sexta-feira, 29 de julho de 2022

Picanha em Série - Barry (Temporadas 1-3)

De: Alec Berg e Bill Hader. Com Bill Hader, Sarah Goldberg, Henry Winkler, Stephen Root e Anthony Carrigan. Comédia / Policial, EUA, 3 Temporadas, 2018-2022.

Vamos combinar que a premissa de Barry, exibida pela HBO Max, não poderia ser melhor. Na trama acompanhamos Barry Berkman (Bill Hader), um veterano da guerra do Afeganistão que, de volta aos Estados Unidos, atua como assassino de aluguel. Designado para um "trabalho" em Los Angeles - matar um personal trainer de nome Ryan (Tyler Jacob Moore), que seria o pivô de uma traição amorosa envolvendo alguém da máfia chechena -, Barry acabará em uma escola de teatro onde, por vias meio inesperadas, se incorporará ao grupo de atuação coordenado pelo excêntrico Gene Cousineau (Gene Winkler). No local, após uma aula improvisada, ele conhecerá a jovem aspirante a atriz Sally Reed (Sarah Goldberg, em ótima caracterização) e, bom, maravilhado com encantador mundo das artes ele passará, naturalmente, a se questionar sobre o seu propósito de vida. E, óbvio, se retirar do mundo do crime não será tarefa tão fácil, afinal, o rastro de violência o acompanhará. O que colocará em risco as pessoas ao seu redor.

E, é preciso que se diga que, a despeito dos componentes policialescos e de mistério de cada um dos 24 episódios distribuídos em três temporadas, o que temos aqui é uma excelente série de humor. Isso explica, por exemplo, o comportamento histriônico e cheio de ambiguidades de figuras como Monroe Fuches (Stephen Root) e NoHo Hank (Antonio Carriga) dois criminosos que vão no limite do cômico e do trágico com suas ações. E que serão os responsáveis por dificultar a saída de Barry desse contexto de violência. Fuches é o contratante do protagonista. NoHo é alguém que ficará incomodado quando, ainda no primeiro episódio, Barry encontrar  alguma dificuldade para colocar em prática o assassinato de Ryan. O resultado do impasse será o sequestro de Barry e Fuches pelos chechenos, sendo a salvação para ambos executar um último crime, que envolve a morte de um rival do cartel da Bolívia. Claro, tudo uma ótima desculpa pra manter esses universos tão distantes - o das artes e o do crime - de alguma forma conectados.

Em meio a tudo haverá ainda a onipresença dos investigadores de polícia Janice Moss (Paula Newesome) e Loach (John Pirruccello), que se empenham em juntar as pistas sobre a morte de Ryan: eles sabem que a máfia chechena está por trás, mas também parecem desconfiar de que há algo errado na história toda que, como não poderia deixar de ser, respingará em Cousineau e nos demais alunos, dos quais Ryan era colega (incluindo, obviamente, Barry). E tudo piorará quando o veterano professor de teatro se apaixonar por Janice. Indo de lá pra cá, o roteiro acompanha a rotina dos integrantes da escola de atores - especialmente Sally e sua eterna ambição em ser uma atriz de renome (o que envolve um sem fim de audiências fracassadas em emissoras de TV e atrações pouco empolgantes) -, enquanto Barry luta para manter a sua vida dupla em segredo. E não é preciso ser nenhum adivinho pra saber que, lá pelas tantas, a coisa desanda. E as linhas que correm em paralelo se encontram.

Divertida, caótica, levemente iconoclasta, a série já recebeu mais de 40 indicações ao Emmy. Misturando interpretações de Shakespeare com piadinhas sobre um bandido que se comunica apenas por gifs animados com imagens de gatinhos a atração discute, aqui e ali, questões morais e como certas decisões podem impactar a vida dos envolvidos - e as sequências de flashback de Barry na guerra, nos auxiliarão a compreender quais os seus traumas e, consequentemente, as suas motivações. Melhorando a cada temporada, a série chega a terceira em seu auge - o que pode ser comprovado pela hilariante sequência em que o protagonista utiliza um aplicativo para detonar uma bomba (sem muito sucesso) ou mesmo na ótima cena em que Sarah descobre que o show que ela protagoniza é cancelado pela plataforma de streaming que detém os direitos, apenas 12 horas depois de lançado (o que evidencia a dinâmica cruel da busca incessante por cliques que move a indústria de consumo moderna de cultura). Ninguém quer ter, afinal, uma sentença de morte decretada nesse meio. Mas, para evitá-las será necessário mais do que grandes interpretações.


quinta-feira, 28 de julho de 2022

Novidades em Streaming - Los Lobos

De: Samuel Kishi Leopo. Com Maximiliano Nájar Márquez, Leonardo Nájar Márquez, Martha Lorena Reyes e Cici Lau. Drama, México, 2020, 95 minutos.

Existe um quê de Projeto Florida (2017) no tom melancólico desse Los Lobos, pequena joia do cinema mexicano que receberia o Prêmio do Júri no Festival de Berlim do ano passado (e que está disponível na HBO Max). Talvez tenha a ver com a onipresença dos pequenos Max (Maximiliano Nájar Márquez) e Leo (Leonardo Nájar Márquez), dois irmãos de oito e cinco anos que cruzam a fronteira do México com os Estados Unidos acompanhados da mãe Lucia (Martha Lorena Reyes), em busca de melhores condições de vida. Além das crianças, outra semelhança com o projeto de Sean Baker tem a ver com a permanente melancolia, que só é suplantada pelo caráter lúdico da narrativa, com os pequenos mantendo a esperança em meio a desenhos esboçados em uma parede decadente e em brincadeiras escapistas. E há ainda a própria Disney que, assim como no filme de 2017, bordeja a obra. É um sonho das crianças aqui. Era um sonho lá.

Sonhos. O que parece mover os personagens, especialmente Lucia que, como mãe solo, se submete a um trabalho precaríssimo para poder prover o mínimo. E, pior do que isso, em terras estrangeiras. Sem conhecer ninguém, e com a desconfiança que paira no ar em um País, à época, governado pelo xenófobo Donald Trump. A recomendação aos pequenos é de que não arredem o pé de casa e respeitem uma espécie de "lista de mandamentos" que envolve desde não abrir a porta pra ninguém, manter a organização e não chorar. Sim, não chorar. Por mais triste que tudo seja. A Max caberá ainda a responsabilidade pelo mais novo. Confinados em uma espécie de cárcere particular, os meninos improvisarão brincadeiras como forma de passar o tempo, sejam elas jogos de futebol - ainda que o local seja um cubículo -, lutinhas e outros. Claro, não demorará para que, conforme os dias passem, eles fiquem entediados. E comecem a acenar para possíveis saídas a rua - sendo estimulados por alguns garotos da vizinhança.

Desalentador, o filme mostra como a suposta liberdade vai somente até um limite - mesmo em países que se vendem como democráticos. Com os preconceitos sempre prontos para vir à tona - e a sequência inicial, em que Lucia se empenha em tentar encontrar uma habitação, uma residência que possa chamar de sua, já dá esse tom. Resta o claustrofóbico, fétido e pouco convidativo espaço ofertado pela Mrs. Chan (Cici Lau), que se tornará vizinha da família. Ninguém está muito preocupado ou interessado em saber que há dois meninos e uma mãe subsistindo em condições de vulnerabilidade: na Terra do Tio Sam é o individualismo que prevalece. O cada um por si. A invisibilidade é a regra. A precariedade a realidade. É daquele tipo de filme que doi, mesmo quando os meninos começam a criar o seu próprio universo imaginário, que salta da tela no formato de animações improvisadas, cheias de mensagens cifradas e comentários valorosos, tão lúdicos quanto imponentes.

Com um aceno à autobiografia - o diretor admitiu em entrevistas que passou por situação semelhante em sua juventude, quando sua mãe mentiu estar entrando nos Estados Unidos para ir à Disney (só que não) -, a obra também promove pequenas mas relevantes discussões sobre maternidade solo, sobre dificuldades enfrentadas por imigrantes e sobre o fundamental senso de comunidade, que pode ser o caminho para algumas soluções (e é por isso que instantes tão pequenos, como o de Mrs. Chan oferecendo comida aos meninos - uma comida diferente, saborosa - são tão comoventes). Apostando ainda em um tom mais otimista no terço final, o realizador "abre as janelas", leva a família para a rua, retirando-lhes um pouco da precariedade do confinamento. A penumbra dá lugar à luz. Aos sorrisos. A Disney em uma intenção mais simbólica do que real, movida por gestos de grande sensibilidade. Comovente é pouco.

Nota: 8,0

terça-feira, 26 de julho de 2022

Novidades em Streaming - Chico Ventana Também Queria Ter Um Submarino (Chico Ventana También Quisiera Tener Un Submarino)

De: Alex Piperno. Com Daniel Quiroga, Inés Bortagaray e Noli Tobol. Fantasia / Drama, Argentina / Uruguai / Brasil / Holanda / Filipinas, 2020, 84 minutos.

Meio de transporte ancestral, o navio tem papel central no curioso Chico Ventana Também Queria Ter Um Submarino (Chico Ventana También Quisiera Tener Un Submarino). Aliás, o caráter excêntrico da obra de estreia do diretor Alex Piperno - e que está disponível na Netflix - pode ser observado já no título do projeto. Há um quê de estranheza ali e que nos acompanhará nessa experiência sobre idas e vindas, encontros e desencontros e sobre as eventuais dificuldades que decorrem de choques culturais e de modos de vida bastante distintos. A bordo de um navio de cruzeiro que vaga pelos mares da Patagônia, Chico Ventana (Daniel Quiroga) é um empregado da tripulação que, certo dia, encontra uma espécie de portal mágico que o transporta para um apartamento de Montevidéu. Paralelamente, um grupo de camponeses do interior das Filipinas é surpreendido com o surgimento de uma cabana de concreto nos arredores do assentamento em que vivem.

Em algum momento essas histórias tão aleatórias, tão pouco previsíveis, irão se chocar. Circulando pelo navio, Chico Ventana se ocupa lavando o convés e auxiliando os turistas em atividades cotidianas. Em meio aos cubículos apertados do local, o taciturno sujeito localizará essa porta que lhe conduzirá a um "outro lado". Fora a metáfora do barco em si - um veículo que leva passageiros pra lá e pra cá, atracando em países culturalmente diversos -, o que se dá aqui é a aleatoriedade do inesperado que se junta à nossa eterna busca por conquistar outros espaços. Em Montevidéu, Chico conseguirá se aproximar de Elsa (Inés Bortagaray), numa fantasia existencial que vai no limite do realismo fantástico. Como num encontro entre Quero Ser John Malkovich (2000) e o cinema de Apichatpong Weerasethakul (especialmente na história que se passa no campo), aqui não haverá respostas fáceis, cabendo ao espectador a tarefa de montar o quebra-cabeças que possa dar alguma lógica à narrativa.


Sim, pode ser menos prazeroso que um filme hollywoodiano com começo, meio e fim bem definidos. Mas por ser tão instigante, o filme permite um mergulho para além daquilo que vemos nas aparências. Ao cabo os três personagens centrais das duas histórias parecem estar meio à margem: Chico é o trabalhador de um cruzeiro que não pode participar efetivamente da viagem (como se fosse um turista). Ele apenas está focado na mangueira que esguicha água e em seu ofício. Já Elsa, em meio a livros e doses de vinho, permanece em silêncio a maior parte do tempo, numa solitude que se confunde com a solidão. Ela é feliz? E ele? Como figuras errantes, eles se encontram inesperadamente como que numa espécie de limbo do espaço-tempo. E ali tem a oportunidade de conferirem algum significado as suas existências. Já a terceira pessoa, o camponês Noli (Noli Tobol) fica impactado com o surgimento da cabana, algo que ele acredita ser um castigo divino.

Há um quê, naturalmente, de complexidade no processo. Noli mobiliza a comunidade para sacrifícios que se converterão em ofertas: o componente religioso fala mais alto. Já para Elsa e Chico o que parece haver ali é algum tipo de inocência diante de um mundo muito maior do que sugere os seus próprios cubículos. É tudo achismo, mas isso é parte da diversão em uma obra que é extremamente bem acabada na parte técnica (e os cenários filipinos são não menos do que deslumbrantes, ao passo que a montagem é muito eficiente). Com poucos diálogos e completa ausência de trilha sonora, o trabalho avança para o seu final em que se obterão poucas respostas - ainda que haja instantes de catarse. "Para mim o cinema tem a possibilidade de ser radical e, mais do que isso, tem a obrigação de ser radical, intenso, permitindo a exploração lúdica dos materiais", resumiu Piperno em entrevista ao site Papo de Cinema. Ao fim, nesse abre e fecha de portas sempre haverá a oportunidade para novos campos de exploração. E para que as águas, finalmente, rolem.

Nota: 8,0


segunda-feira, 25 de julho de 2022

Pitaquinho Musical - Superorganism (World Wide Pop)

A capa (e o título) do segundo disco do Superorganism dão a dica: os indies também dançam, curtem, fazem festa! Maximalista, cheio de efeitos eletrônicos, barulhinhos bem encaixados e de refrãos envolventes, World Wild Pop é uma coleção de canções coloridas, vivas, como se estivessem sempre prontas à explodir para além dos limites da música. Ainda melhor do que o autointitulado trabalho de estreia, o presente registro surge mais homogêneo, como se tudo aquilo que o coletivo apresentou em 2018 fosse apenas um aperitivo para a miscelânea de possibilidades que se veria aqui - e que reflete as diversas nacionalidades dos integrantes. Musicalmente, o trabalho sugere um encontro entre o Passion Pit e sua eletrônica enérgica, efervescente, com o Neon Indian, e sua lisergia bem arranjada.

Um bom exemplo desse expediente pode ser conferido em canções como On & On, Solar System, Into the Sun e It's Raining, que se alternam em idas e vindas cheias de movimentos flutuantes, que vão no limite do extraterreno. E que farão emergir em suas letras comentários espertos sobre tecnologia, canais online, referências à cultura geek, festas que duram a noite inteira, relacionamentos na era moderna e o próprio ciclo da vida em si - como no caso do desejo de amadurecer, mas da dificuldade de, chegando lá, se adaptar. Outra que merece destaque é crushed.zip, com sua melodia sinuosa e versos melancólicos e divertidos (Estou preso em um seriado que nunca deveria ter sido lançado / E eu não entendo porque eles continuam renovando / Qual o ponto?). Quem for de coração aberto vai gostar.

Nota: 8,0


Novidades em Streaming - O Peso do Talento (The Unbearable Weight of Massive Talent)

De: Tom Gormican. Com Nicolas Cage, Pedro Pascal, Neil Patrick Harris, Sharon Horgan e Lily Sheen. Ação / Comédia, EUA, 2022, 107 minutos.

Vamos combinar que o que há de mais legal em O Peso do Talento (The Unbearable Weight of Massive Talent) é ver um filme com o Nicolas Cage em que ele, desavergonhadamente, avacalha de si próprio - após ter recusado várias vezes essa ideia. Com mais de 100 produções na sua ampla carreira, o astro é famoso pelos projetos recentes de gosto no mínimo duvidoso - e basta uma leitura superficial de sua filmografia pra perceber a quantidade de bombas que ele já protagonizou (ou, vá lá, fez alguma ponta). Bom, o fato é que todo mundo precisa pagar as contas - os boletos não param de chegar - e, na falta de trabalhos mais dignos, digno é trabalhar. E azar do Framboesa de Ouro! Na trama dessa produção que recém estreou para aluguel na Amazon e na Apple TV a graça toda parte justamente desse caráter prolífico do ator, que aparece bastante, mantém uma base de fãs fiel, mas é o terror dos críticos de cinema. A ideia é dar a volta por cima em uma produção mais relevante, argumenta ele no começo da narrativa com o seu agente (papel de Neil Patrick Harris).

Só que após algumas reuniões sem sucesso a coisa desanda. E, por mais que Cage esteja insatisfeito com essa mediocridade toda que ronda a sua carreira, o convite que aparece é, digamos, mais excêntrico: participar de um aniversário de um fã milionário (e meio misterioso) de nome Javi Gutierrez (Pedro Pascal), que reside em Mallorca. É claro que tudo não passa de uma grande desculpa pra uma série de piadas metalinguísticas, a replicação dos memes (como o do rosto que estampa produtos) e um sem fim de referências aos próprios filmes em que a estrela de 60 Segundos (2000) esteve envolvido. Inicialmente, Cage até se recusa a participar desse encontro. Mas as dívidas, resultado de uma vida de luxo, falam mais alto. Ah, e tem o US$ 1 milhão que Javi está oferecendo, claro. No combo todo há a relação familiar que não é das melhores - um clássico dos clichês, com direito a uma relação meio distante da filha Abby (Lily Sheen) e da falta de um melhor entendimento com a ex Olivia (Sharon Horgan).


Em terras espanholas, Cage será persuadido pelo fã, que deseja investir em um roteiro com a participação do astro. Mas não será tão simples quando uma dupla de agentes do FBI entrar na parada para alertar o protagonista de que Javi é um chefão de um cartel internacional de armas. E que disputas internas envolvendo outros grupos - com direito até a motivações políticas -, resultarão em um sequestro de uma jovem, que é filha de alguém importante. E quem será escalado, de forma meio involuntária, para salvar o dia? Cage em pessoa, claro, afinal, quantas vezes ele não fez isso nos seus filmes? E é justamente nesse contraste entre o Cage da vida real, um homem pacato, tranquilo, sem aquele ímpeto de heroísmo, e o ator de filmes de ação ou aventura - quase sempre uma persona mais nervosa, mais em ponto de ebulição - que resultará em algumas das melhores sequências.

Além disso, é preciso que se diga que a química com Pascal é absolutamente excelente - e mesmo piadinhas meia bomba de tiozão (como aquela em que a dupla tenta transpor com extrema dificuldade uma mureta de poucos metros) funcionam. No mais, o filme pode até ser considerado uma grande experiência para o fã raiz - eu mesmo, por não acompanhar Cage tão de perto, não peguei muitas das variadas referências à filmografia do astro. Mas isso não significa que não funcione como obra de ação genérica e bem humorada, que debocha das convenções e que premia o espectador com uma narrativa que se desenrola sem grandes complexidades. Tiroteios, perseguições, correrias, tomadas aéreas, trilha sonora alta e até pulo do penhasco. Quando Cage chega à Espanha a agente do FBI Vivian (Tiffany Haddish) tem a certeza de que aquilo não pode ser um evento aleatório. O que ele faria na Espanha? Oras, muito simples: salvaria o País dos bandidos, como o bom e velho Nic FUUUCKIN Cage. Para alegria dos fãs.

Nota: 7,0


sexta-feira, 22 de julho de 2022

Novidades em Streaming - Adeus, Idiotas (Adieu Les Cons)

De: Albert Dupontel. Com Virginie Efira, Albert Dupontel e Nicolas Marié. Comédia / Drama, França, 2020, 87 minutos.

A dedicatória à Terry Jones - ex-integrante do coletivo humorístico Monty Phyton, falecido em janeiro de 2020 - antes do começo do premiadíssimo Adeus, Idiotas (Adieu Les Cons) dá a pista: o que acompanharemos na obra dirigida e estrelada por Albert Dupontel será o tipo de comédia que, em partes, tornaria famosos os britânicos: imprevisível, cínica, iconoclasta, capaz de meter o dedo na ferida independente do assunto. Aqui, no caso, são várias as "feridas" porque os temas são variados - indo do suicídio até a gravidez na adolescência passando por oportunidades de trabalho para minorias e a solidão dos desajustados. E tudo vem em um formato meio que de enxurrada, com as situações inusitadas se descortinando à nossa frente como uma espécie de coleção de excentricidades. A gente nota que ali, no fundo no fundo, há uma crítica generalizada meio que a muitas coisas ao mesmo tempo, cabendo ao espectador o trabalho de organizar esse bolo.

O que, na realidade, trata-se de um processo mais ou menos simples, já que na trama acompanhamos três personagens que terão suas histórias entrelaçadas - e que precisarão unir forças, lá pelas tantas, para uma espécie de contra-ataque à morosidade do Estado, à sanha punitivista e ao sistema de trabalho que não hesitará em substituir um empregado apenas porque ele se tornou mais velho. Aliás, esse é o caso de Jean-Baptiste, o Monsieur Cuchas (Dupontel) que, aos cinquenta e tantos anos, à despeito de toda a sua competência no setor de TI da empresa que trabalha, é demitido. Em seu lugar entrará um jovem porque, enfim, esse é o fluxo da vida. Solitário e entristecido, ele está determinado a se suicidar - o que ele fará em seu próprio escritório, com direito a vídeo de despedida e tudo. Só que a coisa sai errado e ele erra o tiro que pretendia dar em si próprio com a sua gigantesca espingarda, atingindo um colega da sala ao lado. Todos se assustam. Inclusive Suze Trappet (Virginie Efira), que fica paralisada.


O caso é que Suze havia sido diagnosticada no mesmo dia com uma doença terminal que, muito provavelmente, é decorrente do abuso de laquês e sprays para cabelo do salão em que ela atua. Aliás, a forma caricata e pouco empática com que o médico dá a notícia à doente é digna das piores esquetes dos Pythons. O que faz lembrar também o tipo de humor que vemos em antigos filmes do Woody Allen, como no caso de A Última Noite de Boris Grushenko (1975) onde a finitude, naturalmente, é tratada com um deboche quase sem limites. Decidida a encontrar o filho que ela se viu forçada a abandonar na juventude, quando engravidou aos 15 anos, ela se unirá justamente com Cuchas: ela sabe o que aconteceu no escritório e poderá servir de testemunha para lhe limpar a barra com a polícia. A contrapartida do pretenso suicida: invadir sistemas de informática que lhe permitam encontrar alguma informação sobre o parto (e assim achar as pistas que lhe levem ao filho "perdido").

À eles se juntará um arquivista cego (Nicolas Marié) - e aqui entra mais uma daquelas piadinhas sobre pessoas com deficiência e o acesso ao mercado de trabalho. Não chega a ser trágico, mas também não é genuinamente cômico. Nesse rocambole de acontecimentos, o trio irá pra lá e pra cá enquanto foge das autoridades e faz um passo a passo na busca por informações do paradeiro do jovem - o que incluirá visita a um médico que sofre de Alzheimer. Em meio a tudo uma espiral de maluquices que vai no limite do nonsense e que flerta com o realismo mágico de Borges (como na sequência da escada em espiral infinita ou no momento em que elevadores sobem e descem alucinadamente). O que nos conduz ao terço final, que funciona como uma espécie de homenagem aos esquisitões (ou aos nerds de óculos e a sua completa incapacidade de socializar). É pouco? Bom, talvez seja. É histriônico? Sim, muito. Provoca gargalhada a partir da tragédia? Em partes. Traz uma ou outra discussão mais relevante? De alguma forma. Mas, vá lá, numa quinta à noite despretensiosa em só queria me divertir. Escolhi na plataforma Filme Filme uma obra aleatória. Cheia de aleatoriedades sobre a vida. E deu.

Nota: 7,5


quarta-feira, 20 de julho de 2022

Cinema - Boa Sorte, Leo Grande (Good Luck to You, Leo Grande)

De: Sophie Hyde. Com Emma Thompson, Daryl McCormack e Isabella Laughland. Drama / Comédia, Reino Unido, 2022, 97 minutos.

Existe uma frase atribuída ao escritor George Bernard Shaw que pode soar exagerada, mas que é inequivocadamente realista: "de todas as perversões sexuais, a castidade é a mais perigosa". E, vamos combinar, basta pensar no atual mundo em que vivemos - cheio de pessoas frustradas, individualistas, insatisfeitas - para percebermos que a sentença do autor de Pigmalião talvez continue mais verdadeira do que nunca. A meu ver é muito claro: o ser humano seria mais feliz se fosse melhor resolvido sexualmente. Se transasse mais. Se não tivesse tanta culpa católica - a castidade aqui como uma metáfora para o sexo apenas para a procriação -, que o impedisse de expressar seus desejos mais íntimos. Que o fizesse ter de esconder aquilo que lhe dá prazer. Não significa aqui ser meramente hedonista. E, sim, estar aberto para experiências. Deixar os tabus de lado. Dialogar sobre. Aceitar as diferenças e se aceitar também. Enfim, uma forma de evolução, quem sabe?

Bom, não é que Boa Sorte, Leo Grande (Good Luck to You, Leo Grande) proponha uma reflexão assim tão profunda sobre esse universo, mas o caso é que o filme dirigido por Sophie Hyde e estrelado por Emma Thompson e Daryl McCormack, que estreia nos cinemas nesta semana, utiliza a sua uma hora e meia de duração para uma franca conversa que coloca a vida sexual no centro do debate. Ela, uma mulher madura - uma viúva beirando os 60 anos que foi casada a vida toda com o mesmo homem. Ele, um jovem profissional do sexo, que acaba fazendo o papel de terapeuta meio involuntário do assunto - e que também tem dores relativas ao passado para expiar. Em um quarto de hotel eles terão três encontros que serão marcados não apenas pelas transas, mas também por uma série de diálogos que farão emergir inseguranças, desejos reprimidos, expectativas criadas (e nunca alcançadas), frustrações pelo tempo que passou e não volta mais, arrependimentos por decisões tomadas, entre outros.

Professora de religião aposentada, Nancy Stokes (Thompson) recebe Leo (McCormack) com uma timidez e uma ausência completa de autoestima - ao menos inicialmente - comoventes. O primeiro encontro é mais dolorido do que prazeroso: a protagonista revela nunca ter alcançado um orgasmo que fosse, na vida. Nem sozinha. Ao lado do marido, o sexo mecânico era o mesmo durante os 31 anos que estiveram juntos. Pouca paixão, tesão no piloto automático. Nada de posições variadas. Ou sexo oral. Nada que pudesse ferir o código de ética das "famílias de bem". Nada que fizesse sombra a um eventual pecado. Incomodada com um casamento que cozinhou em fogo brando rumo ao caos, Nancy era incapaz de lidar com suas alunas mais despojadas, mais abertas, mais bem resolvidas. Com a Bíblia embaixo do braço as reprimia, num moralismo abusivo, que dizia muito mais respeito às suas decepções do que as das meninas - certamente figuras vivas, levemente exibidas, com muito mais autonomia, como é próprio dos choques geracionais

Divertida, insinuante, cheia de diálogos espirituosos sobre possibilidade de mudanças independente da idade, a obra é pródiga ao naturalizar o sexo como algo que faz parte das nossas vidas - e não é por acaso que a tensão do comportamento de Nancy vai reduzindo conforme os encontros avançam, com ela se apresentando mais solta, eventualmente mais confiante e à vontade para comentar sobre o que deseja e como encara certas questões de sua vida (como o fato de ter filhos, e o quanto essa decisão modificaria seu futuro para sempre). Lá pelas tantas, enfeitiçada por Leo - e pelo seu olhar atento e disposto a um mergulho no universo de Nancy -, ela afirma que o acesso a satisfação sexual deveria ser uma espécie de serviço público, oferecido pelo Estado. "De preferência sem que os impostos fossem aumentados", brinca. "Quanto menos merda não haveria?", questiona. É impossível não concordar. Com ela, com Bernard Shaw, com outros teóricos. Ou mesmo com cronistas, como Luis Fernando Veríssimo, que afirmou que "todo o nosso corpo é um órgão sexual". "Bom, a exceção talvez sejam as clavículas", completaria ele. Talvez. Vai saber.

Nota: 8,0

 

terça-feira, 19 de julho de 2022

Na Espera - Amsterdam (Filme)

Olha esse elenco! Esse é o comentário que mais aparece nas respostas ao trailer de Amsterdam - novo filme de David O. Russel que chega aos cinemas daqui no dia 04 de novembro de 2022. Para o novo projeto, diretor de O Lado Bom da Vida (2012) reuniu Christian Bale, Margot Robbie, Robert De Niro, Michael B. Jordan, Chris Rock, Anya Taylor-Joy, John David Washington, Mike Myers, Zoe Saldaña, Rami Malek, Michael Shannon e até a Taylor Swift (ufa!), para contar uma história sobre três amigos - uma enfermeira, um médico e um advogado - que se tornam os principais suspeitos de um assassinato ocorrido na década de 1930 (e que fazem uma espécie de pacto de silêncio para se proteger)


Divulgado recentemente, o trailer sugere uma experiência bem humorada, daquelas que parece equilibrar bem os momentos de suspense com algum tipo de graça - as piadas sobre costumes da época parecem presentes. Há um clima meio policialesco reforçado pelo estilo de filmar de Russel (com muitos closes e planos detalhe), o que é reforçado também pela trilha sonora mais ostensiva. Bom, ainda é cedo pra falar em indicações ao Oscar mas, convenhamos: a união de um diretor que sabe extrair o melhor de seus atores somada a uma verdadeira constelação de astros, tem tudo para significar presença certa nas categorias de atuação. Já estamos Na Espera!


Novidades em Streaming - Casa Gucci (House of Gucci)

De: Ridley Scott. Com Lady Gaga, Adam Driver, Al Pacino, Jeremy Irons, Salma Hayek e Jared Leto. Drama / Suspense, Canadá / EUA, 2021, 159 minutos.

"A Gucci é um negócio de família. E negócios de família significam problemas de família". A frase dita por um investidor no decorrer da narrativa de Casa Gucci (House of Gucci), que está disponível na plataforma da Amazon Prime, resume, de alguma forma, o emaranhado trágico - daqueles dignos de novela mexicana - que acompanhamos durante mais de duas horas e meia. Aliás, muitas pessoas têm apontado o caráter melodramático da história dirigida por Ridley Scott, a partir de obra de Sara Gay Forden, como um suposto problema. Mas o caso é que não tem como ser diferente em meio a tantas traições, escândalos, intrigas, decisões equivocadas e, claro, crimes, envolvendo os integrantes da mundialmente conhecida marca de artigos de luxo. Tudo, é óbvio, inserido em um universo de glamour que gera uma espécie de contraste involuntário à baixeza dos atos dos herdeiros do clã.

E eu, sinceramente, esperava menos do filme que, em resumo, foi o maior esnobado da última edição do Oscar. Mas, ao cabo, é uma experiência que entretém e que serve ainda para apresentar às gerações mais novas o contexto que levaria Maurizio Gucci - um dos sucessores da dinastia - a um trágico destino. E, aqui, cabe salientar que eu ignorei as prováveis licenças poéticas do enredo, bem como a quase inexplicável opção pela língua inglesa em detrimento da italiana - com os sotaques forçados (especialmente os do histriônico Paolo de Jared Leto) sendo peças de humor meio involuntário. Fora esse aspecto rocambolesco do conjunto o caso é que, como obra de true crime, Casa Gucci cumpre o seu papel, envolvendo o espectador em um roteiro repleto de boas surpresas, com um desenho de produção caprichadíssimo, figurinos e maquiagens idem e interpretações competentes do elenco - e é preciso admitir que Lady Gaga, no papel complexo de Patrizia Reggiani entrega uma espécie de pacote completo, como uma figura que parece estar em um turbilhão emocional permanente.


Filha de um empresário da área de transportes rodoviários, ela, uma mulher ousada, impetuosa, se aproximará de Maurizio (Adam Driver), um sujeito tímido, introspectivo, de uma forma meio aleatória em uma festa. A amizade se tornará um romance que fará com que o filho de Rodolfo Gucci (Jeremy Irons) seja deserdado - e claramente o pai do rapaz não aceita o relacionamento com uma jovem que está abaixo deles na pirâmide social. Sem dar muita bola pro status quo, Maurizio não apenas se casará com Patrizia, como ainda aceitará um trabalho na empresa do pai da jovem - com direito a cenas em que ele surge lavando caminhões. A oportunidade de reaproximação com o clã Gucci se dará quando o casal receber um convite para o aniversário do tio Aldo (Al Pacino). Magnetizado pela elegância meio exótica de Patrizia, Aldo os convidará para retornar aos negócios da marca. E, bom, as ambições se confundirão com o brilho na hora de manter o prestígio em um segmento de alta exigência - sendo quase inevitável que a coisa desande. Especialmente com a interferência de outros interessados, como é o caso do próprio Paolo, filho de Aldo (e, portanto, primo de Maurizio).

Engraçado e tenso em igual medida, o filme encontra o equilíbrio certo para que o projeto não descambe para o mero deboche ou para o dramalhão excessivo - por mais que algumas sequências, especialmente aquelas vistas do terço final, possam lembrar algumas cafonas novelas exibidas pelo SBT. Com uma paleta de cores vibrante e uma trilha sonora saborosa - o desfile vai de George Michael a Donna Summer, passando por Blondie e David Bowie - a narrativa cobre mais de duas décadas, sendo um deleite para aqueles que consideram a moda uma verdadeira arte. Um bom exemplo desse balanço entre estilos se dá na sequência em que a família descobre que seus produtos estão sendo pirateados - o que se estende para os dias atuais, em tempos de comércio Made in China. Enquanto Patrizia fica furiosa, Aldo parece despreocupado. É o estopim para que a bomba-relógio não tarde a explodir, o que trará consequências trágicas pra todos. E que exemplificarão a gangorra emocional dos envolvidos, em uma história tão luxuosa quanto histérica de ascensão e queda. E que é digna da máfia italiana.

Nota: 8,0


segunda-feira, 18 de julho de 2022

Novidades em Streaming - Aloners (Honja Saneun Saramdeul)

De: Hong Sung-Eun. Com Gong Seung-Yeon, Jeong Da-Eun e Seo Hyeon-Woo. Drama, Coréia do Sul, 2021, 91 minutos.

Existe uma cena melancólica e curiosa que ocorre mais ou menos lá pela metade de Aloners (Honja Saneun Saramdeul) - essa pequena joia da Coreia do Sul que está disponível no Mubi. Nela, a operadora de telemarketing que trabalha em uma empresa de cartão de crédito - seu nome é Jin Ah (Gong Seung-Yeon) - atende um cliente que parece ter algum distúrbio psicológico. Na conversa, o sujeito pergunta à atendente se ele poderá utilizar o seu cartão no ano de 2002, já que ele pretende utilizar uma máquina do tempo para retornar quase 20 anos no passado. "Naquela épocas as pessoas eram mais felizes já que, hoje, todos parecem tão ocupados", comenta o homem do outro lado da linha. Ele se refere à Copa do Mundo que, naquele ano, ocorreu na Coréia do Sul e no Japão - e que nos daria o pentacampeonato. Há uma certa nostalgia no tom, uma tristeza que vem carregada de algum tipo de memória de um tempo que não retorna mais. Especialmente em meio a essa rotina tão urgente, tão apressada como a que vivemos.

Esse diálogo pode parecer apenas prosaico, ou até simples, mas, de alguma forma, ele dá o tom daquilo que pretende a diretora Hong Sung-Eun em seu filme de estreia. Ao cabo, o que temos aqui é um olhar afetuoso sobre a solidão nesse avançar de século 21. Um período em que tudo está acelerado de uma forma que não parece haver tempo pra mais nada. O vídeo é consumido no celular ao mesmo tempo em que o jantar de microondas é aquecido. A velocidade atropela tudo de uma forma tal que Jin Ah se torna a funcionária do mês no trabalho, mesmo que ela tenha perdido recentemente a sua mãe - a quem, aparentemente, negligenciava, nessa correria do dia a dia. Como "prêmio" pela dedicação em seu ofício, recebe de sua chefe a chance de treinar uma nova colega, no caso a jovem Su Jin (Jeong Da-Eun). A contragosto ela atende o pedido. Precisa do emprego. Antes que uma máquina lhe substitua, como anuncia a sua superiora - num daqueles clássicos casos de assédio moral.



Em um filme como esse se tem de tudo um pouco: o vazio existencial das grandes cidades - onde a vida se resume a ir e vir do trabalho, se alimentar mal, e dormir no cubículo mal arranjado chamado de casa -, a precarização do trabalho (com pouquíssimos direitos e muitos deveres), a falta de socialização que advém da tecnologia (tudo afinal é online, as conversas, as trocas, até mesmo o apartamento de seu pai, Jin Ah observa por uma câmera acoplada ao seu equipamento). É como se aqui estivéssemos diante dos personagens de Era Uma Vez em Tóquio (1953), num encontro com a protagonista do livro Querida Kombini, de Sayaka Murata, que se somam a uma boa pitada de A Sociedade do Cansaço, obra-prima de Byung Chul-Han que versa justamente sobre os efeitos colaterais desse modelo repressor da atualidade, em que trabalhamos mais, ganhamos menos, e perdemos muita saúde (com o aumento dos casos de depressão, transtornos de personalidade, burnout e outras síndromes).

Talvez não seja por acaso que Aloners flerte levemente com algum tipo de realismo mágico em suas idas e vindas - especialmente quando um vizinho de Jin Ah, que ela encontra todos os dias no corredor do prédio, é encontrado morto. Aliás, é justamente o odor do seu corpo em putrefação que chama a atenção dos demais moradores. O vizinho morre solitário, soterrado, em mais um simbolismo atual, por uma pilha de revistas pornográficas. Em meio a tudo, a protagonista é a figura solitária que circula pra lá e pra cá, sem tirar o fone de ouvido para absolutamente nada. Almoçando sozinha, existindo sozinha, sobrevivendo da mesma forma. É um tipo de casca que, lá pelas tantas, ela mesma admitirá que mantém, como que para se proteger do mundo lá fora. Mas não demorará para que ela própria se lembre de que solidão é diferente de solitude. E de que os caminhos para tentar uma readaptação podem ser menos complexos do que parecem. A reflexão, para o espectador que acompanha a jornada, é comovente.

Nota: 8,5


sexta-feira, 15 de julho de 2022

Cinema - Crimes do Futuro (Crimes of the Future)

De: David Cronenberg. Com Viggo Mortense, Léa Seydoux, Kristen Stewart e Scott Speedman. Ficção científica / Drama, Canadá / Grécia / Reino Unido, 2022, 107 minutos.

Vamos combinar que é um tipo de prazer meio excêntrico acompanhar certos filmes do diretor David Cronenberg. É como se o nosso inconsciente fosse "invadido" e, lá dentro, todas as esquisitices que habitam a nossa mente fossem misturadas, com o resultado dessa experiência sendo algo tipo esse Crimes do Futuro (Crimes of the Future). Isso não significa que exatamente essa história esteja escondida lá nos recantos da nossa imaginação - talvez não houvesse criatividade suficiente para esse tipo de construção. Mas os seus temas e a tentativa de explorá-los, de propor inferências, é algo que certamente nos ocupa, nos mobiliza. Enfim, mexe conosco. Quem nunca pensou, por exemplo, onde chegará a tecnologia? E a medicina? E quais serão os limites da modificação corporal em tempos de harmonização facial e de outras cirurgias plásticas que vão limite do bizarro? E a evolução da genética? A cura para doenças? Os hormônios? A busca incansável pelo padrão de beleza? Os protocolos de saúde que deveriam preservar a nossa "casca"? E a ética em meio a isso tudo?

Em certa altura dessa joia do cinema, que bebe na fonte do subgênero que se convencionou chamar de body horror - aliás, uma vertente bem característica do Cronenberg dos anos 80, como nos casos de Videodrome (1983) e A Mosca (1986) -, um dos personagens centrais reflete: "estamos evoluindo para longe do caminho humano". É como se a cada avanço da ciência nos afastássemos, em alguns casos, daquilo que somos na essência e que nos constitui como humanos: pele, carnes, tecidos, vísceras, sangue. No filme, que se passa em um futuro apocalíptico próximo (ou nem tanto) - cenário em que um navio revirado na costa de uma enseada é apenas parte do contexto -, a espécie humana avançou de tal forma, que é capaz de gerar espontaneamente novos órgãos. Que são reflexo de mutações, de transformações, oriundas de um ecossistema totalmente sintético que está na volta. O que inclui camas com tentáculos (a orchidbed), cadeiras adaptáveis e outras engenhocas que leem o corpo, o alteram e ainda suprem o organismo de algum tipo de prazer - como se fizesse parte dele, de alguma forma.


Não é por acaso que tantas vezes durante o filme somos lembrados que a "cirurgia é o novo sexo". A invasão agora é outra. O prazer idem. Em dado momento os parceiros (são um casal?) Saul Tenser (Viggo Mortensen) e Caprice (Léa Seydoux) estão deitados em uma cama de autópsia de nome Sark, enquanto bisturis encenam um balé que lhes abre a pele, lhes viola, com a dupla ensaiando gemidos, sussurros e movimentos ondulantes que parecem acenar para esse novo formato de relação. "Eu não sei fazer sexo na forma antiga", indica Tenser à Timlin (Kristen Stewart), uma representante de um órgão estatal conhecido como Registro Nacional de Órgãos. Uma Instituição que pretende regularizar a questão dos novos órgãos sem uma função muito definida - o que não seria exatamente o caso de Tenser, já que ele utiliza essa capacidade de geração para, ao lado da cirurgiã especializada Caprice, realizar performances artísticas em que faz exibições de remoção dessas partes corporais exóticas. Atraindo olhares - e flashes - de muitas pessoas.

Discutindo uma série de questões filosóficas e complexas sobre pós-humanidade - e esse avanço que parece substituir o aparato biológico pelo tecnológico, que transmuta a natureza para novas variedades de protótipos corporais -, o filme ainda é um prodígio técnico, com a distopia sendo desenhada como um ambiente permanente sombrio, soturno, escurecido (não há um raio de sol em momento algum ou uma cor mais viva que seja). Os figurinos acinzentados, pálidos, de cores únicas e pouco criativas, formam um tipo de contraste daquilo que se imaginaria o futuro colorido, plural. É tudo triste, claustrofóbico, melancólico, desalentador. Há um certo niilismo no entorno. Um pessimismo que avança pelos cantos. Mas que ao mesmo tempo, de forma paradoxal, combina com o espírito hedonista, exibicionista dos tempos que vivemos - de busca por aceitação e de individualidade, mas também de desequilíbrios ambientais, de pandemias e de guerras. Como alegoria da intervenção dos corpos pelo Estado - uma percepção meio lateralizada, mas possível -, a experiência também funciona. Aliás, tem um timing impressionante.

Ao cabo, é uma obra que talvez possa ser de difícil digestão. Lenta, meio agonizante - assim como é o comportamento taciturno de Tenser, sempre com o seu olhar cabisbaixo, com a voz rouca, com o pigarro persistente. A dramaticidade exagerada de algumas sequências também poderá gerar algum tipo de perturbação: há um grafismo forte nas tomadas dos órgãos, esses "objetos" meio disformes, indefinidos, que se assemelham a tumores - aliás, não seriam tumores? Já os personagens secundários trafegam pelo entorno como figuras igualmente perturbadas, que tentam sobreviver nesse ambiente funesto, mas ao mesmo tempo anódino - como no caso de Lang Lotrice (Scott Speedman), pai de um menino morto pela própria mãe, em uma medida desesperada para combater um tipo de patologia que acomete o filho e lhe faz ser capaz de consumir alimentos puramente sintéticos (como plásticos). É bastante coisa pra pensar, pra refletir - e isso que o filme até alivia no debate político sobre o uso do corpo (ainda que referencie a importância da "beleza interior" como uma metáfora viva). E, nesse sentido, não dá pra reduzir o filme ao mero sensacionalismo. Perto de completar 80 anos, Cronenberg segue mantendo o cinema experimental vivíssimo. Pulsante! Tal qual os órgãos que enxergamos de forma incômoda na tela.

Nota: 8,5

quarta-feira, 13 de julho de 2022

Pérolas da Netflix - A Vida de David Gale (The Life of David Gale)

De: Alan Parker. Com Kate Winslet, Kevin Spacey, Laura Linney e Gabriel Mann. Drama / Suspense, EUA, 2003, 131 minutos.

Poucos filmes costumam ser tão unânimes entre o público de cinema como no caso do ótimo drama A Vida de David Gale (The Life of David Gale) - obra derradeira do diretor Alan Parker (de Coração Satânico, de 1987), que finalmente foi disponibilizada na Netflix. Seja pelo tema relevante que leva pro centro da narrativa um debate sobre a pena de morte, seja pelo roteiro extremamente bem costurado, cheio de idas e vindas, de flashbacks, de reviravoltas e outras trucagens, o caso é que o filme estrelado por Kate Winslet, Kevin Spacey e Laura Linney é daqueles que caem facilmente no gosto da plateia. E aqui entra o grande mérito de Parker, e de sua capacidade única de conduzir o espectador para uma reflexão mais ampla a respeito de um assunto que, em geral - e em tempos de "bandido bom é bandido morto" -, costuma ser polêmico. No decorrer de toda a experiência permanece a dúvida: afinal, o professor de filosofia David Gale (Kevin Spacey) seria mesmo o culpado pela morte de sua colega ativista pelos direitos humanos Constance Harraway (Laura Linney)?

No começo da história a jornalista Bitsey Bloom (Kate Winslet) é "convocada" por Gale para uma última e reveladora entrevista, que será concedida em um espaço de três dias - aliás, os últimos três dias de vida do professor, que aguarda pela sua execução em um presídio do Texas, após ter sido condenado pelo estupro seguido de assassinato por asfixia da vítima. Respeitado no meio acadêmico, David é aquele professor boa praça, que participa das noites de bebedeiras com os alunos e transforma suas aulas sobre Lacan e Kant em peças de comédia de stand up involuntárias, mas cheias de ricos recortes temáticos - e nesses instantes iniciais já vale ficar atento às metáforas que correm nas entrelinhas a respeito de "fantasias", "desejos" e "busca por felicidade" que são evocadas por filósofos históricos, e que estabelecerão algum tipo de diálogo com aquilo que acompanhamos.



Em uma dessas noites de festa a beira da piscina, David é seduzido por uma aluna meio relapsa que precisa de nota para não perder o semestre (papel de Rhona Mitra). É a partir desse episódio que sua vida vira de ponta cabeça: acusado de estupro de vulnerável, vê sua credibilidade cair no ambiente universitário, perdendo o emprego. Perante a sociedade, os amigos e a família, mesmo não havendo provas sobre o crime - ele é absolvido -, ele passa a conviver com o rótulo de estuprador escrito na testa. E tudo se torna ainda pior porque, ao lado de Constante, David é um fervoroso ativista contrário à pena de morte, com a pauta girando em torno não apenas da sanha punitivista pregada pelo modelo, mas também pela grande quantidade de recursos que são dispendidos a cada vez que um (pretenso) criminoso vai parar na cadeira elétrica. Como lidar com todas essas circunstâncias?

De forma eletrizante, Parker mantém o espectador em suspense constante, com cada dia de relatos de David espalhando algumas pistas a mais do que possa ou não ter acontecido - e aqui, um dos prazeres será de, ao lado de Bitsey, tentar juntar as peças do quebra-cabeças que revelem o que motiva, afinal, essa inesperada entrevista concedida por um condenado. Em meio a tudo há ainda a figura de um misterioso caubói que parece perseguir Bitsey e seu parceiro de jornalismo Zack (Gabriel Mann) - estando em lugares meio inesperados, o que amplia a tensão. Com ótima trilha sonora e excelente montagem, o filme ainda estabelece, em seu terço final, uma curiosa rima narrativa com a ópera Turandot, de Giácomo Puccini, uma jogada inteligente, tão melancólica quanto celestial. Nas premiações, A Vida de David Gale passaria meio batido. Mas nos corações dos fãs, segue como um trabalho insuperável.


terça-feira, 12 de julho de 2022

Pitaquinho Musical - Moons (Best Kept Secret)

Os arranjos sofisticados somados ao vocal esteticamente limpo - quase como um Simply Red em um encontro com o Destroyer - convertem os mineiros do Moons em um dos mais agradáveis coletivos da atualidade. Da delicadeza do dedilhado de violão da inaugural The Will To Change, passando pelo refrão pegajoso de Let's Do It Again, até chegar ao climinha folk contemporâneo da favorita do público Childlike Wisdon, tudo no recém chegado Best Kept Secret remete a algum tipo de economia elegante, que costura a poesia e os elementos instrumentais de uma forma fluída e nunca excessivamente expansiva. O registro dá continuidade à sonoridade aconchegante de Dreaming Fully Awake (2019), álbum igualmente belo.

Ainda assim, se engana quem pensa que o minimalismo signifique menos força. Muito pelo contrário. Em apresentação recente para exibição deste quarto trabalho em Belo Horizonte, o grupo formado por André Travassos (violão, guitarra e voz), Bernardo Bauer (voz e baixo), Digo Leite (guitarra), Felipe D’Angelo (voz, piano, guitarra barítona e sintetizadores), Jennifer Souza (voz, guitarra e percussão) e Pedro Hamdan (bateria e percussão) comoveu o público com seu repertório imersivo, enquanto marcava posição sobre assuntos políticos e sociais do atual momento no País - com a exibição de fotos de ativistas e de uma frase que lamentava assassinatos de lideranças como Bruno e Dom. A música funciona como um clamor por calmaria. Especialmente em tempos tão brutos.

Nota: 8,5


Cine Baú - Os Imperdoáveis (Unforgiven)

De: Clint Eastwood. Com Clint Eastwood, Morgan Freeman, Gene Hackman, Richard Harris e Jaimz Woolweltt. Faroeste, EUA, 1992, 131 minutos.

Não deixa de ser meio irônico pensar que talvez o último grande faroeste - ao menos nos moldes dos clássicos de Sérgio Leone ou Don Siegel que marcaram época -, também represente uma espécie de crepúsculo oficial de um gênero. Afinal, o tom de melancolia meio generalizado que rege a narrativa de Os Imperdoáveis (Unforgiven), com o William Munny de Clint Eastwood surgindo como um criador de porcos resignado e nostálgico, funciona quase como uma metáfora perfeita para algum tipo de desencanto que só decorre da maturidade - e que costuma surgir justamente naquele instante em que olhamos para o passado e refletimos sobre tudo aquilo que vivemos até ali. Como agimos ou deveríamos ter agido, quais os arrependimentos possíveis em um velho oeste onde primeiro se atira e depois se pergunta. Munny é um sexagenário taciturno, que carrega no semblante meio esgotado um olhar cheio de ambiguidades: não parece haver orgulho afinal, em ser um "pistoleiro aposentado". Um sujeito que pode ter cometido as mais variadas atrocidades, de forma meio ilógica talvez.

Os instantes iniciais dessa obra-prima dão conta dessa nova vida do veterano que "pendurou a pistola". Em seu rancho não muito proeminente tenta superar o luto pela morte da esposa, enquanto cria os filhos que lhe ajudam em sua lida com os animais. O negócio talvez não seja assim tão promissor, o que faz com que ele aceite uma última missão antes do ocaso oficial: vingar uma prostituta que teve o rosto desfigurado após um ataque ocorrido na cidade de Big Whisky. Para lhe auxiliar na tarefa, ele recruta o seu velho amigo Ned Logan (Morgan Freeman) - sendo a dupla acompanhada também pelo jovem Schofield Kid (Jaimz Woolweltt), que sonha em ser um caubói tão heroico quanto Munny (de quem ele teria ouvido histórias maravilhosas de um familiar). Só que Big Whisky é comandada à ferro e fogo por um xerife chamado Little Bill (Gene Hackman), que não aceita muito bem a ideia de vingança perpetrada pelas meretrizes. Mais do que isso, estampa na entrada da localidade uma placa onde há uma mensagem que proíbe a entrada de forasteiros com armas.


Ao cabo, é um contexto em que não é assim tão fácil definir quem são realmente os mocinhos e os bandidos - e esse tipo de maniqueísmo era muito mais claro para o espectador nos clássicos de antigamente (especialmente nos de John Ford). Aqui Munny pretende abandonar o espectro de violência que ainda lhe ronda (como se fosse uma espécie de fantasma a lhe assombrar e que está pronto para vir à tona). Mais do que isso: dentro de seu armário os esqueletos são pesados e os traumas são doloridos, o que explica a sua predisposição em recuperar qualquer resquício de humanidade (por mais que o sacrifício de porcos inevitavelmente apareça como um tipo de paradoxo apresentado pelo roteiro). E como se já não bastasse toda essa complexidade do quebra-cabeças estabelecido pelo bem engendrado roteiro, há ainda um segundo matador interessado na recompensa das mulheres do bordel - um certo English Bob, encarnado por Richard Harris como uma figura debochada e levemente excêntrica.

Eastwood estava no seu décimo sexto filme da carreira como diretor quando venceria os prêmios de Filme e Diretor no Oscar de 1993, que premiaria ainda Hackman como Coadjuvante e Joel Cox como Editor. E as conquistas soam quase como um divisor de águas que sepultaria o gênero entre os grandes, pavimentando também o terreno para que Eastwood se aventurasse em outros estilos, caso do drama romântico (As Pontes de Madison, 1995), do drama policial (Sobre Meninos e Lobos, 2003) e até do filme de guerra (Cartas de Iwo Jima e A Conquista da Honra, 2006). Para os fãs de faroeste permanece para sempre a imagem meio idílica das roupas balançando no varal em um entardecer amarelado, enquanto Munny se esforça para, novamente, deixar o passado para trás. "É uma coisa infernal matar um homem. Você tira tudo o que ele tem e tudo o que ele vai ter" lembra o protagonista dentro desse contexto. É a deixa para a expiação de um peso que pouco tem a ver com qualquer tipo de glória. É o recado que fica.


segunda-feira, 11 de julho de 2022

Novidades em Streaming - Pureza

De: Renato Barbieri. Com Dira Paes, Flávio Bauraqui, Mariana Nunes, Matheus Abreu e Sérgio Sartorio. Drama, Brasil, 2019, 102 minutos.

Mais de 57 mil pessoas foram resgatadas de condições análogas às de escravo pelo Estado brasileiro desde maio de 1995. CINQUENTA E SETE MIL. Os números impressionam porque não estamos falando do Brasil Colônia ou do Ciclo do Café, em meados do Século 19. É a atualidade. É agora. Em algum canto bem escondido desse País continental que insiste, dia após a dia, em emular o passado. E que retira de milhares de pessoas o direito básico à dignidade. E não é preciso ser nenhum especialista para compreender que, em tempos de Bolsonaro - e de supressão permanente de direitos trabalhistas - o cenário não tende a melhorar. E, nesse sentido, o timing de uma obra como Pureza, do diretor Renato Barbieri, não poderia ser melhor. O filme, afinal, se inspira na história real de Pureza Lopes Leal que, no começo dos anos 90 empreendeu uma verdadeira via crúcis para tentar localizar o seu filho Abel que, meses antes, partira do interior do Maranhão para tentar a sorte no garimpo.

Pureza nunca quis que seu filho partisse - por mais difícil que fosse a vida com o pesado trabalho de fabricação de tijolos de barro. Só que o sonho de Abel falaria mais alto, o que faria ele sair da pequena Bacamal, rumo ao Pará. Para desaparecer. Sem deixar rastros - os parentes que ele pretendia procurar pouco sabem. Desesperada, tentando descobrir qualquer notícia sobre o jovem - o caçula de cinco filhos -, a protagonista parte em sua busca. Munida apenas de sua fé - a Bíblia inseparável vai a tiracolo -, Pureza iniciará uma longa jornada em ônibus pouco confortáveis ou por meio de caronas nada convidativas. E vai parar numa fazenda de gado no sul do Estado, onde se oferece para trabalhar como cozinheira - ao mesmo tempo em que vai se dando conta da existência de um sistema que alicia jovens para um trabalho pesado, degradante e com absolutamente nenhum direito.


Sindicato? Alguém para amparar? Para dar as mínimas condições aos trabalhadores? Para protegê-los? Que nada. Na fazenda os jovens peões terão sua humanidade suprimida - o que é simbolizado pela captura dos documentos e pelo novo apelido que será dado pelos patrões (que poderá ser desde algo meio xenófobo, relacionado ao Estado de origem, como no caso do Piauí, ou alguma alcunha que diga respeito a algum traço de personalidade do sujeito). No dia a dia, o sono precário em redes velhas, a falta de uma alimentação adequada, de uma habitação satisfatória ou mesmo de uma água limpa para matar a sede, fará com que os operários adoeçam, sofram, e se rebelem. O que piorará tudo. Nesse contexto, Pureza se empenhará em ser como uma espécie de mãe improvisada para aqueles meninos de pouco mais de 20 anos, ao passo em que luta para obter alguma notícia de Abel. 

É tudo muito bem costurado no filme que está disponível para aluguel no Now, sendo impossível não se comover - especialmente quando, no terço final, a obra dá um salto meio inesperado para a capital federal, onde a batalha ganha outros contornos, com aproximação de coletivos que lutam pela libertação de trabalhadores em condições análogas à escravidão, além de um padre missionário, de nome Flávio (Cláudio Barros), que integra a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e que se incorporará a pauta. A burocracia estatal e o toma lá dá cá envolvendo ministérios e interesses políticos diversos tornará tudo mais difícil. Mas a impressionante obstinação de Pureza - encarnada quase com devoção por Dira Paes - será decisiva no contexto que busca livrar os trabalhadores da exploração. 


Ao final da sessão estava aos prantos especialmente pelo caráter semidocumental da experiência, que enche a tela de humanidade, de um senso único de empatia e de muita revolta com aquilo que acompanhamos. E, ainda que inegavelmente pesada, a obra tem lá as suas sutilezas, apostando em rimas visuais diversas - há uma impressionante cena que mais parece um quadro de Caravaggio, em que Pureza ampara um trabalhador morto, enquanto a chuva insiste em cair -, e em um aparato técnico que contribui para certa sensação de desalento que rege a narrativa. Premiada em diversos festivais - entre eles o do Rio -, Pureza é uma história que precisa ser conhecida. Que necessita chegar a mais e mais pessoas. Uma mulher que recebe em Londres, um prêmio pela sua atuação no combate à escravidão deve ser reverenciada todos os dias. E este também é o papel da arte. Nos fazer confrontar tudo isso. Refletir sobre. E tomar melhores decisões daqui pra frente. Decisões que, de preferência, minimizem os riscos para o trabalhador brasileiro. É uma escolha não tão difícil.

Nota: 9,5

Fontes: UOL e BBC

sexta-feira, 8 de julho de 2022

Na Espera - A Mulher Rei (Filme)

Vamos combinar que a simples presença da Viola Davis em qualquer projeto que seja é sempre um acontecimento - o que talvez explique a expectativa que cerca A Mulher Rei (The Woman King), filme que teve o seu trailer liberado nesta semana. Dirigida por Gina Prince-Bythewood e também estrelada por John Boyega e Lashana Lynch, a obra, que chega aos cinemas do Brasil no dia 22 de setembro, é inspirada em eventos reais e joga o espectador para dentro do Reino de Daomé - um dos estados mais poderosos da África nos séculos 17 a 19. Na trama, Davis é Nanisca, uma militar de uma tribo local de Amazonas que luta pela liberdade de seu povo, enquanto invasores brancos chegam à costa.

O trailer tem aquele climão de épico de guerra meio à moda Pantera Negra, com belas paisagens, figurinos exuberantes, embarcações imponentes, desenho de produção caprichado e uma história que promete agradar tanto o público que é fã de filmes de ação - ou mesmo os que estão habituados à linguagem dos quadrinhos -, quanto o fã de cinema mais alternativo (especialmente pelo componente político, histórico e cultural que parece pontuar a experiência). Ainda é meio cedo pra falar em indicação ao Oscar - mas em se tratando de Viola Davis sempre há essa possibilidade. E, sinceramente, esperamos também que não flope!


Livro do Mês - A Velocidade da Luz (Javier Cercas)

O passado que reverbera no presente. As escolhas de vida nem sempre acertadas. Objetivos, sonhos, decisões e frustrações. Arrependimentos espalhados, trajetórias dentro daquilo que é possível. Tudo aquilo que, afinal, parece dotar a nossa realidade de sentido - ou mesmo de beleza, mesmo quando na dor -, é possível encontrar nesse maravilhoso A Velocidade da Luz, o meu primeiro contato com a obra do espanhol Javier Cercas. Sem medo de errar a obra da editora Biblioteca Azul é não apenas uma das melhores leituras do ano, mas como já vai diretamente praquele seleto grupo dos "da vida". Porque, ao cabo, é incrível como o autor pega uma coleção de temas aparentemente simples, que envolvem desde um autor recém aclamado em busca de uma nova história pra contar, passando pelos traumas de guerra e sobre como eles alterarão para sempre o futuro dos envolvidos, até chegar aos dramas domésticos nunca solucionados - tudo com uma fluidez desconcertante.

O livro é narrado por um protagonista que jamais diz o seu nome e que, quase como num desses acasos da vida, sai de Barcelona no começo dos anos 80, indo parar em Urbana - uma daquelas cidadezinhas tipicamente provincianas dos Estados Unidos. Desempregado, pobre, vivendo de bicos e com uma formação meio inútil ligada à área de Publicidade, o narrador recebe a dica de um professor universitário chamado Marcelo Cuartero: a Universidade de Illinois estava com vagas abertas para professor de espanhol. Como aspirante a escritor o sujeito é movido pelo desafio: e na Terra do Tio Sam conhecerá um certo Rodney Falk, seu companheiro de sala - um corpulento veterano da Guerra do Vietnã. Sujeito meio desengonçado, atarracado, que usa um tapa olho, Falk é uma figura taciturna, excêntrica, de poucos amigos. Daqueles que preferem o isolamento do que o convívio social. E que, claramente, guardam uma série de segredos por baixo da "casca".



E será justamente da convivência com Rodney que emergirá uma curiosa amizade, regada a muitas conversas sobre literatura - o ex combatente é fascinado por Ernest Hemingway -, que avançarão para pequenas trocas de confidências e até mesmo para avançados debates sobre o livro que o narrador, aos poucos, começa a dar forma. Tudo corre bem até o final das férias, quando Falk simplesmente desaparece do mapa. Sem deixar muitos vestígios. Com poucas informações sobre o novo amigo - na Faculdade o desinteresse por ele é meio generalizado - o protagonista descobrirá a residência do pai do desaparecido. Que o convidará para contar a sua história, que é recheada por ocorrências que marcariam a vida do veterano de guerra para sempre. A guerra afinal, pode até ficar para trás. Mas a memória dela, de seus horrores e de seu absurdo permanece.

Cercas costura essa narrativa entregando uma prosa riquíssima, poética e que vai recompensando o leitor com pequenas surpresas que, aqui e ali, formarão uma verdadeira colcha de retalhos a respeito da ruína do ideal de força que evoca dos conflitos bélicos, ao passo em que avança para a completa deterioração do sonho americano. "Existem duas tragédias na vida: uma é não conseguir o que se quer. A outra é conseguir". A frase de Oscar Wilde parece ser fundamental para todos os envolvidos ali, que veem seus desejos esfacelados - mesmo diante daquilo que poderia ser considerada uma vitória. O narrador sonha em ser um escritor de sucesso, Rodney deseja sepultar as lembranças trágicas do conflito, o pai de Rodney gostaria de não ter forçado a barra com seus dois filhos - especialmente com Bob, o irmão mais velho de Rodney. Talvez se o protagonista tivesse agido diferente com a sua esposa Paula e com seu filho Gabriel. De repente tudo ocorreria de forma diferente, por outros percursos, outros caminhos. Ou talvez assim não houvesse essa verdadeira obra-prima moderna, que fala de muitas coisas ao mesmo tempo, sem deixar de ser, ainda, um grande elogio ao poder da escrita. Inclusive como forma de exorcizar demônios. Vale a leitura. O quanto antes.

quinta-feira, 7 de julho de 2022

Cinema - O Acontecimento (L’évènement)

De: Audrey Diwan. Com Anamaria Vartolomei, Anna Mouglalis, Pio Marmai e Sandrine Bonnaire. Drama, França, 2021, 100 minutos.

Se nos dias atuais, quando o assunto é a descriminalização do aborto, o pânico moral e o conservadorismo freestyle já costumam nivelar o debate por baixo - como no caso do recente episódio em que o Brasil "parou" pra discutir se era certo ou não uma menina de apenas 11 anos interromper uma gravidez indesejada - imagina há 60 anos. Ou mais. Na França, a legalização do aborto entraria em vigor em 1975. Antes disso, tal qual os países mais atrasados - como no caso do nosso, que insiste em se comportar como uma espécie de Idade Média tropical -, cessar uma gestação de forma voluntária poderia ser considerado crime. Aliás, a proibição era tanta, que algumas mulheres foram condenadas à pena de morte por esse simples desejo de decidir sobre o próprio corpo. Isso sem falar no sem fim de complicações de saúde provocadas por abortos clandestinos - uma verdadeira calamidade sanitária que poderia gerar traumas irreversíveis (ou mesmo a morte).

Em cartaz nos cinemas, o impactante O Acontecimento (L’évènement) nos apresenta à jovem Anne (Anamaria Vartolomei), uma estudante promissora que resolve esconder uma gravidez inesperada às vésperas do vestibular. Afinal, um filho, ainda no começo da vida adulta, poderia representar a interrupção do sonho de seguir uma carreira na área de Letras. Enfim, de ter independência, liberdade e autonomia, especialmente em relação ao futuro. Só que, em 1963, a visão da sociedade patriarcal é apenas uma: abortar é se tornar, automaticamente, uma criminosa. Uma assassina. Para os familiares, para os médicos, para a Igreja, até para alguns amigos. O que tornará a jornada de Anne absolutamente solitária na tentativa não apenas de manter a gestação em segredo, mas também de descobrir alguma forma, qualquer que seja, de cessar a gravidez.


Contada em pequenos capítulos que são pontuados pelo avançar das semanas de gestação - quatro, seis, dez -, a protagonista se empenha em esconder a barriga que cresce, ao passo em que mantém o silêncio sobre a questão. No consultório do ginecologista chega a afirmar ser virgem, para ouvir do médico uma resposta seca: "você está grávida". Numa outra consulta, o profissional não apenas a demove da ideia, como lhe prescreve um medicamento que fortalece o sistema hormonal - e consequentemente o feto em formação. Medidas desesperadas que vão no limite da automutilação contribuem para que a experiência seja agoniante, sufocante e até eventualmente assustadora. É quase como um filme de terror sobre uma jovem absolutamente fragilizada, que tenta desesperadamente sobreviver a um entorno opressor, enquanto tenta encontrar em um beco qualquer um abortista que não se comporte como um carniceiro.

Com ótima caracterização de Vartolomei, o filme da diretora Audrey Diwan se vale do uso da câmera bastante próxima do rosto de seus personagens - focando reações, detalhes do olhar, gestos e sutilezas -, o que amplia certa sensação de desespero, especialmente conforme o avançar das semanas. A trilha sonora de notas cortantes, meio tortas, caóticas, também contribui para um senso de instabilidade meio generalizado e irreversível, que evoca do roteiro bem costurado. E há por fim, o aspecto bastante gráfico e até ousado das sequências em que os invasivos procedimentos são executados que, de forma paradoxalmente contrastante, surgem violentas, agressivas, ao passo em que Anne se exaure na intenção de manter um silêncio forçado (para não chamar a atenção). Grande vencedor do Festival de Cinema de Veneza no ano passado, O Acontecimento pode até não ser um... acontecimento. Mas o simples fato de chamar a atenção para um tema tão relevante e atual quando o acesso a um aborto seguro já faz valer a pena.

Nota: 8,5


terça-feira, 5 de julho de 2022

Curta Um Curta - O Último Casamento (Det Sista Äktenskapet)

"Eu posso muito bem ser o último homem do mundo inteiro e você quer se divorciar de mim?". A pergunta de Janne (Christopher Wagelin) à sua esposa Marie (Emma Molin) poderia apenas soar trágica, mas acaba ganhando ares cômicos no premiado curta-metragem O Último Casamento (Det Sista Äktenskapet), que está disponível na plataforma Filme Filme. Em meio a um apocalipse zumbi o casal luta pela sobrevivência, equipando a casa em que vivem com cercas elétricas - que funcionam com energia solar -, enquanto mantém uma horta para produção de batatas no jardim. O dia a dia, de afazeres domésticos repetitivos, de partidas de Street Fighter e de poucas novidades, resulta em um inesperado marasmo. Que se amplia diante da insatisfação sexual verbalizada por Marie. Mas o que fazer quando, no entorno, há uma horda de zumbis sedenta por sangue? Apostando em metáforas sobre as dificuldades impostas pela rotina dos relacionamentos, os diretores Gustav Egerstedt e Johan Tappert divertem e fazem pensar, nessa pequena obra que foi premiada nos festivais de Tribeca e de Chicago. Vale conferir!

Novidades em Streaming - O Canto do Cisne (Swan Song)

De: Benjamin Cleary. Com Mahershala Ali, Naomie Harris, Glenn Close e Awkwafina. Drama / Ficção Científica, EUA, 2021, 112 minutos.

A lenda grega do Canto do Cisne - que refere-se, metaforicamente, ao último grande feito de uma pessoa antes de sua morte - é o elemento que norteia a narrativa dessa ficção científica existencialista que está disponível na plataforma da Apple TV+. E, admito: o filme me pegou. Especialmente por fazer refletir sobre um dilema moral ético em que, independentemente da escolha feita pelo protagonista, seria difícil fazer qualquer tipo de julgamento. E quem acompanha o Picanha sabe que sou fascinado por esse tipo de experiência que, aqui, ganha ainda mais força não apenas pelo ótimo elenco - a interpretação de Mahershala Ali, por exemplo, é sempre uma AULA -, mas também pelos elementos técnicos, caso do elegantíssimo desenho de produção e, especialmente, da trilha sonora de nomes do art pop contemporâneo, como Moses Sumney, Frank Ocean e Helado Negro, que se conectam de forma quase epitelial ao roteiro.

A trama de O Canto do Cisne (Swan Song) se passa em um futuro próximo, onde a tecnologia parece ter avançado bastante - carros não necessitam de motoristas e os sistemas totalmente automatizados fazem parte do cotidiano. É nesse contexto que Cameron (Mahershala Ali), designer profissional e pai de família dedicado, amoroso, é diagnosticado com um câncer terminal - que ele mantém em segredo da esposa Poppy (Naomie Harris) e do filho pequeno (Dax Rey). Com apenas algumas semanas de vida pela frente, ele decide ir ao encontro de uma empresa que promete fazer réplicas perfeitas (e absolutamente iguais) de humanos, para fazer um clone de si próprio. A ideia é dotar esse clone de suas características não apenas físicas, mas também de suas memórias e de seu subconsciente, devolvendo a cópia para o convívio de sua família, enquanto pacientemente aguarda o ocaso de sua existência. Ninguém saberá desse gesto altruísta. Muito menos Poppy, que aguarda um segundo filho.

 

Bom, não é preciso dizer que a criativa ideia já é suficiente para que permaneçamos em suspense durante todo o filme. Concluído o procedimento, Cameron se verá diante de Alex, o seu duplo. Aquele que ocupará o seu lugar. Mas como aceitar isso, sem se ver invadido pela dor de, apenas aguardar a morte sem o convívio daqueles que mais ama? Como superar o suposto egoísmo que poderia advir de uma simples palavra que interromperia todo o procedimento? Ali entrega uma interpretação comovente de "dois homens" que são absolutamente iguais, ainda que possuam, aqui e ali, sutis diferenças - no figurino, em uma marca na pele, em um pequeno e distinto traço de personalidade. Na clínica em que o procedimento ocorre, Cameron é amparado pela doutora Scott (Glenn Close, em um papel menor, mas competente), enquanto estabelece algum tipo de amizade com outra doente terminal (vivida por Awkwafina) e que foi uma das primeiras pacientes do local.

Sim, os mais apressados poderão afirmar que a obra não passa de um episódio de Black Mirror estendido - aliás, tendo a concordar com aqueles que afirmam que uma pequena enxugada na ilha de edição teria feito bem à dinâmica, já que algumas sequências se estendem de forma eventualmente repetida (especialmente aquelas em que, curiosa e bizarramente, Cameron pode enxergar a sua "própria vida" pelos olhos de Alex). Ainda assim trata-se de uma grande estreia do diretor Benjamin Cleary - que faturou um Oscar pelo curta-metragem Stutterer em 2016 -, daquelas que nos faz refletir sobre luto, memória, permanência, medo da morte, ciência, medicina e tecnologia. Isso sem falar dos componentes filosóficos, socráticos e poéticos do todo. As soluções não são fáceis, certamente. Mas como exercício de imaginação não dá pra negar: o resultado é desconcertante. O que não é pouco.

Nota: 8,5

 

segunda-feira, 4 de julho de 2022

Novidades em Streaming - A Garota e a Aranha (Das Mädchen un die Spinne)

De: Ramon Zürcher. Com Liliane Amuat, Henriette Confurius, Ursina Lardi e André Hennicke. Drama, Suíça, 2021, 99 minutos.

"Viaje, viaje / Mais longe que o dia ou a noite (viaje, viaje) / Viaje (viaje) / No espaço extraordinário do amor / Viaje, viaje / Sobre a água sagrada de um rio indiano (viaje, viaje) / Viaje (viaje) / E jamais retorne". Não são poucos os instantes em que as curvas melodiosas, otimistas e melancólicas da canção Voyage Voyage da banda Desireless aparecem em meio a narrativa do curioso e poético A Garota e a Aranha (Das Mädchen un die Spinne). Seja em notas aleatoriamente tocadas ao piano, seja em uma sequência na boate, a música reforça o caráter permanentemente transitório da vida - e dos personagens que acompanhamos. Somos seres em movimento. Que abandonam lugares, objetos, pessoas em busca de outros objetivos, outras conquistas, outros amores, outras amizades. Um novo trabalho. A cidade que fica para trás. Os estudos concluídos. Alguém que se mudou e que não veremos mais. Rompimentos e fluxos contínuos. Águas que vão e vem, rachaduras que surgem, fraturas que se curam.

De certa forma as simbologias delicadas, as metáforas sublimes gritam no filme dirigido por Ramon Zürcher e que está disponível na plataforma Mubi. Na trama, a jovem Lisa (Liliane Amuat) está se mudando. Em meio ao caos de caixas espalhadas, de ajustes e de instalações sendo feitas no novo apartamento - algo que se soma ao reconhecimento de um ambiente que, mais adiante, ganhará a personalidade da recém-chegada moradora - pessoas vão e vem: instaladores com suas furadeiras, novos vizinhos que se pretendem acolhedores, a mãe de Lisa Astrid (Ursina Lardi), uma mulher de cinquenta e poucos anos vigorosa e cheia de palpites, uma amiga chamada Mara (Henriette Confurius) que circula introspectiva enquanto parece entristecida com alguma coisa. Cachorros, crianças, objetos aleatórios: estiletes, esponjas, perucas, utensílios. Conversas amenas que também são profundas. O dito pelo não dito. O que ficou, o que vem. Até mesmo aquilo que parece parado.


Definir A Garota e a Aranha, por sinal, não é tarefa fácil. É um drama inevitavelmente humano, sobre segredos, frustrações, desejos e anseios nem sempre verbalizados - mas, aparentemente, sempre sentidos. Nesse vai e vem que é a existência contamos muitas vezes com o aleatório como componente norteador. O inesperado que ganha substância. O abstrato que se materializa. Na noite em que está se despedindo de seu antigo apartamento, Lisa realiza uma festa para amigos, vizinhos, novos e velhos conhecidos. A alegoria para algo que se rompe parece fácil, lógica. Um vidro que se quebra. Uma vizinha estranha, que adota um gato. Uma rachadura no móvel novo. Um bebê que chora um choro que se confunde com outros barulhos externos. Há, na experiência, algum tipo de fluidez constante, como que cortando tudo. Ou mesmo entrelaçando as coisas, situações - como uma espécie de aranha que tece a sua teia unindo tudo (com a mesma fragilidade com que aquilo que ali está pode se romper).

Mais uma vez, essa talvez seja uma experiência que talvez incomode os espectadores mais impacientes, que sempre esperam que algo aconteça. Que solucione, que esclareça, que direcione o entendimento. Mas essa é mais uma obra muito mais para vivenciar do que para compreender. Há no contexto todo um sentimento meio claustrofóbico do aperto, da vida nas grandes cidades, da doença e do mal estar cotidianos, da persistência da renovação. Algo que pode ser simbolizado, por exemplo, pelo desenho de uma planta baixa de um prédio que, aos poucos, vai "ganhando vida". Ou mesmo pelos objetos que furam - como a britadeira barulhenta que volta e meia surge para nos lembrar que, sim, há barulho ali naquele meio (mesmo em meio a placidez das notas econômicas de um Voyage Voyage meio torto ao piano). É quase como se estivéssemos em uma fábula de Jean Pierre Jeunet, dirigida por Luis Buñuel. O que pode ser uma boa forma de resumir (e elogiar) a eloquência da narrativa. Mesmo quando ela é sutil.

Nota: 8,5