"Por debaixo da pele / Sou loba, sou fera / Olhar de felina / Poder de pantera / Se chega perto / Revelo / Por trás / Das garras minha aura mansa". Vamos combinar que, se ainda estivesse entre nós - ao menos do ponto de vista material (e não simbólico) -, Rita Lee estaria orgulhosa de ver onde chegou a sua "pupila". Sim, Julia Mestre nunca escondeu o fato de a ex-Mutantes ser uma das grandes inspirações de sua carreira e não são necessárias nem duas músicas do seu mais recente álbum, Maravilhosamente Bem, para que adentremos novamente naquele espaço de paixões sensuais, de tesão misterioso, de desejo carnal e noturno, tão bem construído por Rita. Aliás, uma simples olhada nos títulos das canções - Vampira, Pra Lua, Veneno da Serpente, Sou Fera -, já parece evidenciar esse ideal que nunca descamba para a mera homenagem protocolar, já que a artista, ex-integrante do Bala Desejo, imprime personalidade em cada fragmento da obra.
Sombrio, mas divertido, sexy mas onírico, esse é aquele tipo de registro que é direto, mas que vai crescendo a cada nova audição. Os refrãos estão lá, assim como as melodias sofisticadas, aconchegante, havendo sempre um detalhezinho da produção polida, que pode ser descoberto a cada reencontro - até mesmo pela força vocal da artista, que parece ser mais central (ainda) neste disco. "É um espelho lúdico de dias felizes do passado, artisticamente reimaginados com um toque moderno de Julia. Um álbum repleto de amor e nostalgia, que homenageia seu amor por divas clássicas da discoteca, como Donna Summer, Sade, Alcione, Lady Zu e as rainhas do rock brasileiro Marina Lima e (a já citada) Rita Lee", resumiu, a cantora no material de divulgação. Aliás, sobre Marina, a homenagem fica mais explícita na magnética Marinou, Limou - que converte o nome da veterana em uma espécie de mantra, um verbo que se espalha por cada canto do registro. Uma delícia do lo-fi e do pop vintage que vale o play.
De: Quentin Dupieux. Com Léa Seydoux, Vincent Lindon, Louis Garrel e Raphaël Quenard. Comédia, França, 2024, 80 minutos.
Quem acompanha a carreira do diretor francês Quentin Dupieux sabe que seu cinema costuma ser anárquico, provocativo, iconoclasta. As experiências podem ser mínimas. Mas costumam entregar o máximo em termos de reflexões sobre tudo o que envolve esse certo mal-estar da contemporaneidade. No cerne de O Segundo Ato (Le Deuxième Acte), que está disponível na Mubi, parece residir uma questão meio prosaica: qual o sentido de estarmos aqui, assistindo a um filme, enquanto tudo ao redor parece ruir? Inteligência artificial, destruição da natureza, pandemia, guerras, extrema direita, fascismo - e nós, aqui, interpretando esses papeis? A troco de quê? As angústias se tornam mais claras quando o veterano Guillaume (o sempre ótimo Vincent Lindon) simplesmente abandona as filmagens de seu mais recente projeto em andamento. Sai andando a contragosto, insatisfeito meio que sem saber exatamente com o quê. Ou ele sabe.
Enfim, ele parece insatisfeito. Mas estará mesmo? Ao seu lado, a companheira de cena Florence (Léa Seydoux) se exaspera e segue seus passos, tentando argumentar sobre o absurdo daquele comportamento. É o trabalho deles, afinal. Se tudo está ruindo, o que os impediria de continuar? "Os violinistas do Titanic seguiram tocando até que o barco afundasse", desespera-se Florence. Ao que Guillaume retruca, alegando que aquilo nunca existiu. Que foi uma mera invenção de James Cameron para tornar os artistas supostamente corajosos em meio a tudo. Coragem. O que talvez os falte para certas decisões. Ou ao menos até certo ponto, quando o homem recebe uma inesperada ligação de um agente do diretor Paul Thomas Anderson - ele mesmo, de Sangue Negro (2007), Trama Fantasma (2017) e Licoricce Pizza (2021). Enfim, um dos grandes de nossa geração. Que quer trabalhar com Guillaume. O que o deixa em êxtase momentâneo. Esquecendo, por um minuto, o discurso "lacrador".
Na sequência em que estão filmando - ou não, porque nunca fica tudo exatamente claro nesse exercício de metalinguagem (a realidade por vezes pode ser outra, mas, vá lá, o que é, exatamente a realidade quando tudo o que vemos é um longo plano-sequência feito com dolly track, em que a câmera flui com maciez desconcertante?) -, Guillaume e Florence estão indo ao encontro dos amigos Willy (Raphaël Quenard) e David (Louis Garrel). Florence quer apresentar David a seu pai, que no filme dentro do filme é o próprio Guillaume, mas o caso é que o candidato a namorado não está tão interessado assim na jovem. Aliás, mais do que isso, bola um plano para colocar Willy no caminho de Florence. Enquanto se encaminham para o local, debatem uma série de temas caros à era do cancelamento - e que vão no limite do preconceito e da intolerância.
Na trama, David é bissexual. Já Willy é o machão da masculinidade frágil que não parece ter muitos limites na hora de verbalizar seu incômodo a respeito de pessoas que se relacionam com o mesmo sexo. "Para com isso! Você está querendo ser cancelado?", pergunta David, enquanto quebra a quarta parede para se direcionar justamente a nós, espectadores, cruzando novamente o limite entre o concreto e o fantasioso. No terço final, a coisa melhora ainda mais quando entra em cena o excelente Stéphane (Manuel Guillot), um figurante que está tão nervoso por ter de interpretar um garçom do restaurante em que a cena ocorre, que mal consegue servir o vinho de forma satisfatória. O que talvez seja mais um truque, vai saber. "Eu tenho problema com os filmes, quando os códigos são muito óbvios", comentou o realizador, anos atrás, em entrevista ao The Guardian. É mais ou menos o que resume o cinema conceitual, sombrio, entortado, nada racional e essencialmente cômico do realizador.
De: Mathieu Kassovitz. Com Vincent Cassel, Hubert Koundé e Saïd Taghmaoui. Drama / Policial, França, 1995, 95 minutos.
"É a história de um homem que cai de um prédio de 50 andares. O cara, durante a queda, repete sem parar para se reconfortar: até aqui está tudo bem, até aqui está tudo bem. Mas o importante não é a queda. É a aterrissagem". Vamos combinar que a narração em off que abre o cru O Ódio (La Haine), inicialmente parece apenas enigmática. Um microconto torto e metafórico. Que retornará diversas vezes durante a narrativa - contribuindo para que, mais adiante, seu sentido passe a ser melhor compreendido. Especialmente no universo em que habitam os protagonistas dessa experiência intensa, magnética e violenta do diretor Mathieu Kassovitz. Ao cabo, esse é o tipo de filme que podemos chamar de "pedrada". Tudo é veloz, com os acontecimentos se descortinando em um efeito cascata. Meio drama febril, meio policial estilístico, como se estivéssemos em uma mescla de Trainspotting (1996) com Guy Pearce. Ainda que muito mais político. E, talvez por isso mesmo, nem tão engraçado.
O cenário aqui é um bairro habitado por imigrantes pobres no subúrbio de Paris. A violência policial parece escalar, bem como a discriminação e a xenofobia. Um jovem de nome Abdel foi agredido durante uma série de protestos e agora está em coma. Corre risco de vida. Para o judeu Vinz (Vincent Cassel) só parece haver uma solução possível para o caso. Se o amigo morrer, ele terá de matar um policial como contrapartida. Uma coisa meio "olho por olho dente por dente" - como sinalizava o antigo Código de Hamurabi, em sua suposta proporcionalidade nem tão justa. Só que nesse contexto há um problema, que é lembrado pelo boxeador negro Hubert (Hubert Koundé), um sujeito que aparenta ser mais pacífico, a despeito de sua academia de pugilismo ter sido totalmente destruída durante os tumultos: "o ódio só gera mais ódio". Com um agravante: como minorias, eles estão na ponta mais fraca. Com tudo piorando com o avanço nem tão sutil de uma extrema direita violenta e preconceituosa que, na produção, é simbolizada por Jean-Marie Le Pen. Era os anos 90, afinal. Turbulentos como só.
Aliás, o racismo institucional e o discurso xenofóbico estão por toda a parte - e, nesse sentido, não deixa de impressionar o quão atual a obra segue, em tempos de crises imigratórias, de trumpismo e de células nazistas proliferando mundo afora. Em uma sequência, por exemplo, Vinz e Hubert, acompanhados do inseparável Saiïd (Saïd Taghmaoui) - um árabe meio da pá virada que completa o trio que vara uma madrugada intensa, frenética e imparável, desde a hospitalização de Abdel -, tenta entrar em uma espécie de festa de luxo. Mais do que isso, tentam conversar com algumas mulheres, mas sem muito sucesso. É só mais um motivo para que a intolerância e a raiva eclodam, com uma das jovens desprezando o trio de forma categoria, comentando algo tipo "por isso ninguém gosta de se aproximar de pessoas como vocês". Há outras partes da cidade em que esses jovens tão marginalizados quanto vulneráveis não são bem-vindos. No hospital, no mercadinho, mesmo num churrasco no terraço de um prédio abandonado.
É tudo dolorido, com a sensação de desalento sendo ampliada pela fotografia em preto e branco, que torna aquele ambiente essencialmente urbano, caótico e cinza em um espaço apenas de existência - e, vá lá, resistência. Sem muita perspectiva para quem não se sente parte de uma Pátria. Kassovitz - que seria premiado como melhor diretor no Festival de Cannes -, alguém que participou de protestos na juventude, utiliza a experiência pessoal partindo ainda de histórias reais, como a do jovem zairense Makomé M'Bowolé, que foi morto por um tiro à queima-roupa, supostamente acidental, disparado por um policial. Isto após já estar rendido. Claro que o espírito ágil e efervescente do filme reserva um sem fim de instantes mais divertidos, pautados pela cultura hip hop - com suas roupas, danças, grafites e músicas -, por discussões e debates cheios de significados - aliás, mais um mérito do ótimo roteiro -, e skinheads sendo espancados. Ousado, verdadeiro, fervilhante e cativante.
De: Mahdi Fleifel. Com Mahmood Bakri, Aram Sabbah, Mohammad Alsurafa e Angeliki Papoulia. Drama, Palestina / Grécia / França / Alemanha / Arábia Saudita / Dinamarca / Holanda / Reino Unido, 2024, 105 minutos.
"De certa forma é uma espécie de destino dos palestinos, não terminar onde começaram, mas em algum lugar inesperado e distante". Vamos combinar que em tempos de ódio, de preconceito, de intolerância e de xenofobia, reforçados pelos subsequentes ataques do governo de Israel à Faixa de Gaza - um genocídio bárbaro, que parece não ter fim -, a frase dita pelo já falecido intelectual Edward Said, que abre o desalentador filme Em Rumo a Uma Terra Desconhecida (To a Land Unknown), não poderia ser mais atual. De fato, para um povo em permanente processo de deslocamento, inseguro e desumanizado, o desespero soa ainda maior. Não há sensação de pertencimento onde quer que se esteja - o que explica esse senso de urgência e de fuga eterna que emana da obra do diretor Mahdi Fleifel - documentarista conhecido pelo premiado Um Mundo Que Não É Nosso (2012), e que está disponível na Reserva Imovision.
O cenário é uma Atenas moderna, urbana, agitada de dia, meio poética e sonora à noite, onde os primos Chatila (Mahmood Bakri) e Reda (Aram Sabbah) vivem de pequenos trambiques - como furtos de bolsas de velhinhas desatentas na praça -, na tentativa não apenas de sobreviver com o mínimo que seja de dignidade (algo difícil de se obter para quem é um refugiado, em um País que não deseja a sua presença), mas também de juntar algum dinheiro para o que seria o destino final de sua jornada. No caso, a Alemanha, onde aguardam a esposa e o filho de Chatila. Em seus sonhos nada oníricos - sempre carregados e pontuados por ausências -, a ideia é a de se instalar no rico País europeu para, lá, abrir uma cafeteria. A principal barreira? Tentar obter um passaporte, o que envolve a conexão com figuras não muito amigáveis e que habitam uma espécie de submundo da capital grega, como é o caso de um contrabandista que promete obter os documentos em troca de alguns outros favores.
Nada é muito fácil ali e a situação se torna ainda mais complicada quando a dupla central meio que adota o adolescente Malik (Mohammad Alsurafa), um jovem de 13 anos, que também está em fuga da Faixa de Gaza, buscando uma oportunidade de escapar dali para encontrar sua mãe na Itália. Mais gentil, sensível e empático com o menino, Reda o acompanha em suas andanças, enquanto Chatila, na crença de que seu parceiro está, de fato, preocupado com o novo amigo, bola um plano bastante complicado para ajudá-lo. O que envolverá a participação de uma quarta pessoa - no caso, Tatiana (Angeliki Papoulia), uma mulher grega que é incumbida de se fazer passar pela mãe do garoto, para que a fronteira possa ser finalmente cruzada. Tudo é intenso e sofrido e mesmo os pequenos instantes iluminados servem apenas para nos lembrar do desespero que ronda - como no momento em que Reda furta um par de tênis de uma loja para, lembrando à Malik que "não é legar roubar".
E, nesse sentido, vamos combinar que a obra não poderia ser mais acertada ao não apenas não vilanizar excessivamente os seus protagonistas - com sua disposição natural para a sobrevivência -, mas também não os tornando dois mártires incorrigíveis buscando fazer sempre o bem (o que seria uma solução bastante cômoda em um momento em que os olhos estão voltados para o conflito do Oriente Médio). Ao cabo mão há espaço para o maniqueísmo barato, que poderia comprometer a experiência. Reda tem problemas com drogas. Chatila não hesitará em agir com violência meio determinada em qualquer que seja a situação. Assim, as figuras vistas são complexas, com seus medos, desejos, sonhos, contradições e códigos morais questionáveis - o que é reforçado pelo impactante terço final, em que uma dolorosa sequência de sequestro escancara a violência estrutural a que todos ali estão submetidos. Trágico, cru e comovente, esse é daquele tipo de projeto que nos acompanha após os créditos subirem.
De: Juliana Rojas. Com Fernanda Vianna, Mirella Façanha, Bruna Linzmeyer e Andrea Marquee. Drama, Brasil, 2024, 119 minutos.
Já falei pra vocês da dificuldade que tenho de me engajar - na falta de uma palavra melhor - em filmes que se passam no ambiente rural, mas que não retratam seus personagens, as figuras que trafegam naquele universo, de forma mais fidedigna. Mais realista, por assim dizer. Há toda uma complexidade na vida no campo que parece difícil de ser resolvida com meia dúzia de conveniências do roteiro. Ou com poucas explicações mais críveis para determinados comportamentos. E talvez seja por isso que tenha tido um sentimento meio misto com Cidade; Campo, mais recente obra da diretora Juliana Rojas - do ótimo As Boas Maneiras (2018) -, que aborda temas ligados à perdas, luto, memórias e fantasmas do passado. Isto a partir de duas histórias distintas que até não se conectam tão diretamente, mas que conversam com questões contemporâneas, que vão do êxodo urbano, passando por eventos ambientais extremos até chegar a casos como os de refugiados climáticos, que tem se tornado cada vez mais realidade no Brasil.
Como dito, o longa se divide em duas partes em que seus personagens realizam movimentos de migração - do campo para a cidade ou da cidade para o campo. Só que esses movimentos não ocorrem por livre iniciativa. Ou por vontade própria. São forçados. Invasivos. Agressivos. Especialmente no primeiro desses contos, em que a agricultora Joana (a ótima Fernanda Vianna), se vê obrigada a sair de sua cidade natal, no interior de Minas Gerais, após sua propriedade ter sido devastada por uma tragédia ambiental - no caso, o rompimento de uma barragem, que liberou toneladas de dejetos (como nos casos reais de Brumadinho e Mariana). Conseguindo escapar com vida, Joana se abriga na casa da irmã Tania (Andrea Marquee), que mora com seu neto Jaime (Kalleb Oliveira), um menino curioso, mas que pouco sabe sobre a vida no campo. Tentando se adaptar, Joana consegue trabalho em um aplicativo voltado à diaristas - que organiza faxinas em casas de dondocas.
Sim, ela se vê obrigada a deixar um ambiente idílico, onde produzia seu próprio alimento, aparentemente sem o uso de agrotóxicos, para enveredar em uma existência urbana, vazia, cinzenta - como é o espaço das cidades maiores, com suas rotinas repetitivas -, em que deve se submeter às exigências e violências cotidianas do capitalismo tardio. Que ganham um capítulo a parte quando uma situação de abuso é revelada. Melhor das duas histórias, essa primeira, por mais que confie nos silêncios e no dito pelo não dito, diz muito - e mesmo o apelo fantasmagórico e de realismo fantástico, tão típicos da realizadora, surgem aqui de forma orgânica, em memórias desconexas ou sonhos bizarros da protagonista (como no instante em que um cavalo aparece em pleno asfalto da madrugada, no concreto, numa daquelas dicotomias que servem como metáfora perfeita para a sua própria situação: perdida em um lugar que lhe é apenas estranho, que não lhe pertence).
Na segunda, e menos interessante das duas narrativas, o casal Flávia (Mirella Façanha) e Mara (Bruna Linzmeyer), se muda para a propriedade rural do pai de Flávia, após a morte deste. O por quê exatamente elas decidem se manter na propriedade após a morte do familiar, nunca fica exatamente claro. Flávia era distante do genitor e a vida no campo, todos sabem, é difícil. Há vacas leiteiras, que dão leite todo o dia e, como vai ser isso dali pra frente? Não há amor que resista e não dá pra ficar muito no modo passeio e, vamos combinar, dá pra expiar as mágoas mesmo à distância, mesmo resolvendo as burocracias. Não é preciso experimentar a vida no campo para isso, ainda mais em um cenário desolador e quase inóspito de lavouras de soja ocupando o entorno, de terra empobrecida e seca e de ausências diversas (inclusive de conhecimento sobre o que o pai plantava ali, de fato). No mais, tudo parece só uma desculpa, uma conveniência, para que situações insólitas possam acontecer naquele ambiente - barulhos, aparições e outras abstrações que geram estranhamento apenas por gerar. Não sabemos muito das mulheres, de suas vidas, de seus passados, de suas trajetórias. Ou mesmo de como elas muito provavelmente sofreram pra chegar até ali. Onde estão agora tentando sobreviver. O que torna essa segunda parte meio oca, sem muito a entregar. Por mais que as intenções pudessem ser as melhores.
De: Andrucha Waddington. Com Fernanda Montenegro, Linn da Quebrada, Thawan Lucas e Alan Rocha. Drama / Policial, Brasil, 2025, 112 minutos.
Uma idosa cansada da violência que ronda seu bairro (e seu apartamento) resolve ligar o foda-se e, como se fosse uma espécie de James Stewart em Janela Indiscreta (1954), decide filmar uma série de crimes cometidos a céu aberto por traficantes, na ideia de levar o material para a polícia para que alguma atitude seja tomada. Sim, a peculiaridade da trama de Vitória, inspirada no livro Dona Vitória Joana da Paz, de Fábio Gusmão, já seria digna de algum tipo de atenção. Mas a coisa se torna ainda mais interessante quando a protagonista é uma senhorinha de mais de 80 anos interpretada por ninguém menos do que Fernanda Montenegro. E, diga-se de passagem é meio que impossível dissociar a imagem verdadeira da nossa maior atriz de todas - fragilizada e com algumas limitações do alto de seus mais de 90 anos reais -, daquela que vemos em tela. Preocupada, com seus movimentos lentos, desconfiança permanente, olhar distante e medo onipresente.
Afinal, não deve ser fácil para uma idosa ser vizinha da bandidagem. Convivendo com o medo de abrir a própria janela, sob risco de um tiro de fuzil cruzar seu apartamento como se fosse parte do cotidiano. Para Nina (Montenegro), a vida nem sempre foi assim. Quando passou a residir na Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana, a frente de seu prédio era ocupada por uma vasta mata, de rica biodiversidade. Só que o morro se alterou com o passar do tempo. Com a violência passando a frequentar a sala de casa. No começo do filme, dona Nina - seu nome fictício é Maria Josefina dos Santos -, está tomando um chá, enquanto ouve um antigo disco de vinil. Em um espaço nostálgico, de memórias que não sabemos exatamente quais. Só que a tranquilidade é quebrada quando tem início um tiroteio que vara a madrugada. O que lhe impede de ter uma noite de sono satisfatória.
Indignada, dona Nina vai até a delegacia mais próxima, para denunciar o ocorrido. Mas um certo Major Messias (Alan Rocha), meio que ignora seu pedido, alegando não poder fazer nada sem que haja algum tipo de flagrante. Parece justo. De sua janela, a protagonista enxerga uma série de absurdos. Com tudo se tornando ainda pior quando Nina percebe que a má vontade de Messias - aliás, que nomezinho sugestivo - tem raízes mais profundas: corrompido, o sujeito é parte do sistema. Recebe propina dos traficantes pra fazer vistas grossas. E ignorar os crimes cometidos ali. Só que a idosa não desiste. Junta suas economias para comprar uma pequena câmera filmadora - aliás impactante perceber que esse aparato de última tecnologia custava a bagatela de R$ 2.999 em 2005 (algo próximo de dez salários mínimos) -, que gere as evidências necessárias para uma denúncia. Em uma das noites ela assiste um assassinato brutal. Que ela consegue filmar. E levar pra outra delegacia.
Toda essa movimentação acaba chamando a atenção de um repórter policial de nome Flávio (Alan Rocha), que resolve tentar ajudar no caso. Nina é alertada pelo adolescente Marcinho (Thawan Lucas), um jovem da quebrada - que tem alguma ligação com os traficantes do morro -, e que funciona como uma espécie de neto que a idosa nunca teve, de que ela corre risco de vida se levar seu plano de delação à cabo. Ela alimenta o menino, lhe dá dinheiro para pequenos trabalhos cotidianos (como ajudar a levar as compras) e mantém uma amizade próxima. Já a vizinha Bibiana (Linn da Quebrada) se aproxima da protagonista após um quebra pau na reunião de condomínio - que dá início a uma amizade inusitada, com direito a idas ao bingo e participação em bailes da matinê. Com tensão na medida certa e mesclando instantes bem humorados, com outros absolutamente comoventes, Andrucha Waddington reconstrói a história real Joana Zeferino da Paz, uma mulher determinada e destemida, que preserva um senso de justiça mesmo quando tudo parece querer desabar. Com a identidade mantida em sigilo pelo Programa de Proteção da Testemunha, Joana morreria apenas em 2023, aos 97 anos. Sem ter visto uma resolução real do problema da violência urbana no Rio de Janeiro. Aliás, no no País como um todo.
De: Alice Diop. Com Guslagie Malanga, Kayije Kagame, Valérie Drévile e Xavier Maly. Drama, França, 2022, 122 minutos.
Uma história de forte carga simbólica e que até hoje segue inspirando produções culturais mundo afora. Assim é a tragédia grega Medeia, que teria sido escrita por Eurípedes em 431 a.C. - a partir de uma série de narrativas orais - e que em Saint Omer, da diretora Alice Diop, ressurge como pano de fundo alegórico para um drama de tribunal sofisticado, verborrágico e envolvente - e que é inspirado em uma história real. Não há facilidades aqui e para o espectador é preciso um pouco de calma na hora de examinar a atitude invariavelmente monstruosa da protagonista Laurence Coly (Guslagie Malanga, vista também no curioso A Besta, 2023). Levada ao tribunal, a jovem senegalesa de modos taciturnos e dotada de uma lucidez impressionante - um comportamento que poderia soar meio exótico para os mais apressados -, é acusada de ter assassinado a própria filha de apenas 15 meses, que foi encontrada sem vida em uma praia do norte da França.
À primeira vista, tudo parece meio inexplicável. Laurence era uma estudante de Filosofia notável, de grande capacidade intelectual e argumentativa - personalidade que ela teria puxado de seu pai, um sujeito que, por trás da atitude afável parecia depositar uma grande carga sobre a filha, especialmente por acreditar em seu potencial acadêmico. A mãe, de quem nunca foi muito próxima no País africano, romperia ligações mais tarde. Na França, os fiapos de afeto seriam encontrados no amante Luc Dumontet (Xavier Maly), um homem mais velho com quem acaba tendo um filho. De forma meio acidental. Só que Luc é casado, com filhos. E isola Laurence. "Em um encontro, precisei sair pela porta dos fundos", explica. Todo esse apagamento simbólico, de uma existência escondida em uma nação que não é a dela, não a impediu de ser uma mãe excelente, no tempo em que esteve com a pequena Elise. Ao menos até o dia em que a mata, como ela mesma admite.
No mito de Medeia, uma princesa e feiticeira de Cólquida, a paixão por Jasão - aquele que busca o Velocino de Ouro -, se converte em ódio e ressentimento, quando ela é traída. No caminho e em fuga, ela não apenas mata o irmão, Absirto, mas também o pai, o rei Eetes. Pior do que isso, quando Jasão a troca por Glauce, Medeia mata os próprios filhos, como forma de tentar ferir Jasão. Essas tintas carregadas e que bordejam um ideal metafórico de empoderamento feminino pautado pela vingança, se somam a uma análise um pouco mais aprofundada da crise imigratória, da xenofobia e de uma série de outros preconceitos que recaem sobre a ré. Nunca fica exatamente claro se Laurence repete Medeia por gosto. Talvez ela possua algum desequilíbrio psicológico. Ou tenha sofrido algum tipo de feitiçaria. Ela admite o crime, o que é mais curioso. Sempre com seu olhar oblíquo e uma formalidade tétrica.
Tudo é observado da plateia por aquela que, supostamente, é a protagonista da obra de Diop: Rama (Kayije Kagame), uma professora universitária e escritora que acompanha a escalada dos fatos no tribunal, como forma de reunir matéria-prima para, justamente, a recriação da história de Medeia. Encontrando pontos de ligação com a obra de Marguerite Duras, Rama, que também está grávida, funciona como uma espécie de observador participante: um espelho para suas próprias angústias, sendo ela uma jovem negra intelectual, hábil com as letras e pela qual se espera um certo comportamento padrão, que nunca pode ser muito desviante daquilo que prevê um certo código quando o assunto são os estrangeiros (especialmente os de nações mais pobres). Há outras tensões e ressentimentos que surgem espalhados em instantes pequenos mas cheios de significados, especialmente os que envolvem as memórias de Rama com a sua mãe e seus poucos encontros atuais com a genitora, povoados por silêncios e um distanciamento do tamanho de um abismo.
Reforçando ideias de sororidade, discriminação, conceitos de maternidade, vigilância, ancestralidade e identidade, essa pode ser uma experiência não muito fácil para alguns paladares. Mas ele deixa uma pulguinha atrás da orelha. Conduzido com elegância, em longos planos sequência e com diálogos complexos, mas pungentes, o projeto é resultado de uma refinada pesquisa de Diop, que acompanhou de perto o julgamento de Fabienne Kabou, em 2013 - do crime em que a obra é baseada. Não há uma lógica central naquilo que se vê. Nem um senso de punitivismo meio óbvio, que talvez fossem aguardado com inevitável certeza no cinema hollywoodiano - e que talvez fizesse a alegria de certa parcela do público. Aqui o que se tem é uma narrativa sedutora, que diz muito mais naquilo que não diz. Que não verbaliza. Que a sociedade moderna se preocupe com as crianças e com as violências sofridas por elas é mais do que justo. Mas quem cuida dos adultos apagados ainda em vida? Fica a questão.
Sinceramente, Kali Uchis, te amamos. Acho que não há nada mais pra falar quando uma artista produz tanto e lança uma coleção de discos tão sequencialmente majestosos. Quando surgiu pro mundo em 2018, com Isolation, a artista foi elogiada pela crítica, abraçada pelo público e, de lá para cá, a coisa só melhorou. Lançado um ano e meio depois do ótimo Orquídeas - nosso 12º colocado na relação de grandes discos de 2024 -, Sincerely, se apresenta como uma experiência evocativa, entre o cósmico, o onírico e o primaveril, numa mistura cheia de personalidade em que o R&B nunca parece óbvio, o soul é permanentemente sofisticado, o pop oitentista é refrescante e as tintas latinas se espalham pelas franjas com economia. Tudo executado com uma produção soberba, limpa, que se aproveita do vocal celestial de Uchis, para levar suas canções a um patamar mais alto, como se cantadas de cima, gerando uma sensação de conforto poucas vezes experimentada.
Uchis foi mãe recentemente. E perdeu a sua própria mãe no começo desse ano, pouco depois da divulgação do novo trabalho - num desses paradoxos que parecem ideias para a consolidação da arte. Nesse sentido, os temas de memória, dores, amores e incertezas existenciais se convertem na matéria-prima perfeita para um álbum que soa meditativo, e que vai crescendo a cada nova audição. Com uma série de músicas candidatas e se tornarem hits imediatos - casos da belíssima Heaven is Home..., da sinuosa Territorial, da vintage All I Can Say ou da maternal ILYSMIH, a compositora torna o registro uma jornada de cura pessoal, mas também o caminho para que a paz possa ser encontrada. Há felicidade ali adiante, afinal. A Pitchfork definiu o álbum como uma "fantasmagoria de prazer". Talvez esse seja um bom resumo. Uma coisa meio espectral. E profundamente saborosa, quente e confiante.