meu ver aí está uma das mágicas de experimentar filmes de outros países, não tão óbvios. É um processo de descoberta em que vamos tateando, inferindo. Exibida no Festival de Veneza, a obra fez sucesso em outras premiações mundo afora. E deu visibilidade para uma série de dramas domésticos que ecoam dores muito maiores. Daquelas que desestimulam o lado mais fraco a seguir lutando. Por qualquer pedaço que seja. De casa, de carne, de vida. Sem soluções. Sem heróis imediatos. Sem um Deus ex-machina que salve o dia.

terça-feira, 22 de março de 2022

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - Um Homem Que Grita (Chade)

De: Mahamet-Saleh Haroun. Com Youssouf Djaoro, Diouc Koma e Djénéba Kone. Drama, Chade / Bélgica / França, 2010, 95 minutos.

Um dos países mais pobres do mundo - com 80% da população vivendo na miséria - e que, ainda por cima, é assolado por constantes conflitos civis internos: essa é a República do Chade, que serve de pano de fundo para o melancólico Um Homem Que Grita (Un Homme Qui Crie), filme vencedor do Prêmio do Júri no Festival de Cannes de 2010 e que pode ser conferido na plataforma Mubi. Na trama acompanhamos o microcosmo de um hotel de luxo que está sendo adquirido por investidores chineses. A chegada dos orientais fará com que Adam (Youssouf Djaoro), um senhor de sessenta anos, perca o emprego como gerente da piscina do hotel para o próprio filho, Abdel (Diouc Koma). Ao veterano resta aceitar uma recolocação como porteiro da hospedagem - um posto menor para quem, por tantos anos, se dedicou ao seu ofício e que tem em seu currículo uma série de campeonatos nacionais de natação.

E como se perder o posto de trabalho para o próprio filho já não fosse dolorido o suficiente, Adam passa a ser cobrado por representantes governistas para que possa contribuir financeiramente com a guerra, que busca coibir às ações de rebeldes que atacam à Pátria. Sem dinheiro, resta ao homem enviar o próprio filho para a batalha, como espécie de "moeda de troca". O que talvez também lhe permita reaver a posição perdida no hotel. Mas o que é o trabalho perto da vida daqueles que a gente ama? Dirigido com elegância por Mahamet-Saleh Haroun, Um Homem Que Grita é conduzido a partir de sutilezas que mostram como o ambiente (e a saúde) familiar pode ser diretamente influenciado pelo contexto político e social de uma nação. Integrante da classe média chadiana, Adam toma decisões questionáveis como forma de livrar a família de outras punições. Mas a que preço?


Direto, naturalista, sem espaço para firulas, o filme transforma a árida e quente capital N'Djamena em um cenário desalentador em que o hotel se converte em um espaço idílico, de respiro (e não é por acaso o desespero de um outro empregado, no caso um cozinheiro, quando este se vê diante da demissão iminente). E ainda que a obra aborde o absurdo da guerra e a sua influência na população, o filme também é sobre a insegurança do trabalho em empresas privadas, sobre os efeitos da colonização em países pobres e até mesmo sobre a efemeridade do tempo (o que talvez explique a persistência de Abdel em fotografar as coisas, em capturar instantes). As questões relacionadas à masculinidade também aparecem de forma sutil - como no caso da primeira sequência, em que Adam é derrotado por Abdel em uma prosaica competição que pretende ver quem permanece mais tempo embaixo da água.

Contemplativo, o filme aposta no silêncio até mesmo nos momentos mais movimentados, adotando também ângulos de câmera pouco convencionais, mas que são recheados de significados - e aqui vale destacar a longa e comovente sequência em que Abdel é levado na marra por agentes do governo, enquanto o pai (que é também o responsável por enviar o filho para o conflito) chora no quarto. Com boas surpresas, a obra também passa raspando por temas religiosos, por vida e morte, por fins e recomeços, pela capacidade de persistir e de encontrar alento nas coisas simples. As escolhas são difíceis, as decisões são moralmente ambíguas. Mas todos que ali acompanhamos são humanos, cheios de falhas, de defeitos, de frustrações e, principalmente, de arrependimentos. Emocionante é pouco.


quarta-feira, 8 de setembro de 2021

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - Ar Condicionado (Angola)

De: Fradique. Com José Kiteculo, Filomena Manuel, David Caracol e Adalberto Cawaia. Drama, Angola, 2020, 72 minutos.

Símbolos de status social, os ares-condicionados têm sido motivo de preocupação em Luanda, capital de Angola. É no local que as autoridades investigam um evento insólito: de forma meio inexplicável, os equipamentos estão se desprendendo dos prédios e... caindo. Sim, é essa trama em tom de fábula que rege a narrativa do curioso Ar Condicionado, filme angolano que está disponível na plataforma Mubi. Pouco convencional, o roteiro é costurado por uma série de instantes em que acompanhamos a rotina de Matacedo (José Kiteculo), uma espécie de zelador/segurança de um condomínio em que os aparelhos refrigeradores têm despencado. Orientado pela amiga e faxineira Zezinha (Filomena Manuel), Matacedo deve ir até a eletrônica do Sr. Mino (David Caracol), para tentar reaver o ar condicionado do irritadiço chefe de Zezinha. O calor é escaldante. As ocorrências são exóticas. A imprensa fala em teorias conspiratórias envolvendo acordos bilaterais entre Angola e China. Não há nenhuma certeza.

Em linhas gerais, o filme dirigido por Fradique - e que tem tido ótima recepção da crítica, tendo faturado uma série de prêmios internacionais -, é recheado de camadas e não pretende entregar respostas fáceis. Como um observador do cotidiano, Matacedo circula pelos corredores, escadarias e ruelas que envolvem o condomínio com uma placidez que quase destoa da balbúrdia caótica da capital africana. Há aqui e ali discussões que envolvem problemas ambientais, ausência de uma política Estado que promova a sustentabilidade, contrastes sociais e traumas que aludem à Guerra Civil enfrentada pelo País. O calor claudicante e a reação bizarra dos aparelhos parece ser uma resposta meio generalizada a tudo: no simbolismo da interrupção da geração do condicionamento há também a análise de uma sociedade que se comporta de forma letárgica, paralisada, permanecendo em um meio termo entre passado e futuro.


Nesse sentido, talvez não haja personagem mais envolvente do que o misterioso Sr. Mino, que esconde uma série de segredos em meio aos eletrônicos velhos que ocupam sua oficina. Em uma sequência singular, que mais parece saída das páginas de algum livro tipo Ficções, de Jorge Luis Borges, o veterano de ocupa de construir uma engenhoca que promete "resgatar memórias". Uma vez envolvido com ela, Matacedo passa a ter devaneios cheios de frescor, de cores e de músicas que remetem a algum tipo de período nostálgico que, agora, não mais existe. Matacedo, aliás, parece estar sempre buscando alguma coisa, mas não sabemos exatamente o quê. Em cada beco, nas conversas telepáticas com outros imigrantes, na persistência com que exerce seu ofício, no silêncio diligente com que acompanha os movimentos da vizinhança, em tudo parece haver uma predisposição para continuar. Ainda que não se tenha certeza de para onde.

Ao cabo trata-se de uma experiência cinematográfica de grande riqueza técnica, que aposta em longos planos-sequência e em ângulos de câmera desafiadores, que nos fazem observar o tempo todo o topo, o alto dos prédios (como se aguardássemos a tragédia, a queda inesperada, o acidente de percurso inusitado). Já a trilha sonora tropical, de notas primaveris - cortesia da compositora Aline Frazão -, vai no limite entre o contemporâneo e o ancestral, entre o moderno e o arcaico, contribuindo para o clima geral de estranhamento exercido pela narrativa. Eu confesso que nunca havia assistido um filme angolano e confesso que fiquei impactado positivamente - especialmente por saber que existem outros polos, com realizadores e coletivos que investem em contar histórias locais, que dialogam com temas universais. Além de tudo tem o fato de ser curtinho - pouco mais de 70 minutos, o que também não deixa de ser um atrativo.


segunda-feira, 6 de setembro de 2021

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - Cafarnaum (Líbano)

De: Nadine Labaki. Com Zain Al Rafeea, Yordanos Shiferaw, Cedra Izam e Nour El Husseini. Drama, Líbano, 2018, 126 minutos.

Uma pesquisa no Google pelo verbete Cafarnaum nos leva a duas explicações que, de alguma forma, se entrecruzam. De um lado temos o resultado geográfico - uma cidade bíblica que ficava às margens do Mar da Galileia, onde Jesus teria realizado alguns de seus milagres. Já o substantivo masculino tem como sentido "o local onde há tumulto e desordem ou onde objetos diversos são amontoados". Essa sensação de caos permanente, de profunda instabilidade - seja material, emocional ou qualquer outra -, é aquilo que encontramos no ótimo (e dolorido) Cafarnaum (Capharnaüm), obra-prima do cinema libanês, dirigida por Nadine Labaki. Nela somos apresentados ao jovem Zain (Zain Al Rafeea) que, aos 12 anos precisa lidar com tantos problemas ao mesmo tempo - entre eles cuidar dos vários irmãos que vivem em um pequeno cortiço com os pais e ainda trabalhar em um mercadinho próximo -, que é simplesmente impossível não ter empatia quando ele se revolta em relação a esse universo tão duro, tão desalentador, tão injusto.

Quando o filme começa a gente já sabe que houve um crime envolvendo Zain. Pelo pesado sistema judicial do Líbano não parece haver nada de errado em conduzir uma criança de 12 anos algemada, tribunal adentro, pra lhe ouvir sobre suas defesas e lhe conceder algum veredicto. Quando a obra volta no tempo descobrimos que a gota d'água para o pequeno foi o casamento que foi arranjado para a sua irmã Sahar (Cedra Izam), uma pré-adolescente que mal passou pela primeira menstruação que é simplesmente entregue, pela própria família, a um certo Assaad (Nour El Husseini), um homem bem mais velho do que ela. Esse contexto de naturalização da pedofilia, ainda que não totalmente compreendido por Zain (talvez não nesses termos), revolta o garoto. E o faz fugir de casa para morar na rua, junto a outros refugiados. Em um dia qualquer em um parque de diversões, ele conhece a jovem etíope Rahil (Yordanos Shiferaw) que, mãe de um pequeno bebê, acaba "adotando" Zain.

Ainda que o sofrimento seja levemente "amenizado" por essa relação simbiótica entre Zain e Rahil - ele a auxilia com o seu bebê enquanto ela trabalha, ela o alimenta e cuida como se fosse uma mãe emprestada -, a dor do pequeno não se encerra já que a sua via crúcis diária continua. No Líbano de Labaki não há espaço algum para a romantização da pobreza - como costumamos ver naquelas obras estilizadas da Netflix, que embalam os contrastes sociais em um forçado caleidoscópio cultural que serve muito mais para "maquiar" os problemas do que para discuti-los. Na desordenada Beirute, a cidade surge como um conglomerado acinzentado e nada harmonioso de prédios, havendo pouco espaço para a natureza, para as cores, para as artes, para qualquer respiro. O comércio de rua é anárquico, a sensação é de opressão constante, como se observássemos uma verdadeira selva em que um tenta enganar o outro, que tenta enganar o um. Os crimes são a céu aberto: tráfico de crianças, pedofilia, furtos, agressões. Se Zain pudesse, ele jamais teria vindo pra esse mundo. Aliás, ele não queria ter vindo pra esse mundo. E a sua luta nesse sentido é tão comovente quanto surpreendente.

E talvez não seja por acaso que uma das mais doloridas sequências de Cafarnaum seja aquela no parque de diversões. Sozinho, Zein anda na roda gigante com a expressão entediada, desinteressada. Olhar a cidade de cima não lhe surpreende, não lhe amedronta. O que para qualquer outro jovem seria motivo de assombro, para ele é apenas enfado. Não há prazeres na existência miserável. Brincar? Retirar a roupa de um manequim gigante em um dos brinquedos do parque? Correr na aridez da terra? Quando Zain é separado de sua irmã - que também era sua melhor amiga, sua confidente -, ele perde boa parte de sua motivação para continuar. Reencontrando-a aqui e ali, aos cacos - até o momento em que a realidade reaparecerá para lhe dar uma nova porrada. O Líbano parece ter lá as suas belezas - tem história, tem uma cultura milenar, tem atrações turísticas. Mas o que interessa para a diretora é o que ocorre nas vísceras do País. Em suas entranhas. E é por isso que seu cinema é tão vigoroso a ponto de Cafarnaum ter recebido uma indicação ao Oscar e ter recebido o prêmio do Júri no Festival de Cannes.

quarta-feira, 17 de março de 2021

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - Kolya: Uma Lição de Amor (República Tcheca)

De: Jan Sverák. Com Znedek Sverák, Andrej Chalimon, Irina Livanova e Ondrej Vetchý. Drama / Comédia, República Tcheca, 1996, 111 minutos.

Filmes com homens de meia idade, sem nenhuma experiência com crianças, que precisam lidar, inesperadamente, com pequenos, não chegam a ser exatamente uma novidade - e basta puxar pela memória para que nos lembremos de "clássicas" comédias hollywoodianas como Um Tira no Jardim de Infância (1990) e Operação Babá (2005), pra ficar em dois exemplos. No sensível e emocionante Kolya: Uma Lição de Amor (Kolja), obra tcheca que venceria o Oscar na categoria Filme em Língua Estrangeira na cerimônia de 1997, o tom é um pouco menos engraçado e muito mais comovente - ainda que a linha geral seja sendo a do sujeito meio mal humorado que vai ter o seu coração amolecido pela convivência forçada com um menino. O que ocorrerá não por circunstâncias prosaicas do cotidiano e sim por exigências que envolvem o contexto político e social da então Tchecoslováquia que, à época - a trama se passa em 1989 -, era ocupada pela União Soviética.

É nesse cenário que somos apresentados ao professor Franka (Znedek Sverák), um renomado solista de violoncelo que perde a sua posição na orquestra filarmônica após a ocupação comunista. Não tendo escolha para manter os boletos em dia ele se torna músico de funerais, realizando ainda outros bicos (como o de pintor de lápides) para tentar sobreviver. Mas a oportunidade de colocar as dívidas em dia surge quando o coveiro Broz (Ondrej Vetchý) lhe faz uma inusitada proposta: casar-se de fachada com uma jovem russa que deseja obter a cidadania tcheca, o que lhe possibilitará driblar as exigências do Partido Comunista. Só que, uma vez realizado o trambique, a nova esposa simplesmente desaparece, emigrando com seu amante para a Alemanha Ocidental. Pior, deixando para trás o jovem Kolya (Andrej Chalimon), um menino de apenas cinco anos que fica sozinho após o falecimento da avó, vítima de um AVC. Único "parente", caberá a Franka a responsabilidade de cuidar do pequeno. E, bom, aí temos um filme.

Só que diferentemente das comédias americanas que fazem um humor mais físico, tirando muito da graça do conflito geracional e do caos instaurado pelos pequenos - isso me fez lembrar também outro clássico da Sessão da Tarde, o impagável Três Solteirões e Um Bebê (1987) -, a tensão aqui se dá muito mais pela completa mudança do estilo de vida de Franka, um solteirão convicto de quase 60 anos de idade que jamais imaginou em sua vida ser pai, que agora se depara com uma inesperada responsabilidade. Mesmo com problemas financeiros, o protagonista é uma espécie de bon vivant, que gosta de "namoros" descompromissados, enquanto ocupa seu tempo tocando em seu decrépito apartamento, povoado por pombos que, de forma inusitada, afiam seus bicos no parapeito da janela. Enquanto solicita apoio do serviço social local, Franka vai aprendendo a lidar meio na marra com o curioso, taciturno, mas extremamente expressivo menino - e não é preciso ser nenhum adivinho para saber que desse combo meio a contragosto, sairá uma bela amizade.

Não bastasse a estrutura narrativa bastante clássica e a crítica a um regime estatizante que sufocava os habitantes da Tchecoslováquia - sendo possível ver, aqui e ali, tanques e soldados russos espreitando pela vizinhança -, a obra do diretor Jan Sverák também comoveu as plateias mundo afora pela certeira mistura entre música, arte, amizade e poesia. Algo capaz de formar um coletivo revolucionário que é complementado pela belíssima paleta de cores da fotografia, pelo bucolismo das tomadas em meio a árvores e outros aspectos da natureza e pelas tomadas de câmera de grande sensibilidade. Em um filme sobre um homem que precisa proteger um pequeno do mundo que o rodeia, é fundamental que torçamos pela dupla - e o carisma e a química entre ambos nos faz rir e chorar muitas vezes na mesma cena, como na inesquecível sequência em que Franka se "perde" de Kolya na estação de metrô. Em tempos tão duros como os que vivemos, essa pequena obra-prima europeia ainda nos lembra da importância do respeito às diferenças, especialmente em um contexto de polarização política. É possível, afinal conviver com o diferente. E, aceitá-lo. Assim como o nosso protagonista aceita a condição que lhe é imposta.

terça-feira, 10 de novembro de 2020

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - A Jaula de Ouro (Guatemala)

De: Diego Quemada-Diez. Com Rodolfo Dominguez, Karen Martínez e Brandon López. Drama, Guatemala / México / Espanha, 2013, 108 minutos.

Quando a gente assiste a uma obra dolorida e arrebatadora como A Jaula de Ouro (La Jaula de Oro) é simplesmente impossível não lembrar da imagem das crianças, filhas de imigrantes mexicanos, que foram presas em grandes jaulas, ao tentar atravessar a fronteira com os Estados Unidos durante o Governo Trump. Foram várias fotos e vídeos que correram o mundo durante a política de Tolerância Zero do republicano e que envolvia, inclusive, a construção do famigerado muro na divisa entre os dois países. Ocorre que, quando pensamos nesses imigrantes, dificilmente os "humanizamos". Raramente pensamos nessas milhares de pessoas como... pessoas. Que tem seus sonhos, seus desejos, seus anseios. Seus medos e frustrações. E que buscam, nos Estados Unidos, o encontro idílico com o "sonho americano". Um sonho que lhes retire da pobreza extrema, da vulnerabilidade. Que lhes permita um trabalho ou, minimamente, a dignidade. Ter o que comer, tentar ser feliz. Sobreviver.

Exibido em 2013 na mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes, e vencedor de vários prêmios mundo afora, o filme guatemalteco é um áspero road movie do Terceiro Mundo em que acompanhamos a verdadeira via crucis de três jovens - dois rapazes e uma garota -, para tentar cruzar a fronteira a partir da Guatemala. A intenção clara é escapar da vida miserável do País da América Central - em alguns aspectos, bastante parecido com o Brasil -, tarefa em que são muito maiores as incertezas do que as evidências. Para onde exatamente se está indo? E com qual objetivo? O que se encontrará pelo caminho? Todos sairão vivos? De alguma forma, a película do diretor Diego Quemada-Diez até começa razoavelmente leve, com o trio principal ocupado com pequenas brigas entre si (boa parte delas por ciúmes), enquanto inicia a peregrinação que os leva do trem para a floresta e de volta para o trem e de volta para a floresta, numa caminhada longa que, facilmente, alcança os milhares de quilômetros.

Na construção narrativa também se consolidará uma história de amizade e de descobertas entre os jovens - especialmente pelo fato de Chauk (Rodolfo Dominguez) ser de uma tribo indígena que sequer fala a mesma língua dos "urbanos" Juán (Brandon López) e Sara (Karen Martínez). De forma meio involuntária o trio se aproximará, enquanto investe em sua longa jornada rumo ao desconhecido, tentando ganhar algum dinheiro (com apresentações de rua), se esforçando para escapar de grupos milicianos (e de outros bandidos) e permanecendo longos minutos sobre vagões de trem, que os levam para lugares aleatórios próximos da fronteira. Aliás, a fluidez um pouco mais lenta talvez incomode alguns espectadores, ainda que encontre nela um sentido que dialoga com aquilo que assistimos: a viagem é realmente longa e torná-la, aparentemente, ainda mais longa, é o que faz com que nos exasperemos junto com os protagonistas. Ao mesmo tempo em que a sensação de perigo, como não poderia deixar de ser, parece ser sempre iminente.

Sem encontrar solução fácil, o filme ainda nos joga na cara o absurdo do tratamento dado aos imigrantes que, ao fim, conseguem mal e porcamente atravessar a fronteira - o que ocorre com um sem fim de subornos e milhares de perdas pelo caminho. Recheada por ótimas metáforas, a película ainda utiliza uma sequência em um frigorífico para, visualmente, estabelecer uma rima para aquilo que assistimos: quem afinal são os animais? E o que será necessário para sobreviver nesse contexto em que não ser "enjaulado" é uma vitória? Donald Trump não se reelegeu, mas como amenizar os traumas de milhares de pessoas que são presas na Fronteira, apenas por serem de outro País? Como equacionar o problema da xenofobia, do preconceito, do racismo? Quando olharemos para o outro com mais empatia, com menos violência, de forma mais humana? Com menos crueldade? O gosto amargo na conclusão do filme parece apontar para um caminho que nem a placidez da neve, que cai mansamente, consegue aplacar.

terça-feira, 6 de outubro de 2020

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - Pelo Malo (Venezuela)

De: Mariana Rondón. Com Samuel Lange Zambrano, Samantha Castillo e Nelly Ramos. Drama, Venezuela / Peru / Argentina / Alemanha, 2013, 93 minutos.

Se tem uma coisa que o cinema TAMBÉM nos proporciona é a oportunidade de nos aproximarmos de outros países e, consequentemente, de outras realidades, outras culturas. E o venezuelano Pelo Malo (Pelo Malo) - vencedor da Concha de Oro, no Festival de San Sebastián de 2013 -, consegue nos apresentar um bom recorte do contexto social de República Bolivariana capitaneada, à época, por Hugo Chavez, a partir de um fiapo de história. A trama nos joga para a periferia de Caracas, onde os contrastes sociais são explicitados já nas primeiras cenas - em uma delas o pequeno Junior (o sensacional Samuel Lange Zambrano) simplesmente entra no ofurô da casa em que sua mãe Marta (Samantha Castillo) realiza um bico como empregada. O tipo de pequena desobediência que dará conta da natureza transgressora do menino - algo que nos acompanhará, por sinal, durante toda a película dirigida por Mariana Rondón.

Samuel e Marta moram, afinal, na parte mais pobre da cidade. Uma espécie de condomínio popular em que diminutos apartamentos se acumulam, servindo de moradia para as camadas mais humildes do tecido social. Ainda que não tenha o pai presente - a verdade sobre o que teria ocorrido ao progenitor surge mais adiante -, Samuel mantém os seus traços e características fenotípicas, entre eles uma vistosa cabeleira negra (não chega a ser um black power, mas é uma melena de "respeito"). Só que Samuel não gosta dessa característica. Parece ter aprendido - talvez pela persistência na mídia em estabelecer o branco e liso como padrão de beleza -, que cabelo encaracolado não é bonito. Aliás, deseja com todas as forças alisá-lo e a necessidade de realizar uma sessão de fotos para as aulas que estão para começar parece ser a desculpa perfeita para condicionar esse ajuste das madeixas em sua cabeça. O que poderá ser viabilizado com o suporte de sua avó (Nelly Ramos), que ajuda a cuidar não apenas dele, mas de seu pequeno irmão, um bebê de poucos meses.


Nas aparências, Pelo Malo pode parecer apenas o filme sobre o menino que deseja alisar os seus cabelos. Mas há alguns componentes a mais nessa história. Por não respeitar os padrões de um regime que exalta - assim como no Brasil de Bolsonaro - o combo militarismo + Igreja + política populista (isso surge nas frestas, seja nos programas de TV, seja nos outdoors ou mesmo na rotina fatigante dos habitantes que parecem encapsulados pelo totalitarismo), Samuel também entrará em pé de guerra com sua conservadora mãe. O menino, afinal, parece ter muitos desejos que são suprimidos a partir de uma retórica que simplesmente torna as crianças invisíveis, jamais estimulando o seu comportamento autônomo ou o respeito as suas eventuais vontades. Como exemplo, Samuel adora a música, o rock, que ele escuta de forma meio escondida na casa da paciente avó (é a mãe de seu pai). Mas quando Marta percebe que o pequeno gosta das artes, da dança, da música, o censura. Aliás, pior: passa a acreditar que seu filho possa ser gay pelo simples fato de cometer essas transgressões. Um tipo de preconceito que, de quebra, muito provavelmente contribuirá para sepultar de vez os sonhos, os anseios e os desejos daquele jovem.

Nesse sentido, a obra também trata de materializar o absurdo da maternidade idealizada, impondo à Marta a figura autoritária que, dentro de casa, funciona como uma espécie de posto avançado do Governo que oprime aquele País. Inseguro, Samuel não saberá como agradar a sua mãe, o que tornará a experiência cinematográfica quase dolorida, desconfortável. Samuel quer apenas cantar suas músicas, dançar, ser feliz, andar com os amigos que quiser, que escolher. Quer alisar o cabelo se assim achar interessante - por mais absurda que possa soar essa busca por uma imagem que não lhe pertence. Mas o menino parece o tempo todo enclausurado em uma rotina de falta de afeto que lhe desgastará enquanto sujeito - e aqui cabe um parênteses para que ressaltemos o fato de que Marta também é refém da precariedade, do machismo, da falta de afeto, da solidão, da dor e da insegurança. É uma obra que expõe as questões mais atuais dessa Venezuela pobre - mas poderia ser qualquer País da América do Sul -, apostando na força do simbolismo, que quase aproxima o projeto do realismo fantástico (e nesse sentido não há sequência mais impactante do que aquela em que o menino e sua melhor amiga brincam de guerrinha com soldadinhos de plástico, quando tiros de VERDADE espocam na vizinhança). É uma obra crua, naturalista, de denúncia, mas sem jamais pesar a mão. Claro que há pouco espaço para a leveza, o desafogo. Mas o mundo para os vulneráveis parece ser esse mesmo: o dos sonhos interrompidos e do desaparecimento da infância. De doer.

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Podcast do Picanha Cultural #21 - A Volta ao Mundo Em 80 Filmes (América do Sul)

Quem nos acompanha aqui no Picanha sabe que um de nossos quadros preferidos é o A Volta ao Mundo Em 80 Filmes, onde temos o objetivo de falar de obras de países não tão conhecidos pela grande produção cinematográfica. De Arábia Saudita à Finlândia, passando por Senegal e Romênia, o ato de dissecar películas das mais variadas localidades também nos proporciona um verdadeiro mergulho sociopolítico e cultural em cada uma dessas nações, nos aproximando de seus hábitos, costumes, entre outros. E foi pensando nisso que, no episódio dessa semana, resolvemos trazer o quadro para dentro do Podcast. Como são muitas as possibilidades, resolvemos fazer uma divisão por continentes, começando por filmes realizados na América de Sul. De países com vasta produção - como Argentina e Chile -, a outros não tão populares -, como Venezuela e Peru -, o Henrique eu eu (o Bernardo estava de "folga" nessa semana) realizamos um recorte com 10 filmes para você se apaixonar pela filmografia latino-americana. Tem de tudo um pouco e temos a certeza de que vocês irão gostar! Bora sextar?

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - As Viagens do Vento (Colômbia)

De: Ciro Guerra. Com Yull Núñez, Marciano Martinez, Agustin Nievez e José Luiz Torres Leiva. Drama, Colômbia, 2009, 118 minutos.

Não é preciso muito mais do que meia hora para que As Viagens do Vento (Los Viajes del Viento) - obra do cineasta colombiano Ciro Guerra (do oscarizado O Abraço da Serpente) - conquiste completamente o espectador. Há um instante específico em que o taciturno menestrel Ignacio Carrillo (Marciano Martinez) chega a um povoado em que ocorre uma espécie de "rinha de sanfoneiros" em que o vencedor sairá com um prêmio em dinheiro - além do prestígio de ser reconhecido pela força não apenas do instrumento, mas também dos versos. Ocorre que Ignácio está aposentando a gaita. Mais do que isso: está empreendendo uma viagem ao norte da Colômbia para devolver o acordeão ao seu antigo mentor, com a ideia fixa de não mais tocá-lo, já que acredita ter sido objeto de algum tipo de feitiçaria em sua vida, marcada por desgraças e pela solidão. A vida de músico, de artista, afinal, não é fácil.

Quem convence Ignacio a participar da disputa de sanfonas é o jovem Fermin (Yull Núñez), que se junta ao trovador logo no início de sua jornada, com o desejo de ser um aprendiz na arte da sanfona. A batalha de gaitas é animada, divertida e irresistível: Ignacio identifica o ponto fraco de seu oponente, algo relacionado a algum tipo de bruxaria (e nunca é demais lembrar que o misticismo, o folclore e a religiosidade são elementos que naturalmente integram a obra de Guerra). Só que um nativo perder para um forasteiro não pega bem: o protagonista é atacado à faca pelo pai do derrotado em uma sequência tão tensa quanto artística. É salvo pela própria gaita, que impede o seu corpo de ser perfurado. Ao sair do local, precisa ir ao encontro de seu irmão Nine (Agustin Nievez), único na região capaz de consertar o instrumento. Mas há um porém: ele mora no topo de uma montanha.


Relatado assim, esse encadeamento de eventos pode apenas parecer aleatório, mas dá conta de uma série de elementos que envolvem o cinema do realizador (que também fez o espetacular Pássaros de Verão). O primeiro deles é o bucolismo inebriante que ecoa nas belas paisagens aéreas, que transformam a região de La Guajíra ela própria em uma espécie de personagem: que observa, que envolve, que acompanha. Que evoca grandiosidade. Os vários travellings e sequências filmadas em planos médios, em que se pode ouvir o barulho do vento ou dos curiosos pássaros, quase faz lembrar, em alguns momentos, o cinema de Terrence Mallick - mas sem as narrações em off que podem se tornar excessivas em algumas situações. Aqui prevalece o silêncio, o intercâmbio com a natureza, a paixão pela arte, pela música, misturada com a dureza e a rudeza dos moradores locais, capazes de realizar duelos de vida ou morte ao som do acordeão. É um legítimo mergulho na Colômbia mais rural e mais desconhecida, longe da urgência urbana e violenta e de denúncia de contrastes sociais, como a vista em obras premiadas como Maria Cheia de Graça (2004), por exemplo.

Esse na realidade é mais um daqueles casos de fiapo de história que serve para dar conta de uma jornada de redenção e de aprendizado, em que o veterano músico empreende um esforço para expurgar os seus demônios e traumas do passado, ao passo que o jovem representa a força da "novidade", que precisa passar por uma série de rituais para chegar a vida adulta (e não é por acaso que, lá pelas tantas, Fermin se envolve em uma cerimônia real no meio da floresta, em que encarna algum tipo de espírito metafísico que lhe certifica oficialmente para a música). É um filme que talvez não seja para todos os paladares: há uma fluência narrativa mais lenta, quase contemplativa, em que os raros momentos mais movimentados (como o já citado, da rinha), se intercalam com a longa viagem em meio a natureza selvagem e interminável - algo bastante parecido com o que fazem os protagonistas do livro Todos Os Belos Cavalos de Cormac McCarthy. Mas quem se aventurar pelo cinema de Ciro Guerra, desvendará uma Colômbia mágica, mística, quase onírica e que mais parece saída das páginas do conterrâneo Gabriel García Marquez. Talvez não seja por acaso.

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - Mal dos Trópicos (Tailândia)

De: Apichatpong Weerasethakul. Com Banlop Lomnoi e Sakda Kaewbuadee. Drama / Fantasia, Tailândia / França / Itália / Alemanha, 2004, 118 minutos.

Cinema hermético, cheio de simbolismos, que exigem do espectador não apenas uma dose a mais de atenção, mas também uma ampla capacidade de abstração, a obra do diretor tailandês Apichatpong Weerasethakul costuma se caracterizar também pela fuga das convenções, como comprovam os premiados Tio Boonme, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010) e Cemitério do Esplendor (2015). E, bom, por mais que de alguma forma possamos afirmar que Mal dos Trópicos (Sud Pralad) vá mais "direto ao ponto", isso não significa necessariamente um cinema óbvio ou mais palatável. Na realidade é preciso um pouco de paciência para digerir um pouco melhor aquilo que pretende o realizador - sinônimo de cinema de qualidade na Tailândia. Trata-se, como habitual, de um filme de justaposições e de contrastes, capaz de colocar em lados opostos (ainda que unidos) a civilidade e a selvageria, o urbano e o rural, o sol e chuva, o movimento e a contemplação e, até, vá lá, a tristeza e a felicidade.

Pra falar a verdade é uma experiência sempre prazerosa assistir a qualquer filme do tailandês, já que ele nos joga em um outro lugar que não é o nosso. Nos arremessa em outra cultura em que o misticismo, o folclore, as lendas e a religião encontram o mundano, o palpável, o cotidiano. Tudo plasticamente bem construído, com trilha sonora, fotografia esmaecida e belas paisagens, evocando sentimentos diversos, que se misturam com os mesmos sentimentos daqueles que assistimos em tela. No caso de Mal dos Trópicos a trama também é ousada, daquelas que desafia as sociedades mais fechadas a enxergarem para além das bordas, para além das convenções. Nela somos apresentados ao soldado Keng (Banlop Lomnoi) e ao jovem trabalhador rural Tong (Sakda Kaewbuadee) que, em meio a atividades cotidianas prosaicas - uma ida ao cinema, um jogo de futebol, uns minutos na lan house, reuniões na casa da família de Tong - fazem mais do que uma simples "amizade". A gente não demora a perceber que o que tem ali é amor mesmo.


Na realidade a primeira parte do filme funciona quase como se fosse uma bela colagem da vida em "casal" - um casal discreto, em uma sociedade fechada. Há cenas divertidas como aquela envolvendo uma cantora brega em algum barzinho aleatório de Bangkok e outras mais sérias, como a ida ao veterinário para tratar do cachorro de Tong. Tudo costurado por sequências que mostram soldados a campo, o trabalho, a rotina, o ônibus, a luta cotidiana. Já a segunda parte já tem se tornado quase uma tradição de Weerasethakul: ao narrar a história de um monstro da floresta que pode se transformar em qualquer criatura, atraindo-a para a mata, o diretor insere as formidáveis lendas locais (quase fantasmagóricas, sufocantes) como alternativas para uma vida possível, de escolha, em que a natureza encontra o mundano, reequilibrando-o. É tudo ao mesmo tempo silencioso e instigante, levando o espectador até o limite da angústia diante de uma verdadeira caçada mata adentro.

Vencedor do Grande Prêmio do Juri no Festival de Cannes daquele ano - além de outras premiações -, a obra consolidaria o diretor tailandês como um dos principais nomes de sua geração, o que geraria burburinho em relação à produção do País asiático e de outros diretores, como Yongyoot Thongkongtoon (autor do badalado Best Of Times). Saudado pelos críticos - e também odiado, como é o caso do crítico Pablo Villaça que chegou a falar sobre Tio Boonme, de que se tratava de uma "obra vazia em seu centro, como se buscasse se beneficiar justamente de sua falta de conteúdo" -, o diretor utiliza o audiovisual em seu favor, construindo narrativas experimentais, nunca óbvias, mas sempre envolventes. É um cinema que, em seu cerne, pode parecer complexo demais. Mas no fim das contas está falando de temas caros a todos nós, caso das crenças, da natureza e do amor.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - A Excêntrica Família de Antônia (Holanda)

De: Marleen Gorris. Com Willeke Van Ammelroy, Els Dottermans, Jan Decleir e Flip Filz. Drama, Holanda / Bélgica / Ingleterra, 1995, 102 minutos.

Vida e morte. Riso e choro. Luz e trevas. Sonho e realidade. Abstração e materialidade. Um filme como A Excêntrica Família de Antônia (Antonia), de Marleen Gorris, nos permite uma série de inferências sobre essas palavras tão antagônicas quanto presentes em nossas existências. Mas não de forma filosófica ou excessivamente profunda e, sim, com uma fluidez vibrante, percebida nos gestos das personagens, nos modos de cada um, nos comportamentos - a começar pelos da própria Antônia (Willeke Van Ammelroy) do título. Trata-se de uma obra de grande sensibilidade, com um lirismo poético que salta aos olhos não apenas nas paisagens magníficas - algumas quase se assemelham a amplos paineis impressionistas, sempre com um comovente bucolismo "acinzentado" -, mas também em sua narrativa que dá tempo ao tempo, que descortina os acontecimentos sem pressa, conforme nos afeiçoamos das figuras que acompanhamos.

É uma história que atravessa três gerações de mulheres empoderadas - aliás, que vão se reconhecendo cada vez mais assim, conforme o tempo passa -, e que ocorre toda ela em uma pequena comunidade rural da Holanda, com todo seu provincianismo e costumes conservadores. Antônia está retornando para o local para o funeral de sua avó, 20 anos após ter saído dali. Ela vem com sua jovem filha Danielle (Els Dottermans) e já em algumas das primeiras sequências a gente percebe que a protagonista não vai se alinhar aos modos de vida ultrapassados daquele povoado. Como exemplo, quando o fazendeiro Bas (Jan Decleir) se interessa romanticamente por Antônia, ele argumenta que os filhos dele "necessitam de uma mãe" ouvindo como resposta "só que eu não necessito dos seus filhos". A resposta NA LATA pode parecer grosseira num primeiro momento, mas ela serve para estabelecer um tipo e paradigma que subverte as convenções e os padrões estabelecidos naquele local: o de que as coisas não são lógicas e que não acontecerão apenas porque tem que acontecer.


Isso não quer dizer que Antônia vá descartar qualquer tipo de relação com Bas - que se mostra, conforme o filme avança, em um sujeito amável e confiável. Antônia apenas não quer que alguém (nesse caso, um homem), determine o que ela irá fazer da vida dela dali pra frente. Ela é uma viúva e argumenta que também não precisa de um marido. Mas é uma jovem mulher, bonita, que tem desejos, anseios e objetivos, que serão demonstrados aos poucos, conforme o descortinar da película. Essa passagem de Antônia com Bas a meu ver resume uma das marcas desse belo filme que viria a ganhar o Oscar na categoria Língua Estrangeira na edição de 1996: a da capacidade de discutir os seus "assuntos", sem transformar a obra em um panfleto escancarado na cara de todo mundo. Distante daquela comunidade que parece ter um papel bem definido para as mulheres (a cena inicial, em uma espécie de bar, dá conta disso), Antônia pode ter alterado sua percepção do mundo. E, as poucos, começa a espalhar essas ideias pelo povoado, sempre com gentileza, com um sorriso no rosto, com empatia.

Não é por acaso que as pessoas que se aproximam dela são aquelas que convivem à margem da sociedade. E aquelas que passam a questionar a sua existência no lugar, ainda que indiretamente, representam instituições consolidadas como a Igreja e o Estado (encarnado num militar fascistoide que não hesita em atacar os habitantes e a estuprar mulheres e crianças, inclusive a própria irmã). Quando Danielle resolve que quer ser mãe, mas sem a existência de um marido, Antônia apoiará a filha. Assim como encarará com naturalidade as descobertas da mesma sobre sua sexualidade. Já a neta se apresentará como um prodígio intelectual e, como lidar com toda essa ânsia por conhecimento, em um mundo que nem sempre possibilita às mulheres este posto? São questões que vão surgindo na tela, que se mostram como desafios de temporalidade, em um universo em que a beleza e a graça se coloca como um contraponto à boçalidade e à rudeza. Mas não haverá limites na generosidade de Antônia, que fará de tudo para acolher aqueles que chegarem até ela.


Nesse sentido dá pra compreender de onde Jean Pierre Jeunet deve ter tirado uma de suas maiores inspirações para o clássico moderno O Fabuloso Destino de Amelie Poulain (2001). Ainda que o filme não seja tão colorido como o francês há um forte flerte com o caráter onírico, quase de sonho (especialmente na forma como Danielle percebe alguns acontecimentos) e também um otimismo latente - representado de forma máxima pela sequência em que quase todo o elenco surge transando ao mesmo tempo (afinal de contas, sexo é estado de êxtase, não?). A excentricidade de suas figuras - um filósofo pessimista, a neta superdotada, uma mulher que uiva em noite de lua cheia, a idosa caduca, o padre que questiona os dogmas, a amiga que ama ter filhos -, também forma um coletivo de figuras que nos remetes às personagens de Jeunet, eventualmente surpreendidas pelo absurdo, mas sempre persistindo diante das adversidades. Filme que rende na mesa de debates pela amplitude e pela ambiguidade de seus temas, A Excêntrica Família de Antônia está completando 25 anos de seu lançamento agora em setembro. E segue como um dos mais inesquecíveis representantes do cinema holandês. Vale conhecer. Ou revisitar.