sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Cinema - Clara Sola

De: Nathalie Álvarez Mesén. Com Wendy Chinchilla Araya, Ana Julia Porras Espinoza e Flor María Vargas Chaves. Drama, Costa Rica / Alemanha / Bélgica / Colômbia / Dinamarca / EUA / Suécia, 2021, 106 minutos.

Existe uma cena perturbadora em Clara Sola - filme costarriquenho em cartaz nas salas do País - e que dá conta de como o fanatismo religioso se apropria do corpo alheio como forma de exercer opressão. Nela, Clara (Wendy Chinchilla Araya) está em uma consulta médica acompanhada de sua mãe, dona Fresia (Flor María Vargas Chaves). A intenção é estabelecer o diagnóstico para a curvatura das costas de Clara, o que lhe confere uma espécie de corcunda. O médico explica a Fresia que a solução está em uma cirurgia. A mãe recusa o apoio da ciência: "foi assim que Deus me deu ela", responde. Para a enferma não é dada a oportunidade de escolher. Aliás, no vilarejo distante em que a protagonista habita há quase 40 anos, ela é uma espécie de não mulher em corpo de adulta. Infantilizada, é tratada pela mãe com cuidado excessivo, o que lhe confere um ar ao mesmo tempo místico e ingênuo  O que explica o fato de os aldeões buscarem o apoio de Clara para que suas dores sejam expiadas.

Sim, estamos diante de uma casa em que prevalece o fanatismo religioso. Em que a culpa católica percorre as frestas, em meio a imagens de santas, de sacristias improvisadas, de velas e de terços. Clara habita esse local com uma resignação taciturna, encontrando refúgio na simbiose com a natureza. A mata, os riachos, as montanhas, os animais e os fenômenos da natureza estão no entorno - e geram encanto. É com eles que a mulher impedida de realizar plenamente aquilo que sente, comunga. O que explica a "obscenidade" de um instante em que, para subverter a lógica daquilo que espera a sua família - um comportamento envergonhado, tímido, comedido -, ela simplesmente se atira no barro. Se revolve nele. Se veste dele. É em meio a esses rituais quase selvagens, de conexão com a terra, de associação com o místico e até com a carne - aqui simbolizada pela presença constante de uma égua de estimação a quem destina seus cuidados - que ela encontra forças pra sobreviver. E para, aos poucos, despertar.


E será justamente por causa do animal de estimação que Clara conhecerá o jovem Santiago (Daniel Castañeda Rincón), treinador de cavalos que demonstra certa empatia por sua figura inocente, dando algum fiapo de afeto a cada visita que ele faz a jovem Mariá (Ana Julia Porras Espinoza), sobrinha adolescente da protagonista que está prestes a debutar. Em meio ao despertar sexual de Mariá, Clara verá também o seu próprio desabrochar acontecendo. O que poderá ser percebido nos detalhes: um batom colocados nos lábios, o desejo por um vestido mais bonito, mais feminino, do que as vestes largas e sem vida que Fresia pretende que ela use, como forma de fazer com que não se perca de vista a sua função de curandeira religiosa estabelecida pela mãe ortodoxa. O intelecto limitado que se mescla a um caráter sacro, divino, deve permanecer intocado. Por mais que das entranhas de Clara esteja emergindo o desejo.

Quando se toca de forma íntima, Fresia a pune passando pimenta em seus dedos. A trata como uma menina, mesmo que já esteja perto dos 40 anos - e lá pelas tantas a gente nem estranha mais o fato de própria Mariá dar banho na tia, penteando-a carinhosamente depois. Sua única distração na vida é assistir as novelas que, por fim, apenas ampliarão as suas vontades. E tudo é construído de forma tecnicamente impecável, com uma fotografia que borra os limites entre o real e o imaginário, o concreto e o folclórico, o terreno e o religioso. Já Araya, dançarina de profissão, dá uma aula de interpretação com seus olhares expressivos, silêncios que muito dizem e gestos econômicos, que a levam do indefeso ao indomável em segundos. Dá pra perceber de longe o quanto ela grita por dentro. Assim como nós, aqui desse lado, ficamos loucos para gritar para que ela se liberte, para que fuja desse sistema que a aprisiona, que a enjaula, que a reprime. De superproteção febril e opulenta, que se traveste de amor, mas que mais parece cólera. Em tempos de opressão religiosa e de retrocessos na pauta de costumes, um filme como Clara Sola é tão atual quanto importante. O que apenas amplia o seu valor.

Nota: 9,0


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