quarta-feira, 19 de março de 2025

Novidades em Streaming - A Contadora de Filmes (La Contadora de Películas)

De: Lone Scherfig. Com Sara Becker, Bérenice Bejo, Alondra Valenzuela, Daniel Brühl e Antonio de la Torre. Drama, Chile / Espanha / França, 2023, 116 minutos.

"Artistas são como vagalumes. Têm brilho próprio." Sim, A Contadora de Filmes (La Contadora de Películas) pode até ser aquele tipo de produção meio batida, que presta homenagem ao cinema, ao mesmo tempo em que evidencia o poder da arte como veículo de transformação - cultural, social, política. Só que nessa nova obra de Lone Scherfig, do oscarizado Educação (2009), tudo é tão salpicado de carisma, que é meio difícil de resistir. Ainda mais por se tratar de um projeto que viaja para a América do Sul, mais precisamente para o Chile dos anos 60 - década que antecederia o golpe de Estado (e a ditadura) de Pinochet -, para nos contar a história da jovem Maria Margarita (Alondra Valenzuela), uma menina apaixonada por cinema, a ponto de tratar as idas de fim de semana para o escurinho da sala da cidadezinha local, como um verdadeiro evento. Uma coisa quase ecumênica.

Só que esse não é um amor apenas de Margarita. O caso é que toda a sua família ama as produções cinematográficas - do pai Medardo (Antonio de la Torre) e da mãe Maria Magnolia (Berénice Bejo), até chegar aos seus irmãos Mirto (Beltran Izquierdo), Marcelino (Santiago Urbina) e Mariano (Elian Lobos). Todos se reúnem nos domingos para sessões entusiasmadas de O Homem que Matou o Facínora (1962), A Um Passo da Eternidade (1953) ou Spartacus (1960). E, nesse conjunto, tudo vai mais ou menos bem na rotina familiar: Medardo é o operário da mina local, que vê o mercado de salitre ser impulsionado por suas múltiplas possibilidades de uso. O gerente da mina, um certo Hauser (Daniel Brühl) parece tê-lo em alta conta, ainda que o que lhe interesse mesmo seja destinar galanteios à bela Magnolia. Só que aí vem um grave acidente que impedirá o patriarca de seguir seu trabalho, relegando-o eternamente a uma cama.

 


Em um período em que direitos trabalhistas ainda se apresentavam como incipientes, a despeito das reuniões quase clandestinas de trabalhadores, exibidas em algumas sequências, Medardo sai com uma mão na frente e outra atrás. O que resultará em severas dificuldades financeiras para todos os integrantes da família que, de um dia para o outro, veem o seu lazer preferido se esvair. Com dinheiro para apenas um ingresso de cinema frente à pobreza, surge o dilema: quem enviar para não apenas assistir o filme, mas relatar a experiência?  Mirto parece não conseguir controlar a boca suja, ao proferir uma dúzia de palavrões por frase a cada sentença. Já Marcelino exaure a família, com um estilo rebuscado, entre o parnasiano e o romântico, que irrita a todos. Com Mariano a coisa também não flui tão bem, cabendo à Margarita o ofício de assistir a produções como Gata em Teto de Zinco Quente (1958), Se Meu Apartamento Falasse (1960) e Três Homens em Conflito (1966), entre outras, para contá-las a família, reunida na sala, depois.

É algo bonito e fantasioso, unindo a mágica fílmica já vista anteriormente em obras como A Rosa Púrpura do Cairo (1985) e Rebobine por Favor (2008), que convertem o amor pelo cinema em uma experiência anestesiante e bela. Pode não haver nada de mais aqui, mas não deixa de ser interessante notar como a arte surge, a todo momento, como ponto de ruptura, de quebra do status quo e de derrubada de certo conservadorismo reinante. Em certa altura, Margarita (interpretada por Sara Becker, na versão adulta) descobre, em companhia do seu eterno primeiro amor Maurício (Simon Beltran), que sua mãe anda frequentando, às escondidas, um bordel local, onde dançarinas se exibem com bustiês cheios de purpurina para senhores engomados. Lá pelas tantas, nem surpreenderá tanto a fuga de Magnolia, que desaparece sem deixar muito rastro, talvez indo atrás da plateia nunca encontrada. "Ele nunca pôde substituir o público imaginado dela", reflete alguém a certa altura, a respeito da relação de Medardo e Magnolia - ela que nutria sonhos secretos de ser uma dançarina. Arte, memória, política, patriarcado, violências, traumas, questões sociais. É tudo muito sutil. Tão sutil que a gente quase nem nota que a produção, baseada no romance de Hernán Letelier, conta com Walter Salles na produção. Um atrativo a mais.

Nota: 8,0

 

segunda-feira, 17 de março de 2025

Novidades em Streaming - Mil e Um (A Thousand and One)

De: A.V. Rockwell. Com Teyana Taylor, Aaron Kingsley Adetola, William Catlett e Josiah Cross. Drama, EUA, 2023, 117 minutos.

 "Por quê você sempre me abandona?". Existe um sentimento meio ambíguo na pergunta feita pelo jovem Terry (Aaron Kingsley Adetola) a sua mãe Inez (Teyana Taylor), ainda no começo do impactante Mil e Um (A Thousand and One), obra que venceria o Prêmio do Júri no Festival de Sundance de 2023 e que, agora, chega a Netflix. Afinal de contas, quem abandona quem em uma cidade (e em um bairro) que cresce, se modifica, se embranquece, se gentrifica? Inez é claramente uma jovem mãe fraturada, calejada que, mesmo com poucos anos de vida, aparenta carregar o mundo nas costas - tanto que quando ela sai da prisão, parece se mover de forma frenética, urgente, por meio de carros e prédios e fios em um Brooklyn urbano e caótico. Ela é uma cabeleireira que precisa correr atrás dos meses que se esvaíram atrás das grades. Enquanto tenta se reaproximar do filho que, abandonado com apenas dois anos de idade (de acordo com suas memórias), agora reside em uma casa adotiva.

Como mulher preta, periférica, sem muita perspectiva e sem nenhum tipo de amparo do Estado, Inez toma uma medida meio desesperada em relação à Terry: o "sequestra", na ideia de não mais o abandonar. Embora todos que acompanharemos nessas tensas duas horas de tentativas desesperadas de sobrevivência pareçam, como já disse, abandonados. Inez mal tem onde morar. Como cabeleireira autônoma ela precisa reconstruir uma clientela que meio que não existe. E ainda de forma escondida, para não dar nas caras que seu filho, que talvez jamais devesse ser apartado dela independentemente das circunstâncias, agora se se encontra com ela de forma ilegal. É uma realidade crua, de uma cidade (no caso Nova York, mas bem que poderia ser outra metrópole), que a gente meio que não vê. Que está algumas camadas abaixo, longe da branquitude das paredes e das cercas ou da da higienização reforçada por práticas um tanto eugenistas.

 


 

Sim, porque nas aparências esse filme pode ser sobre uma mãe em fuga que não deseja mais se separar de seu filho, como uma leoa em torno de sua prole, brigando contra tudo e todos. Mas a ótima estreia de A.V. Rockwell também é uma produção sobre um mundo em transformação, que se altera, que se modifica, e que relega às pessoas mais vulneráveis os destinos mais implacáveis. Para que Terry, por exemplo, não seja localizado por agentes do Estado - que detém sua custódia -, Inez solicita a um amigo do Harlem, onde ela agora se refugia, documentos falsos (certidão de nascimento e cartão de seguridade social) para o menino. É uma forma paliativa de fugir da vigilância, que, aliás, só cresce (e é interessante notar como a obra exibe, em trechos transitórios, uma série de discursos de antigos prefeitos de Nova York, como Rudy Giuliani e Mark Bloomberg, que sequer parecem perceber o quão contraditórias são as suas falas sobre violência policial e proteção do cidadão, enquanto, por exemplo, citam a escritora Toni Morrison).

Todos esses componentes adicionam complexidade à produção, que jamais passa pano para seus personagens, que se apresentam como figuras complexas, ambíguas, nunca unilaterais. Quando, por exemplo, o antigo namorado de Inez, Lucky (William Catlett) reaparece em sua vida, ele pode ao mesmo tempo representar a presença (e a segurança) masculina, mas também a dúvida e a incerteza, especialmente em relação à Terry e a paternidade improvisada. Dentro de casa a vida doméstica pode ser problemática e incerta - e é assim pra qualquer pessoa. Mas quando o filme faz alguns saltos temporais em meio a traumas generalizados, desconfortos contínuos e promessas de melhoria, percebemos que é o exterior que torna tudo mais complexo. Especialmente em uma sociedade que ainda se movimenta pautada pela meritocracia. Como ser alguém na vida quando tu já arranca lá atrás? Quando sequer os teus documentos estão corretos? Quando o assédio da polícia é permanente? Quando a autoestima parece lá embaixo? Ao cabo esse é um filme duro, de realidade, que é reforçado pela fotografia granulada e pelo senso de agora. De quem precisa comer, precisa viver, agora. Não depois. O que, em tempos de Trump, pra piorar, não parece indicar uma perspectiva otimista.

Nota: 8,0 


terça-feira, 11 de março de 2025

Pitaquinho Musical - Nao (Jupiter)

Basta uma olhada rápida nos títulos de algumas das faixas do quarto álbum de inéditas da britânica Nao - Happy People, Light Years, Better Days, We All Win -, para que tenhamos certeza: os tempos mais sombrios e desesperançosos talvez tenham ficado para trás. E não é que a artista, que faz aquela mescla sensual da R&B, pop e eletrônica, fosse excessivamente soturna antes, mas o caso é que Jupiter é mais solar do que nunca. É como uma luz no fim do túnel. Um raio de sol depois de uma temporada meio infernal. Diagnosticada com Síndrome da Fadiga Crônica e sofrendo com um rompimento amoroso na época de Saturn (2018), a cantora ainda teve de reunir forças para lançar o esperançoso And Then Life Was Beautiful (2021), na esteira da pandemia. Nesse sentido, o recente registro mira (e acerta) na esperança. Ainda que nunca de forma ingênua.

 


"Eu estava tipo 'sabe de uma coisa', depois de tudo o que passei, sinto que Jupiter é a maneira perfeita de simbolizar isso", resumiu no material de divulgação, que explicou também o conceito por trás do disco, com o planeta visível a olho nu, servindo como uma alegoria para o otimismo, a saúde, a sabedoria e a boa sorte (de acordo com a Astrologia). Nostálgico e cheio de personalidade, o trabalho de essência dançante apostas em sintetizadores divertidos e batidas iluminadas, que servem de base para canções eufóricas, como Wildflowers, que abre o disco num astral elevado, o que é reforçado pela letra sobre a importância de se viver plenamente (O tempo deveria esperar por nós, mas não vai / Então se você me ama, então diga que me ama até o fim dos tempos). O expediente se repete em outras, como na já citada Happy People, que bebe na fonte do afrobeat, enquanto versa sobre o valor do senso de comunidade e a respeito de conexões com aqueles que importam (Eu encontrei meu povo / Vivendo como pessoas felizes). Sério, vale a pena prestar atenção.

Nota: 8,5

 

segunda-feira, 10 de março de 2025

Novidades em Streaming - O Reformatório Nickel (Nickel Boys)

De: RaMell Ross. Com Ethan Herisse, Brandon Wilson e Aunjanue Ellis. Drama, EUA, 2024, 140 minutos.

O Reformatório Nickel (Nickel Boys) pode até ter passado meio batido pelo Oscar, afinal de contas foram apenas duas indicações - na categoria principal e em Roteiro Adaptado -, mas o fato é que vale a pena descobrir essa obra. No centro da narrativa está o debate sobre racismo estrutural (e institucional), que permanece atual até hoje - ainda que, na trama, retornemos no tempo, mais precisamente para a década de 60, nos Estados Unidos, onde crescia o movimento por direitos civis e de luta contra a segregação racial. É nesse contexto que somos apresentados ao jovem Elwood Curtis (Ethan Herisse), um jovem estudante da Florida que é injustamente enviado a um reformatório, após se tornar cúmplice involuntário em um caso de furto de veículo. E isso justamente após ter sido encorajado por seu professor a frequentar uma instituição de ensino superior voltada a estudantes negros.

Sim, pode parecer um filme meio normalzinho sobre preconceitos enraizados e injustiças diversas que volta e meia aparece em Hollywood, mas o caso é que a produção dirigida e roteirizado por RaMell Ross - a partir do romance vencedor do Pulitzer, escrito por Colson Whitehead -, fornece uma experiência diferente e mais imersiva ao espectador, uma vez que adota a câmera subjetiva, em primeira pessoa, para narrar os eventos. Com a ideia sendo permitir ao público uma vivência mais próxima (e realista) da série de violências - psicológicas e físicas - vividas não apenas pelo jovem, mas também pelo seu melhor amigo no reformatório, o carismático Turner (Brandon Wilson). E quando se fala em violência não se trata apenas da brutalidade que emerge de batidas policiais desastrosas, mas também do desprezo de pessoas brancas que se acreditam superiores apenas pela cor de sua pele (como no caso do repulsivo instante em que um idoso caquético aponta a sua bengala para Elwood, enquanto é protegido por uma polícia conivente).

 


 

E por mais duro que o filme seja nesse aspecto de denúncia, há que se destacar a sutileza generalizada na condução do roteiro. Em partes, o espectador desavisado pode até demorar um pouquinho a mais pra compreender do que se trata, uma vez que a obra abre com uma série de sequências e instantes bonitos, idílicos, quase oníricos de Elwood em companhia de sua avó Hattie (Aunjanue Ellis) - figura absolutamente amorosa, que substitui o pai do jovem, morto em circunstâncias, no mínimo, duvidosas. Aliás, em alguma medida, a produção adota esse tom esperançoso, quase sonhador, especialmente por incluir, aqui e ali, cenas de discursos de Martin Luther King (que podem surgir de uma TV ligada ou de um rádio em funcionamento) ou de filmes protagonizados por Sidney Poitier, que funcionam não apenas como rima visual, mas como reforço iconográfico de uma batalha pacífica em que apenas a ponta mais fraca sofre a agressão contínua.

Também nesse sentido, esse é um projeto que aposta em uma série de instantes alegóricos, simbólicos, como forma de reforçar seu ponto de vista - ainda que ele nunca seja enfiado goela abaixo de quem o assiste. Não são poucos os momentos em que Elwood olha para o próprio braço (e para a cor de sua pele), como se tentasse compreender os motivos da distinção que faz com que, em sociedade, brancos sejam apartados de negros (inclusive no reformatório) - e é bizarro pensar que isso ocorria nos Estados Unidos há apenas 60 anos (e é melhor não dar ideia pro Trump ou pra qualquer outro lunático de extrema direita, que eles são capazes de gostar). Em outros momentos, como o do folder que despenca da geladeira ou o dos lápis que parecem emular um instrumento de tortura, o público é instigado a refletir sobre o absurdo da violência sofrida por aqueles que acompanhamos. "Lá fora é tudo igual, só que aqui eles não precisam fingir", lembra Turner, após uma perturbadora sequência em que os jovens são espancados como forma de punição. Espancamento institucional, no caso, promovido pelo Estado, em reformatórios que, de fato, existiram nos anos 60. Comovente, belo, reflexivo. Esse é daqueles projetos que ficam conosco, quando os créditos sobem. Tá na Amazon Prime.

Nota: 8,5 

 

segunda-feira, 3 de março de 2025

10 Considerações Sobre o Oscar 2025

O Oscar 2025 ocorrido na noite de ontem fecha oficialmente a temporada de premiações iniciada no ano passado e, aqui no Picanha, também passamos a régua com as nossas considerações. Ainda de ressaca, ainda fazendo festa, ainda estando aqui celebrando esse momento mágico vivido pelo nosso cinema na noite de ontem!

 


1) Vimos a história acontecer! Nunca antes em 97 edições do Oscar havíamos assistido ao Brasil vencer a categoria Filme Internacional e ver a Penélope Cruz anunciando a nossa conquista foi incrível. Que a vitória de Ainda Estou Aqui tenha ocorrido no mesmo final de semana do Carnaval só pode ser a prova de que Deus existe e é brasileiro. Mais importante: só fomos nos tornando favoritos (em partes) conforme o tempo passava e a nossa campanha evoluía - e Emilia Pérez, o candidato francês, derretia (por conta de todas as polêmicas envolvendo a Karla Sofía Gascón). Uma campanha que teve, sim, grana da produção, mas teve muito boca a boca, muita sessão comentada, muito evento de apresentação mundo afora. Foi a forma encontrada para que os votantes tomassem conhecimento da obra. O que foi fortalecido pela vitória da Fernanda Torres no Globo de Ouro.

2) Importante, pessoal: copo MUITO cheio nessa conquista. Sei que muita gente ficou triste ou frustrada porque a Fernanda não faturou a estatueta dourada na categoria Atriz, mas, verdade seja dita, ela nunca foi uma favorita. Favorita, favorita MESMO, era a Demi Moore, por seu trabalho irretocável em A Substância. Com as vitórias nas prévias o cenário parecia bastante consolidado. Mas o caso é que, na reta final da campanha, os votantes meio que abraçaram oficialmente Anora como uma espécie de queridinho, concedendo a ele cinco prêmios. Entre eles Filme, Roteiro Original e Direção. 

3) Em tempo e ainda sobre a vitória do Brasil: ela chega em ótima hora, primeiro porque chama a atenção do mundo para um problema que tem assolado diversos países (e que envolve a ascensão das ditaduras militares de extrema direita e seu belicismo antidemocrático), e segundo pela oportunidade de dar uma maior visibilidade à nossa produção cultural, artística e fílmica para os próximos anos. Usando um jargão meio que de mercado, vencer o Oscar pode nos tornar um player mais significativo em termos de cinema, o que talvez nos torne presença mais recorrente em premiações mundo afora. Não apenas no Oscar, mas em Cannes, Veneza, Berlim e outros. Aliás, recentemente, e só pra ficar num exemplo, o ainda inédito O Último Azul, de Gabriel Mascaro, levou o Urso de Prata em Berlim e já desponta como um possível candidato para outras premiações durante o ano.

4) Voltando à categoria Atriz, penso ser importante não reduzir a vitoriosa Mikey Madison, a uma jovenzinha em um "filme de prostituta". Primeiro, que Oscar não é apenas relevância, senão todos os anos documentários sobre temas políticos e sociais venceriam as categorias máximas da noite. É campanha. É boca a boca. E, sim, também é lobby. Madison está perfeita em um papel dificílimo e extremamente físico, corporal (assim como era o da Demi). Ou vocês acham que aquelas cenas de sexo são fáceis de fazer? Ou as que envolviam longas discussões? É um trabalho grande e que, vá lá, tem seus méritos. Claro que aqui éramos sim, team Nanda, mas acho que pra Demi a dor é maior. Certamente o discurso antietarismo na indústria estava pronto e, ironias das ironias, ela foi perder o Oscar justamente pra uma garota de vinte e poucos anos. É pra render debates e teorias na mesa de bar.

5) Quem estava atento ao componente político, para além do artístico, pôde constatar que esse foi um Oscar que fez uma série de acenos e piscadelas à minorias diversas - estrangeiros, negros, LGBTs e outros. Sim, o apresentador Conan O'Brien pode não ter citado diretamente o governo Trump e toda a barbárie produzia por esses lunáticos da extrema direita, mas foi no transcorrer da premiação que vieram algumas respostas aos absurdos do laranjão. Como exemplo, podemos citar a vitória da animação Flow, que desbancou a Pixar (e seu Divertidamente 2) ou outras produções mainstream como Robô Selvagem. Aliás, Flow também deu à Letônia o seu primeiro Oscar da história, em sua primeira indicação. Um filme sem diálogos, com baixíssimo orçamento e feito com recursos modestos. Foi um instante bonito.

6) Outros momentos comoventes e com acenos aos imigrantes e a seu árduo esforço para colocar suas obras de arte no mercado, foram as vitórias do curta em Animação iraniano In the Shadow of the Cypress (e foi muito emocionante ver o pessoal da produção afirmando que até o dia anterior não tinha conseguido o visto pra chegar aos Estados Unidos) e do documentário No Other Land, uma produção Palestina sobre resistência do povo frente ao absurdo do deslocamento forçado de um povo por tropas israelenses. De forma complementar é possível ainda citar o Paul Tazewell, que se tornou o primeiro figurinista negro da história a vencer em sua categoria, por Wicked. E se não me engano ele também é gay.

7) uma coisa importante sobre Anora, galera: é muito legal ver um realizador saído do cinema alternativo e com grandes obras no currículo - como Projeto Florida e Red Rocket -, como o Sean Baker, dando também visibilidade pra esse cinema menos espetacularizado e pautado por grandes efeitos ou uso de inteligência artificial (polêmica que rondou O Brutalista, por exemplo). Fora o fato de que Baker foi o rei do carisma na noite, subindo ao palco trocentas vezes, já que ele não apenas dirigiu como editou, roteirizou e montou o filme! Dá uma escala 5x2 pro homem, por favor!

8) Sobre O Brutalista, Hollywood sempre gosta de uma história de ascensão, queda e volta por cima em termos de carreiras de atores e atrizes e foi legal ver o Adrien Brody, que andava relegado a uma espécie de segunda divisão das escolhas de papeis, de volta à linha de frente (lááá atrás, ele tinha faturado o carecão dourado por O Pianista). Ele aparece com mais ou menos umas duzentas horas de tela no interminável filme de Brady Corbet. Um papel de exigência.

9) Kieran Culkin e Zoe Saldaña eram as barbadas da noite, nos bolões mundo afora. A Verdadeira Dor e Wicked podem até ser filmezinhos qualquer nota, mas, Oscar, não é tanto sobre qualidade. No caso de Kieran seu papel tem aquele quezinho de Oscar bait que a Academia adora (ainda mais com ele dando meio que uma reprisada nos trejeitos do sujeito atormentado já visto em Succession). 

10) Em resumo, galera, foi um Oscar histórico pra nós, dinâmico, que passou voando e que nos reposiciona nesse mercado. Ano que vem tem mais e eu tenho certeza que com o olhar ampliado sobre nossa produção, temos chance de emplacar novamente uma short list. É cedo ainda! Mas o sonho não para, afinal, como diz a nossa diva, "a vida presta e MUITO!"

 

E, chora, Emilia Perez, filme horroroso que se torna o maior perdedor da história, com onze estatuetas não entregues!

sábado, 1 de março de 2025

Apostas Oscar 2025

A safra pode até não estar tão boa esse ano, mas a menos que você seja um alienígena que acaba de chegar à Terra, você já sabe que nós, brasileiros (e patriotas de VERDADE) temos todos os motivos do mundo para estar de olho na premiação máxima do cinema - que ocorre no próximo domingo, com a transmissão da TNT (e da Globo, que vai exibir o Oscar de forma concomitante com a primeira noite do Carnaval do Rio). E, sim, não é pra ter clima de Copa do Mundo mas vai ser lindo demais ver o Brasil vindo abaixo, com Marquês do Sapucaí e tudo, se a Fernanda (ou o filme) faturarem o carecão. Como projeto de cinéfilo fui meio negligente nesse ano e não consegui ver todas as produções - pequei principalmente em Documentário, que só assisti um. Ainda assim, a gente faz o trabalho aqui: pondera as premiações prévias, aciona a bola de cristal e faz as nossas projeções. De quem vence. E de quem queremos que vença. E que domingo seja TUDO NOSSO e NADA DELES! Bora!

 


 

 

FILME

Esse ano parece tudo meio imprevisível na categoria máxima, até mesmo porque a régua tá lá embaixo. É claro que Anora salta na frente, até mesmo por ter faturado uma série de prévias, como o PGA, o DGA, o WGA e o Critics Choice, além de outras premiações. Nessa altura do campeonato, o concorrente mais forte parece ser Conclave, que venceu o Bafta, que sempre é um bom termômetro. Sim, aqui nem precisa dizer que a gente torce demais pro Ainda Estou Aqui, mas vamos combinar que a simples lembrança entre os dez mais já é uma grande conquista. E nem precisa dizer o quão putos ficaremos se Emilia Pérez que, até certa altura parecia favorito a muita coisa, vencer. Ah, e Wicked também porque, vamos combinar, que bela BOMBA.

Ganha: Anora

Na torcida: Ainda Estou Aqui 


DIRETOR

Sean Baker levou o DGA que costuma ser o termômetro mais fidedigno para a categoria. Ainda mais com Anora pintando como o favorito ao prêmio máximo - o que junta aquela coisa do filmezinho independente com algum sentido social a mais. O maior entrave pra dobradinha parece ser Brady Corbet de O Brutalista, que andou ganhando uma série de prévias, inclusive o Bafta. Em matéria de torcida, iremos amar ver a Coralie Fargeat subindo ao palco para receber o Oscar por A Substância. Ainda que isso pareça um sonho distante.

Ganha: Brady Corbet, por O Brutalista

Na torcida: Coralie Fargeat, por A Substância 


ATOR

Aqui tudo indicava que o caminho estava aberto para Adrien Brody pelo seu trabalho na epopeia O Brutalista - ele venceu o Critics Choice, o Globo de Ouro e o Bafta nas prévias. Mas aí quando a taça estava garantida, o Timothée Chalamet voltou pro jogo ao faturar o SAG na última semana, pelo seu papel em Um Completo Desconhecido. Só que essa vitória pode ter sido tarde demais, já que os envelopes do Oscar já estavam selados. E a campanha também.

Ganha: Adrien Brody, por O Brutalista

Na torcida: Ralph Fiennes por Conclave

 

ATRIZ

O nosso coração está todo com a Fernanda Torres, todo mundo sabe e a gente fica torcendo desesperadamente para que o Globo de Ouro possa ter sido uma abertura de portas para que os votantes da Academia prestassem uma atenção A MAIS em Ainda Estou Aqui. Pode ser que tenha havido tempo para que a campanha encontrasse sua rota. Mas o problema é que tanto Demi Moore, de A Substância, quando Mikey Madison, de Anora, paparam todas as prévias mais relevantes - a primeira o Critics Choice e o SAG, além do Globo de Ouro em Comédia e Musical, a segunda o Independent Spirit e o Bafta. Em favor de Demi está também a disrupção de fazer um papel que parece ter sido escrito sob medida pra ela - o de uma estrela em decadência que busca uma forma de preservar sua juventude (e seus discursos sobre etarimso e ausência de papeis para mulheres mais velhas no setor, têm chamado a atenção e podem pesar). No mais, é VAI FERNANDA com força!

Ganha: Demi Moore por A Substância

Na torcida: acho que nem precisamos dizer! 


ATOR COADJUVANTE

A gente sabe que A Verdadeira Dor é um filmezinho qualquer coisa, mas a Academia tende a se assombrar com esse tipo de papel do sujeito atormentado, que é o que faz o Kieran Culkin aqui (mais ou menos reprisando o papel dele em Succession). Claro que ajuda bastante nessa projeção o fato de que o sujeito simplesmente patrolou nas premiações prévias, ganhando a maioria. Talvez essa seja uma aposta óbvia para o bolão. Por uma ironia do destino, o único que poderia ameaçar o prêmio de Culkin seria o Jeremy Strong, seu parceiro de Succession, e que se empenha em entregar uma boa interpretação no fraco O Aprendiz.

Ganha: Kieran Culkin, por A Verdadeira Dor

Na torcida: Edward Norton, por Um Completo Desconhecido

 

ATRIZ COADJUVANTE

Tudo parece indefinido nessa categoria que pode derrubar o Bolão. Em geral talvez aqui rolasse o prêmio consolação de Emilia Perez, já que Zoe Saldaña fez uma varredura de prêmios na temporada. Só que toda a polêmica do filme em si pode ter prejudicado a campanha e talvez uma estatueta para Isabella Rossellini por seu elegante papel em Conclave possa ser uma aposta mais segura (ainda que ela tenha pouco tempo de tela). Difícil arriscar. E ainda há a Monica Barbaro de Um Completo Desconhecido correndo por fora.

Ganha: Zoe Saldaña por Emilia Perez

Na torcida: Isabella Rossellini, por Conclave

 

ROTEIRO ORIGINAL 

Mais uma das categorias imprevisíveis, até mesmo porque os favoritos da noite se distribuíram nas prévias - A Substância, por exemplo, ganhou o Critics, ao passo que Uma Verdadeira Dor faturou o Bafta (sendo uma desvantagem não estar na categoria principal). E como se embolamento pouco fosse bobagem, Anora venceu o WGA, que costuma ser uma excelente prévia (é o prêmio do Sindicato dos Escritores). No mais, não dá pra betar muito nessa categoria não, porque tudo pode acontecer.

Ganha: Anora

Na torcida: A Substância 


ROTEIRO ADAPTADO

Talvez aqui esteja uma das barbadas da noite, já que Conclave arrematou as prévias do Globo de Ouro, do Critics e do Bafta - ele não era elegível pro WGA e nem o diretor parece saber o por quê. No mais, é correr pro abraço.

Ganha: Conclave

Na torcida: Conclave 


ANIMAÇÃO

Por mais que o Independente Flow seja uma pequena joia do cinema alternativo - tendo vencido o Annie em sua categoria, e também o Globo de Ouro -, a disputa é dura contra O Robô Selvagem, que pinta como um favorito meio que natural, depois da vitória no Critics e também no Annie em sua categoria. Um ponto a favor de Flow talvez pudesse ser a verdadeira comoção da Letônia com a indicação - com direito a estátua do gatinho no País e tudo. Ah, tem um detalhe: Wallace & Gromit: Avengança conquistou o Bafta. E, bom, vai saber.

Ganha: O Robô Selvagem

Na torcida: Flow 


DOCUMENTÁRIO

Como fã de cinema, essa foi a categoria que fui mais negligente: como dito no começo desse texto, só assisti um - no caso o excelente Sugarcane. Mas, pendências cinéfilas a parte, esta também parece ser uma categoria difícil de cravar o vencedor, até mesmo porque as prévias apontam uma espécie de empate técnico entre No Other Land e Porcelain War, com o segundo tendo uma leve vantagem, por ter faturado o DGA e o prêmio do Juri em Sundance (além do tema relevante, que envolve o conflito entre Rússia e Ucrânia).

Ganha: Porcelain War

Na torcida: Sugarcane

 

FILME INTERNACIONAL

Emilia Perez pode ter derretido no último mês com todas as polêmicas envolvidas à Karla Sofía Gascón, mas o filme segue sendo, sejamos justos, o favorito à categoria - até mesmo pelas vitórias em prévias importantes como o Bafta, o Prêmio do Júri em Cannes e o Critics Choice. Mas o Brasil, sabemos, está comendo pelas beiradas e sabendo se aproveitar da campanha desastrosa do filme francês (que se passa no México), ainda mais depois da vitória da Fernanda no Globo de Ouro. Sim, a gente tá sonhando com essa arrancada, esse sprint final, essa comoção. Que transformará o nosso Carnaval na maior festa da história!

Ganha: Ainda Estou Aqui (não consigo ser racional aqui, é clima de COPA DO MUNDO)

Na torcida: Ainda Estou Aqui 


FOTOGRAFIA

As vitórias no Bafta e no prêmio da Sociedade Britânica de Forografia deve garantir uma vitória mais ou menos segura para O Brutalista. Claro que o prêmio da Sociedade Americana de Fotografia para Maria pode embolar um pouco a disputa, que ainda tem como concorrente o Nosferatu, que faturou o Critics Choice. Ainda assim, a aposta segura está no primeiro.

Ganha: O Brutalista

Na torcida: Nosferatu 


EDIÇÃO

Com o prêmio American Cinema Editores (ACE), que poderia ser um bom termômetro, sendo revelado apenas após o Oscar, essa categoria fica meio que no escuro, por mais que uma ou outra prévia possam indicar alguma coisa - como no caso de Conclave, que venceu o Bafta. Aliás, particularmente iria simpatizar com essa vitória, já que a edição de Anora é meio confusa e, por vezes, quase faz com que nos percamos. Em tempo, nos bastidores há quem diga que Wicked tem boas chances nessa categoria. O que seria mais um daqueles momentos "vem meteoro", legítimos de nosso tempo.

Ganha: Conclave

Na torcida: Conclave

 

DESENHO DE PRODUÇÃO

Falando em "vem meteoro", esta é uma das categorias que deve dar Wicked com folga - e, justiça seja feita, é nisso aqui que o filme brilha. As vitórias no Bafta, no Art Directors Guild e no Critics Choice são boas credenciais. Se o mundo fosse justo, Conclave venceria nessa categoria, até mesmo porque vai reconstruir a Capela Sistina de forma fidedigna, pra ver?

Ganha: Wicked

Na torcida: Conclave

 

FIGURINO

Aqui também teremos de aturar Wicked subindo ao palco para pegar seu Oscar. Sim, vocês já perceberam que eu não fui muito com a lata desse musical chôcho - e talvez vai ver eu não seja o público alvo nessa história. Ah, o Bafta, o Critics Choice e o Costume Design Guild são as credenciais que tornam essa uma das barbadas da noite.

Ganha: Wicked

Na torcida: Conclave 


MAQUIAGEM E PENTEADO

Aqui vai uma mistura de torcida com trabalho de impacto nesse setor - e quem já viu A Substância sabe do que estamos falando. Há um esforço geral dos outros indicados, mas nada que supere.

Ganha: A Substância

Na torcida: A Substância

 

SOM

Na premiação do CAS (o Cinema Audio Society) deu Um Completo Desconhecido e, sejamos justos, seria uma estatueta muito bem entregue. Claro, Wicked e Duna Parte Dois correm por fora e certamente tudo pode acontecer. Mas o CAS coloca o filme de James Mangold em vantagem.

Ganha: Um Completo Desconhecido

Na torcida: Um Completo Desconhecido 


TRILHA SONORA ORIGINAL

A trilha sonora de Robô Selvagem é maravilhosa e adoraria vê-lo como vitorioso. Mas como concorrer nessa categoria com filmes tão xaropemente musicais como Emilia Perez e Wicked? Ainda assim, tem apostador acreditando que O Brutalista corre por fora. É chute, por final.

Ganha: Wicked

Na torcida: Robô Selvagem

 

CANÇÃO ORIGINAL

A Diane Warren tem tentado ao longo dos tempos e a história dela com o Oscar (e as indicações) certamente daria um documentário - e a vantagem dela é que Sing Sing ao menos é um filme razoável e não apenas um Oscar bait qualquer. Só que, no mais, vai ficar meio chato se Emilia Pérez, com 13 indicações, sair de mãos abanando. Então pode cravar a vitória de El Mal aqui.

Ganha: El Mal, de Emilia Perez

Na torcida: Never Too Late, de Elton John Never Too Late

 

EFEITOS VISUAIS

Se a gente arremessar pra cima os indicados acho que fica entre Wicked e Duna Parte Dois. Essa é aquela hora de servir uma taça de vinho enquanto aguarda a premiação andar.

Ganha: Duna Parte Dois

Na torcida: Duna Parte Dois 


ANIMAÇÃO EM CURTA

A vitória no Annie e no Bafta dá uns pontinhos a mais pro bonito Wander to Wonder. E muito mais do que isso não tem como saber!

Ganha: Wander to Wonder

Na torcida: Wander to Wonder 


DOCUMENTÁRIO EM CURTA

Vamos combinar que os esforços da Netflix na campanha de divulgação podem fazer a diferença em uma categoria de baixa visibilidade, o que faz com que A Única Mulher na Orquestra esteja um pouco na frente. No mais, na maior categoria desempata bolão da história, tudo pode acontecer. Como a vitória de I'm Ready, Warden, por exemplo.

Ganha: A Única Mulher na Orquestra

Na torcida: A Única Mulher na Orquestra

 

CURTA LIVE ACTION

Por mais que eu goste de I am Not a Robot, talvez aqui o prêmio fique com Anuja. Ou com O Homem que Não se Calou. Ou The Last Ranger.  Boa sorte pra quem conseguiu ver todos.

Ganha: The Last Ranger

Na torcida: I am Not a Robot 


E pra vocês, quem ganha o quê? Vai Fernanda!


quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Pitaquinho Musical - The Lumineers (Automatic)

Vamos combinar que nem o fã mais ardoroso da dupla The Lumineers poderia imaginar que Automatic, o recém chegado quinto registro de Jeremiah Fraites e Wesley Schultz, seria o melhor da carreira. Mas o caso é que talvez seja. Sim, no que se refere ao consumo de música na modernidade, o ouvinte meio que se acostumou a renegar o simples, o descomplicado, o direto. Assim, discos como esse passam meio que batido não apenas pela crítica, mas também pelo público, sempre ávido pela novidade da vez. Em entrevistas, Schultz chegou a comentar de que as pessoas se surpreenderiam com o novo trabalho - e com o novo direcionamento, que dá as canções um maior preenchimento, um volume que não parecia tão presente no passado. Claro, não há nenhuma reinvenção da roda (o que é bom) e sim um acréscimo de elementos que parece dar mais cor e mais sabor para o folk pop do duo.

 


 

Um bom exemplo nesse sentido pode ser percebido na ótima Plasticine, uma canção cheia de camadas, que não faria feio em um disco do Travis da fase The Boy With No Name. Em geral, as músicas são construídas tendo como centro o refrão, que quase sempre permite ao fã cantar junto. Os temas costumam ser variados indo de reflexões sobre rotina e sensação de vazio (Automatic), passando pela dependência emocional (Keys and the Table) até chegar as inseguranças envolvendo as relações e a aceitação das próprias falhas (Asshole). Ah, e até o militante mais ansioso pode segurar a onda porque os temas políticos também surgem salpicados, aqui e ali, como em Better Day (Sonhando com dias melhores / Balas de borracha, spray de pimenta / Caixas de papelão no caminho). Perdas, conexões, dilemas cotidianos. A gente parece meio anestesiado. E um trabalho como esse, tão cheio de vulnerabilidade e beleza, nos ajuda a reconectar.

Nota: 8,0

Pérolas da Netflix - Wallace & Gromit: Avengança (Wallace & Gromit: Vengeance Most Fowl)

De: Nick Park e Merlin Crossingham. Com Ben Whitehead, Reece Shearsmith, Peter Kay e Lauren Patel. Animação / Comédia, Reino Unido, 2024, 80 minutos.

Antes de qualquer coisa, verdade seja dita: parabéns para quem nomeou o novo filme de Wallace & Gromit para o português, porque esse trocadilho (tosco) mesclando as palavras "ave" e "vingança" (Avengança) ficou muito engraçado. E tudo fica ainda melhor porque o vilão em si é um pinguim silencioso e extremamente metódico, o Feathers McGraw, que mete medo sem nem se mexer! Bom, quem acompanha a icônica dupla britânica sabe do carinho geral que o público costuma ter por eles e como já fazia vinte anos desde o último longa-metragem - o divertidíssimo Wallace & Gromit: A Batalha dos Vegetais (2005) - era mais do que natural certa expectativa. Que foi ampliada com uma meio que inesperada, mas justíssima, indicação ao Oscar na categoria Animação. Sim, o filme não vai ganhar, mas terá visibilidade a mais, reforçada pela exibição na Netflix.

Na trama, o carismático e excêntrico inventor Wallace (Ben Whitehead) está bastante animado com a sua mais nova engenhoca: uma espécie de pequeno gnomo de jardim em formato de robô - seu nome é Norbot (Reece Shearsmith) -, capaz de fazer uma série de tarefas (podar, plantar, cortar gramas, colher) com uma velocidade única. Bastante obediente, Norbot acaba por irritar, em alguma medida, o fiel Gromit, que começa a ficar desgostoso com a dependência deles em relação à tecnologia (com absolutamente TODAS as atividades domésticas sendo conduzidas por algum equipamento eletrônico). Só que a vida deles parece tranquila apenas nas aparências, já que no começo da história dá pra perceber que Wallace e Gromit tiveram papel decisivo na prisão de Feathers que, acusado de tentar furtar um caríssimo diamante, vai parar em um um zoológico para "prestar serviços comunitários" (sim, mais uma das ótimas gracinhas).

 


 

Só que com a repercussão de Norbot, Wallace se torna famoso entre os vizinhos, o que atrai o interesse da imprensa. E é justamente uma entrevista concedida a TV e veiculada na prisão em que Feathers se encontra, que faz com que o maléfico pinguim bole o seu plano de vingança. Que envolve invadir um computador local, enquanto o guarda de plantão dorme, para mexer no código fonte dos gnomos. A ideia? Replicar o robô em massa, alterando o seu padrão de atendimento aos desejos humanos (saindo de amistoso para maligno). Claro que essa é a deixa para que uma série de confusões envolvendo ainda um atrapalhado delegado local (Peter Kay) e sua corajosa ajudante (Lauren Patel) - que se esforçam para solucionar o caso - ocorram. Especialmente quando os robôs malignos passarem a se comportar de forma totalmente imprevisível.

Divertida, tocante e caótica, a animação tem como mensagem óbvia a importância de não abandonarmos a simplicidade e os vínculos, em detrimento do uso da tecnologia. Claro, não é que ela não seja importante, mas alguma coisa substitui a delícia de passar um café de uma forma mais "raiz" em um bule ou em uma térmica? E o que dizer do afago no cachorro - e não é à toa que Gromit fica exasperado com a engenhoca responsável por lhe fazer o carinho (uma mão mecânica com uma luva). Feita em stop motion - e só essa técnica em si já coloca a obra em um outro patamar -, a produção, além de agradar as crianças (já que é muito viva e usa a expressão dos personagens de forma cômica), ainda dá várias piscadelas aos adultos, com piadocas que, em muitos casos, só eles serão capazes de compreender (e nesse sentido, vale prestar atenção às "obras literárias" que o engajado Gromit lê, no transcorrer do filme). Simples e direto, esses são oitenta minutinhos que passam voando. Tadá!