quarta-feira, 24 de julho de 2024

Pérolas da Netflix - Matar Jesus (Matar a Jesús)

De: Laura Mora Ortega. Com  Natasha Jaramilo, Giovanny Rodriguez e Juan Pablo Trujillo. Drama / Suspense, Colômbia / Argentina, 2017, 95 minutos.

Assistir ao ótimo Matar Jesus (Matar a Jesús), me fez lembrar de uma outra obra - no caso, o tenso O Filho (2001). E ainda que sejam filmes completamente diferentes entre si, há algo que une ambas as experiências, especialmente no que diz respeito ao exame dos ciclos de violência social, o medo como parte da rotina e quais os fatores que desencadeiam esses sentimentos - muitos deles ligados a traumas do passado e dores que apenas se reproduzem, sem muita explicação. Na produção dos Irmãos Dardenne, acompanhamos um carpinteiro enlutado pela perda do filho em um assassinato mal explicado, que contrata um jovem aprendiz que, mais tarde, descobriremos ser justamente o criminoso do passado. Já na obra dirigida pela colombiana Laura Mora Ortega, e que é baseada em fatos reais ocorridos na sua adolescência, uma jovem se aproxima perigosamente do sujeito que matou seu pai, meio que do nada.

Claro, como eu já disse, são experiências distintas - uma sul-americana, com todos os seus signos e códigos urbanos, de motos e asfaltos com seus barulhos urgentes; outra europeia, com elementos mais contemplativos, num cinema de espaços mais apertados e claustrofóbicos. No cerne esse aspecto de alguém que tem uma informação sobre o passado - e que poderá usá-la como uma forma de obter vantagem. Vingança? Talvez. Mas o caso é que as coisas podem ser mais complexas do que supõe a mera lógica do "bandido bom é bandido morto". No caso de Paula (Natasha Jaramilo), a protagonista de Matar Jesus, ela simplesmente assiste à morte do próprio pai, o carismático professor universitário de Ciências Políticas de Medellín, José Maria (Camilo Escobar), após um ataque perpetrado por uma dupla de sicários em uma moto. Sem uma resposta efetiva da polícia - não há sequer um suspeito, muito menos uma motivação -, Paula fica desalentada ao saber que o caso será arquivado.


 

Isso até uma noite em que Paula vai à boate com amigos. E esbarra justamente com Jesus (Giovanny Rodriguez), o jovem que, de acordo com as suas lembranças (ela pôde ver seu rosto de relance), foi o responsável pelo ato cruel. De forma discreta, ela tenta elaborar um plano para dar cabo do bandido. O que envolve uma aproximação, que avança para um estranho flerte - com um convite para a visita a um ponto mais ermo da cidade. Mas, se você não é um assassino, como você procede? Paula esconde em sua mochila, junto de seus equipamentos de fotografia - prática da qual ela é uma entusiasta -, uma garrafa quebrada. A tática pode dar cabo do rapaz? Sem muita certeza, ela mantém contato com um traficante das redondezas, um tal de Gato (Juan Camilo Cárdenas), que pode lhe ajudar a conseguir um revólver. Mas será que essa proximidade com esse outro espectro da criminalidade lhe fará bem? Até que ponto ela vai, tendo ainda o risco de ser descoberta?

Em meio a policiais corruptos, familiares preocupados e uma violência que parece se avizinhar a todo momento, em cada esquina da turbulenta cidade colombiana, a protagonista tenta juntar a coragem necessária para executar seu objetivo. Mas qual o sentido de continuar esse ciclo sem que tudo piore ainda mais? O delegado local, sugere que ela saia dali. Esqueça tudo o que aconteceu. Mas isso também é viável? Contrastando os figurinos coloridos, as luzes brilhantes da cidade ao anoitecer e as músicas hipnóticas e sensuais, com o cinza dos prédios e a crueza dos cenários de periferia, Laura Mora Ortega esmiuça o tecido social sem apelar para o maniqueísmo barato. Na realidade não há mocinhos e bandidos quando o sistema como um todo está um tanto falido. Quando um lado da cidade sofre de forma chocante com a realidade. Alguém precisará baixar a arma. Dar o primeiro passo. Pensar em algum tipo de redenção. E certamente não será um processo fácil.


segunda-feira, 22 de julho de 2024

Pitaquinho Musical - Cigarettes After Sex (X's)

Vamos combinar que, enquanto a imprensa musical (supostamente) especializada bate cabeça na busca por formas de deslegitimar a música feita pelos texanos do Cigarettes After Sex, a banda capitaneada por Greg Gonzalez segue firme no seu propósito de fazer com maestria a sua especialidade - no caso, canções sussurrantes, sensuais, de fim de madrugada à meia luz, que servem como a trilha sonora perfeita em meio a vinhos cheios de taninos e lençois de cetim com milhares de fios. Não, não há nada de diferente em X's - o terceiro registro de inéditas do trio -, que não tenha aparecido antes nos igualmente belos Cry (2019) e no homônimo trabalho de estreia, que veio ao mundo em 2017. Ok, de lá pra cá houve uma pandemia, o mundo mudou, o próprio Gonzalez passou pelo trauma de um rompimento amoroso. A música em si? Segue sofisticada, classuda, sensual e lânguida. Exatamente como aprendemos a amar.


 

Aliás, o número de streamings nas plataformas de áudio não mentem. O coletivo é um fenômeno de reproduções digitais - por mais monocórdico ou introspectivo que o grupo possa, eventualmente, soar. Isso não significa que não haja intensidade, emoção, ou algo mais poderoso nos versos. Mas o vocalista explica que o seu canto, especialmente nesse terceiro disco, vem de um "lugar de vulnerabilidade". "E eu gosto de coisas que me façam sentir gentil, especialmente se é música íntima. Eu estou canto de uma forma mais quieta porque é assim que você falaria com alguém se você estivesse abraçando a pessoa, segurando-a o mais próximo possível, falando nesses tons realmente silenciosos. É como uma carta de amor", explicou o músico em entrevista ao site Independent. O resultado é uma coleção de canções sobre a complexidade dos relacionamentos, românticas mas profundas, cheias de idas e vindas e bons refrãos, como comprovam as ótimas Silver Sable, Hideaway e Dark Vacay.

Nota: 8,5


Tesouros Cinéfilos - Nunca Fui Santa (But I'm a Cheerleader)

De: Jamie Babbit. Com Natasha Lyonne, Clea Duvall, Cathy Moriarty e RuPaul Charles. Comédia / Romance, EUA, 1999, 85 minutos.

Se em pleno 2024 o conceito de cura gay parece um tanto bizarro - a despeito do moralismo barato dos reacionários da extrema direita, e de seu pânico permanente diante de qualquer coisa que fuja da heteronormatividade -, no final dos anos 90 esse tipo de assunto talvez fosse menos comentado. O que, de forma paradoxal, amplia a potência desse divertidíssimo Nunca Fui Santa (But I'm a Cheerleader) - obra da diretora Jamie Babbit que se ocupa de parte dos clichês ligados a preconceitos propagados pelos "cidadãos de bem", para convertê-los em uma coleção de piadas debochadas. Dos cenários multicoloridos - com destaque para o rosa que, como diria a tal ministra, é a cor que as meninas usam -, passando pelos figurinos cafonas, até chegar aos diálogos caricatos, no cerne da experiência parece haver uma profunda crítica ao conservadorismo torpe e ao comportamento antiquado de uma parcela da sociedade.

Sim, a preocupação com a sexualidade alheia como uma espécie de mecanismo para lidar com as próprias frustrações quando o assunto é a intimidade, não é exclusividade dos extremistas de direita de hoje, que seguem figuras patéticas como Bolsonaro, Milei ou Trump. No passado, aliás, a situação era ainda pior, com os tais acampamentos para terapias de conversão sendo efetivamente levados a sério - como supostos espaços de cura para gays e lésbicas que, a partir de uma série de atividades, seriam capazes de reencontrar os seus caminhos (uma balela, aliás, sempre ligada à Igreja, a Cristo e ao seu provável ódio a qualquer ser de padrão desviante, como acreditam os religiosos mais fanáticos). E é pra um desses espaços que a jovem Megan Bloomfield (uma Natasha Lyonne bem novinha, antes do sucesso em Orange Is the New Black) - uma loirinha padrão que, de quebra, é líder de torcida - é enviada pelos pais, após ela dar alguns sinais de que, talvez, goste de pessoas do mesmo sexo.


 

Aliás, os tais sinais podem até ser estereotipados, mas são genuinamente engraçados. "Você tentou nos fazer comer tofu", afirma a mãe de Megan, enquanto esta é inquirida, como se a mera sugestão ao veganismo pudesse ser um indício de (des)orientação sexual. Na mesma sequência, o pai da jovem aponta para um cartaz de Melissa Etheridge e uma pintura de Georgia O'Keefe também como sinais de um certo pendor ao gayzismo - o mesmo valendo para as fotos de mulheres de biquíni mantidas no armário da escola. "Você sequer gosta de me beijar" reforça Jared (Brandt Wille), o namorado padrão da garota (e de fato ela não gosta). Toda essa intervenção é acompanhada de perto por Mike (RuPaul Charles, em um papel que só amplia o caráter iconoclasta e de autoironia do projeto), um ex-gay que agora trabalha na clínica apropriadamente chamada de True Directions, e que será um dos responsáveis pela recondução de Megan à heterossexualidade.

Tudo é exagerado e kitsch, com as etapas da suposta conversão de Megan - num esforço coordenado pela diretora meio fascistoide Mary Brown (Cathy Moriarty) - só a afastando mais da tal redescoberta de sua identidade de gênero. A ideia do espaço é a de promover uma série de tarefas - que envolvem desde meninos rachando lenha e meninas simulando a vida de donas de casa -, que as devolveria a esperada orientação sexual. Claro que a coisa vai dar errado, ainda mais quando Megan conhece a estudante Graham Eaton (Clea Duvall), uma garota cheia de personalidade e que parece mais confortável com seu lesbianismo, por quem ela se apaixonará. Orbitando as duas, uma série de outros jovens também participam do processo que, a cada novo acontecimento, só se mostra mais sem sentido - e é meio bizarro pensar que milhares de jovens foram enviados a esse tipo de acampamento em décadas passadas. Repudiado pela crítica na época do lançamento - aliás, como qualquer filme mais ousado de décadas anteriores -, o projeto, primeiro filme dirigido por Babbit, receberia anos depois status de cult (sendo exibido atualmente na Mubi). Vale redescobrir.


sexta-feira, 19 de julho de 2024

Novidades em Streaming - A Filha do Palhaço

De: Pedro Diógenes. Com Lis Sutter, Demick Lopes, Jupyra Carvalho e Jesuíta Barbosa. Drama, Brasil, 2022, 104 minutos.

"Um homem vai ao médico, diz que está deprimido. Afirma que a vida parece dura e cruel. Conta que se sente só num mundo ameaçador onde o que se anuncia é vago e incerto. O médico diz: 'O tratamento é simples. O grande palhaço Pagliacci está na cidade, assista ao espetáculo. Isso deve animá-lo.'O homem se desfaz em lágrimas e, após um tempo, diz: 'Mas, doutor... Eu sou o Pagliacci." Vamos combinar que o trecho acima, extraído de Watchmen - em um dos tantos instantes comoventes protagonizados pelo personagem Rorschach -, virou meio que um lugar comum, sendo replicado a todo momento na internet. Especialmente na era do meme, a figura do palhaço triste - alguém que, supostamente, deveria fazer uma plateia rir, mas que não consegue lidar com sua própria dor -, se torna uma caricatura quase óbvia. Fácil. Sendo reproduzida de forma meio literal no ótimo A Filha do Palhaço, do diretor Pedro Diógenes e que está disponível para aluguel no Now.

A trama é bastante simples, mas é daquelas que mexe com a gente. E que coloca em primeiro plano o contraste entre o riso e o choro, a alegria e a melancolia - como uma espécie de exercício de vida real bastante eficiente, de fácil identificação. Na abertura acompanhamos Renato (o ótimo Demick Lopes), um humorista que está no palco de um bar caracterizado como Silvanelly - uma drag queen meio desbocada, que faz aquele tipo de piada de tiozão. E que costuma arrancar gargalhadas dos fãs de programas como A Praça É Nossa. Com seu figurino multicolorido, maquiagem carregada e trejeitos exagerados, Silvanelly - que foi inspirada na Raimundinha, personagem interpretada pelo falecido Paulo Diógenes e que era bastante popular no Nordeste -, encerra sua apresentação em meio a aplausos tímidos e pouca empolgação. Só que, para Renato, o que era pra ser uma noite como qualquer outra, acaba virando de ponta cabeça com a chegada inesperada de sua filha, Joana (Lis Sutter).


 

E não demorará para que percebamos que essa é a típica história de tentativa de reconciliação entre pai e filha - apartados, no passado, por uma série de motivos. Cheia de dúvidas, a figura discreta de Joana entra de forma inesperada no mundo que contrasta cores exuberantes e sombras enevoadas de seu pai - que habita um apartamento minúsculo que, em alguma medida, escancara uma trajetória de luta e de superação de dificuldades. Aliás, dificuldades que só se apresentarão maiores - especialmente em uma sociedade ainda tão preconceituosa e intolerante como a nossa - a cada nova descoberta a respeito da trajetória do homem. O que teria motivado um abandono mais de uma década atrás? Há espaço para o perdão? Como lidar com esse vazio, esse lapso na conexão entre pai e filha que, agora distantes, tentam se aproximar mesmo tendo poucos vínculos? Com delicadeza, entre silêncios e tensões, esses nós serão aos poucos desatados. Sempre sem pressa, de forma comedida.

Hábil, o diretor converte a experiência com a obra em uma grande colagem de instantes delicados sobre um pai que busca se reaproximar - ainda que de maneiras meio tortas. Difícil não se emocionar quando o sujeito consegue, a pau e corda, uma TV de tubo meio antiga para que Joana possa se entreter assistindo algum filme em DVD (num daqueles paradoxos curiosos que envolvem pessoas oxigenadas em termos ideológicos, mas que parecem ultrapassadas quando o assunto é tecnologia). Ou quando a jovem defende o pai, em um episódio de homofobia. Joana vai para a casa do pai, sem que a mãe saiba. Aliás, mente pra ela a respeito de sua viagem. E descobre um universo culturalmente fervilhante - de teatro, de música, de literatura, de dança, de vida. A arte humaniza, aproxima. Une até mesmo aqueles que estavam afastados. Como fica claro no nostálgico momento em que a música Tô Fazendo Falta - clássico da virada do milênio na voz da Joanna -, é entoada pelos dois. Ao cabo, essa é uma obra sobre decisões nem sempre acertadas, arrependimentos e busca por redenção. Um conjunto que se torna ainda mais complexo para quem está à margem da sociedade.

Nota: 8,5


terça-feira, 16 de julho de 2024

Cinema - Clube dos Vândalos (The Bikeriders)

De: Jeff Nichols. Com Jodie Comer, Austin Butler, Tom Hardy, Michael Shannon e Mike Faist. Drama, EUA, 2023, 116 minutos.

Assim que finalizei Clube dos Vândalos (The Bikeriders) confesso a vocês que fiquei me perguntando a respeito do sentido desse filme ter sido feito - e, sim, eu tenho consciência plena de que a apreciação de um produto cultural não depende necessariamente disso. Não é preciso encontrar significado em tudo, especialmente quando o assunto é arte. Aliás, mais do que isso, a interpretação de cada pessoa dependerá de sua bagagem, experiências, vivências. Só que, aqui, rolou meio que uma sensação de vazio - e que talvez tenha a ver com o fato de que essa história ser excessivamente estadunidense. Ok, antes de os clubes de motociclistas funcionarem como uma espécie de antessala da extrema direita - no Brasil, em muitos casos, esses coletivos envolvem sujeitos bem nascidos que se reúnem para passeios "radicais" com suas Harley, enquanto reclamam do comunismo e das políticas sociais do governo Lula -, eles tiveram um embrião. E a minha dúvida era: esse tipo de comportamento sempre foi assim?

A resposta da produção dirigida por Jeff Nichols - de Loving (2016) -, parece ser: sim, sempre foi assim. Talvez com uma perspectiva um pouquinho diferente, mas sim. Quando surge nos anos 60, o Clube dos Vândalos - que existiu de verdade - era, sim, um grupo de adeptos da liberdade e da velocidade, que se reunia para conversas rasas, cervejadas, discussões acaloradas e brigas sem sentido. Mais ou menos como os bolsonaristas nos dias de hoje. Mas no seu embrião parecia haver uma espécie de código de conduta que, aqui e ali, foi se perdendo conforme a coisa foi crescendo. E gerando filiais nos mais variados estados norte-americanos. Que é quando a coisa descamba, a violência aumenta e o espírito aventureiro, à moda Sem Destino (1969), rock'n roll e contracultura, se esvai. E é justamente essa narrativa que é contada, em estilo documental, por Kathy (Jodie Comer), que conhece o integrante dos Vandals, Benny (Austin Butler, no modo James Dean das ideia), para se casar com ele apenas cinco anos depois.


 

A história é contada, em um arroubo metalinguístico, pelas lentes do fotógrafo Danny Lyon (Mike Faist, uma das estrelas do recente Rivais), que acompanha não apenas Kathy em seu relato, mas também os integrantes remanescentes do próprio grupo - entre eles o fundador Johnny (Tom Hardy, que entrega muito no papel do sujeito xucro, mas com algum senso de compaixão) e seu braço direito Brucie (Damon Herriman), que são orbitados ainda por outros integrantes da gangue, como o mal encarado Zipco (Michael Shannon) e o almofadinha Cal (Boyd Holbrook). Com idas e vindas no tempo, a narrativa contempla os desafios do grupo em se manter sólido, ao passo em que são desafiados por jovens supostamente rebeldes, que pretendem a todo o custo tomar o seu lugar de liderança - especialmente depois do surgimento de um sujeito irascível conhecido apenas como The Boy (Toby Wallace), que ameaça o grupo.

Em linhas gerais, o que o filme parece querer mostrar é como um coletivo pode simplesmente descambar se não estiver bem estruturado, organizado, talvez até com um estatuto bem consolidado, com tudo piorando em tempos de guerras (como a do Vietnã) e de incertezas sobre o futuro. Com tudo correndo meio solto não foi difícil de a coisa sair de um grupo de homens de meia idade, talvez meio insatisfeitos com alguma coisa, que são eventualmente misóginos e beberrões para um grupo de homens de meia idade, talvez meio insatisfeitos com alguma coisa, que são ainda mais misóginos e beberrões. Ao cabo, a motociata se converteria em um espelho extraído de Mussolini, para ser reconfigurado nos dias atuais como símbolo de uma extrema direita frustrada com os avanços do mundo. O que era contracultura e Born to Be Wild, do Steppenwolf nos anos 60, hoje em dia é preconceito, intolerância, óculos escuros, masculinidade tóxica e bandanas com os dizeres Make America Great Again. Se foi isso que Nichols quis mostrar, eu não consigo ter certeza. Entre a excêntrica camaradagem, os dentes podres, o ronco do motor e o barro e os homens que pretendem estuprar uma mulher em um bar a luz do dia, ou que quase decepam o pé de um suposto rival não parece haver muita diferença. É tudo meio parecido. Sem muito espaço para contradições.

Nota: 6,0


segunda-feira, 15 de julho de 2024

Cinema - Ainda Temos o Amanhã (C'è Ancora Domani)

De: Paola Cortellesi. Com Paola Cortellesi, Valerio Mastandrea, Emanuela Fanelli e Romana Vergano. Drama / Comédia, Itália, 2023, 118 minutos.

Em uma das tantas cenas cheias de significados de Ainda Temos o Amanhã (C'è Ancora Domani) está uma em que a sofrida protagonista Delia (Paola Cortellesi, que também dirige o projeto) está na fábrica de guarda-chuvas em que ela presta serviço. Seu chefe, um sujeito de modos rudes, a incumbe de ensinar o ofício a um jovem iniciante, que não parece muito satisfeito com o salário miserável que receberá no local. Conversa vai, conversa vem, Delia descobre que o rapaz vai ganhar mais do que ela - mesmo ela estando há três anos no local. Ao confrontar o patrão sobre o por quê disso, a resposta é direta, seca: "oras, porque ele é homem". Em linhas gerais esse é o tipo de instante que nos permite ter mais certeza a respeito do tipo de discussão que a diretora propõe: o de que o amanhã só poderá ser melhor se, em uma sociedade patriarcal, machista e misógina, forem aproveitadas todas as oportunidades que envolvam o futuro político, social e cultural de uma nação.

Na trama, o cenário é o ano de 1946, em uma Itália que pretende se reerguer no pós Segunda Guerra, em um cenário de devastação que era resultado da derrocada do fascismo. Delia é a mulher de meia idade típica do passado, que subsiste como uma dona de casa inferiorizada e insatisfeita, que é humilhada permanentemente pelo marido brutalizado e supostamente traumatizado pelo conflito - seu nome é Ivano (Valerio Mastandrea). E que, já na abertura do filme, desfere um tapa no rosto de Delia, ainda na cama, após um "bom dia" não bem recebido. As frustrações de Ivano - que parece ser aquele homem pequeno, conservador, fracassado e adepto da violência como moeda de troca - se espalham em outros integrantes masculinos da família, como é o caso do sogro Ottorino (Giorgio Colangeli), um decrépito e acamado idoso que, em meio a abusos à própria nora e certo saudosismo de Mussolini (como ocorre com o "cidadão de bem" médio), subsiste em meio a gritos e palavrões destinados a qualquer pessoa.


 

Delia sabe que, nesse cenário, sua vida talvez não mude. Ela já está próxima dos 50 anos e, a cada momento em que consegue escapar de casa para a realização de algum tipo de trabalho extra que lhe confira alguma renda - além da fábrica de guarda-chuvas, ela realiza costuras para lojas chiques e atua como enfermeira para famílias ricas -, ela vai juntando dinheiro, que pretende destinar a sua filha pós-adolescente Marcella (Romana Vergano). Grana para estudar? Nada. Estudar não é coisa para as mulheres - ao menos é o que pensam os homens da família de Delia. Seu sogro chega a lhe alertar de que ela "é uma boa esposa, só tem de aprender a ficar calada". O dinheiro servirá para a aquisição de um belo vestido de noiva, especialmente depois de Marcella conhecer Giullio (Francesco Centorame), um jovem bem nascido filho de um empresário da cidade. Mas será esse, de fato, o melhor "amanhã" para Marcella? Ser a dona de casa supostamente bem casada, que repetirá um ciclo?

Uma carta que chega a Delia de forma meio inesperada, poderá representar um despertar. Além desse bilhete, a protagonista tem em seu entorno uma improvisada rede de apoio, que lhe ajuda a alterar a sua percepção sobre o mundo - além da melhor amiga, a feirante Marisa (Emanuela Fanelli), há o vizinho e mecânico de automóveis Nino (Vinicio Marchioni) e o soldado afroamericano William (Yonv Joseph). Os temas envolvendo quebra de padrões, papel da mulher na sociedade e luta contra a opressão têm inegável impacto, que parece ampliado se levarmos em conta a fotografia em preto e branco, que torna o cenário mais áspero. Ainda assim há um quê de otimismo em relação ao futuro, especialmente quando se leva em conta o papel transformador da participação das mulheres na vida pública (de forma coletiva, organizada e buscando o melhor para si). É uma obra afetuosa e realista, que dialoga muito com o presente, e que foi a mais assistida da Itália no ano passado. Em um País que parece disposto a abraçar novamente o fascismo, como indicam algumas pesquisas de opinião, é um alento. 

Nota: 8,5


terça-feira, 9 de julho de 2024

Novidades em Streaming - Evidências do Amor

De: Pedro Antônio Paes. Com Sandy, Fábio Porchat, Evelyn Castro, Larissa Luz e Fernanda Paes Leme. Comédia / Romance, Brasil, 2024, 100 minutos.

Vamos combinar que a ideia por trás de Evidências do Amor é muito boa, afinal de contas a música de José Augusto que seria eternizada na voz da dupla Chitãozinho e Xororó, talvez seja, ao lado de Amigo Punk, da Graforreia Xilarmônica, a mais conhecida do País. E basta ir para uma festa com karaokê - qualquer festa, independente do tema -, e não vai demorar para que alguém se aventure nos versos pegajosos da canção, sem vergonha alguma de desafinar. É um verdadeiro Hino, adaptado para outros gêneros musicais - do pagode ao axé, passando pelo metal e até pelo rap (como fica claro já na sequência inicial, em que uma ótima montagem percorre os mais variados espaços onde a música é executada nos mais diversos estilos). Aliás, o karaokê em si é o ponto de partida dessa carismática comédia romântica dirigida por Pedro Antônio Paes. E que tem Evidências como elemento central.

Na trama, a médica Laura (Sandy, em excelente atuação) encontra por acaso o desenvolvedor de aplicativos Marco Antônio (Fábio Porchat, em uma entrega meio Fábio Porchat das ideias), em uma noite de festa. Ainda desconhecidos e, por uma enorme coincidência, solicitam ao mesmo tempo uma ficha para cantar no karaokê o clássico sertanejo. Claro que tudo não vai passar de uma desculpa para que Evidências se torne, como não poderia deixar de ser, a música de suas vidas. Especialmente depois de o casal se apaixonar, a despeito de suas diferenças - Marco Antônio é mais palhação, naquele estilo adolescente tardio que a gente vê em filmes do Adam Sandler, sempre com uma piadinha na ponta da língua, ao passo que Laura é mais centrada, a ponto de ter deixado meio de lado uma promissora carreira de cantora para se dedicar à medicina. Eles se gostam, óbvio. O tempo passa. Mas a coisa cansa. Desanda. E Laura resolve terminar com Marco Antônio por mensagem de celular, semanas antes do casamento, que já tinha data marcada.

 


 

Um salto temporal faz a história avançar um ano no tempo. Marco Antônio está bem no trabalho. Aliás, a frustração vivida no relacionamento faz ele criar um aplicativo que visa justamente facilitar a logística de casais que estão se separando. A rotina segue mais ou menos tranquila, entre cornetas matinais envolvendo a síndica do seu condomínio, Júlia (Evelyn Castro, que consegue ser naturalmente engraçada, o que é sempre um mérito), e o ideal de seguir em frente. Só que, em certo dia, o sujeito entra em um elevador em que o sistema de som - conectado a uma rádio popular - anuncia Evidências como a próxima canção a ser executada. Marco Antônio desmaia. E entra numa espécie de looping temporal em que ele volta no tempo para reviver algum acontecimento com a ex. E sempre será uma memória triste. Desconfortável. Em que ele não consegue enxergar com clareza os problemas. E o fato de Laura precisar lidar, muitas vezes, com a sua pior versão.

Ao cabo, essa curiosa mistura nacional de Feitiço do Tempo (1993), com Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004) é a famosa história de segunda chance, que costuma costurar as comédias românticas. Há espaço para tentar novamente? A gente já viu milhares de vezes a mesma narrativa, mas o fato de ser uma obra brasileira, que ainda se utiliza da popularidade de Evidências para a criação de uma mescla de ficção científica com sátira romântica torna tudo absolutamente prazeroso. Porchat pode ser meio histriônico em alguns momentos, mas tem um ótimo timing pra comédia, isso é inegável - e são muitas as sequências aparentemente improvisadas que funcionam bem (especialmente as com Evelyn, sua parceira de Porta dos Fundos). Já Sandy tem aquele estilo corpóreo meio retraído, que forma um bom contraponto à expansividade de Marco Antônio. É óbvio que não vai mudar o mundo. Mas tem seu charme. E quando sobem os créditos, a gente nem percebe que o tempo passou. Assim como já se passaram 35 anos do lançamento de Evidências. Que segue sendo amada não apenas no Brasil. Mas no mundo. E nessa loucuuuura!

Nota: 7,0


segunda-feira, 8 de julho de 2024

Pitaquinho Musical - The Decemberists (As It Ever Was, So It Will Be Again)

Quem acompanha a carreira dos americanos do The Decemberists, sabe que a banda andava devendo um álbum realmente bom desde, ao menos, o ótimo The King Is Dead (2011). Claro que a peteca nunca caiu, mas o aceno para um pop mais convencional nos trabalhos recentes - como no caso do pálido I'll Be Your Girl (2018) -, parece ter decepcionado os fãs mais antigos, que estavam acostumados àquele folk barroco que mais parecia saído da trilha sonora de alguma peça de teatro épica, em que narrativas grandiosas e melancólicas em igual medida pareciam o ponto de encontro perfeito entre florestas, cavaleiros, criaturas mágicas, fantasmas e caramanchões, com os aspectos mais mundanos da existência humana. Aliás, um tipo de união meio rara que sempre fez o som do coletivo soar único, quase no limite entre as melodias ensolaradas dos Beach Boys e os temas sombrios de um REM fase Automatic for the People (1992).

 

 

Aqui, esse expediente luminoso mas soturno, carnal mas abstrato, pode ser percebido já na abertura, com Burial Ground, uma canção com o DNA do Decemberists, de construção onírica e refrão pra cantar junto. Já Long White Veil pode ser uma música sobre a morte - ainda que de forma alegórica -, mas que possui uma polidez festiva irresistível, que acompanha uma letra sobre luto e superação (Eu casei com ela, eu a carreguei / No mesmo dia eu a enterrei). Claro que, aqui e ali, os temas lúgubres se sobrepõem, ainda que sempre com aquele brilho meio literário, como no caso da sombria Don't Go to the Woods e suas cordas pungentes, que se alternam com o acordeão comovente. Ou de The Black Maria, com a sua fluidez ondulante, conduzida pelos vocais luminosos de Colin Melroy. Ok, precisava terminar com uma música de quase 20 minutos, num flerte exagerado com o progressivo? Talvez não. Mas no nono álbum em mais de vinte anos de estrada, eles se dão ao direito.

Nota: 8,0