Talvez um pouquinho menos agitado como no anterior sketchy. (2021), mas ainda o Tune-Yards que conhecemos bem. Aliás, taí uma banda que faz o seu trabalho direitinho e, em muitos casos, acaba passando meio fora do radar. Bom, pra quem não conhece, a banda capitaneada por Merril Garbus faz uma mistura saborosíssima de folk psicodélico e pop experimental, com influências de afrobeat, hip hop e eletrônica - tudo isso servindo de base para letras políticas, eventualmente alegóricas, em que os temas mais íntimos, mais mundanos, servem como metáfora para questões mais amplas. O que pode ser comprovado em canções, como o ótimo single Limelight, que integra o recém lançado sexto álbum (e talvez o melhor da carreira) Better Dreaming.
Em Limelight, a letra ambígua (O bebê está bem, as crianças estão bem) conduz o ouvinte em meio a uma sonoridade sessentista, funky e quente, com batidas hipnóticas, vocais em loop e percussão pontuada por barulhinhos bem encaixados. Aliás, esse contraste entre as melodias festivas e o estilo primaveril frente aos versos potentes é uma marca registrada. "Esta (Limelight) quase não entrou no álbum porque parecia banal, especialmente considerando vários genocídios em todo o mundo e o impacto particular nas crianças", citou a artista no material de divulgação, comentando ainda a resposta positiva do público para que ela fosse inclusa no disco. Há uma série de outros momentos de brilho no registro, como nos casos da Heartbreak e na sofisticadíssima Get Through, forte candidata a ser uma das músicas do ano. Provavelmente Better Dreaming passará batido nas listas de final de ano. Mas faça um favor a você mesmo: não o ignore.
De: Amalia Ulman. Com Chloé Sevigny, Alex Wolff, Valeria Lois e Camila Del Campo. Comédia, Argentina / EUA / Reino Unido, 2025, 93 minutos.
Vamos combinar que Magic Farm consegue um feito raro: ser um filme nonsense sem nenhum tipo de apego à realidade. Sim, em linhas gerais o cinema excêntrico e que vai no limite do absurdo talvez não necessite de verossimilhança. Mas o caso é que acaba sendo totalmente incoerente assistir à uma equipe de filmagem tão ignorante acerca de seu próprio papel frente ao que pretendem retratar em vídeo. Ok, a ideia central talvez esteja justamente em evidenciar o quão alienado e despreparado é aquele coletivo - que acaba no interior da Argentina após uma confusão envolvendo o nome da cidade que eles procuram (San Cristóbal que, ao que tudo indica, se repete em todo e em qualquer País latino). Só que essa falta de organização travestida de preconceito colonialista vai escalando até o ponto da irritação, conforme a obra da diretora Amalia Ulman avança.
E preciso dizer que quando li a sinopse fiquei bastante animado com o que parecia ser uma produção que satirizava a exploração da mídia e esse ideal bastante contemporâneo da viralização a qualquer preço. Quando chegam à San Cristóbal, o grupo liderado por Edna (Chloé Sevigny), que realiza uma série sobre subculturas diferentonas ao redor do mundo, está atrás de um músico que se veste com orelhas de coelho e que responde pelo nome bastante sugestivo de Super Carlitos. Sim, isso mesmo. Só que, como dito, eles dão com os burros na água justamente por não terem se estabelecido no local correto. E pra não desperdiçar a pauta (ou algo do tipo) e as diárias já contratadas na improvisada pousada capitaneada por um carismático recepcionista (Guillermo Jacubowicz), eles resolvem percorrer o vilarejo atrás de alguma boa história que possa render pra série.
Tudo parece promissor quando a obra inicia, com um estilo de filmagem pouco óbvio do ponto de vista estético e com o uso de cores berrantes, que contrastam com a melancolia provinciana e letárgica dessa pequena comunidade rural argentina. Só que o poderia ser a deixa óbvia para uma série de comentários bem humorados sobre diferenças culturais entre nova iorquinos bem nascidos em contraste com interioranos raiz, logo apela para a obviedade galopante sobre o excesso de cachorros da região, a ausência de uma infraestrutura mais adequada para atender os caprichos daqueles sujeitos ou o uso de roupas excessivamente de grife em estradas de chão poeirentas. Edna está acompanhada de uma equipe de produtores estúpida e mesquinha (pra não dizer escrota), que bate cabeça, enquanto se aproxima de forma entortada dos habitantes locais - como no caso de Popa (Valeria Lois) e sua filha Manchi (Camila Del Campo), que deixa o produtor Jeff (Alex Wolff) caidinho de paixão (ao menos até a hora de eles irem para os "finalmentes").
Além de Jeff, a própria Amalia no papel de Elena funciona como a intérprete do grupo, mediando as conversas entre os nativos e a equipe, o que auxiliará na fabricação de um documentário forjado a respeito de um novo culto religioso, com pessoas que utilizam um adereço bastante peculiar sobre a cabeça. Que a pior equipe de produção do planeta não perceba onde verdadeiramente estava a pauta - os moradores da região sofrendo permanentemente com a pulverização de agrotóxicos, inclusive espalhados por aviões (o que resulta em pessoas com deformações, deficiências e outros problemas), é só a cereja do bolo desse ambiente de alienação que povoa as redes sociais na atualidade (com sua presunção torpe, falta de criatividade e ignorância sobre tudo que não está em volta do próprio umbigo). Essa acaba por ser a parte mais efetiva ao final. O que não salva a experiência do mero escapismo tolo e tedioso, que nunca aprofunda as suas questões.
De: Petra Costa. Com Silas Malafaia, Sóstenes Cavalcante, Lula e Jair Bolsonato. Documentário / Drama, Brasil / EUA / Dinamarca, 2025, 109 minutos.
Em uma das tantas cenas impactantes de Apocalipse nos Trópicos estamos no fatídico 8 de janeiro de 2023. Após as "velhinhas de Bíblia na mão" invadirem e destruírem a sede dos três poderes, um grupo é filmado no interior do prédio do Supremo Tribunal Federal (STF) ajoelhado, mãos em concha, rezando. Em meio aos escombros, à fumaça e ao caos completo reforçado pela câmera trepidante, o que se vê parece uma cena saída de uma distopia estranha sobre uma seita fundamentalista que toma o poder. Zumbificadas, alienadas em sua forma mais extrema, aquelas pessoas entoam cânticos e clamam a Deus - ao seu Deus, aquele que elas idealizam - por algum tipo de salvação. Ao cabo, a guerra não é entre esquerda ou direita - ou sobre qualquer outro campo do espectro democrático. A batalha é do bem contra o mal. Ou ao menos é essa a ideia que vem sendo vendida pelos setores mais reacionários da Igreja Evangélica. E que tem sido replicado junto a uma população de crentes que mais do que quintuplicou nas últimas décadas.
E é partindo disso que a documentarista Petra Costa - do igualmente imperdível Democracia em Vertigem (2019) - traça um panorama de como a influência dos evangélicos têm sido determinante para as decisões políticas de nosso País nos anos recentes, com o aumento considerável de integrantes da chamada Bancada da Bíblia, no Congresso; a eleição de Jair Bolsonaro em 2018 (um ungido do Senhor, uma espécie de escolhido por Deus para livrar a população de todo o mal, ao menos de acordo com esses profetas da modernidade) e até a indicação de um integrante do STF que receberia a sugestiva alcunha de "terrivelmente evangélico", no caso André Mendonça. Um conjunto de ações que teve (e tem) como objetivo barrar qualquer avanço do espectro progressista - seja em questões sociais, trabalhistas ou de costumes -, mas combater também o mais famoso fantasma dos delírios da extrema direita: o do comunismo. E que tantas pessoas - muitas delas trabalhadoras, periféricas, vulneráveis -embarquem nessa jornada delirante de fanatismo, é algo que entristece. Ainda que não surpreenda.
Centrando a narrativa na figura do pastor Silas Malafaia, a quem Petra acompanha de perto - com direito a entrevistas em sua casa, carro ou jatinho particular (uma ninharia de R$ 1,4 milhões, que a mídia insiste em dizer que custa muito mais, o que seria uma injustiça de acordo com o líder evangélico) - a cineasta constrói um painel sobre como esse grande espectro político tem no pânico moral - com seus banheiros povoados por trans e abortistas depravadas, além de kits gays e mamadeiras de piroca sendo fartamente distribuídos pela esquerda às crianças nas escolas, contagiando-as com suas ideologias dissonantes - uma de suas grandes forças. Em certa altura da produção uma mulher de origem humilde é questionada sobre em quem votaria nas eleições de 2022. "Eu até acho que o Lula tem coisas boas, mas não posso votar nele por causa da minha crença", pondera. Já a sua filha parece revelar um voto envergonhado em Lula. "Ainda que eu não goste dessa história de banheiro unissex", verbaliza. Sim, o impacto é inegável. E decisivo para o voto.
Com uma grande riqueza de imagens de arquivo - algumas já conhecidas, outras inéditas - a realizadora explica ainda como a ascensão evangélica se deu também por influência de líderes carismáticos dos Estados Unidos, que desde o governo Reagan e o ambiente da Guerra Fria já estabelecia esse campo de batalha de nós contra eles como um ideal de colonialismo teológico, que tinha também como objetivo central desmobilizar a Teologia da Libertação, que surgiria na América Latina como uma resposta da Igreja Católica com o objetivo de interpretar os ensinamentos de Jesus à luz da justiça social, e que seria oposta à opressão. O contrário do que prevê um ideal pautado por Deus e o Diabo em sua acepção mais simples do ponto de vista maniqueísta, que utiliza a fé como fachada para um laboratório brutal de capitalismo tardio. E não é por acaso que, para além do filme, as tais igrejas church, com seus legendários, coachs do abstrato, jogos de azar e individualismo atroz parecem o incubatório perfeito para a extrema direita vigente nos nossos tempos.
Em alguma medida o filme de Petra, dividido em seis partes com nomes bíblicos sugestivos - Deus nos Tempos do Cólera, Domínio, Gênesis - é ao mesmo tempo melancólico e preocupante, mas também esperançoso e iluminado. E confesso que me comovi ao reassistir as cenas da vitória de Lula em 2022, sob a desconfiança de todos e a crença cega, inclusive de Malafaia, de que sem a ajuda da Igreja Evangélica, que representa atualmente cerca de 30% da população atual, ele não venceria. E isso depois de todo o descalabro da pandemia, com mais de 700 mil mortes - muitas delas ocorridas por atraso na compra das vacinas (o que é lembrado na produção como mais um efeito colateral danoso desse segmento que, ao invés de acreditar na ciência, optava por delírios que envolviam greves de fome, orações e outros subterfúgios sem nenhum efeito do ponto de vista prático). Talvez para alguns espectadores, a obra não represente nenhuma grande novidade no espírito dos tempos atuais - de um Brasil que, por muito pouco, não descambou para uma versão piorada do impressionante Divino Amor (2019), filme de Gabriel Mascaro. Mas há perigos que não podem ser esquecidos. Ou ignorados. E isso Petra faz muito bem - ainda que seja importante mencionar o fato de a obra se empenhar em evidenciar o fato de haver um outro lado, quase desconhecido, de líderes evangélicos que abominam os métodos de Malafaia e sua gangue. Ainda assim, já diria Brecht, "o fascismo é uma cadela sempre no cio". E essa cadela receberá, muito provavelmente, a bênção de algum pastor. Sempre perto da urna mais próxima.
De: Kohel Igarashi. Com Hiroki Sano, Nairu Yamamoto, Yoshinori Miyata e Hoang Nh Quynh. Romance / Drama, Japão / França, 2024, 94 minutos.
Existe uma cena bem no comecinho de Super Happy Forever e que envolve uma placa fixada em um hotel. O cartaz em questão avisa que a hospedagem fechará dali a um mês. Só que, nesse ponto, já fica claro pro espectador que essa ideia de encerramento, de conclusão - de ciclos, de etapas, de relacionamentos -, não é apenas simbólico. Há algo no marasmo meio acinzentado daquela praia não muito acolhedora que grita uma certa melancolia do fim. A pandemia passou, mas as pessoas ainda estão de máscara. Espaços estão encerrando atividades, por falta de público será? Ou porque no mundo a vida é meio que feita disso mesmo? De transformações, de mudanças, de memórias que ficam enquanto novas se criam? Sim, pode parecer excessivamente filosófico para uma resenha sobre uma obra alternativa e agridoce do cinema japonês, mas o caso é que esses pontos começam a se conectar sem muita demora.
Sano (Hiroki Sano) está de luto. Mas, mesmo assim, resolve acompanhar o melhor amigo Miyata (Yoshinori Miyata) em uma viagem justamente para o resort de luxo em que conheceu, cinco anos atrás, a sua falecida esposa Nagi (Nairu Yamamoto). Sano está naquele estágio meio ranzinza, meio melancólico, de quem viveu uma perda que pesa uma tonelada nos ombros, enquanto percorre a orla em uma investigação particular - como se buscasse algum objeto, algum fragmento de algo que pudesse lhe remeter àqueles dias vividos cinco anos atrás. O que envolve o mesmo quarto de hotel, a mesma vista, o mesmo restaurante que, agora, jaz solitário, com as portas cerradas. Na caminhada pela praia, o rapaz tem a impressão de ver o boné perdido de sua amada, nunca mais encontrado. A negativa a respeito só lhe enfurece mais. Uma ligação esquisita faz com que ele arremesse o celular no mar.
Já Miyata tá ali pra uma espécie de seminário de autoajuda - com palestras de nomes sugestivos como Super Happy Forever, que não fariam feio na cartilha do mais novo coach abstrato a tentar enganar um grupo de seguidores incautos. Aliás, o tipo de coisa que enoja ainda mais Sano, que não consegue não responder de forma ríspida, um tanto debochada, quando o amigo convida duas outras cursistas para sentarem a sua mesa. Não demora para que o papo derive para as coincidências do mundo ou os problemas de uma sociedade tão materialista. Tudo parece meio vazio pro protagonista atormentado. Que não consegue não ser mais do que honesto ao falar sobre a relação que não existe mais: "Nagi não era feliz. Eu era muito covarde e egoísta". O tipo de franqueza que faz com que fique evidente também um certo remorso. Que avança para a alegoria no fato de Nagi ter simplesmente morrido dormindo, mesmo sendo alguém tão jovem. Uma morte simbólica e real em igual medida - como muitas vezes ocorre para casais que se formam para, mais tarde, com o desaparecimento do encanto inicial, se desfazerem.
Na segunda metade a trama recua para 2018, justamente para o dia em que Nagi e Sano se conhecem. Com a ação centrada na jovem, não demora para que compreendamos o encanto do protagonista. Nagi fica chateada por um encontro com uma amiga que lhe dá um bolo - mas aceita percorrer a cidade com Sano e Miyata para um almoço, seguido de um passeio, uma conversa prazerosa e uma ida a uma danceteria. Quase aquele ideal juvenil de primeiros encontros em que tudo o que temos de fazer é sermos felizes, viver o momento. Ao cabo tudo é muito simples, ainda que a narrativa seja pontuada por instantes singelos, como aqueles em que Nagi auxilia a vietnamita An (Hoang Nh Quynh), que deixa seu almoço cair no chão. An terá papel importante mais tarde, especialmente após as duas fazerem amizade, o que será marcado ainda pela onipresença da canção Beyond the Sea, de Bobby Darin. O sentimento ao final será ambíguo, já que a felicidade pode ter outro significado.
Vamos combinar que não é preciso nem concluir a audição da instrumental Gênesis - que abre Um Mar Pra Cada Um, o quarto disco da baiana Luedji Luna -, para que saibamos estar diante de algo que não é apenas música. A cacofonia que aparenta ser excessivamente caótica e que une de forma meio torta sopros, piano e baixo revela um paradoxo já que já que reserva ao ouvinte um tipo de acolhimento - por mais estranha que a canção soe. Uma experiência sensorial que faz com que adentremos de forma lenta nesse universo complexo, sofisticado e íntimo, que nos absorverá pelos próximos quarenta e poucos minutos. "Eu percebi que o som é potente. O som mobiliza a gente de várias maneiras. Ele é transformador, ele é curativo, ele altera a consciência, ele altera a nossa psique. Ele, enfim, altera até questões mesmo físicas", explicou em entrevista para o Tenho Mais Discos Que Amigos, como que resumido o conceito do registro.
Para a artista, o processo de fazer música não requer pressa. O mesmo valendo para o seu consumo, já que esse é o tipo de trabalho que, naturalmente, cresce a cada nova audição. Evidentemente que, assim como ocorreu com o fenomenal Bom Mesmo É Estar Debaixo da Água - o nosso preferido na lista de melhores de 2020 -, a mescla de neosoul, jazz, R&B e ritmos africanos - segue central no projeto. Por mais romanticamente torto que sua poesia soe. "Eu tô indo pra um lugar muito menos superficial que esse, que é essa paisagem. Tô indo pra um lugar mais profundo. Eu tô investigando o mar invisível. Eu tô investigando o mar abissal", revelou na mesma entrevista. O resultado são músicas preenchidas por metáforas oceânicas, aquáticas, em que memórias, encontros e lugares se espalham em instantes de vulnerabilidade, mas também de força. O que pode ser percebido em joias como Kyoto (Meu coração é uma bussola, me diz onde é que te encontro) ou na irresistível Harém (Na boca da noite o vento me trouxe notícia velha), que tem participação de Liniker. Pra colocar no repeat até dizer chega.
De: Maura Delpero. Com Martina Scrinzi, Giuseppe De Domenico, Tommaso Ragno e Rachele Potrich. Drama, Itália / França / Bélgica, 2024, 119 minutos.
Guerras, fanatismo religioso, patriarcado, autoritarismo. Vamos combinar que essa trinca pode até parecer um resumo do mundo em 2025, mas não. No caso de Vermiglio: A Noiva da Montanha (Vermiglio), filme da diretora Maura Delpero que estreia nesta semana nos cinemas, trata-se apenas da Itália nos anos 40. O cenário é uma remota (e gelada) aldeia nas montanhas onde uma numerosa família se ocupa de atividades cotidianas típicas do meio rural - tirar leite das vacas, juntar lenha, buscar água no poço. É aquela rotina que até hoje vemos em pequenas comunidades do campo, que possuem sua própria lógica de funcionamento, enquanto lá fora, à uma certa distância, o mundo acontece. Só que tem vezes que esse universo meio paralelo encontra uma brecha que perturba aquele dia a dia ordinário - e que, aqui, é representado pela chegada inesperada de Pietro (Giuseppe De Domenico), um jovem e taciturno soldado, que está em fuga da guerra.
Da forma como a narrativa é construída, em estilo fragmentado - os silêncios são inúmeros, bem como os longos planos em que a ação ocorre ao fundo, de forma quase abstrata, enquanto a neve oprime - caberá ao espectador ir meio que montando o quebra-cabeças daquilo que se acompanha. Ao chegar no local, Pietro é saudado pela família de Cesare (Tommaso Ragno), um sisudo professor local, por ter salvo Attilio (Santiago Fondevila), carregando-os nos ombros diretamente do front. O ato heroico ganha tração no povoado - para muitos uma atitude digna. Já para outros, parece haver certa vergonha no ato de desertar. "Talvez se todos fossem covardes não haveria mais guerra" comenta alguém em certa altura. Para a jovem Lucia (Martina Scrinzi), uma das filhas de Cesare, há um outro interesse, que pode ser percebido em seus olhares claudicantes: ela se apaixona por Pietro.
Em linhas gerais essa poderia ser uma história mais ou menos simples sobre o amor nos tempos de guerra - e sobre como tudo pode ser mais complexo do que, de fato, é, em tempos brutos. Mas o filme de Delpero, que é inspirado nas memórias da juventude da realizadora, guarda um espaço interessante para, de forma sofisticada e sutil, discutir uma série de temas que seguem mais do que relevantes nos dias atuais. Irmã de Lucia, a adolescente Ada (Rachele Potrich) claramente sofre por jamais poder verbalizar o seu amor pela amiga Virginia (Carlotta Gamba) - o que seria um escândalo em um espaço tão conservador e misógino em que as expectativas sobre as mulheres recaem apenas em um projeto: o de servirem de depósito de filhos para os seus maridos (sim, duro, mas real). A própria Ada, assim que conclui seus estudos, ouve de Cesare uma sentença dita com um naturalismo sufocante: "sua trajetória escolar termina aqui". Isso depois de ter sido aprovada em disciplinas, como, Economia Doméstica.
A própria Adele (Roberta Rovelli), esposa de Cesare, sequer tem tempo de ser efetivamente consolada quando um de seus filhos simplesmente morre. Já há mais um na barriga - o décimo, que deve nascer em breve. E por mais respeitado que Cesare possa ser por seus pares a sua incorrigível rigidez se apresenta como uma de suas tantas falhas, como no caso do episódio da aquisição dos discos de Vivaldi (e as quatro estações que fluem de forma inexorável soam apenas trágicas quando percebemos que as mulheres não têm nenhum poder de decisão sobre questões financeiras). Triste, gélido, surpreendente (especialmente no terço final) e contemplativo, esse é aquele tipo de projeto que nem sempre é fácil. Há uma ambientação vagarosa, de trilha sonora mínima e uma dinâmica de filmagem pouco convencional e de quadros demorados. Mas o que fica dessa obra que foi a enviada da Itália ao Oscar desse ano, são as mensagens das entrelinhas, como no momento em que Ada revela à sua irmã Flavia (Anna Thaler), os motivos pelos quais gostaria de ser padre. "Para poder aplicar penitências?", pergunta a pequena. "Não. Para poder ser ouvida sem ser interrompida". Uma das tantas lições.
De: Agathe Riedinger. Com Malou Khebizi, Idir Azougli, Andréa Bescond e Léa Gorla. Drama, França, 2024, 103 minutos.
"Eu já me decidi. Vou ficar famosa e vou ter dinheiro". Diamante Bruto (Diamant Brut), a ótima estreia da diretora Agathe Riedinger, já passa da metade quando a protagonista Liane (Malou Khebizi) diz a frase que abre esse texto, com uma convicção comovente. Ela está em um consultório, onde um médico lhe explica as opções de próteses de silicone para o bumbum. Quais os tipos, os efeitos alcançados, os investimentos. Liane, uma jovem infliuencer de 19 anos que nem ainda teve as suas primeiras experiências sexuais direito, está convicta de que precisa daquilo. Para melhorar sua imagem - mesmo que, aos nossos olhos não haja nada que necessite melhoria ali. Só que a jovem precisa mais. Mais validação. Mais carinho de um público que está interessado apenas na sua aparência, no seu decote, na sua barriga a mostra, nas pernas e nos pés (machucados) sempre em um salto alto. É um efeito dos complexos tempos atuais: a fama tem um preço. E ele pode ser caro de muitas formas.
Há outras frases de efeito ditas por Liane nos transcorrer da narrativa e, muitas delas, são muito verdadeiras em sua mentalidade ainda em formação. Uma mentalidade em que plataformas de exposição como o Tik Tok funcionam como uma pequena bomba relógio em vias de explodir, quando o assunto é a saúde mental dos usuários. "Se você é bonita, as pessoas te admiram" ou "eu sei que não sou comum", são algumas das sentenças verbalizadas pela nossa anti-heroína que, ao cabo, só deseja ser conhecida a todo o custo. Não por mera vaidade, aparentemente. Mas também por acreditar que esse possa ser um caminho para que, de fato, a sua vida mude. Pra que ela saia de uma vida marginal, em que mora com a mãe narcisista e a irmã mais nova devota, indo daqui pra lá em meio a bicos feitos com produtos roubados. Aos poucos mais de 10 mil seguidores nas redes sociais, ela entrega dancinhas e performances generalistas com roupas mínimas - o que, em muitos casos, pode ser o suficiente para o acesso a algum tipo de fama.
Como muitas que estão nessa segunda divisão do universo dos influencers - sem ainda uma capacidade de monetizar a contento no mercado publicitário, e sem um público mais cativo que lhe consuma para além do fetichismo voyeur -, o caminho para o estrelato ainda passa por alcançar outros espaços. Que possam gerar um status a mais. No caso de Liane, o seu desejo nem tão secreto é poder participar de algum reality show televisivo de gosto duvidoso - e é exatamente o que ocorre quando ela faz um teste para o excêntrico programa Miracle Island Miami. Que, no mundo real, nem parece tão atrativo assim, já que o salário por dois meses de trabalho alcança, com muito bom gosto, os cinco mil euros - com exigências que vão de muita exibição do corpo e um comportamento disposto para o conflito e para certo hedonismo pervertido ("não queremos nenhuma santa", alerta a produtora). Ah, fora o fato de os apresentadores terem um histórico de assédio e violências contra as mulheres. Um "detalhezinho".
Importante dizer que Agathe é hábil em não julgar a protagonista - que parece sim ter alguma compreensão dos papeis de gênero e do machismo que a rodeia (como na repulsiva sequência do metrô, ainda no início, ou na distância que preserva do onipresente amigo de infância Dino, vivido por Adir Azougli) -, a inserindo no papel de desajustada que luta por aquilo que, de fato, ela acredita. E como ela acredita. Como se fosse uma personagem de Sean Baker em uma experiência onírica e nebulosa que retira da França o seu glamour meio natural, Liane se converte em uma representação da potência e da persistência frente a certos ideais - mesmo que, para os cidadãos de bem conservadores, esses ideais possam parecer meio difusos. Uma bunda e um par de seios mais volumosos que a façam chegar perto daquilo que ela deseja? Que seja. O Tik Tok está descaralhando uma galera da cabeça e é fundamental que não se perca de vista os efeitos malignos em jovens, que se sentem inadequadas ou insatisfeitas com seus corpos, ou que buscam validação o tempo inteiro. Liane não é a vilã. Ela é apenas alguém tentando jogar o jogo. Com aquilo que ele oferece. E talvez seja por isso que a gente se sinta tão feliz por ela no frame final.
De: Emmanuel Mouret. Com India Hair, Camille Cottin, Sara Forestier e Damien Bonnard. Comédia / Romance, França, 2024, 117 minutos.
[ATENÇÃO: TEXTO COM ALGUNS SPOILERS]
"E se meu coração não tivesse mudado?".
Vamos combinar que não há nenhuma grande novidade no que diz respeito à análise das complexidades que envolvem as paixões, em Três Irmãs (Trois Amies). Sim, amar não é uma ciência exata, cartesiana e muitos filmes já trataram disso com maestria. Só que essa obra aqui tem carisma de sobra pra segurar o espectador, ou pra nos envolver em alguma medida. Ao cabo há um charme meio torto no todo - especialmente quando descobrimos o segredo eventualmente machadiano, que envolve o narrador da história. Sim, o filme é sobre três amigas e suas andanças, mas o ponto de ligação de tudo é o professor Victor (Vincent Macaigne), que está devastado após a sua amada Joan (India Hair) revelar a ele que não o ama mais. Simplesmente meio que acabou a paixão e ela não sabe muito bem como lidar. Victor é carinhoso, devoto, verbaliza o quanto gosta dela, da família que construíram, da convivência. Mas não basta.
E, muito provavelmente, vocês que leem essas poucas linhas já sabem disso: não há lógica. Se houvesse uma espécie de equipamento de medida do quão apaixonados estamos por nossos pares, ele certamente variaria de um dia para o outro, de uma semana para a outra. Se alteraria com a passagem do tempo, a chegada dos filhos, a rotina. Somos seres de personalidade labiríntica, que respondem a estímulos variados no cotidiano. Joan, que leciona na mesma escola de Victor, garante à amiga Alice (Camille Cottin) que ela não deixou de gostar do marido. Ela tem apreço por ele. Que parece, de fato, alguém generoso, carinhoso. Mas como a gente lida quando aquele brilho, ou aquela admiração parece nos escapar? Lida, sei lá, vivendo talvez. Joan revela ao marido os seus dilemas e uma tragédia acaba ocorrendo, com ela se culpando. Uma sensação que só começa a se dissipar com a presença do docente que justamente substitui seu ex no educandário - seu nome é Thomas (Damien Bonnard).
Aliás, não demora para que percebamos que Thomas está caidinho de paixões por Joan - ele a apoia em seu luto e respeita o seu tempo de depuração. Ela não parece estar interessada em um relacionamento agora. Quer dizer, ao menos até o surgimento de Martin (Mathieu Metral), um colega de Thomas que surge para dividir o apartamento com ele. Mais impetuoso do que o companheiro, Martin tem a ousadia de se aproximar de Joan que cede. Aquela coisa de não estar preparada pra um novo relacionamento, cai por terra. E a gente sabe: esse papo só cola porque a pessoa "certa" ainda não pintou. E até aqui você já percebeu que a narrativa parece percorrer uma lógica que lembra o poema Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade (aquele do João que amava Teresa, que amava Raimundo e por aí vai). E é mais ou menos isso que vai se descortinando, com cada qual respondendo de forma nem sempre esperada.
Sobre Alice, bom lembrar que ela parece ter um relacionamento perfeito adequado (não exatamente fervoroso) com Éric (Gregoire Ludig). Mas as aparências enganam, já que o sujeito está, justamente, tendo um caso com a terceira amiga desse triângulo nada óbvio - seu nome é Rebecca (Sara Forestier). Sem que a amiga saiba, claro. Para os mais puristas ou conservadores, a naturalidade com que as traições, as trocas de casais e as mentiras acontecem podem incomodar. Ninguém é muito afeito a monogamia ali e, de certa forma, isso também pode evidenciar, do ponto de vista alegórico, o quão perdidos parecem os millenials, em meio a filhos que já cresceram (ou não existem), relacionamento mais longos que começam a se despedaçar sem muita explicação ou as exigências do mercado que também nos consomem. É um filme interessante, agridoce e leve.