quarta-feira, 24 de julho de 2024

Pérolas da Netflix - Matar Jesus (Matar a Jesús)

De: Laura Mora Ortega. Com  Natasha Jaramilo, Giovanny Rodriguez e Juan Pablo Trujillo. Drama / Suspense, Colômbia / Argentina, 2017, 95 minutos.

Assistir ao ótimo Matar Jesus (Matar a Jesús), me fez lembrar de uma outra obra - no caso, o tenso O Filho (2001). E ainda que sejam filmes completamente diferentes entre si, há algo que une ambas as experiências, especialmente no que diz respeito ao exame dos ciclos de violência social, o medo como parte da rotina e quais os fatores que desencadeiam esses sentimentos - muitos deles ligados a traumas do passado e dores que apenas se reproduzem, sem muita explicação. Na produção dos Irmãos Dardenne, acompanhamos um carpinteiro enlutado pela perda do filho em um assassinato mal explicado, que contrata um jovem aprendiz que, mais tarde, descobriremos ser justamente o criminoso do passado. Já na obra dirigida pela colombiana Laura Mora Ortega, e que é baseada em fatos reais ocorridos na sua adolescência, uma jovem se aproxima perigosamente do sujeito que matou seu pai, meio que do nada.

Claro, como eu já disse, são experiências distintas - uma sul-americana, com todos os seus signos e códigos urbanos, de motos e asfaltos com seus barulhos urgentes; outra europeia, com elementos mais contemplativos, num cinema de espaços mais apertados e claustrofóbicos. No cerne esse aspecto de alguém que tem uma informação sobre o passado - e que poderá usá-la como uma forma de obter vantagem. Vingança? Talvez. Mas o caso é que as coisas podem ser mais complexas do que supõe a mera lógica do "bandido bom é bandido morto". No caso de Paula (Natasha Jaramilo), a protagonista de Matar Jesus, ela simplesmente assiste à morte do próprio pai, o carismático professor universitário de Ciências Políticas de Medellín, José Maria (Camilo Escobar), após um ataque perpetrado por uma dupla de sicários em uma moto. Sem uma resposta efetiva da polícia - não há sequer um suspeito, muito menos uma motivação -, Paula fica desalentada ao saber que o caso será arquivado.


 

Isso até uma noite em que Paula vai à boate com amigos. E esbarra justamente com Jesus (Giovanny Rodriguez), o jovem que, de acordo com as suas lembranças (ela pôde ver seu rosto de relance), foi o responsável pelo ato cruel. De forma discreta, ela tenta elaborar um plano para dar cabo do bandido. O que envolve uma aproximação, que avança para um estranho flerte - com um convite para a visita a um ponto mais ermo da cidade. Mas, se você não é um assassino, como você procede? Paula esconde em sua mochila, junto de seus equipamentos de fotografia - prática da qual ela é uma entusiasta -, uma garrafa quebrada. A tática pode dar cabo do rapaz? Sem muita certeza, ela mantém contato com um traficante das redondezas, um tal de Gato (Juan Camilo Cárdenas), que pode lhe ajudar a conseguir um revólver. Mas será que essa proximidade com esse outro espectro da criminalidade lhe fará bem? Até que ponto ela vai, tendo ainda o risco de ser descoberta?

Em meio a policiais corruptos, familiares preocupados e uma violência que parece se avizinhar a todo momento, em cada esquina da turbulenta cidade colombiana, a protagonista tenta juntar a coragem necessária para executar seu objetivo. Mas qual o sentido de continuar esse ciclo sem que tudo piore ainda mais? O delegado local, sugere que ela saia dali. Esqueça tudo o que aconteceu. Mas isso também é viável? Contrastando os figurinos coloridos, as luzes brilhantes da cidade ao anoitecer e as músicas hipnóticas e sensuais, com o cinza dos prédios e a crueza dos cenários de periferia, Laura Mora Ortega esmiuça o tecido social sem apelar para o maniqueísmo barato. Na realidade não há mocinhos e bandidos quando o sistema como um todo está um tanto falido. Quando um lado da cidade sofre de forma chocante com a realidade. Alguém precisará baixar a arma. Dar o primeiro passo. Pensar em algum tipo de redenção. E certamente não será um processo fácil.


segunda-feira, 22 de julho de 2024

Pitaquinho Musical - Cigarettes After Sex (X's)

Vamos combinar que, enquanto a imprensa musical (supostamente) especializada bate cabeça na busca por formas de deslegitimar a música feita pelos texanos do Cigarettes After Sex, a banda capitaneada por Greg Gonzalez segue firme no seu propósito de fazer com maestria a sua especialidade - no caso, canções sussurrantes, sensuais, de fim de madrugada à meia luz, que servem como a trilha sonora perfeita em meio a vinhos cheios de taninos e lençois de cetim com milhares de fios. Não, não há nada de diferente em X's - o terceiro registro de inéditas do trio -, que não tenha aparecido antes nos igualmente belos Cry (2019) e no homônimo trabalho de estreia, que veio ao mundo em 2017. Ok, de lá pra cá houve uma pandemia, o mundo mudou, o próprio Gonzalez passou pelo trauma de um rompimento amoroso. A música em si? Segue sofisticada, classuda, sensual e lânguida. Exatamente como aprendemos a amar.


 

Aliás, o número de streamings nas plataformas de áudio não mentem. O coletivo é um fenômeno de reproduções digitais - por mais monocórdico ou introspectivo que o grupo possa, eventualmente, soar. Isso não significa que não haja intensidade, emoção, ou algo mais poderoso nos versos. Mas o vocalista explica que o seu canto, especialmente nesse terceiro disco, vem de um "lugar de vulnerabilidade". "E eu gosto de coisas que me façam sentir gentil, especialmente se é música íntima. Eu estou canto de uma forma mais quieta porque é assim que você falaria com alguém se você estivesse abraçando a pessoa, segurando-a o mais próximo possível, falando nesses tons realmente silenciosos. É como uma carta de amor", explicou o músico em entrevista ao site Independent. O resultado é uma coleção de canções sobre a complexidade dos relacionamentos, românticas mas profundas, cheias de idas e vindas e bons refrãos, como comprovam as ótimas Silver Sable, Hideaway e Dark Vacay.

Nota: 8,5


Tesouros Cinéfilos - Nunca Fui Santa (But I'm a Cheerleader)

De: Jamie Babbit. Com Natasha Lyonne, Clea Duvall, Cathy Moriarty e RuPaul Charles. Comédia / Romance, EUA, 1999, 85 minutos.

Se em pleno 2024 o conceito de cura gay parece um tanto bizarro - a despeito do moralismo barato dos reacionários da extrema direita, e de seu pânico permanente diante de qualquer coisa que fuja da heteronormatividade -, no final dos anos 90 esse tipo de assunto talvez fosse menos comentado. O que, de forma paradoxal, amplia a potência desse divertidíssimo Nunca Fui Santa (But I'm a Cheerleader) - obra da diretora Jamie Babbit que se ocupa de parte dos clichês ligados a preconceitos propagados pelos "cidadãos de bem", para convertê-los em uma coleção de piadas debochadas. Dos cenários multicoloridos - com destaque para o rosa que, como diria a tal ministra, é a cor que as meninas usam -, passando pelos figurinos cafonas, até chegar aos diálogos caricatos, no cerne da experiência parece haver uma profunda crítica ao conservadorismo torpe e ao comportamento antiquado de uma parcela da sociedade.

Sim, a preocupação com a sexualidade alheia como uma espécie de mecanismo para lidar com as próprias frustrações quando o assunto é a intimidade, não é exclusividade dos extremistas de direita de hoje, que seguem figuras patéticas como Bolsonaro, Milei ou Trump. No passado, aliás, a situação era ainda pior, com os tais acampamentos para terapias de conversão sendo efetivamente levados a sério - como supostos espaços de cura para gays e lésbicas que, a partir de uma série de atividades, seriam capazes de reencontrar os seus caminhos (uma balela, aliás, sempre ligada à Igreja, a Cristo e ao seu provável ódio a qualquer ser de padrão desviante, como acreditam os religiosos mais fanáticos). E é pra um desses espaços que a jovem Megan Bloomfield (uma Natasha Lyonne bem novinha, antes do sucesso em Orange Is the New Black) - uma loirinha padrão que, de quebra, é líder de torcida - é enviada pelos pais, após ela dar alguns sinais de que, talvez, goste de pessoas do mesmo sexo.


 

Aliás, os tais sinais podem até ser estereotipados, mas são genuinamente engraçados. "Você tentou nos fazer comer tofu", afirma a mãe de Megan, enquanto esta é inquirida, como se a mera sugestão ao veganismo pudesse ser um indício de (des)orientação sexual. Na mesma sequência, o pai da jovem aponta para um cartaz de Melissa Etheridge e uma pintura de Georgia O'Keefe também como sinais de um certo pendor ao gayzismo - o mesmo valendo para as fotos de mulheres de biquíni mantidas no armário da escola. "Você sequer gosta de me beijar" reforça Jared (Brandt Wille), o namorado padrão da garota (e de fato ela não gosta). Toda essa intervenção é acompanhada de perto por Mike (RuPaul Charles, em um papel que só amplia o caráter iconoclasta e de autoironia do projeto), um ex-gay que agora trabalha na clínica apropriadamente chamada de True Directions, e que será um dos responsáveis pela recondução de Megan à heterossexualidade.

Tudo é exagerado e kitsch, com as etapas da suposta conversão de Megan - num esforço coordenado pela diretora meio fascistoide Mary Brown (Cathy Moriarty) - só a afastando mais da tal redescoberta de sua identidade de gênero. A ideia do espaço é a de promover uma série de tarefas - que envolvem desde meninos rachando lenha e meninas simulando a vida de donas de casa -, que as devolveria a esperada orientação sexual. Claro que a coisa vai dar errado, ainda mais quando Megan conhece a estudante Graham Eaton (Clea Duvall), uma garota cheia de personalidade e que parece mais confortável com seu lesbianismo, por quem ela se apaixonará. Orbitando as duas, uma série de outros jovens também participam do processo que, a cada novo acontecimento, só se mostra mais sem sentido - e é meio bizarro pensar que milhares de jovens foram enviados a esse tipo de acampamento em décadas passadas. Repudiado pela crítica na época do lançamento - aliás, como qualquer filme mais ousado de décadas anteriores -, o projeto, primeiro filme dirigido por Babbit, receberia anos depois status de cult (sendo exibido atualmente na Mubi). Vale redescobrir.


sexta-feira, 19 de julho de 2024

Novidades em Streaming - A Filha do Palhaço

De: Pedro Diógenes. Com Lis Sutter, Demick Lopes, Jupyra Carvalho e Jesuíta Barbosa. Drama, Brasil, 2022, 104 minutos.

"Um homem vai ao médico, diz que está deprimido. Afirma que a vida parece dura e cruel. Conta que se sente só num mundo ameaçador onde o que se anuncia é vago e incerto. O médico diz: 'O tratamento é simples. O grande palhaço Pagliacci está na cidade, assista ao espetáculo. Isso deve animá-lo.'O homem se desfaz em lágrimas e, após um tempo, diz: 'Mas, doutor... Eu sou o Pagliacci." Vamos combinar que o trecho acima, extraído de Watchmen - em um dos tantos instantes comoventes protagonizados pelo personagem Rorschach -, virou meio que um lugar comum, sendo replicado a todo momento na internet. Especialmente na era do meme, a figura do palhaço triste - alguém que, supostamente, deveria fazer uma plateia rir, mas que não consegue lidar com sua própria dor -, se torna uma caricatura quase óbvia. Fácil. Sendo reproduzida de forma meio literal no ótimo A Filha do Palhaço, do diretor Pedro Diógenes e que está disponível para aluguel no Now.

A trama é bastante simples, mas é daquelas que mexe com a gente. E que coloca em primeiro plano o contraste entre o riso e o choro, a alegria e a melancolia - como uma espécie de exercício de vida real bastante eficiente, de fácil identificação. Na abertura acompanhamos Renato (o ótimo Demick Lopes), um humorista que está no palco de um bar caracterizado como Silvanelly - uma drag queen meio desbocada, que faz aquele tipo de piada de tiozão. E que costuma arrancar gargalhadas dos fãs de programas como A Praça É Nossa. Com seu figurino multicolorido, maquiagem carregada e trejeitos exagerados, Silvanelly - que foi inspirada na Raimundinha, personagem interpretada pelo falecido Paulo Diógenes e que era bastante popular no Nordeste -, encerra sua apresentação em meio a aplausos tímidos e pouca empolgação. Só que, para Renato, o que era pra ser uma noite como qualquer outra, acaba virando de ponta cabeça com a chegada inesperada de sua filha, Joana (Lis Sutter).


 

E não demorará para que percebamos que essa é a típica história de tentativa de reconciliação entre pai e filha - apartados, no passado, por uma série de motivos. Cheia de dúvidas, a figura discreta de Joana entra de forma inesperada no mundo que contrasta cores exuberantes e sombras enevoadas de seu pai - que habita um apartamento minúsculo que, em alguma medida, escancara uma trajetória de luta e de superação de dificuldades. Aliás, dificuldades que só se apresentarão maiores - especialmente em uma sociedade ainda tão preconceituosa e intolerante como a nossa - a cada nova descoberta a respeito da trajetória do homem. O que teria motivado um abandono mais de uma década atrás? Há espaço para o perdão? Como lidar com esse vazio, esse lapso na conexão entre pai e filha que, agora distantes, tentam se aproximar mesmo tendo poucos vínculos? Com delicadeza, entre silêncios e tensões, esses nós serão aos poucos desatados. Sempre sem pressa, de forma comedida.

Hábil, o diretor converte a experiência com a obra em uma grande colagem de instantes delicados sobre um pai que busca se reaproximar - ainda que de maneiras meio tortas. Difícil não se emocionar quando o sujeito consegue, a pau e corda, uma TV de tubo meio antiga para que Joana possa se entreter assistindo algum filme em DVD (num daqueles paradoxos curiosos que envolvem pessoas oxigenadas em termos ideológicos, mas que parecem ultrapassadas quando o assunto é tecnologia). Ou quando a jovem defende o pai, em um episódio de homofobia. Joana vai para a casa do pai, sem que a mãe saiba. Aliás, mente pra ela a respeito de sua viagem. E descobre um universo culturalmente fervilhante - de teatro, de música, de literatura, de dança, de vida. A arte humaniza, aproxima. Une até mesmo aqueles que estavam afastados. Como fica claro no nostálgico momento em que a música Tô Fazendo Falta - clássico da virada do milênio na voz da Joanna -, é entoada pelos dois. Ao cabo, essa é uma obra sobre decisões nem sempre acertadas, arrependimentos e busca por redenção. Um conjunto que se torna ainda mais complexo para quem está à margem da sociedade.

Nota: 8,5


terça-feira, 16 de julho de 2024

Cinema - Clube dos Vândalos (The Bikeriders)

De: Jeff Nichols. Com Jodie Comer, Austin Butler, Tom Hardy, Michael Shannon e Mike Faist. Drama, EUA, 2023, 116 minutos.

Assim que finalizei Clube dos Vândalos (The Bikeriders) confesso a vocês que fiquei me perguntando a respeito do sentido desse filme ter sido feito - e, sim, eu tenho consciência plena de que a apreciação de um produto cultural não depende necessariamente disso. Não é preciso encontrar significado em tudo, especialmente quando o assunto é arte. Aliás, mais do que isso, a interpretação de cada pessoa dependerá de sua bagagem, experiências, vivências. Só que, aqui, rolou meio que uma sensação de vazio - e que talvez tenha a ver com o fato de que essa história ser excessivamente estadunidense. Ok, antes de os clubes de motociclistas funcionarem como uma espécie de antessala da extrema direita - no Brasil, em muitos casos, esses coletivos envolvem sujeitos bem nascidos que se reúnem para passeios "radicais" com suas Harley, enquanto reclamam do comunismo e das políticas sociais do governo Lula -, eles tiveram um embrião. E a minha dúvida era: esse tipo de comportamento sempre foi assim?

A resposta da produção dirigida por Jeff Nichols - de Loving (2016) -, parece ser: sim, sempre foi assim. Talvez com uma perspectiva um pouquinho diferente, mas sim. Quando surge nos anos 60, o Clube dos Vândalos - que existiu de verdade - era, sim, um grupo de adeptos da liberdade e da velocidade, que se reunia para conversas rasas, cervejadas, discussões acaloradas e brigas sem sentido. Mais ou menos como os bolsonaristas nos dias de hoje. Mas no seu embrião parecia haver uma espécie de código de conduta que, aqui e ali, foi se perdendo conforme a coisa foi crescendo. E gerando filiais nos mais variados estados norte-americanos. Que é quando a coisa descamba, a violência aumenta e o espírito aventureiro, à moda Sem Destino (1969), rock'n roll e contracultura, se esvai. E é justamente essa narrativa que é contada, em estilo documental, por Kathy (Jodie Comer), que conhece o integrante dos Vandals, Benny (Austin Butler, no modo James Dean das ideia), para se casar com ele apenas cinco anos depois.


 

A história é contada, em um arroubo metalinguístico, pelas lentes do fotógrafo Danny Lyon (Mike Faist, uma das estrelas do recente Rivais), que acompanha não apenas Kathy em seu relato, mas também os integrantes remanescentes do próprio grupo - entre eles o fundador Johnny (Tom Hardy, que entrega muito no papel do sujeito xucro, mas com algum senso de compaixão) e seu braço direito Brucie (Damon Herriman), que são orbitados ainda por outros integrantes da gangue, como o mal encarado Zipco (Michael Shannon) e o almofadinha Cal (Boyd Holbrook). Com idas e vindas no tempo, a narrativa contempla os desafios do grupo em se manter sólido, ao passo em que são desafiados por jovens supostamente rebeldes, que pretendem a todo o custo tomar o seu lugar de liderança - especialmente depois do surgimento de um sujeito irascível conhecido apenas como The Boy (Toby Wallace), que ameaça o grupo.

Em linhas gerais, o que o filme parece querer mostrar é como um coletivo pode simplesmente descambar se não estiver bem estruturado, organizado, talvez até com um estatuto bem consolidado, com tudo piorando em tempos de guerras (como a do Vietnã) e de incertezas sobre o futuro. Com tudo correndo meio solto não foi difícil de a coisa sair de um grupo de homens de meia idade, talvez meio insatisfeitos com alguma coisa, que são eventualmente misóginos e beberrões para um grupo de homens de meia idade, talvez meio insatisfeitos com alguma coisa, que são ainda mais misóginos e beberrões. Ao cabo, a motociata se converteria em um espelho extraído de Mussolini, para ser reconfigurado nos dias atuais como símbolo de uma extrema direita frustrada com os avanços do mundo. O que era contracultura e Born to Be Wild, do Steppenwolf nos anos 60, hoje em dia é preconceito, intolerância, óculos escuros, masculinidade tóxica e bandanas com os dizeres Make America Great Again. Se foi isso que Nichols quis mostrar, eu não consigo ter certeza. Entre a excêntrica camaradagem, os dentes podres, o ronco do motor e o barro e os homens que pretendem estuprar uma mulher em um bar a luz do dia, ou que quase decepam o pé de um suposto rival não parece haver muita diferença. É tudo meio parecido. Sem muito espaço para contradições.

Nota: 6,0


segunda-feira, 15 de julho de 2024

Cinema - Ainda Temos o Amanhã (C'è Ancora Domani)

De: Paola Cortellesi. Com Paola Cortellesi, Valerio Mastandrea, Emanuela Fanelli e Romana Vergano. Drama / Comédia, Itália, 2023, 118 minutos.

Em uma das tantas cenas cheias de significados de Ainda Temos o Amanhã (C'è Ancora Domani) está uma em que a sofrida protagonista Delia (Paola Cortellesi, que também dirige o projeto) está na fábrica de guarda-chuvas em que ela presta serviço. Seu chefe, um sujeito de modos rudes, a incumbe de ensinar o ofício a um jovem iniciante, que não parece muito satisfeito com o salário miserável que receberá no local. Conversa vai, conversa vem, Delia descobre que o rapaz vai ganhar mais do que ela - mesmo ela estando há três anos no local. Ao confrontar o patrão sobre o por quê disso, a resposta é direta, seca: "oras, porque ele é homem". Em linhas gerais esse é o tipo de instante que nos permite ter mais certeza a respeito do tipo de discussão que a diretora propõe: o de que o amanhã só poderá ser melhor se, em uma sociedade patriarcal, machista e misógina, forem aproveitadas todas as oportunidades que envolvam o futuro político, social e cultural de uma nação.

Na trama, o cenário é o ano de 1946, em uma Itália que pretende se reerguer no pós Segunda Guerra, em um cenário de devastação que era resultado da derrocada do fascismo. Delia é a mulher de meia idade típica do passado, que subsiste como uma dona de casa inferiorizada e insatisfeita, que é humilhada permanentemente pelo marido brutalizado e supostamente traumatizado pelo conflito - seu nome é Ivano (Valerio Mastandrea). E que, já na abertura do filme, desfere um tapa no rosto de Delia, ainda na cama, após um "bom dia" não bem recebido. As frustrações de Ivano - que parece ser aquele homem pequeno, conservador, fracassado e adepto da violência como moeda de troca - se espalham em outros integrantes masculinos da família, como é o caso do sogro Ottorino (Giorgio Colangeli), um decrépito e acamado idoso que, em meio a abusos à própria nora e certo saudosismo de Mussolini (como ocorre com o "cidadão de bem" médio), subsiste em meio a gritos e palavrões destinados a qualquer pessoa.


 

Delia sabe que, nesse cenário, sua vida talvez não mude. Ela já está próxima dos 50 anos e, a cada momento em que consegue escapar de casa para a realização de algum tipo de trabalho extra que lhe confira alguma renda - além da fábrica de guarda-chuvas, ela realiza costuras para lojas chiques e atua como enfermeira para famílias ricas -, ela vai juntando dinheiro, que pretende destinar a sua filha pós-adolescente Marcella (Romana Vergano). Grana para estudar? Nada. Estudar não é coisa para as mulheres - ao menos é o que pensam os homens da família de Delia. Seu sogro chega a lhe alertar de que ela "é uma boa esposa, só tem de aprender a ficar calada". O dinheiro servirá para a aquisição de um belo vestido de noiva, especialmente depois de Marcella conhecer Giullio (Francesco Centorame), um jovem bem nascido filho de um empresário da cidade. Mas será esse, de fato, o melhor "amanhã" para Marcella? Ser a dona de casa supostamente bem casada, que repetirá um ciclo?

Uma carta que chega a Delia de forma meio inesperada, poderá representar um despertar. Além desse bilhete, a protagonista tem em seu entorno uma improvisada rede de apoio, que lhe ajuda a alterar a sua percepção sobre o mundo - além da melhor amiga, a feirante Marisa (Emanuela Fanelli), há o vizinho e mecânico de automóveis Nino (Vinicio Marchioni) e o soldado afroamericano William (Yonv Joseph). Os temas envolvendo quebra de padrões, papel da mulher na sociedade e luta contra a opressão têm inegável impacto, que parece ampliado se levarmos em conta a fotografia em preto e branco, que torna o cenário mais áspero. Ainda assim há um quê de otimismo em relação ao futuro, especialmente quando se leva em conta o papel transformador da participação das mulheres na vida pública (de forma coletiva, organizada e buscando o melhor para si). É uma obra afetuosa e realista, que dialoga muito com o presente, e que foi a mais assistida da Itália no ano passado. Em um País que parece disposto a abraçar novamente o fascismo, como indicam algumas pesquisas de opinião, é um alento. 

Nota: 8,5


terça-feira, 9 de julho de 2024

Novidades em Streaming - Evidências do Amor

De: Pedro Antônio Paes. Com Sandy, Fábio Porchat, Evelyn Castro, Larissa Luz e Fernanda Paes Leme. Comédia / Romance, Brasil, 2024, 100 minutos.

Vamos combinar que a ideia por trás de Evidências do Amor é muito boa, afinal de contas a música de José Augusto que seria eternizada na voz da dupla Chitãozinho e Xororó, talvez seja, ao lado de Amigo Punk, da Graforreia Xilarmônica, a mais conhecida do País. E basta ir para uma festa com karaokê - qualquer festa, independente do tema -, e não vai demorar para que alguém se aventure nos versos pegajosos da canção, sem vergonha alguma de desafinar. É um verdadeiro Hino, adaptado para outros gêneros musicais - do pagode ao axé, passando pelo metal e até pelo rap (como fica claro já na sequência inicial, em que uma ótima montagem percorre os mais variados espaços onde a música é executada nos mais diversos estilos). Aliás, o karaokê em si é o ponto de partida dessa carismática comédia romântica dirigida por Pedro Antônio Paes. E que tem Evidências como elemento central.

Na trama, a médica Laura (Sandy, em excelente atuação) encontra por acaso o desenvolvedor de aplicativos Marco Antônio (Fábio Porchat, em uma entrega meio Fábio Porchat das ideias), em uma noite de festa. Ainda desconhecidos e, por uma enorme coincidência, solicitam ao mesmo tempo uma ficha para cantar no karaokê o clássico sertanejo. Claro que tudo não vai passar de uma desculpa para que Evidências se torne, como não poderia deixar de ser, a música de suas vidas. Especialmente depois de o casal se apaixonar, a despeito de suas diferenças - Marco Antônio é mais palhação, naquele estilo adolescente tardio que a gente vê em filmes do Adam Sandler, sempre com uma piadinha na ponta da língua, ao passo que Laura é mais centrada, a ponto de ter deixado meio de lado uma promissora carreira de cantora para se dedicar à medicina. Eles se gostam, óbvio. O tempo passa. Mas a coisa cansa. Desanda. E Laura resolve terminar com Marco Antônio por mensagem de celular, semanas antes do casamento, que já tinha data marcada.

 


 

Um salto temporal faz a história avançar um ano no tempo. Marco Antônio está bem no trabalho. Aliás, a frustração vivida no relacionamento faz ele criar um aplicativo que visa justamente facilitar a logística de casais que estão se separando. A rotina segue mais ou menos tranquila, entre cornetas matinais envolvendo a síndica do seu condomínio, Júlia (Evelyn Castro, que consegue ser naturalmente engraçada, o que é sempre um mérito), e o ideal de seguir em frente. Só que, em certo dia, o sujeito entra em um elevador em que o sistema de som - conectado a uma rádio popular - anuncia Evidências como a próxima canção a ser executada. Marco Antônio desmaia. E entra numa espécie de looping temporal em que ele volta no tempo para reviver algum acontecimento com a ex. E sempre será uma memória triste. Desconfortável. Em que ele não consegue enxergar com clareza os problemas. E o fato de Laura precisar lidar, muitas vezes, com a sua pior versão.

Ao cabo, essa curiosa mistura nacional de Feitiço do Tempo (1993), com Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004) é a famosa história de segunda chance, que costuma costurar as comédias românticas. Há espaço para tentar novamente? A gente já viu milhares de vezes a mesma narrativa, mas o fato de ser uma obra brasileira, que ainda se utiliza da popularidade de Evidências para a criação de uma mescla de ficção científica com sátira romântica torna tudo absolutamente prazeroso. Porchat pode ser meio histriônico em alguns momentos, mas tem um ótimo timing pra comédia, isso é inegável - e são muitas as sequências aparentemente improvisadas que funcionam bem (especialmente as com Evelyn, sua parceira de Porta dos Fundos). Já Sandy tem aquele estilo corpóreo meio retraído, que forma um bom contraponto à expansividade de Marco Antônio. É óbvio que não vai mudar o mundo. Mas tem seu charme. E quando sobem os créditos, a gente nem percebe que o tempo passou. Assim como já se passaram 35 anos do lançamento de Evidências. Que segue sendo amada não apenas no Brasil. Mas no mundo. E nessa loucuuuura!

Nota: 7,0


segunda-feira, 8 de julho de 2024

Pitaquinho Musical - The Decemberists (As It Ever Was, So It Will Be Again)

Quem acompanha a carreira dos americanos do The Decemberists, sabe que a banda andava devendo um álbum realmente bom desde, ao menos, o ótimo The King Is Dead (2011). Claro que a peteca nunca caiu, mas o aceno para um pop mais convencional nos trabalhos recentes - como no caso do pálido I'll Be Your Girl (2018) -, parece ter decepcionado os fãs mais antigos, que estavam acostumados àquele folk barroco que mais parecia saído da trilha sonora de alguma peça de teatro épica, em que narrativas grandiosas e melancólicas em igual medida pareciam o ponto de encontro perfeito entre florestas, cavaleiros, criaturas mágicas, fantasmas e caramanchões, com os aspectos mais mundanos da existência humana. Aliás, um tipo de união meio rara que sempre fez o som do coletivo soar único, quase no limite entre as melodias ensolaradas dos Beach Boys e os temas sombrios de um REM fase Automatic for the People (1992).

 

 

Aqui, esse expediente luminoso mas soturno, carnal mas abstrato, pode ser percebido já na abertura, com Burial Ground, uma canção com o DNA do Decemberists, de construção onírica e refrão pra cantar junto. Já Long White Veil pode ser uma música sobre a morte - ainda que de forma alegórica -, mas que possui uma polidez festiva irresistível, que acompanha uma letra sobre luto e superação (Eu casei com ela, eu a carreguei / No mesmo dia eu a enterrei). Claro que, aqui e ali, os temas lúgubres se sobrepõem, ainda que sempre com aquele brilho meio literário, como no caso da sombria Don't Go to the Woods e suas cordas pungentes, que se alternam com o acordeão comovente. Ou de The Black Maria, com a sua fluidez ondulante, conduzida pelos vocais luminosos de Colin Melroy. Ok, precisava terminar com uma música de quase 20 minutos, num flerte exagerado com o progressivo? Talvez não. Mas no nono álbum em mais de vinte anos de estrada, eles se dão ao direito.

Nota: 8,0


Tesouros Cinéfilos - I Saw the TV Glow

De: Jane Schoenbrun.Com Justice Smith, Brigette Lundy-Paine, Danielle Deadwyler e Fred Durst. Drama / Terror, EUA, 2024, 100 minutos.

Pra quem cresceu nos anos 90, como é o meu caso, pode ser meio estranho não pensar no componente alienante que pode vir atrelado à tela de TV - com seus programas de gosto eventualmente duvidoso e sua atual oferta praticamente infinita. E, eu lembro como se fosse hoje, do dia em que a MTV adentrou a casa da minha família - e, simplesmente, de uma hora pra outra era possível assistir à Tonight, Tonight do Smashing Pumpkins, talvez um dos videoclipes mais bonitos da história (e que, em alguma medida, tem conexão com I Saw the TV Glow, essa tão falada joia do cinema alternativo), em uma tarde de verão qualquer, da cidade de Lajeado, lá pelo ano de 1996. O canal musical era só uma das opções advindas da TV a cabo, que possibilitaria assistir produções juvenis como Dawson's Creek, Friends ou Buffy A Caça Vampiros. O mundo da televisão, afinal, era maior do que previa o programa dominical. Ou os limites da vizinhança na cidade pequena.

Tudo bem que, como obra de amadurecimento, esse é só um componente que chama a atenção na produção dirigida por Jane Schoenbrun - que funciona como veículo ideal para um exame da adolescência como um período de descobertas e de limites, em que as coisas podem ser mais sombrias (ou menos luminosas). Ainda mais para a comunidade LGBTQIA+, que parece ser o público-alvo mais claro do longa - por mais que o assunto seja universal. Sensorial, quase onírica, a produção já abre como um plano médio de uma rua asfaltada pintada por um giz de tons neon, que se somam a trilha sonora enevoada, que, mais adiante juntará nomes como Caroline Polachek, Yeule e Phoebe Bridgers. Quando nos deparamos com o jovem Owen (Justice Smith) à frente da TV, já estamos absorvidos por aquele universo de ruas pacatas e de jardins encharcados da cidadezinha do subúrbio, que é invadida pelas cores vivas que saltam da TV. Owen fica simplesmente obcecado por uma série de TV chamada The Pink Opaque, exibida sempre nos sábados de noite, a partir das 22h30 - e que sua mãe simplesmente não o deixa assistir, porque ele é obrigado a ir dormir mais cedo.


 

Movido pela intenção de simplesmente assistir a série - que parece unir uma série de elementos e lugares-comuns típicos das produções adolescentes dos anos 90, com seu maniqueísmo macabro e amizades juvenis esparsas -, Owen acaba por fazer amizade com a melancólica Maddy (Brigette Lundy-Paine), uma garota do nono ano, que surge na escola com o maior objeto de desejo de todos: uma espécie de guia de episódios de The Pink Opaque. De todas as temporadas. Juntos, eles assistem às escondidas um dos episódios, com Maddy passando a gravar em uma fita VHS todos os demais. Uma pequena subversão que os conecta durante algum tempo, até o dia em que Maddy simplesmente desaparece. No mesmo dia em que a série, que envolve duas jovens telepaticamente conectadas enfrentando monstrengos sobrenaturais legítimos da cultura nerd - como um sorvete gigante e supostamente assustador -, tem um encerramento abrupto e trágico. Fora outros traumas, muitos deles ligados à família - e seu conceito normativo.

Quem já está mais habituado a linguagem dos filmes da A24 vai encontrar ali os pontos de conexão, que envolvem temas, como, identidade de gênero, arte como veículo universal de formação, sensação de pertencimento, incertezas quanto ao futuro e mesmo nostalgia do que não se viveu. Num resumo bem resumido - e nada definitivo -, o filme parece nos querer dizer que crescer não é fácil, amadurecer é pior - especialmente se você for um jovem queer, que opta por permanecer fechado em uma concha como uma espécie de fuga de uma sociedade preconceituosa e pródiga em decidir sobre a sexualidade alheia. Em certa altura, quando Owen pergunta para seu pai se ele pode assistir The Pink Opaque, o homem, vivido por um quase irreconhecível Fred Durst (sim, o vocalista do Limp Bizkit), questiona: "esse programa não é de mulherzinha?". Se ajustar aos padrões e as expectativas sociais pode ser complicado. Assim como não é fácil "matar" alegoricamente um eu que não existe, para fazer nascer outro. Mas ainda estará em tempo, como o filme nos lembra de forma não tão sutil. Pode dar vontade de gritar - e talvez seja necessário. rasgar o peito. Deixar sair. Como se fosse uma espécie de limpeza da alma. E que nos permitirá, assim, ver os limites da ficção serem finalmente ultrapassados. Para que a realidade se imponha. Vale demais.


sexta-feira, 5 de julho de 2024

Tesouros Cinéfilos - Rosetta (Rosetta)

De: Jean-Pierre e Luc Dardenne. Com Émilie Daquenne, Fabrizio Rongione, Olivier Gourmet e Anne Yernaux. Drama, Bélgica / França, 1999, 94 minutos.

"Seu nome é Rosetta. Meu nome é Rosetta. Você encontrou um trabalho. Eu encontrei um trabalho. Você tem um amigo. Eu tenho um amigo. Você tem uma vida normal. Eu tenho uma vida normal. Você não vai cair na rotina. Eu não vou cair na rotina. Boa noite." É mais ou menos na metade de Rosetta - obra dos irmãos Dardenne que venceria a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1999 (uma surpresa, aliás, já que o favorito era o Tudo Sobre Minha Mãe, de Pedro Almodóvar) -, que a protagonista vivida pela ótima Émilie Daquenne tem uma espécie de epifania, que faz com que ela fale sozinha. Na modesta casa de Riquet (Fabrizio Rongione), deitada na cama, ela divaga sobre ter encontrado um emprego, ter feito uma amizade, ter agora uma vida normal. Como se fosse uma espécie de mantra, ela repete as frases como se, ao verbalizá-las em voz alta, elas pudessem ter mais força. Afinal de contas, tudo que a jovem deseja é uma rotina repetitiva. É ter um dia a dia como o de qualquer outra pessoa.

Só que ela simplesmente não consegue - e quem acompanha a filmografia dos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne sabe que seu cinema bastante cru e sem firulas é daquelas que aborda as mazelas humanas, os contrastes sociais, a dureza do mundo e a hipocrisia da sociedade de forma direta e um tanto naturalista. Nas suas obras não costuma haver a problemática espetacularização da pobreza ou da miséria - com arroubos estilísticos e aparatos técnicos hiperbólicos que servem como mera distração para aquilo que efetivamente interessa. Em uma produção como Rosetta não há muito espaço para respiro. A câmera seca está sempre grudada no rosto e no corpo da protagonista - aliás, por vezes ela parece quase confusa, trêmula, como se fosse um objeto invasivo, a atrapalhar a ação. A impressão que se tem em muitos casos é a de se estar assistindo um documentário, tamanho o realismo das imagens, a veracidade das sequências (dramáticas, violentas, caóticas).


 

Aliás, aqui o filme já abre com uma Rosetta aflita que circula por corredores apertados daquilo que parece ser uma pequena indústria não se sabe bem de quê. Em tom de súplica, a jovem "foge", mas, curiosamente, para dentro do local de trabalho. Ela não quer sair dali. Quer ficar. Tem uma mãe alcoólatra pra lidar, uma existência miserável em um trailer improvisado e precário em que volta e meia falta tudo (de gás a luz), e um monte de contas para pagar. Independência? Individualidade? Esquece. A vida de Rosetta se resume a um cubículo fechado, que só é desocupado quando sua mãe se prostitui como forma de quitar dívidas. Ou pra manter o vício em bebidas. A caminhada de Rosetta na abertura do filme é simbólica, alegórica. É longa, deprimente, entre escadarias infinitas e espaços opacamente iluminados. "Eu quero ficar", implora, enquanto seu chefe explica que seu período de experiência terminou e ela não mais trabalhará ali. Um tumulto acontece, a polícia é chamada, todos vão ao chão.

Essa será a deixa para que os Dardenne, como de praxe, examinem a precariedade do universo do trabalho, exatamente como fariam outras vezes, mais adiante, em obras doloridas como O Filho (2001) ou Dois Dias, Uma Noite (2014) - o primeiro sobre um sujeito que contrata um jovem que supostamente assassinou seu filho, o segundo sobre uma mulher que empreende uma via crúcis para preservar seu emprego, após retornar de uma licença saúde. Em Rosetta, a protagonista está sempre apressada pra lá e pra cá, em uma busca desenfreada por alguém que simplesmente lhe permita trabalhar. Que lhe assine uma carteira. Que lhe confira dignidade. Ou alguma qualidade de vida. Que lhe ajude a amenizar as cólicas recorrentes, a solidão retumbante, o desalento comovente. É uma obra dura em que as brigas são mundanas e as metáforas gritam, como no instante em que a jovem joga fora peixes dados como um "presente" à mãe, para tentar pescar no lago do entorno as suas próprias carpas. "Não somos mendigas", argumenta. Evidentemente, em obras assim não há muita solução para além da resignação, diante da completa falha do capitalismo nem tão tardio. Se a gente ri no final, se é que ri, é de nervoso.


segunda-feira, 1 de julho de 2024

Cinema - A Grande Fuga (The Great Escaper)

De: Oliver Parker. Com Michael Caine, Glenda Jackson e Danielle Vitalis. Drama / Comédia, EUA / Reino Unido, 2023, 97 minutos.

"Você está bem? Não, não estou, estou muito velha". Vamos combinar que o subgênero dos filmes com idosos sendo carismáticos e ranzinzas não chega a ser uma novidade e, em linhas gerais, é um formato que em muitos casos agrada tanto o público quanto a crítica. Afinal de contas todos nós iremos envelhecer - e lidar com todas as decorrências da proximidade do ocaso da existência é algo demasiadamente humano. Assim, quando A Grande Fuga (The Great Escaper) abre e nos deparamos com um Michael Caine já com 90 anos, com a aposentadoria já anunciada, diante de uma praia plácida em um dia acinzentado, com as ondas do mar em sua fluidez natural, é meio que impossível não pensar na vida e nos seus ciclos, nas idas e vindas e voltas, mas também na chegada em um ponto final. Ali, ainda naquele preâmbulo, parece que não pensamos tanto no filme que assistiremos, mas em tudo o que passou. Ainda mais quando se trata de um grande ator como Caine - um astro premiado, duas vezes agraciado com o Oscar, e certamente um dos maiores de sua geração.

Nesse sentido é meio difícil não ficar enternecido ainda nos primeiros segundos da produção dirigida por Oliver Parker que, para simplesmente acontecer, contou com um grande esforço físico não apenas de Caine, mas também da ótima Glenda Jackson que, com mais de 40 produções no currículo como atriz, viria a falecer meses depois deste, que seria oficialmente o seu último trabalho. Então todas essas circunstâncias parecem nos deixar mais predispostos a atenuar as eventuais críticas ao projeto, ou mesmo relevar a forma condescendente com que, em muitos casos, os velhos são tratados nos filmes. Quando Irene, a personagem de Glenda, afirma que não está bem porque está muito velha, a gente se comove com a honestidade da sua expressão severa diante dessa dura constatação. Ainda assim não deixa de ser divertido perceber como são delas as melhores tiradas, como no instante em que uma enfermeira lhe pergunta se está bem, pra ela responder de forma áspera e gentil em igual medida um "na minha idade você está basicamente ferrada", seguida de um "o médico já me disse pra eu não iniciar livros longos".


 

Ao lado de Bernard Jordan, o personagem de Caine, com quem é casada há mais de cinquenta anos, Irene é a habitante de uma tranquila casa de repouso do Reino Unido. Só que Bernard está inquieto. O ano é 2014 e se aproxima a data da comemoração dos 70 anos do Dia D, que marca a chegada dos aliados à Normandia - ele, um veterano da Marinha Real Britânica que estava no front naquele 1944, em plena Segunda Guerra Mundial. Impossibilitado de participar das festividades por não ter conseguido um convite antecipadamente, Bernard é incentivado por Glenda a simplesmente ir até o local por conta própria. No caso, fugir até a França, em segredo. Baseada em fatos reais, a história tem um componente a mais de dramaticidade, já que a saúde de Glenda não anda das melhores - o que é evidenciado pelo seu comportamento nostálgico, investigando cartas e documentos do passado, ou mesmo discos e outros itens que funcionarão como a ponte para uma série de bonitos flashbacks sobre como ela e Bernard se conheceram nos anos 40.

Em alguma medida esse é um filme de fácil digestão. Ou melhor, é muito simples de se gostar. Não há um grande aparato técnico ou estripulias excessivas - aliás, por recomendação médica, Caine só podia trabalhar cinco horas por dia, mas Parker afirma que, se dependesse do ator, ele se ocuparia durante as 24 horas do dia. Talvez como uma forma de estender um pouco mais aquela que, muito provavelmente, será a sua última vez diante das câmeras. Na fuga para a Normandia, Bernard é identificado pela imprensa, após uma temporada de encontros com antigos fuzileiros e comandantes, em meio a bebedeiras e memórias do passado. E se torna uma espécie de microcelebridade local, após a hashtag #thegreatescaper ser subida no Twitter. O que não deixa de ser uma grande ironia - talvez uma alegoria para a fuga daquilo que nos destina - e também uma forma a mais de homenagear um grande astro, que esteve no elenco de clássicos variados, como Hannah e Suas Irmãs (1987), Regras da Vida (1999) e O Americano Tranquilo (2003). 

Nota: 7,5


sexta-feira, 28 de junho de 2024

Pitaquinho Musical - Papisa (Amor Delírio)

"Pode acreditar / Nem tudo é deserto / Depois da noite escura / Outro dia vai nascer / E quando acontecer / O sol brilhará". A janela abriu e o sol entrou. E tudo está mais aquecido, vivo. E não é que Fenda (2019), a estreia em disco da cantora paulista Rita Oliva, a Papisa, fosse excessivamente melancólico ou sombrio. Talvez ele fosse mais íntimo, com uma sonoridade mais densa, que unia misticismo e introspecção - aliás, a própria capa já entregava esse componente mais ritualístico (nas vestes, nas cores, nos adereços e maquiagens). Só que tudo isso foi há cinco anos, antes da covid-19 e de uma inesperada interrupção de tudo aquilo que estava programado. "Fiquei em um momento de luto pela pandemia – pelo mundo inteiro, pela música que tinha parado. Depois disso, percebi que eu queria realmente a música como um recurso para trazer encantamento para a vida, trazer sol, e foi essa a minha busca", explicou a artista em entrevista ao Scream Yell, a respeito de Amor Delírio, o recém-chegado segundo registro.

 


 

E esse aspecto mais ensolarado pode ser percebido não apenas na sonoridade das faixas que, aqui e ali, mesclam psicodelia moderna com o dream pop noventista, mas também nas letras, mais otimistas, com um maior destaque para a voz, que forma um conjunto harmonioso no todo - o que pode ser constatado em canções como Vai Passar (do trecho que abre essa pequena resenha) que, a despeito de certa melancolia nos arranjos, possui versos otimistas sobre volta por cima. Já no indie rock Dores no Varal - música sobre a transitoriedade do amor que, por mais intenso que seja, pode resultar em dor -, o sol que raia reaparece formando o cenário para uma alegoria óbvia a respeito do renascimento e do aspecto cíclico das paixões (Eu plantei flores no quintal / Amores no verão / Dores virarão / Roupas no varal). Mais expansivo, com mais elementos, instrumentos e efeitos eletrônicos - o que pode ser observado em outros instantes, como na movimentada Melhor Assim e na oitentista Corte -, esse é um álbum mais complexo, e que tem produção de Felipe Puperi, do coletivo Tagua Tagua. Vale conferir.

Nota: 8,0


quinta-feira, 27 de junho de 2024

Novidades em Streaming - Todo Mundo Ama Jeanne (Tout Le Monde Aime Jeanne)

De: Céline Devaux. Com Blanche Gardin, Laurent Lafitte e Nuno Lopes. Comédia / Drama, França / Portugal, 2022, 97 minutos.

Vamos combinar que com Todo Mundo Ama Jeanne (Tout Le Monde Aime Jeanne) talvez tenhamos atingido o auge do carisma quando o assunto são as "vozes na cabeça". Sim, todo mundo possui aquele pensamento meio intrusivo que nos invade em diversos momentos do nosso dia. Só que as criaturas animadas que acompanham Jeanne (Blanche Gardin) são absolutamente zombeteiras, debochadas, irônicas. A ponto de tirar sarro dela quando ela resolve simplesmente fumar, após um momento de estresse. "Câncer, enfisema, câncer, enfisema" cantam de forma enternecedora - com uma voz quase infantilizada - esses pequenos trolls do inconsciente. Aliás, como se já não bastasse se sentir humilhada por uma série de fatores mundanos - o mais recente envolvendo a perda da reputação no trabalho, após um projeto científico que visava a coleta de partículas de plástico do oceano sair totalmente errado -, ela ainda precisa lidar com a irreverência desses demônios interiores.

Estreia em longas da diretora Céline Devaux, essa é uma obra carismática, que diverte sem nenhum esforço - ainda que, aqui e ali, aborde também assuntos mais sérios e que envolvem desde a necessidade de lidar com as próprias inseguranças, até a superação do luto. Jeanne é uma figura arrogante, presunçosa, que poderia ser situada como aquele tipo de progressita acadêmica - que se sente moralmente acima a alguém porque, simplesmente, trabalha em projetos ambientais. Seu ar é superior, seu nariz está sempre empinado, os sapatos de salto ecoam pelas ruas - no seu íntimo talvez haja um problema de autoestima que grita, e que é justamente evidenciado pelos pensamentos intrusivos. Depois que a engenhoca para coleta de fragmentos de entulho marítimo não vinga, ela viraliza em um vídeo patético em que mergulha no mar para tentar salvar o equipamento. Pior do que isso, sem credibilidade, o único caminho para não falir totalmente (e até ser presa por dívidas com o Estado), talvez seja vender o antigo apartamento da mãe, que fica em Lisboa.


 

E será retornando à Portugal que a gente perceberá, aos poucos, que parte dos traumas tem - novidade! -, justamente a ver com a relação complexa com a sua genitora. Uma pessoa amarga, que se suicidou fazendo recair a culpa sobre Jeanne, e que sempre lhe julgava - seu comportamento, hábitos, peso corporal. O que faria a protagonista desenvolver uma série de inseguranças - e que respingaria na conturbada relação com os homens. Sempre desconfiada, amedrontada, distante. No aeroporto, aguardando o voo para a capital portuguesa, ela conhece o carismático Jean (Laurent Lafitte), um cleptomaníaco charmoso, que se aproxima em meio a recordações de tempos distantes. "Fomos colegas na French High School, de Lisboa, você é a garota que todos amavam, que todos desejavam", comenta o rapaz. Entre a ansiedade e o meio caminho para a depressão, Jeanne suporta o deboche dos amigos imaginários que habitam seu cérebro. Mais adiante ela pesquisa no Google "cachorros grandes sendo afetuosos com bebês". É a sua forma de sair daquele contexto meio insuportável, que ela recém adentra.

Ágil, a comédia não perde tempo em longas divagações de seus personagens. As tensões, culpas e medos interiores que Jeanne sente, são abraçados a cada olhar cínico, a cada pensamento sarcástico, a cada palavra em tom de chacota que, claramente, ela usa como uma espécie de mecanismo de defesa. Em terras portuguesas, ela encontra um ex-namorado (ou peguete mesmo) de nome Vitor (Nuno Lopes) que, forçando a barra no estereótipo do esquerdomacho, saca um violão para tocar uma música meio insuportável após o sexo. As vozes na cabeça gritam. E ela fica confusa entre Vitor e Jean ou o que quer que seja. Em entrevista à Mubi, a diretora, que também é roteirista e ilustradora, explicou que a ideia do filme partiu daquilo que era uma espécie de diário ficcional. "Eu criei essa super-heroína ecológica, que afirmava a si mesmo que esse era o trabalho mais útil do mundo e que ela não poderia falhar nele", afirmou. Só que somos seres humanos. E somos falhos, evidentemente. Ao escancarar de forma tão criativa e sincera suas reflexões, Devaux estabelece um vínculo irresistível com o espectador. É delicioso e está disponível na Mubi.

Nota: 8,0


terça-feira, 25 de junho de 2024

Cine Baú - À Meia-Luz (Gaslight)

De: George Cukor. Com Ingrid Bergman, Charles Boyer e Joseph Cotten. Suspense / Drama, EUA, 1944, 114 minutos.

Luzes que parecem piscar dentro de casa, objetos que desaparecem dos cômodos, barulhos que se originam no sótão, sensação de estar sendo vigiada o tempo todo. Todas as sensações experimentadas pela personagem Paula (Ingrid Bergman), no clássico de 1944 À Meia-Luz (Gaslight), e que decorrem do fato de que ela é vítima de manipulação psicológica sistemática, serviriam de base para que, anos depois, especialistas nomeassem esse tipo de abuso - que distorce a realidade e faz com que as pessoas pensem estar enlouquecendo - com o termo que é título original do filme dirigido por George Cukor. Passada no final do século 19, a obra começa com o assassinato misterioso da mundialmente famosa cantora de ópera Alice Alquist, que residia com Paula, sua sobrinha, em uma ampla mansão em Londres. A jovem é enviada à Itália para tentar seguir seus passos como cantora lírica, mas sem muito sucesso - num salto temporal de quase dez anos.

É nesse contexto que ela conhece um certo Gregory Anton (Charles Boyer), que a pede em casamento algumas semanas depois de iniciarem o relacionamento. E qual o local eles escolhem para seguir as suas vidas? A antiga casa da falecida tia, claro, um ambiente fechado, amplo, mas claustrofóbico, com suas escadarias vertiginosas, portas que darão para ambientes "secretos" e móveis que guardam documentos que podem ser reveladores do passado - como no caso de uma antiga carta, escrita por um suposto fã de Alice, apenas dois dias antes de sua morte. É tudo saborosamente misterioso, com a tensão subindo conforme os dias passam, especialmente quando Gregory passa a isolar Paula na casa. Impossibilitada de sair, a jovem passa a conviver apenas com as empregadas. E com os eventos estranhos que, aqui e ali, se ampliarão, fazendo com que ela passe a questionar sua própria sanidade.


 

Como forma de sepultar o passado, Gregory sugere colocar o antigo mobiliário da tia no sótão - e não demorará para que a protagonista tenha a impressão de ouvir passos vindos do forro. A luz, ligada a gás, sobe e desce a todo momento. Mas ela não está sozinha no ambiente? Em um dos tantos instantes perturbadores, Paula é acusada por Gregory de ter escondido um quadro - uma pintura - justamente em uma noite em que eles pretendiam sair para uma ida ao teatro. Aliás, as poucas saídas de casa são tensas, com o sujeito desdenhando da própria esposa, e até a humilhando em frente as demais pessoas. "Eu peço perdão, ela está muito doente", alega o chantagista para um grupo de pessoas durante uma festa organizada por um ricaço, quando do desaparecimento de um relógio. Como manipulação emocional pouca é bobagem, Paula passa a acreditar que é cleptomaníaca, que tá ficando doida, que enxerga pessoas que não existem, que escuta sons inexistentes.

Lá pelas tantas, um investigador da Scotland Yard de nome Brian Cameron (Joseph Cotten) percebe o comportamento um tanto ansioso da mulher - ele nota a semelhança dela com sua tia, de quem era admirador. Será a deixa para que o inspetor mexa os pauzinhos para desarquivar o processo de assassinato, que nunca foi solucionado. Tudo é conduzido com elegância e tensão: enquanto Paula mergulha em uma comovente espiral de decadência que é fruto do mais puro abuso emocional, Cameron se aproxima da verdade que envolve o passado obscuro de Gregory. Com uma performance angustiante, daquelas de despedaçar o espectador, Ingrid Bergman venceria o Oscar na categoria Melhor Atriz, na cerimônia de 1945. A obra, que teve inúmeras adaptações para o teatro e para o cinema, receberia outras nominações à premiação máxima do cinema, figurando ainda em uma série de listas de melhores de todos os tempos. Como no caso dos 100 Suspenses fundamentais do American Film Institute (em um honroso 78º lugar). É uma produção que completa 80 anos de lançamento. E que vale resgatar.


Pitaquinho Musical - A Banda Mais Bonita da Cidade (O Futuro Já Está Acontecendo)

"Meu amor / Sou teu companheiro / Pra subir montanhas / E atravessar o mar", "Se tudo mudou / Já não tem mais jeito de voltar / Mas todo movimento é circular", "Toda brincadeira tem um fundo de verdade / O amor me traiu / E me deu o mundo / Me pariu uma gruta, me plantou um vazio". Pode até não haver um conceito definido em O Futuro Já Está Acontecendo, o quarto e mais recente trabalho da adorada Banda Mais Bonita da Cidade. Mas não dá pra negar que quando a gente observa as frases acima, que se espalham em meio as oito canções do disco, não dá pra negar que parece haver uma certa lógica, uma organização. Claro, com quinze anos de estrada, o quinteto de Curitiba já passou por muitas coisas em suas vidas - experiências traumáticas ou não, desafios, anseios, conquistas. E a maturidade parece também aparecer em cada curva do registro, com suas composições sólidas, menos apressadas e que parecem ir na contramão desse mundo tão acelerado que vivemos.

 

 

"Acho que é um reflexo de como a gente tem sentido a vida mesmo, de como esses temas são sincronizados espontaneamente com nossos processos pessoais", explicou a vocalista Uyara Torrente em entrevista ao site Marramaque, a respeito da escolha do repertório - e das letras que combinam simplicidade com uma verve mais filosófica, de reflexão sobre o mundo, suas idas e vindas, movimentos de retorno, de chegadas e de partidas. Claro que, num comparativo com o início da carreira, em que sucessos como o clássico moderno Oração pareciam reflexo de tempos mais simples - e talvez fossem mesmo -, as composições feitas por um time de colaboradores podem soar um pouco mais herméticas, daquelas que não pegam de primeira. Ainda assim, os elementos que fazem com que o grupo seja seguido pelos devotos fãs seguem intactos - e basta ouvir uma canção como Promissões para, num encontro entre a doçura e a aspereza, entre os arranjos elegantes e o vocal dramaticamente limpo, percebermos uma coesão natural de influências e sonoridades.

Nota: 8,0

 

segunda-feira, 24 de junho de 2024

Cinema - Assassino por Acaso (Hit Man)

De: Richard Linklater. Com Glen Powell, Adria Arjona e Austin Amelio. Ação / Comédia, EUA, 2023, 115 minutos.

"As pessoas se desapontam em saber que matadores de aluguel não existem. A ideia de que há sujeitos no varejo que são contratados para assassinar alguém é coisa da cultura pop." Vamos combinar que uma das partes mais divertidas de Assassino por Acaso (Hit Man) é justamente essa subversão da lógica do que poderia ser uma produção do gênero. Sim, porque quando o filme inspirado em eventos reais inicia, temos a impressão de estarmos diante de algo meio genérico, bem naquele estilo de comédia de ação sobre o sujeito desengonçado que, do dia para a noite, se vê inesperadamente em uma posição que não é a dele. Ok, de alguma maneira isso até ocorre em partes, já que o protagonista Gary Johnson (Glen Powell) é um mero professor de Psicologia e Filosofia em Nova Orleans que, para complementar a renda, trabalha para uma delegacia de polícia instalando microfones e câmeras na intenção de identificar bandidos em potencial.

Em meio a longas divagações com seus alunos universitários - sobre temas que, aliás, tem a ver com a trama, como no instante em que o professor debate com a turma as diferenças do Superego e o Id (o primeiro sendo a consciência, que nos recompensa pelo bom comportamento e pela adesão às normas sociais e o segundo sendo os impulsos mais primitivos, os desejos baseados na busca do prazer sem levar em conta as consequências) -, o protagonista recebe um convite inusitado em um dia de trabalho na delegacia: o de substituir o colega Jasper (Austin Amelio), que foi suspenso por agredir um grupo de adolescentes, em meio a uma abordagem desastrada. Sim, Gary, com seu cabelo ajeitadinho para o lado, óculos de nerd e rosto de bom moço não parece ser o cara ideal para confrontar pessoas que pretendem contratá-lo como assassino profissional (claro, tudo parte de um estratagema para incriminar essas pessoas, que parecem dispostas a levar um crime a cabo, mas desde que não sujem as mãos).




Só que é nessa hora que entram as verdadeiras habilidades sociais de Gary. Como professor da área de humanas, ele é capaz de forjar uma persona diferente para cada uma de suas vítimas - o que envolve certa pesquisa prévia de personalidade. Tendo, aliás, um resultado muito efetivo na hora de incriminar os mandantes. Tudo vai mais ou menos bem até a hora em que ele é chamado para um encontro com uma jovem mulher de nome Madison (Adria Arjona), que alega sofrer violência doméstica do seu marido, que lhe impede de sair de casa, de viver. Adotando a persona que leva o nome de Ron, um homem sedutor, de modos seguros, fala firme e fã de cachorros, Gary oriente a jovem a abandonar a ideia da encomenda da morte do próprio marido. Mais do que isso, lhe recomenda usar o dinheiro que investiria nisso para sair da cidade e iniciar uma nova vida. Madison aceita a sugestão, só que Gary/Ron se apaixona. E, bom, haverá um novo encontro futuro e, assim, a coisa vai se desenrolar.

Em linhas gerais essa é uma experiência divertida e que mais uma vez evidencia a versatilidade do diretor Richard Linklater - de Antes do Amanhecer (1995) e Boyhood: Da Infância à Juventude (2014) -, que parece usar a trama como um veículo ideal para que Powell, um dos queridinhos do momento em Hollywood, utilize todo o seu carisma para se transformar em quase uma dezena de figuras distintas, bem de acordo com seus contratantes. Em um ótimo momento, ele vai ao encontro de um homem que parece o estereótipo do extremista de direita - um patriota, fã de armas e que tem saudade da América do passado -, se transformando para isso em um sulista meio caipira, que pode ser a isca ideal. Tudo para ganhar a confiança do "freguês". Sobre Madison, ela e Gary viverão altos e baixos, especialmente quando o ex-marido dela entrar na jogada, tentando também contratá-lo pra dar cabo da ex. As reviravoltas tem seu charme e a química do casal central funciona - ainda que algumas decisões gerem estranhamento. Mas quando pensamos no Superego e no Id não podemos esquecer que lá no meio há o Ego: e é ele que faz a ponte entre o instinto e a lógica, entre a lei e a ausência de lei. "Maximizar o prazer e minimizar os custos". É a lição que fica.

Nota: 7,0


sexta-feira, 21 de junho de 2024

Pitaquinho Musical - Vince Staples (Dark Times)

"A maneira como eu olho pra música - especialmente a música urbana, das pessoas negras ou como queira chamar - é que estamos todos no zoológico e os ouvintes são as pessoas fora da gaiola". Quem acompanha a carreira do rapper Vince Staples sabe que, em meio a momentos mais introspectivos (Summertime '06), dançantes (Big Fish Theory), furiosos (FM!) ou resignados (Ramona Park Broke My Heart), sua produção sempre foi marcada por uma crueza que não romantiza os seus temas. Em mais de uma entrevista - como no caso da citação que abre esse textinho, em conversa com a Pitchfork -, ele mencionou haver alguma desconexão entre certos artistas e quem os consome, especialmente na ânsia de dar um polimento, um certo brilho glamourizante aos problemas da periferia, numa espécie de glorificação do rap (o que se vê muito nos videoclipes, por exemplo). Violência policial, racismo estrutural, tráfico de drogas e crise da masculinidade são assuntos que, aqui e ali, surgem sempre pontuados por um estilo minimalista, sem floreios, com batidas no limite da monotonia, efeitos econômicos e um vocal muito mais falado do que gritado.


 

Sim, Staples pode ser engraçado nas redes sociais ou totalmente debochado nas entrevistas, que sempre levam os jornalistas à loucura - uma das melhores histórias é ele falando pra um profissional que o disco Big Fish Theory era afrofuturista, só pra depois ir ao Twitter pra afirmar que "gosta de dizer bobagens sobre pessoas negras, para pessoas brancas". Só que quando o assunto é os seus álbuns há uma propensão à levar a coisa mais sério, tanto que o ouvinte desavisado pode se surpreender com a sofisticação crua, as melodias envolventes e a oratória casual e quase desinteressada, com que fluem registros como este Dark Times, o sexto da carreira. A música tem uma turbulência realista, sem maquiagem, com menos palavras ditas por centímetro quadrado, mas muito impacto. Ao cabo, como se já não bastassem esses méritos, ainda é um disco simplesmente bom de ouvir. Agradável, fluído, com refrãos diretos, como no caso da ótima Étouffée e da e tensa Government Cheese (Don't forget to smile, diz o refrão). Aqui e ali, há espaço pra guitarrinhas litorâneas, como nas enevoadas Radio, Shame on the Devil e Children's Song. O que também evidencia a abertura para novos caminhos nas melodias. É um dos melhores do ano.

Nota: 9,0

 

quinta-feira, 20 de junho de 2024

Tesouros Cinéfilos - De Olhos Bem Fechados (Eyes Wide Shut)

De: Stanley Kubrick. Com Nicole Kidman, Tom Cruise, Sydney Pollack e Todd Field. Drama / Suspense, EUA / Reino Unido, 1999, 159 minutos.

Pode ter sido apenas uma coincidência, mas o ano de 1999 foi não apenas pródigo em gerar grandes filmes, mas meio que premonitório na hora de levar as tensões da virada do milênio para a telona. Eram tempos de incerteza que levariam Hollywood a investir em obras que jogavam luz em temas diversos, como, avanços tecnológicos (Matrix), corrupção corporativa (O Informante), a hipocrisia e a decadência da sociedade (Beleza Americana), sentimento de vazio na modernidade (Clube da Luta) e até o simples medo da morte (O Sexto Sentido), que pareciam assombrar a população que aguardava os anos 2000 como uma espécie de ponto de ruptura - que, alegoricamente, poderia ser simbolizado pelas tenebrosas perspectivas frente ao Bug do Milênio. Sim, e olhando os títulos que foram exibidos naquele ano, também chamaria a atenção a qualidade das produções. Uma melhor do que a outra, cada uma em seu segmento.

E talvez não seja por acaso o fato de o contexto daquela época ter fornecido a matéria-prima ideal para tantos artigos de imprensa, estudos e outros documentos que apontariam aquele período como um ponto de ruptura para o cinema - resultado do encontro entre os estúdios e sua voluptuosa quantia de dinheiro e uma diversidade de cineastas independentes (ou não), com visão. "O ano mais indisciplinado, influente e impenitentemente prazeroso de todos os tempos, em termos de filmes", como resumiria o jornalista cultural Brian Raftery. E vamos combinar que não deixa de ser uma grande ironia datar de 1999 justamente a última obra de Stanley Kubrick. Era o aguardado retorno após dez anos de hiato, mas o diretor viria a falecer alguns dias antes da conclusão de De Olhos Bem Fechados (Eyes Wide Shut), produção baseada no livro Breve Romance do Sonho, de Arthur Schnitzler. Foi-se o realizador. Ficou o clássico moderno.

 


Aliás, mais um escárnio perceber como esta é também uma obra representativa das tensões da virada do século. No centro da trama densamente conduzida, acompanhamos o esfacelamento de um casamento burguês, após uma noite de festa em que uma série de acontecimentos parecem burlar alguns limites éticos de um matrimônio. Tudo embalado em uma narrativa hipnótica de paranoia, de conspiração e de segredos guardados a sete chaves por uma parte da classe endinheirada, hipócrita, e, em alguma medida, hedonista, ainda que provavelmente insegura diante das mudanças vindouras. E, vamos combinar que não deixa de ser interessante ver um casal que estava junto na vida real - no caso Nicole Kidman e Tom Cruise que, por sinal, se separaria apenas dois anos depois -, em uma série de diálogos honestos sobre desejos não realizados, vontades sexuais nunca concretizadas ou impulsos primitivos apenas imaginados.

Em alguma medida esse é um filme relativamente simples - ainda mais diante da magnitude de outras obras de Kubrick -, ainda que absolutamente envolvente, que flui sem pressa, em sua medida de tempo, quase em câmera lenta, e que parte de um pequeno instante de surto do médico Bill Harford (Cruise), que fica perplexo quando a sua estonteante esposa, a curadora de arte Alice (Kidman), lhe revela o fato de, por muito pouco, não ter abandonado a ele e sua filha pequena para viver um grande amor, após ter conhecido um oficial da marinha, no passado. Ao mesmo tempo que estas imagens retornam à sua cabeça e lhe atormentam, Bill se vê obrigado a sair de casa para um atendimento à família de um paciente que vêm a óbito. Tendo início uma longa e fervilhante madrugada em que o protagonista salta de um local a outro, chegando a um pub em que um antigo (e discreto) colega, de nome Nick (o diretor Todd Field) toca piano em uma banda de jazz.


 

Nick fará a ponte para que Bill chegue até uma grande mansão fora da cidade de Nova York, onde um grupo de pessoas mascaradas participa de orgias sexuais, de jogos sensuais e de fantasias eróticas. Bill está lá em segredo, mas não demorará para que ele seja, com o perdão do trocadilho, desmascarado, dando início a uma história de perseguição - especialmente após uma jovem mulher lhe revelar que ele está em perigo. Sexy e misterioso, animalesco e sacro, inquietante e onírico, ousado e complexo, esse é um projeto que debate, nas suas entrelinhas, uma série de tabus sexuais e de fetiches excêntricos que surgem, aqui e ali, como alegorias que quebram certa lógica estabelecida pelos códigos morais de vida em sociedade, com seu recato hediondo, luzes de Natal solenes e realidades encobertas. Um filme que suscita ainda uma série de discussões, seja por conta dos cenários, dos figurinos, das obras de arte ou da trilha sonora - todos elementos que parecem esconder informações a mais, fazendo inclusive a festa dos conspiracionistas. O ocaso de Kubrick não poderia ser melhor. Ajudando a consolidar a passagem de 1999 para 2000 como uma época complexa, vibrante e incerta, que anteciparia uma série de temores decorrentes do mal-estar generalizado que habita a pós-modernidade.

terça-feira, 18 de junho de 2024

Pitaquinho Musical - Alfie Templeman (Radiosoul)

A trilha multicolorida que sai da caixa de som, passa pelos ouvidos de Alfie Templeman e se espalha pelas paredes do ambiente que ilustra a capa de Radiosoul, terceiro registro de inéditas do artista inglês, parece dar a dica: estamos diante de um disco ensolarado, vívido. E basta a primeira audição do registro para que essa impressão mais, digamos, semiótica do projeto gráfico, seja confirmada. Com apenas 21 anos, o compositor chegou com força durante a pandemia e, mesmo em tempos sombrios como os de covid, conseguiu entregar registros de essência festiva, como no caso do ótimo Mellow Moon que, não por acaso, foi o nosso décimo terceiro preferido de 2022. Apostando novamente na mistura de art pop, com rock psicodélico, funk, algumas doses de R&B e disco music, Templeman amplia o caráter maximalista de sua obra, tornando tudo ainda mais enérgico e cativante.


 

Nesse sentido, é simplesmente impossível ficar alheio a canções como o single Eyes Wide Shut, com seu refrão grudento, pegajoso, que parece algo que o Scissor Scisters faria, da forma mais descarada possível, no começo do milênio. Já a magnética Just a Dance, tem participação de Nile Rogers em pessoa - as inspirações do Chic, diga-se, se espalham a cada curva do trabalho -, em uma música de melodia primaveril e letra simples. Não significa que não haja momentos mais sombrios ou turbulentos - e não por acaso, assuntos como esgotamento mental (Eyes Wide Shut), solidão (Hello Lonely) e problemas relacionados à fama repentina (Vultures) surgem aqui e ali, entre uma música de amor e outra (como no caso da ótima Submarine, feita para a namorada). Ainda assim, o artista explicou no material de divulgação que este é um "registro de verão, que tem a energia espontânea que vem de estar no sol". A gente concorda!

Nota: 8,5


Picanha em Série - O Urso (The Bear)

De: Christopher Storer e Joanna Calo. Com Jeremy Allen White, Ebon Moss-Bachrach, Ayo Edebiri e Lionel Boyce. Drama / Comédia, EUA, 2022/2023, duas temporadas.

Um grupo de pessoas neuróticas que vive para o trabalho, que possui pouca (ou nenhuma) vida social, que se frustra com o caos econômico mas que parece acreditar em discurso meritocrático, que reclama do governo e de suas eventuais burocracias, impostos e outras exigências e que, em alguns casos, ainda possui uma família que destroi o teu psicológico - mas ainda assim tu te mantém próximo porque, né, é a família, fazer o quê. Tudo isso ainda meio que embalado em um uma narrativa de autoajuda, que utiliza metáforas do militarismo e alegorias do mundo esportivo para evidenciar que, mesmo em um mundo de adversidades, de individualismo e de problemas generalizados ainda é possível superar tudo isso e prosperar. Apresentação de slides daquele daquele coach messiânico, dissimulado e de índole duvidosa que ganha dinheiro em cima de incautos? Não, apenas a série O Urso (The Bear) que, em suas duas temporadas, conseguiu ganhar não apenas o apreço da crítica, mas também do público.

E quando eu falo de público não cito apenas os homens brancos, héteros, de classe média e conservadores - você já viu esse tipinho meio básico zanzando por aí em agências de publicidade ou em algum escritório apertado onde ele vive o sonho americano (ou brasileiro) de ganhar R$ 5 mil por mês -, que poderiam ser facilmente o alvo de uma série como essa. Há muitas pessoas - amigos meus, inclusive - do campo progressista, que caíram nesse golpe e que a estão propagando como algo muito realista ou mesmo profundo sobre esse ambiente tóxico e caótico (no caso, o do universo dos restaurantes e de suas rotinas eventualmente abjetas), ainda que já haja chefs de cozinha fazendo um contraponto à forma como tudo ali é retratado. Não vou nem citar que os personagens vistos são todos meio que unidimensionais - não há complexidade, o que aumenta a dificuldade de haver empatia. Especialmente pela dupla central, os primos Carmy (Jeremy Allen White) e Richie (Ebon Moss-Bachrach), duas pessoas miseráveis do ponto de vista psicológico e de personalidades bastante parecidas, que não sabem muito bem o que estão fazendo de suas vidas.


 

Para além dessas figuras que vão no limite entre o carisma meio canastrão e a dor profunda transmitida pelo olhar - especialmente nos raros momentos em que a coisa não tá excessivamente frenética (pra não dizer irritantemente confusa) - há outras personas orbitando a dupla, tendo especial destaque a jovem Sydney (Ayo Edebiri), que funciona direitinho como aquela pessoa meio sem experiência mas que, com muita força de vontade, poderá ajudar a colocar o The Beef, o restaurante herdado por Carmy e Ritchie de seu falecido irmão Michael (Jon Bernthal, absolutamente SEMPRE uma figura interessante) nos eixos. Sim, a série criada por Christopher Storer e produzida por, entre outros, Joanna Calo e Hiro Murai, fará de tudo para nos lembrar o tempo todo de que ter um restaurante, especialmente após a pandemia, parece ser um negócio péssimo. Muitos locais foram fechados na época e eu juro que lá pelas tantas imaginei que apareceria algum personagem aleatório pra dizer "olhaí o resultado do fique em casa".

Bom, posto tudo isso simplesmente pra quê o estresse? Ok, ok, não vou ser tão chato a esse ponto porque se não houvesse um sujeito fudido ferrado da cabeça e que já foi chef de cozinha renomado em outras paragens, que estivesse interessado em reabilitar um espaço gastronômico meio decadente, ainda que tradicional, talvez sequer houvesse série (como naquela brincadeira sobre se Breaking Bad fosse feita no Brasil não existiria Walter White e cinco temporadas porque era só ir até o SUS). Mas volto a dizer, pra quê? Trabalho, ao cabo, não é apenas pra que a gente possa ganhar o nosso dinheiro pra pagar os boletos e, enfim, sobreviver? É preciso mesmo esse massacre que exibe pessoas trabalhando de 14 a 18 horas dia, parecendo ainda ter certo orgulho disso? Em certa cena, por exemplo, Tina (Liza Colón-Zayas) recebe uma faca de presente de Carmy. E, uau, fez lembrar o pseudoinfluencer que ganha um sonho de valsa do chefe e publica no Insta. "Ciência, bebê", diz ela mais adiante, diante de uma panela nova. Oi? Tina, o que mais você faz da vida, além de suportar um bando de jovens instáveis na cozinha de um restaurante?


 

O auge de tudo é quando Carm, mesmo sendo uma espécie de incel do mundo gourmet, consegue se (re)aproximar de Claire, uma paixão de infância. Que, para a alegria dos cabaços de plantão, é lembrada por Richie e Michael como aquela esquisitinha que no passado era gordinha e de óculos e que, agora, tá a maior gata. É sério isso? O caso é que Claire, lá pelas tantas, tenta lembrar Carmy do que é a vida pra além daquele ambiente. "Eu nunca fui numa festa", diz ele, com uma naturalidade desconcertante, na noite em que ele, supostamente, vai então a sua primeira festa - algo que nem o maior nerdola anarcocapitalista, com pendor pro libertarianismo seria capaz de afirmar. No final dessa mesma noite, Carmy não convida a moça para a sua casa ou para um motel: ele resolve a levar para... o restaurante, claro. Onde mais? E ao chegar lá, depois das 23h, surpresa! A dupla encontra a galera simplesmente TRABALHANDO, discutindo sobre instalações, cabeamentos, equipamentos e qualquer outra coisa. Vida pessoal? Ir prum Bar? Assistir um filme? Esquece. Essa galera é o oposto dos personagens de Friends. Na série dos anos 90, as pessoas não trabalhavam. Aqui elas SÓ trabalham. Aliás, até nos filmes do Ari Kaurismaki, que tanto critica o ambiente de trabalho tóxico, o operário tem direito ao lazer escapista. Mas vejamos pelo lado bom: Carmy consegue beijar Claire pela primeira vez. Tendo o restaurante como cenário de fundo - aliás, o cenário ideal do liberal classe média que tem o sonho de empreender.

Ah, mas a série ao menos entretém, poderá dizer alguém. Sério? Ver um grupo de pessoas adultas gritando o tempo todo, proferindo palavrões no modo infinito e agindo de forma infantilizada mesmo quando próximos dos 40 anos? Às vezes a coisas é tão caótica, tão hiperbólica e maximalista do ponto de vista da BAGUNÇA, que a vontade é de simplesmente abandonar - sendo o auge da experiência nesse sentido, o sexto episódio da segunda temporada, uma das coisas mais intragáveis que já tive o desprazer de assistir. "Ãin, mas é pra ser uma metáfora para a vida, suas dores, medos, incertezas, dúvidas". Sim, mas talvez dê pra fazer isso com um pouco mais de sutileza. Com menos berro e instabilidade. Com menos discurso raso e superficial - sério, foi demais pra mim o Carmy perguntando, como se fosse um adolescente de doze anos, se Claire era "sua namorada". Ou ver o tio Jimmy (Oliver Platt) usando uma analogia com o beisebol pra reforçar um tipo de masculinidade torpe, redpillada e confusa. "Você quer ser o cara? Então seja o cara!". Uau, que diálogo! Pode haver um certo magnetismo sedutor nesse negócio de basicamente entregar seu corpo, sua mente, sua alma, seu sangue e suas vísceras para o seu trabalho. Há uma coisa no cinema de corpo que magnetiza. Mas aqui não. Eu não caio nessa. E espero que mais pessoas possam ser livres para falar a verdade sobre essa série lamentável. Em tempo: vem aí a terceira temporada. A notícia boa é que dá pra passar longe sem remorsos.

Nota: 3,5