quarta-feira, 30 de junho de 2021

Cinema - Helen

De: André Meirelles Collazzo. Com Marcélia Cartaxo, Thalita Machado, Tony Tornado e Luiza Braga. Drama, Brasil, 2021, 96 minutos.

Eu confesso a vocês que sou absolutamente fascinado por filmes que partem de um fiapo de história, para traçar um painel mais amplo em que questões políticas, sociais e culturais de certo País se descortinam de forma sutil, enquanto o cotidiano simplesmente acontece. No caso de Helen, estreia do diretor André Meirelles Collazzo, o cenário é o bairro do Bixiga, em São Paulo, e os seus labirínticos cortiços. Famoso por ser reduto de imigrantes italianos, o local é muito mais miscigenado do que deixa transparecer. Pior, para o diretor se consiste em uma "ferida exposta no meio da capital, onde existe uma precariedade e uma exploração do trabalho absurdas", como revelou em entrevista para o portal Papo de Cinema. Ao cabo, trata-se de um espaço em que as pessoas trabalham sem carteira assinada com a intenção de garantir a próxima refeição, enquanto habitam quartinhos em pensões tão insalubres quanto caras.

É nesse contexto que vive a pequena Helen (Thalita Machado), de apenas nove anos. Cuidada pela avó (Marcélia Cartaxo), a garota se divide em meio à brincadeiras cotidianas com os amigos da pensão, os estudos em uma escola pública do bairro, e um esforço de sobrevivência que se dá em um cubículo claustrofóbico. Negligenciada pelos pais, a menina tem uma rotina de muitas dificuldades e de poucos prazeres - sendo um deles visitar uma vitrine que exibe um vultuoso estojo de maquiagens, que ela decide que será o presente que dará a sua avó, em seu próximo aniversário. Sim, aqui está o fiapo de história: em meio ao cotidiano suado - dona Maria, a avó, parece estar sempre em movimento, seja lavando a laje da pensão que ajuda a cuidar ou vendendo espetinhos de carne de forma improvisada na calçada -, não parece haver muito espaço para respiro. Para cuidar de si, de sua saúde ou, que seja, da sua beleza. A vida é trabalho, luta, suor, sangue, grito, choro e, como não poderia deixar de ser, violência, que surge em seus variados formatos.


Ainda assim não se trata de um filme essencialmente panfletário ou que utiliza a violência para criar algum tipo de "estética" que possa servir apenas para retroalimentar os circuitos de arte. Ao contrário: o que Collazzo parece pretender aqui é falar de forma direta, buscando alcançar também aquele público para o qual centra a sua lente. Sim, a despeito do belo uso dos recursos técnicos - não são poucos os planos-sequência ou as tomadas de câmera que tornam a pensão uma espécie de labirinto naturalista, em meio à fotografia verde-acinzentada (que costuma ressaltar a melancolia dos grandes centros) -, a ideia geral é evitar o virtuosismo excessivo. Nesse sentido, não são poucos os "códigos" que dialogam com o nosso atual contexto - e que evidenciam os mais variados abusos. Numa sequência, por exemplo, Helen é assediada, mas sem que haja exploração excessiva do tema. Há na sugestão um poder que é evocado o tempo todo - e que, quando explode, como na cena em que o "rapa" leva embora a churrasqueira da avó, nos permite compreender qual é a realidade em que todos ali estão inseridos.

E por mais dura e realista que a obra seja, não são poucos os momentos de ternura que acompanhamos e que parecem ser a força motriz para que todos ali possam continuar - e, eu, particularmente me apaixonei pelas interações das personagens, especialmente de suas figuras centrais. Em uma cena em que avó e neta saboreiam, juntas, um delicioso pudim de leite, enquanto memórias do passado são evocadas, é simplesmente impossível não se apaixonar. Vale o mesmo para cada instante em que Tony Tornado surge em tela. É um filme que entrecruza a balbúrdia do cotidiano e a urgência de tudo, para nos levar em um instante para a efervescência cultural que explode (como na cena em que um coletivo de militantes realiza em ato político em defesa de Marielle Franco), enquanto a pequena Helen tem devaneios em que música, teatro, dança e outras manifestações culturais aparecem. As interpretações são maravilhosas. Marcélia Cartaxo, a gente sabe, dispensa comentários. Mas Thalita Machado, selecionada entre mais de 400 meninas, é uma força da natureza. Que nos faz acreditar que aquela realidade, é a realidade de milhares de garotas sonhadoras como ela. Simplesmente imperdível.

Nota: 8,5

segunda-feira, 28 de junho de 2021

Tesouros Cinéfilos - Razão e Sensibilidade (Sense and Sensibility)

De: Ang Lee. Com Emma Thompson, Kate Winslet, Alan Rickman, Hugh Grant, Gemma Jones e Tom Wilkinson. Drama / Romance, EUA / Reino Unido, 1995, 136 minutos.

A obra de Jane Austen costuma ser bastante criticada, atualmente, por parecer bastante deslocada de seu tempo. Com suas personagens envolvidas em conflitos familiares em que temas, como, matrimônio por conveniência, disputas por heranças, castidade eventual e lutas de classes, são inseridos em meio a mesquinharia da burguesia e ao virtuosismo ocasional das classes menos abastadas, temos narrativas em que a simplicidade alegórica e o romantismo quase efêmero se sobressaem - enquanto assuntos de mais envergadura, ligados ao contexto político, social, religioso e cultural são relegados a um segundo plano. Devo dizer que eu não sei se concordo com isso - e, aqui vai uma confissão: nunca li nenhum livro da autora inglesa. Mas admito que sigo achando sensacionais as experiências cinematográficas com as suas publicações, sendo Razão e Sensibilidade (Sense and Sensibility), uma de minhas favoritas.

A gente jamais pode esquecer, por exemplo, que o livro em que se baseia o filme de Ang Lee, foi escrito em 1808. Mais de duzentos anos atrás. Muito antes de qualquer luta feminista ou da criação de qualquer personagem mais forte nesse sentido. O que não impede o fato de percebermos o vigor com que Gemma Jones encarna a Sra. Dashboard, que cria sozinha as três filhas em meio ao ambiente campesino, após perder o marido. Ou mesmo o empenho de Elinor (a sempre exuberante Emma Thompson) em tentar se manter firme em meio a tantas idas, vindas, sofrimentos e reviravoltas que envolvem, também, o seu candidato a par romântico Edward Ferrars (Hugh Grant). Sim, por trás das intenções de uma vida doméstica organizada, em um casamento satisfatório, há uma força de vontade genuína e uma ampla e heróica capacidade de "movimento", de sair do lugar comum, de lutar por amores, amizades e situações que modifiquem o cotidiano, que evoquem alguma esperança em meio a estupidez dos dias repetidos.


E, quase como sempre parece ocorrer nas obras de Austen, a quebra da hierarquia relacionada as diferenças de classes é o que rege cada uma das narrativas. Mais do que isso, é bastante frequente o retrato da aristocracia como um coletivo eventualmente estúpido, mesquinho, fútil e interessado apenas em perpetrar a sua riqueza, por meio de casamentos enjambrados, em que o que menos existe é o amor. Nesse sentido, a simples luta pelo "amor" - especialmente em uma sociedade que se pauta pelo ódio -, parece tornar Austen tão atual e necessária. Assistir aquelas várias famílias em suas casas simples ou majestosas, em meio à natureza exuberante, que acompanha chuvas comoventes em meio ao movimentos de carroças, cavalos e outros acessórios, no campo ou em cidadelas em construção, é sentir algum tipo de familiaridade que aproxima da coisa simples, do bucolismo nostálgico, da saudade daquilo que nem vivemos (mas que, talvez, em nosso íntimo, desejemos viver). Em resumo, a gente torce pra que a coisa dê certo - e quer algo mais "subversivo" do que isso?

A trama parte do falecimento de um patriarca, que deixará a ex-mulher e as filhas em maus lencóis - uma vez que a herança vai parar nas mãos de seu único filho (e de sua ambiciosa e irritante esposa). A solução encontrada é se mudar para uma casa simples e improvisada, na tentativa de sacudir a poeira e seguir em frente. Enquanto ocorre um verdadeiro desfile de figurinos e de cenários deslumbrantes - o desenho de produção beira à perfeição - acompanhamos as tentativas de duas irmãs em se arranjar em matéria de matrimônio, o que pode lhes ajudar num futuro melhor. Alguns pesquisadores garantem que Austen olhava com carinho para suas personagens, tentando evitar ao máximo o sofrimento do leitor (e do espectador) - o que reduziria a força de sua obra, excessivamente harmônica (assim como são as flores e os jardins bem arranjados) e amplamente fraternal. A gente pode dar "voltas" defendendo este ou aquele ponto de vista, mas uma coisa é certa: o filme de 1995 segue como um valioso e íntimo retrato da Inglaterra do começo do século XIX. E o Oscar de Roteiro Adaptado, há exatos 25 anos, pode ser que avalize essa condição, valendo o resgate.


quarta-feira, 23 de junho de 2021

Cinema - Eu Estava Em Casa, Mas... (Ich War Zuhause, Aber)

De: Angela Schanelec. Com Maren Eggert, Jakob Lassalle, Franz Rogowski e Lilith Stangenberg. Drama, Alemanha / Sérvia, 105 minutos, 2019.

Em uma recente entrevista ao diário espanhol La Vanguardía, a jornalista Magdalena Tsanis perguntou à diretora Angela Schanelec algo sobre ela ser um tanto reticente na hora de explicar os seus trabalhos. Sua resposta foi: "quando falo tenho tendência a generalizações e não gosto disso. Faço filmes, não sou política. Meu papel não é explicar, e sim fazer perguntas." E eu confesso a você que poucas vezes me vi tão instigado a pesquisar mais sobre um filme visto, ou mesmo buscar alguma informação a mais que pudesse me fazer compreender qual era o objetivo por trás da experiência fílmica, do que neste Eu Estava Em Casa, Mas... (Ich War Zuhause, Aber). Vencedora do prêmio de Direção no Festival de Berlim, a obra funciona como uma verdadeira colagem de eventos cotidianos, em que temas variados, como, maternidade, relações familiares, sensação de não pertencimento e passagem do tempo, entre outros, surgem como recortes aparentemente aleatórios, ainda que jamais vazios.

É, ao cabo, um daqueles filmes sensoriais e eu, sinceramente, sou absolutamente fascinado por experiências cinematográficas que nos provocam mais, que nos fazem pensar, que nos geram desconforto. Schanelec é, assim, uma observadora paciente do cotidiano. Dos encontros casuais e de como eles nos movem, nos transformam, nos modificam. Não por acaso a película inicia como se fosse uma obra idílica em meio a natureza. Um coelho foge de um cachorro. Para no instante seguinte ressurgir já morto, sendo estraçalhado pelos dentes de seu predador. Um outro animal aparece - um cavalo. Uma casa de aparência antiga. Um plano médio em que se veem muitas pedras. Há um bucolismo paradoxalmente acinzentado. Questionada no próprio Festival de Berlim sobre o sentido disso, ela teria respondido algo tipo: "eu sempre sonhei em filmar um coelho saltitando. Foi o que fiz aqui".

A narrativa parte de um fiapo: um menino surge caminhando em uma encruzilhada, muito sujo, ultrapassando cenários, o trânsito movimentado, até chegar a um local em que sua mãe será chamada. Ele estava perdido? Havia fugido? Por que não estava em casa? Mais adiante, os demais personagens serão inseridos por meio de pílulas: a irmã, os amigos da escola, os colegas de trabalho e o namorado da mãe. Não demorará para descobrirmos que o pai faleceu em circunstância trágicas. Era um diretor de teatro. O que explica a persistência dos jovens em encenarem uma peça improvisada de Shakespeare - Hamlet que, aliás, sabemos, tem a metalinguagem como característica. No contexto haverá, ainda, uma predileção pelo intercâmbio entre os temas urbanos e os bucólicos, a pressa e a lentidão, a leveza e a fúria, o carro e a bicicleta, a vida real e a encenação. Há um aspecto teatral na narrativa, como se a ironia da apropriação do formato servisse não apenas como crítica, mas também como seu propósito. Sim, é complexo. Mas é tão esquisito quanto bonito.

E, como não poderia deixar de ser em uma obra dessas, ela tem o seu próprio tempo de acontecer, um tipo de fluidez vagarosa, nada urgente. Em uma longa sequência, por exemplo, a protagonista Astrid (a ótima Maren Eggert) surge em meio a divagações com um senhor que lhe venderá uma bicicleta. A câmera é estática. Há uma dificuldade de comunicação - já que o seu interlocutor tem um severo problema de fala. Um tipo de encenação que ganha contornos de realidade "ampliada" quando ela volta ao local para devolver a bicicleta - ela tem um defeito que "trava" a roda. Essas estranhezas (também) técnicas, os longos planos sequência, os ângulos de câmera oblíquos - como na cena em que uma piscina surge como parte de um prédio com pé direito gigantesco -, fazem com que sejamos instigados o tempo todo. O que será que ela quer dizer? Qual o objetivo? Qual a metáfora por trás? E mesmo sem ter certeza de nada, saímos satisfeitos da sala de cinema. Uma obra de arte pode ser aberta. Talvez até deva. Fica conosco as conclusões, as percepções. Que tornam o ciclo completo.

Nota: 8,5

terça-feira, 22 de junho de 2021

Livro do Mês - Solução de Dois Estados (Michel Laub)

É o Brasil polarizado na sua essência que nos é apresentado no espetacular Solução de Dois Estados, mais recente romance do gaúcho Michel Laub, que é também autor dos ótimos Diário da Queda e Tribunal da Quinta-Feira. Nas páginas do livro, o ódio que divide também as famílias é materializado na experiência antagônica que envolve os irmãos Alexandre e Raquel. Jamais estereotipados, ainda que ricamente caracterizados, os dois funcionam como uma espécie de case para uma certa Brenda Richter - documentarista alemã que centra a sua lente para os países do Terceiro Mundo, bem como para as suas mazelas, diferenças sociais, contrastes. As questões políticas e a beligerância por trás de cada manifestação de cunho ideológico também pontuam cada obra da diretora. Jamais a questão é tratada de forma aberta, mas o Brasil que "iniciou" em 2018 - aquele mesmo que odiou perdidamente o PT (e a esquerda) e alçou um genocida desqualificado ao poder -, aparece em cada página. Em cada linha. Nos detalhes de cada relato.

Sim, porque este é um livro de relatos. De recortes. De entrevistas abertas capturadas por Brenda, com Alexandre e Raquel se intercalando em capítulos, em pequenas narrativas que contam um recorte de tempo que inicia ainda no começo dos anos 90 - período do desastroso Plano Collor e do consequente impeachment daquele que dava nome a uma política financeira bizarra da época. Cada um com eu ponto de vista. Mesmo com certa estabilidade, foi nessa época que Alexandre e Raquel viram seu pai falir. Raquel, traumatizada pelo bullying que sofre desde a juventude - o que rendeu um sem fim de episódios de humilhação (ela sempre foi obesa e, aos 46 anos, pesa 130 quilos) - converte as suas frustrações em performances artísticas em que expõe o corpo, misturando ato político, sexualidade, pornografia gráfica e violência. Tudo obtido com bolsas de estudo em caríssimas faculdades de Artes européias, patrocinadas pela mãe agora viúva (e com dinheiro que talvez eles sequer tivessem).

No outro lado da história, Alexandre é o empreendedor que transforma o limão em uma limonada - pra usar um dos tantos jargões da área. Permanecendo no Brasil, apoia à sua maneira a deprimida mãe e inicia uma via crúcis no mercado de trabalho, onde salta de estagiário de uma academia de ginástica, para um dos sócios majoritários do negócio. O que obtém com muito suor, sangue e dificuldades - e com o apoio de um pastor evangélico que atua na periferia, organiza um esquema de pirâmide financeira e, aparentemente, pode ter algum vínculo com as milícias. Não é preciso ser nenhum adivinho para reconhecer, de um lado, o conservadorismo raiz - que mistura apelo religioso com superação de dificuldades, capaz de utilizar a urna eletrônica com a arma em punho, enquanto divaga sobre sonhos meritocráticos - e, de outro, a progressista - também conhecida como "mamadora de tetas do Estado", que, de quebra, ainda é financiada por um banco privado, enquanto apresenta performances artísticas de gosto duvidoso para a classe média das grandes metrópoles. Aliás, classe média que, assim, se sentirá momentaneamente contemplada por algum tipo de fiapo de consciência (que se diluirá no jantar a base de sushi daquele amigo progressista).

No centro da discussão estará Brenda, que inicia como uma ouvinte neutra que, aqui e ali, fará pequenas inferências. Ela, afinal de contas, também tem seus traumas: perdeu o marido vítima de violência urbana quando divulgava um filme justamente no Brasil. A mesma violência que alcançará Raquel não apenas na sua juventude, mas também durante um evento em que realiza uma performance num hotel, durante um congresso, ocasião em que um homem sobe no palco para agredi-la física e moralmente. O homem em questão, de nome Jessé, é um pedreiro com problemas de alcoolismo que perde a filha para o crime. É a bola de neve da falência do Estado brasileiro - e de sua incapacidade de encontrar soluções para as mais variadas questões - que pontua a narrativa, que é conduzida como experiência literária que gera desconforto mas entretém em igual medida. Na orelha do livro, publicado pela Companhia das Letras, resta a pergunta: "a ideia de conciliação - ou de perdão - é inimiga ou aliada da barbárie em que nos metemos?". A resposta não parece ser simples - e nem está no livro. Mas é o tipo de impasse que nos deixará com a obra na cabeça por semanas a fio.

segunda-feira, 21 de junho de 2021

Podcast do Picanha #6 (Segunda Temporada) - O Amor Está No Ar

Sim, a gente sabe que está atrasado em matéria de Dia dos Namorados. Mas também não ignoramos o fato de que todo o dia é dia para amar. E para os filmes românticos - sejam eles comédias, dramas, clássicos, alternativos. O inverno é convidativo pra isso: aquele cobertor pós sopa de capeletti, um merlot gradação 13 (no mínimo) e aquela obra cheia de idas e vindas e de personagens carismáticos, complexos, com desejos, anseios, frustrações e dores. E de voltas por cima. E de lágrimas e risos. E de você abraçado com o seu amor, entre uma fungada e outra, enquanto sonham em ser um pouco como o Hugh Grant encontrando a Julia Roberts naquela pequena livraria mixuruca de um condado ainda menor de Londres, sendo capazes de superar juntos todas as adversidades. Somos esperançosos, afinal. E se você também é, embarque conosco nessa jornada por 10 Filmes em que O Amor Está no Ar. Seja você solteiro, casado, separado, noivo, viúvo. O importante é se divertir. E curtir o melhor do cinema!


Novidades no Streaming - Em Guerra Com o Vovô (The War With Grandpa)

De: Tim Hill. Com Robert De Niro, Uma Thurman, Christopher Walken, Oakes Fegley, Rob Riggle e Jane Seymour. Comédia,  EUA, 2020, 98 minutos.

Confesso a vocês que foi o elenco que me atraiu pra esse Em Guerra Com o Vovô (The War With Grandpa) - bobajada infanto-juvenil que, se não é assim aquela coisa que se diga "nossa, que filme engraçadíssimo", ao menos me arrancou algumas risadas no final da noite de domingo. E, claramente, deu pra perceber que Robert De Niro, Uma Thurman e Christopher Walken também se divertiram bastante com as filmagens, como comprova uma sequência vista durante os créditos finais. Na trama, De Niro é o vovô da história - seu nome é Jack. Após perder a esposa, um acontecimento meio inusitado em um supermercado faz com que ele volte a morar com a família de sua filha Sally (Uma Thurman), o que inclui o genro (Rob Riggle) e três netos, entre eles o pequeno Peter (o ótimo Oakes Fegley), que se tornará o seu "rival" improvisado. Isto porque Sally oferecerá a Jack justamente o quarto de Peter, já que o idoso está impossibilitado de ocupar o sótão por causa de seus problemas de saúde (ele é quase um octogenário, afinal).

Indignado com a situação, o menino declarará guerra ao seu avô, com o objetivo de reconquistar o seu quarto - no sótão conviverá com móveis velhos, goteiras e outros incômodos. Já o avô, enlutado, sem ter muito o que fazer embarcará na brincadeira. E, acredite, este é o arco narrativo da obra dirigida por Tim Hill (de Alvin e Os Esquilos). Trata-se ao cabo de uma história que falará, a sua maneira, da importância da família, do respeito aos mais velhos e até mesmo sobre o absurdo do belicismo dos tempos atuais. E tudo isto enquanto um senhor de 77 anos e um pequeno de 12 inventam as mais engenhosas armadilhas pra tentar atacar o outro lado. Valerá de tudo: uso de cobras, passando por sabotagens em redações escolares, utilização de drones e outras engenhocas. É uma comédia bastante física, com parte da graça estando no esforço de De Niro para poder competir à altura do neto pré-adolescente. É o contraste que gera algum tipo de curiosidade, afinal.


Enquanto lutam entre si, avô e neto enfrentam os próprios dilemas pessoais. Peter está no sexto ano (talvez a pior série de todas, já que não é mais a criança de antes e ainda não se enquadra no grupo de adolescentes da escola). Como não poderia deixar de ser o garoto precisa lidar com um valentão praticante de bullying e com colegas cheios de inseguranças. Já Jack tenta se adaptar a uma família que, eventualmente, não o deseja ali, enquanto tenta encontrar alguma motivação para viver após se tornar viúvo. E talvez por isso achei que a figura de Walken - Jerry, seu personagem, é o típico "vovô radical" -, poderia ter sido melhor explorada, com talvez mais tempo de tela. Ele apenas surge como um exótico amigo do protagonista, um veterano que gosta de jogos e que embarcará de alguma forma na guerra contra o neto do amigo Jack. Já a bela veterana Jane Seymour será a candidata a par romântico, que também entra na história de rivalidade que envolve a dupla central.

Sim, pode parecer estranha e até simplória demais uma história em que avô e neto disputam um... quarto. Mas esse é um filme à moda Acertando as Contas com o Papai (1994), não esqueçamos (e nem sempre será necessária mais profundidade ou algo que não seja o mero entretenimento). Aqui a intenção é fazer o espectador rir, nem que seja de forma escapista na uma hora e meia em que acompanhamos a jornada estapafúrdia dos protagonistas. E, no fim das contas, em tempos tão duros como os que vivemos é o que vale a pena. Particularmente gosto da mensagem final, por mais óbvia que seja: guerra, pra quê? Com que fim? Quem ganha e quem perde quando é apenas um quarto que está em jogo? O motivo pode ser maior ou menor, a gente sabe - mas ele será invariavelmente absurdo. E ver Peter aprendendo sobre isso "na prática" faz essa pequena comédia disponível na Amazon ter seus momentos de inspiração.

Nota: 5,5


terça-feira, 15 de junho de 2021

Grandes Cenas do Cinema - Ghost: Do Outro Lado da Vida (Ghost)

De Jerry Zucker. Com Demi Moore, Patrick Swayze e Whoopi Goldberg. Comédia / Drama / Romance / Fantasia / Suspense, EUA, 1990, 126 minutos.

É talvez uma das cenas mais imitadas, homenageadas, parodiadas do começo dos anos 90, aquela em que Molly (Demi Moore) e Sam (Patrick Swayze) aparecem fazendo, juntos, uma peça artesanal de cerâmica no clássico Ghost: Do Outro Lado da Vida (Ghost). Aliás, o filme como um todo tem o DNA daquela década, com seu romance grandiosamente melodramático, uma certa voltagem erótica, um clima de suspense meio sobrenatural e uma boa dose de humor. E, essa sequência, com toda a sua ambiguidades sensual - que é valorizada pelo fato de o objeto manipulado não ser apenas vigorosamente cilíndrico, mas também úmido -, resume bem esse ideal: estamos, afinal, diante de um jovem casal saudável, que se diverte em meio a uma madrugada de insônia, após ambos se mudarem para um novo apartamento. De alguma forma, essa cena, que ocorre bem no comecinho do filme, e é embalada pela clássica canção Unchained Melody do The Righteous Brothers, estabelecerá o tipo de vínculo existente entre a dupla de protagonistas: claramente se amam. Tem química. E a gente já simpatiza.

Só que uma tragédia interromperá traumaticamente o relacionamento: após reagir a um assalto, Sam acaba assassinado em uma sequência tão triste quanto chocante. Do lado de fora do seu corpo, o espírito de Sam permanecerá em uma espécie de limbo: sem poder ir nem vir passará a fazer parte da rotina de Molly, tentando se comunicar de todas as formas com ela. Inicialmente em vão, aliás. Lá pelas tantas, ele descobrirá que a viúva corre perigo e que o criminoso que deu cabo de sua vida está a espreita dela. Pior, estando no "outro plano", ele não terá como avisá-la dos riscos que corre. Tudo piora quando Sam descobre que seu ex-sócio Carl (Tony Goldwyn) está envolvido na maracutaia toda, que poderá resultar no roubo de US$ 4 milhões de suas contas bancárias. É nesse contexto que Sam contará com a ajuda da médium Oda Mae Brown (a inesquecível Whoopi Goldberg, que ganhou o Oscar por seu papel). Será ela que fará a ponte para que o morto possa se comunicar com o mundo dos vivos.

Ao cabo, trata-se de um filme emocionante, tenso, divertido e romântico em igual medida. É a obra completa. Se, inicialmente, Oda Mae surge como uma figura excêntrica, de roupas e trejeitos extravagantes (o tipo de alívio cômico que aparece mais nas comédias do que nos dramas), aos poucos ela dará lugar a uma figura empática e inigualavelmente carismática, que não poupará esforços para auxiliar Sam e Molly. Do ceticismo inicial, à inesquecível sequência final - em que o protagonista se converte em uma figura plasmódica, que permite que Molly estabeleça um último contato -, o percurso apostará no suspense para manter o espectador de olhos bem atentos. Sim, porque por mais que Sam possa atravessar paredes e até fazer objetos inanimados se mexerem (após uma curiosa sequência de aprendizado), não será fácil tentar se comunicar com a sua, agora, ex. Ainda mais com o "veículo" sendo a destrambelhada (e adorável) Oda Mae!

Mas, estamos nos anos 90, não esqueçamos. E, ao final, a sua maneira, tudo dará certo, com Molly sesalvando e os bandidos sendo tenebrosamente enviados para o "andar de baixo". E eu confesso que, revisitando a obra de Jerry Zucker, pude perceber que ela envelheceu bem: aqui e ali ainda há uma ou outra piada machista ou sexista ou alguma anedota meio de tiozão (aquela do elevador é a mais abobada delas). Mas em geral é um filme leve, divertido, tem bons efeitos especiais e até deixa um gostinho de quero mais em sua conclusão. Não por acaso, foi um estrondoso sucesso de público: se tornou a terceira mais bilheteria naquele verão norte-americano de 1990, faturando mais de US$ 500 milhões de dólares por lá. No Oscar, chegou a ser indicado na categoria Melhor Filme, tendo faturado o carecão dourado nas categorias Roteiro Original e Atriz Coadjuvante (Goldberg). Não foi pouco para uma película despretensiosa, que viria a se tornar um dos maiores blockbusters do começo daquela década.

segunda-feira, 14 de junho de 2021

Tesouros Cinéfilos - Um Lugar Chamado Notting Hill (Notting Hill)

De: Roger Michell. Com Julia Roberts, Hugh Grant, Rhys Ifans, Emma Chambers e Gina Mckee. Comédia romântica, Reino Unido / EUA, 1999, 124 minutos.

Curioso notar como uma comédia romântica com um roteiro tão improvável quanto Um Lugar Chamado Notting Hill (Notting Hill) siga tão elegante, irresistível e engraçada. É um romance estilo classudão, mas ao mesmo tempo cheio de piadas boas - especialmente aquelas que se apropriam do contexto em que seus personagens estão inseridos. A trama se passa na charmosa cidade título - aquele tipo de lugarzinho interiorano, que costuma ter a feira da cidade como o evento mais emocionante da semana. E é na Inglaterra o que, naturalmente, aumenta o caráter encantador da coisa. É nesse local pacato, que Will (Hugh Grant, pra variar) mantém uma pequena livraria especializada em guias para viagens. Em meio a um cliente xarope e outro, o sujeito recebe a visita da estrela hollywoodiana Anna Scott (Julia Roberts), que está na Europa para divulgar o seu novo filme - uma bobajada de ficção científica. E, bom, vocês já sabem: primeiro contato desengonçado, desventuras, aquele clima de "não vai dar certo" até que...

Sim, a estrutura da uma comédia romântica dificilmente se modifica. É um clássico. E no curso de cinema que fiz com o mestre Pablo Villaça, ele nos lembrou mais de uma vez o fato de que devemos ignorar o aspecto previsível do gênero: o que vale mesmo é o percurso. A trajetória. E o quanto torcemos e nos importamos com aqueles que estamos acompanhando. E, vamos combinar, não é nada trabalhoso torcer para que Hugh Grant e Julia Roberts se "entendam" ao final de duas horas de experiência. Especialmente pelo fato de o filme do diretor Roger Michell (Vênus) nos pegar pelo braço e nos conduzir com leveza já na primeira cena - momento em que Anna surge deslumbrante, em vários lugares distintos, ao som da grandiloquente She de Charles Aznavour. Aliás, parêntese: com canções de Shania Twain (You've Got a Way), Ronan Keating (When You Say Nothing At All), Al Green (How Can You Mend a Broken Heart) e Bill Withers (Ain't No Sunchine), a película não faria feio no nosso quadro Cinemúsica.

Já Will nos é apresentado como aquele cara comum que, beirando os 40 anos e recém-divorciado, divide um sobrado com o amigo porra louca Spike (Rhys Ifans), aquele sujeito meio sem noção, que quase sempre surge nos filmes como o alívio cômico. Aliás, a parte engraçada da obra é ótima - e é lugar comum elogiar o humor inglês. Mas aqui ele está especialmente inspirado, ainda mais quando toma emprestada a metalinguagem como característica. Em uma cena em que a dupla central discute cláusulas relativas à nudez após o vazamento de fotos íntimas de Anna, ambos tecem longos comentários sobre dublês e sobre o fato de Mel Gibson não solicitá-los porque, afinal, ele é o Mel Gibson, oras! Em outro instante Anna é elogiada pelo seu papel em Ghost - Do Outro Lado da Vida (1990). E mesmo em meio a divagações mais melancólicas, como quando Anna recorre a frase de Rita Hayworth ("os homens vão pra cama com Gilda, mas acordam comigo"), a narrativa flui de forma orgânica, nos arrancando, nem que seja, um suspiro mais enternecedor.

E há ainda aquele coletivo de amigos irresistível de Will - e que deixam o espectador com um "quentinho no coração". A amiga cadeirante Bella (Gina McKee) é tratada com verdadeira devoção e carinho pelo marido Max (Tim Mclnnerny). Já Bernie (Hugh Boneville) surge como o amigo alienado ligado ao mercado financeiro, que sequer reconhece Anna na cena do primeiro jantar. Mas que também sonha em ser feliz. Honey (a falecida Emma Chambers) surge como a irmã destrambelhada do protagonista. A gente simpatiza com todos, cada qual a sua maneira. O que torna quase impossível não torcer por um desfecho satisfatório. E no combo todo nada se compara a sequência em que Will embarca por engano, na sessão de entrevistas do novo filme de Anna: os improvisos são bobinhos, mas funcionam (e, eu particularmente acho adorável a parte em que Mischa Barton revela estar no seu 22º filme, mesmo que só tenha doze anos). Talvez não seja por acaso que a comédia tenha sido lembrada no Bafta (ganhou o Prêmio Orange), ainda que tenha sido esnobada no Oscar. Sim, o Dia dos Namorados foi no último sábado. Mas ainda dá tempo de "resgatar". E bem facinho: tá na Netflix.

quinta-feira, 10 de junho de 2021

Livro do Mês - Baixo Esplendor (Marçal Aquino)

Se existe uma coisa que me fascina na obra do Marçal Aquino é o fato de ele pegar aquele Brasil urbano, violento, excessivamente hostil e nos fazer ele escorrer de uma forma absurdamente fluída das páginas de seus livros. Tá, ok, eu não sou um especialista no autor - li apenas o seu trabalho anterior, o imperdível Eu Receberia as Piores Notícias de Seus Lindos Lábios. Mas pude assistir ao filme O Invasor (2002), baseada em sua publicação inaugural. É nessas obras que a gente vê escancarado o Brasil dos contrastes, dos malandros, das traições, do submundo. Do jeitinho brasileiro. De tentar fazer dar certo aquilo que, no nosso íntimo, a gente sabe que não vai dar. É assim com o fotógrafo Cauby de Eu Receberia..., que desce ao inferno seduzido pela misteriosa e sedutora Lavínia, mulher de um pastor evangélico. E é dessa forma que ocorre com o agente de Inteligência Miguel, protagonista de Baixo Esplendor, que é designado para se infiltrar em um grupo que saqueia cargas.

O pano de fundo é o da Ditadura Militar brasileira, ano de 1973. Há uma tensão palpável que está no ar, em meio ao fluxo modorrento de opalas e fuscas, que se alternam pelas avenidas das grandes capitais. Nesse sentido a violência pode vir de onde menos se espera. Ou, em tempos de censura e de opressão, até de onde se sabe que ela pode vir. Como integrante da polícia civil, Miguel se aproxima de Ingo, um alemãozão estilo "interior do Paraná" que é o cabeça do grupo que está sob investigação. O protagonista cai nas graças do chefão que não apenas apadrinha sua entrada no bando, como ainda o apresenta sua irmã, a sensualíssima Nádia. A orelha da publicação garante: "o sexo é o ponto de combustão entre ambos". O tipo de encontro com alta voltagem erótica, que se converte em uma trama passional, onde as palavras "amor" e "morte" podem se alternar na mesma frequência.

Em meio a churrascos calorosos de fim de semana e visitas ocasionais a seu sobrado improvisado, Ingo e Nádia passam a integrar o cotidiano e Miguel, enquanto a sua missão se desenrola. Só que ela tem prazo para terminar: e o agente acredita que, na hora adequada, não terá dificuldades para romper os laços afetivos formados durante a operação. Mas será mesmo? Em meio a desconfianças vindas não apenas de Olsen, o delegado chefe das operações, mas também de companheiros de bando como Elvis (o Véio) e de Moraes, um dos braços direitos de Ingo que acaba por ser acusado de subversão, o protagonista vive o seu idílio amoroso. Romântico. Caótico. Explosivo. Eventualmente cinematográfico. E que tem lado. O que faz com que qualquer deslize possa acarretar consequências fatais, nessa ficção tão novelesca quanto ágil, vigorosa.

Na realidade, esse é aquele tipo de livro difícil de largar. Uma leitura rápida, mas caudalosa. Que nos faz mergulhar na paisagem sonora, perturbadora, de um Brasil claudicante em meio aos anos de chumbo. Não são poucos os personagens secundários que estão a margem da sociedade e que ganham espaço vigoroso dentro da prosa de Aquino, que aponta detalhes como se um estudioso de criminalística fosse. Traficantes, receptadores, prostitutas, travestis, assessores políticos, apresentadoras de TV, estudantes, motoristas... é o Brasil do posto de gasolina, das rodovias, do calor do asfalto, dos caminhões com carga e sem notas, do lusco-fusco do entardecer alaranjado. Da luta pela sobrevivência. Um Brasil tão Brasil que a história poderia ser a de qualquer tempo, a de qualquer época. Mudariam as personagens, os sujeitos. A narrativa? Igualzinha aquela que a gente vê por aqui. 

quarta-feira, 9 de junho de 2021

Novidades no Now/VOD - Amonite (Ammonite)

De: Francis Lee. Com Kate Winslet, Saoirse Ronan, Gemma Jones e Fiona Shaw. Romance / Drama, Reino Unido / Austrália, 2020, 120 minutos.

Amonite (Ammonite) pode até ter perdido força na reta final da temporada de premiações - foi um dos esnobados do Oscar desse ano. Mas este fato não retira a qualidade da obra do diretor Francis Lee, que entrega um filme com aquele estilo classudão, de época, com uma elegância que se estende para além dos aspectos técnicos, chegando às interpretações e até ao roteiro - que foge um pouquinho do óbvio na hora de retratar um romance entre duas mulheres. A trama retorna 200 anos no tempo para nos apresentar à paleontóloga Mary Anning (Kate Winslet), uma profissional sisuda, taciturna, que ocupa seus dias buscando evidências científicas de fósseis marinhos de um tipo bem específico de molusco (no caso o amonite do título original), junto ao Canal da Mancha. A rotina de não muita emoção é quebrada com a chegada da jovem Charlotte Murchison (Saoirse Ronan) ao local que, não demora, se transforma em uma espécie de aprendiz de Mary.

Ou, ao menos na teoria, é isso. Charlotte chega ao local conduzida pelo marido (James McArdle) e com uma recomendação médica a tiracolo: a brisa marinha, a água do mar e um ambiente mais tranquilo podem auxiliar a jovem no tratamento de um quadro de "melancolia". Não é preciso ser nenhum adivinho pra saber que a relação se iniciará às turras: pouco aberta para novidades e bastante pragmática, Mary maltratará a sua hóspede improvisada, não fazendo muita questão de esconder seu descontentamento diante da tarefa meio improvisada que lhe é imposta. E tudo piorará quando, fragilizada, Charlotte for acometida de um resfriado, que ampliará a distância entre a dupla central. Mas esse é um romance, não podemos esquecer, e essas dificuldades iniciais serão apenas o combustível para que, aos poucos, as duas se aproximem, iniciando uma relação as escondidas. A conservadora mãe de Mary (a ótima Gemma Jones) não pode sonhar que a filha deseja outra mulher. O mesmo valendo para o escândalo que envolveria Charlotte, uma moça casada.

Ao cabo, trata-se daquele tipo de filme que utiliza a sua ambientação - bem como seu desenho de produção, sua fotografia e até mesmo seu figurino - para a construção da narrativa que assistimos. A praia que a gente vê é acinzentada, pálida, pouco ensolarada. O frio parece emanar de cada canto, de cada frame - e as pedras coletadas não fogem a este aspecto. Mais, como força de reforçar o clima de desolação, Lee nos entrega, em uma das primeiras sequências, um café da manhã em que um ovo cozido se apresenta choco. Uma massa morta salta da casca. A melancolia está em cada poro. E é claro que tudo isso se modificará conforme avançar a amizade entre Mary e Charlotte: as roupas ganharão outras tonalidades, os sorrisos aparecerão bem como uma fresta de sol, aqui e ali. O amor é capaz desse tipo de transformação. Melhor, é capaz de tornar um ovo cozido em apenas isso mesmo: um ovo cozido. Gostoso. Normal.

É o filme que, também, não foge da estrutura convencional das obras de época, pautada muito mais por olhares e silêncios e por desejos nem sempre compreendidos, ou mesmo escondidos. Uma festa aleatória pode ser motivo de desentendimento. Uma carta endereçada pode representar o choro ou o riso. Um acontecimento prosaico que deixa os envolvidos enternecidos. A incerteza sobre tudo é o que rege a narrativa. Há o trabalho, os desejos profissionais, as ambições pessoais. E há o sonho da relação amorosa ideal, que quebra paradigmas, que confronta a sociedade em que todos se inserem. Em geral não há soluções fáceis e Winslet e Ronan se entregam a seus papeis da melhor forma, com a competência que lhes é habitual, nos emocionando e nos fazendo entender, a cada sutil movimento, cada uma de suas decisões. Sim, a Academia esqueceu completamente: mas nós estamos aqui pra lembrar que vale a pena.

Nota: 8,0

segunda-feira, 7 de junho de 2021

Podcast do Picanha Cultural #5 (Segunda Temporada) - Filmes Sobre Meio Ambiente e Sustentabilidade

No último sábado (05/12) foi celebrado o Dia Mundial do Meio Ambiente. Sim, enquanto no Brasil políticos ligados ao setor vão na contramão do mundo "passando a boiada", no restante do planeta a data serve para alertar para os problemas relacionados à degradação dos recursos naturais e para a necessidade (pra ontem!) de preservamos o meio ambiente. Discutir o futuro ecológico da nossa Terra é tão óbvio e tão necessário que o tema tem aparecido cada vez mais em filmes, séries e documentários - o que também estimula o público que consome estes produtos à reflexão. E foi pensando em tudo isso que resolvemos tornar este episódio do Podcast do Picanha Cultural em um verdadeiro serviço de utilidade pública: para isso convidamos o doutor em Biologia e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Ismael Franz (que também é primo deste que vos tecla) para que nos sugerisse obras com esta temática. Foi uma verdadeira aula, que o Bernardo e eu tivemos o privilégio de acompanhar de perto e que, agora, convidamos vocês a embarcar junto! Vale clicar e conferir!



quinta-feira, 3 de junho de 2021

Grandes Filmes Nacionais - Xingu

De: Cao Hamburger. Com João Miguel, Felipe Camargo, Caio Blat e Maria Flor. Drama / Aventura, Brasil, 2012, 102 minutos.

Poderia ter sido uma missão potencialmente violenta - com disputa por terras, morte e sangue. Mas sob a liderança dos Irmãos Villas-Bôas, o possível caráter militarista da Marcha Para o Oeste - expedição de contato, pacificação e respeito aos povos indígenas da região centro-oeste brasileira, nos começo dos anos 40 - transformou o Parque Indígena do Xingu na primeira terra indígena homologada pelo Governo Federal (no caso, por Jânio Quadros, nos anos 60). Significa que foi fácil? Sem pressões variadas, como as de uma ainda embrionária Bancada do Boi? Sem excessos burocráticos? Não. Foi difícil. Foi complexo. Exigiu um grande empenho. Especialmente de Leonardo (Caio Blat), Cláudio (João Miguel) e Orlando (Felipe Camargo), os três irmãos que, ainda jovens, partem para a expedição Roncador-Xingú, no coração do Brasil Central, com o objetivo de desbravar as regiões Norte e Centro-Oeste, com vistas a promover o desenvolvimento, a partir da criação de pequenos núcleos de colonização.

Era o Governo Vargas e o Estado Novo se impunha também como política migratória, que buscava o crescimento econômico em regiões consideradas pouco povoadas - o que incluía também o desenvolvimento da malha ferroviária, considerada estratégica dentro dessa política. Não por acaso, na época, foram criadas zonas de habitação em Goiás, Amazonas, Mato Grosso, Pará e Maranhão. E tudo isso, de alguma maneira, nos é mostrado no inadvertidamente nacionalista (no melhor sentido da palavra) no ótimo Xingú, do diretor Cao Hamburger (Filhos do Carnaval). Do contato inicial e cheio de dúvidas com as diversas etnias indígenas locais, até a consolidação do Parque como uma espécie de contrapartida as políticas públicas excessivamente desenvolvimentistas da época, a obra mostra os pequenos conflitos com latifundiários da região, os diversos interesses nas terras, e o sonho de um modelo de reforma agrária que pudesse valorizar a agricultura familiar.

Nesse sentido, o filme não deixa de ter um caráter idílico, de comunhão entre homem e natureza e de respeito às mais diferentes culturas, bem como seus hábitos, costumes, vestimentas, danças. Colocados em espectros opostos, brancos e índios estabelecem um contato que funciona quase como um sonho pacifista (especialmente em tempos em que o massacre de povos tradicionais inteiros parece fazer parte de uma espécie de agenda "paralela" governamental). Empenhados em promover o desenvolvimento local, mas sem necessariamente aniquilar os grupos originários, os Irmãos Villas-Boas são até hoje colocados ao lado de figuras proeminentes da área da educação e da antropologia, como Darcy Ribeiro e Marechal Rondon, especialmente pelo emprego de uma agenda que visava a preservação dos índios, quando em contato com a cultura dos brancos. O que, em muitos casos, resultou em choque com latifundiários, madeireiros e outros, contrários as políticas indianistas.

Talvez essa seja, ao cabo, uma obra otimista demais para os tempos que vivemos. Mas alternando momentos de confraternização - como aquele em que o grupo de brancos aparece participando de rituais de dança das tribos -, com outros mais comoventes, como quando comunidades indígenas inteiras são dizimadas por "gripes" e outras doenças de branco, Cao traz complexidade à obra, que não se encerra com a criação do Parque em si, uma vez que ele segue permanentemente sob ameaça (com desmatamento, garimpo ilegal, invasões e outros). Mas nos dá um respiro sobre uma existência possível com o diferente. Tecnicamente bem executado (as tomadas aéreas são belíssimas, e o desenho de produção, como não poderia deixar de ser, é amplamente naturalista), o filme não passa pano para as deficiências desse tipo de contexto, afinal de contas, até onde podemos "interferir" quando o assunto são os povos originários? E quais os caminhos para que seja assegurada a manutenção de suas vidas, e daquilo que é fundamental para que sobrevivam? Sim, são perguntas de difícil resposta.

terça-feira, 1 de junho de 2021

Tesouros Cinéfilos - Erin Brockovich: Uma Mulher de Talento (Erin Brockovich)

De: Steven Soderbergh. Com Julia Roberts, Albert Finney, Aaron Eckart, Conchata Ferrell e Cherry Jones. Drama, EUA, 2000, 131 minutos.

Filmes em que o cidadão comum é colocado em confronto com grandes corporações, instituições poderosas ou mesmo setores do Governo costumam render boas histórias - e não é diferente com o clássico moderno Erin Brockovich: Uma Mulher de Talento (Erin Brockovich). Dirigida pelo versátil Steven Soderbergh (Onze Homens e Um Segredo), a obra resgata a história da Erin Brockovich do título - uma mulher de modos simples, mãe de três filhos e que, depois de levar algumas surras da vida, consegue um trabalho em um pequeno escritório de advocacia. E será entre uma papelada e outra, em meio a outras tarefas puramente burocráticas, que Erin (que é vivida de forma contagiante por Julia Roberts) descobrirá um amplo esquema de contaminação de lençóis freáticos envolvendo a milionária empresa PG&E Gás e Eletricidade do Pacífico, que estaria utilizando, de forma indevida, uma mistura de cromo VI para evitar a corrosão dos metais do seu parque industrial.

O resultado disso? Centenas de famílias de moradores do pequeno condado de Hinkey, na Califórnia, relatando casos de doenças variadas - muitas delas gravíssimas, como o câncer. Só que o problema é que os documentos e os materiais de divulgação da PG&E alegavam exatamente o contrário: de que não haveria problema com a potabilidade da água consumida no local pelos moradores. E, mais do que isso: em exames médicos pagos pela própria indústria, a constatação de que os casos de doenças relatadas, nada teriam a ver com a aplicação de cromo. Instigada por todo esse arcabouço de informações, Erin vai atrás dos moradores, da Associação da Água e de seus próprios colegas advogados, com um episódio gigante de descaso com o meio ambiente, que resultou em severas enfermidades para a população local. Um prato cheio, claro, com tudo se tornando ainda melhor pelo fato de Erin não ter absolutamente nenhuma formação na área jurídica.

Aliás, este fato contribui para dar certa "cor" à narrativa. Erin, por ser uma mulher de hábitos simples - o que se observa no seu modo de vestir, no seu linguajar e no seu comportamento - não demora para se colocar em conflito com absolutamente qualquer pessoas que se coloque em seu caminho. E os melhores embates são, disparados, aqueles em que ela discute TUDO com Ed Masry (Albert Finney), o seu chefe, com quem ela está o tempo todo às turras (e a química dos dois é totalmente divertida e faz o filme funcionar, com direito a demissões e recontratações no meio do caminho, fora outros estratagemas que envolvem pequenas corrupções e trapaças entre ambos, mas com a pura intenção de fazer o caso central avançar). Já a vida pessoal de Erin também se apresenta como um tanto catastrófica, com ela precisando levar, invariavelmente, os seus três filhos para o trabalho, ou mesmo improvisando babás involuntários, caso do vizinho e candidato a par romântico George (o carismático Aaron Eckart).

Trata-se ao cabo de uma obra bem engendrada, que amplia a sensação de desalento dos moradores que acompanhamos, a cada tomada desértica, empoeirada e amarelada da região em que a PG&E está instalada. Ao mesmo tempo, não deixam de ser excêntricas as sequências em que Erin se vira nos trinta para tentar alcançar os seus objetivos, mesmo que seja amplificando o caráter sensual de seu comportamento (como na sequência da Associação da Água), ou mesmo buscando por conta as provas das fraudes químicas da água contaminada, sem jamais descer do salto, claro. Aliás, uma das cenas de maior regozijo é aquela em que Erin confronta um grupo de advogados de defesa, oferecendo a eles um copo de água para acalmar os ânimos (água extraída, evidentemente, das torneiras de Hinkey). Julia viria a ganhar o Oscar por sua interpretação nessa pequena joia do começo do milênio, fora as tantas outras indicações ao carecão dourado. Anos depois, enquanto assistimos o meio ambiente ser devastado no mundo todo (no Brasil, então, nem se fala), parece que carecemos de mais Erins, dispostas a bater de frente com os grandes, nem que seja para lembrar os poderosos da importância da fiscalização.