Não sei como é pra vocês a experiência de ouvir música mas, no meu caso, na maioria das vezes a audição de um novo álbum vem acompanhada de alguma outra atividade - uma louça lavada, uma caminhada de fim de tarde, um texto elaborado no trabalho. Essa operação, em muitos casos, eu repito - e não são raras às vezes que o descompromisso se converte em paixão instantânea. E é esse o caso de Estado Febril, o registro de estreia de Bruna Alimonda. Um disco que propõe uma saborosa mescla de MPB, indie pop e latinidade, com letras divertidas que utilizam metáforas gastronômicas para falar das dores do amor, como no caso das ótimas Cebola (Eu to cortando cebola pra não chorar só por você / Jogando a culpa e a razão desse sofrer) ou na autoexplicativa Janta e Põe a Mesa (A tua presença janta e põe a mesa / É como a xepa na segunda feira / Tempero bom que faz arder de amar).
E aí é lá pelo meio do trabalho que surge a imperdível Para de Me Curtir e Me Ama, que é aquele tipo de música que faz com que a gente pare tudo o que está fazendo para prestar atenção. Da letra safadinha ao refrão grudento, passando pela sonoridade primaveril e sofisticada, tudo parece tão perfeito aqui, que esse é o tipo de canção que, quase sozinha, eleva o disco para um outro patamar. Pernambucana de nascimento e também integrante da banda Abacaxepa, Bruna parece levar para o interior do registro alguns elementos formadores de sua bagagem artística - e que vão da breguice romântica à poesia popular. Carismática, a artista mantém uma boa base de fãs nas redes sociais, especialmente no Tik Tok, onde compartilha vídeos com voz e violão. "Eu tô amando saber o que vocês acharam. Sabe o que eu queria? Sentar em uma mesa de bar pra gente trocar ideia sobre esse processo todo", comentou no Instagram, na época do lançamento. Bom, por aqui, só podemos dizer que adoramos.
De: Catherine Breillat. Com Léa Drucker, Samuel Kircher, Olivier Rabourdin e Clotilde Courau. Drama / Suspense, Noruega / França, 2023, 104 minutos.
Devo confessar a vocês que sou fascinado por filmes que exploram de forma franca os temas considerados tabu na sociedade. Obras que ousam e que te colocam em uma situação de desconforto - mas que também ajudam a compreender a complexidade da experiência humana. É aquilo que já comentei muitas vezes nas resenhas: ninguém é bonzinho o tempo todo. Ou odioso - e menos que você seja alguma tipo de sociopata. E é por isso que produções como a excelente Culpa e Desejo (L'été Dernier) ficam reverberando após os créditos subirem. Seja pelo incômodo. Ou pela fuga do lugar comum. Aqui, temos o drama romântico estilo Hollywood dos anos 90, em que uma mulher mais velha, na faixa dos quarenta e alguma coisa, vive uma paixão intensa com o seu enteado - um jovem problemático, com passagens pela polícia, e uma clara dificuldade de estabelecer qualquer tipo de conexão. Situação talvez explicada pelo abandonado do pai (o atual marido de sua madrasta) no passado.
Só que, diferentemente do que poderia acontecer nos filmes do gênero e que eram bastante típicos de três décadas atrás, nos Estados Unidos - um período de conservadorismo ainda mais atroz, frente à liberdade feminina -, aqui há uma fuga da óbvia demonização da mulher adulta e (provável) abusadora sexual, o que seria uma conveniência certeira no sentido de agradar o espectador. É algo meio parecido com aquilo que assistimos no ótimo Segredos de Um Escândalo (2023), que segue sendo um dos grandes do ano. Podem haver mais camadas quando o assunto é o sexo? Sim, certamente. Aliás, esse é o tipo de controvérsia que, em alguma medida, sempre acompanhou a carreira da diretora Catherine Breillet, dona de uma filmografia provocativa em que assuntos inquietantes, ilícitos e imorais surgem com uma naturalidade surpreendente.
E como se não bastasse tudo isso, a trama ainda conta com um paradoxo curioso, já que Anne, a protagonista vivida por Léa Drucker, é uma advogada de família, que parece justamente empenhada na defesa de jovens que sofreram abuso (o que já fica claro já na impactante primeira sequência). E quando ela retorna para casa após mais um dia de trabalho, o seu marido Pierre (Olivier Rabourdin) - um homem de negócios em constantes viagens -, lhe comunica que, após uma confusão que resultou na agressão a um professor, seu filho de um antigo casamento, o jovem Théo (Samuel Kircher), está retornando para morar com eles. A casa é grande, espaçosa, eles fazem parte da pequena burguesia bem sucedida - e muitas vezes hipócrita -, e não haverá maiores problemas, certo? Bom, em tese. Inicialmente irascível e de difícil trato, Théo vai aos poucos se encantando com o estilo meio maternal de Anne. O que, mais adiante, avançará para conversas muito francas - sobre sexo, relacionamentos, insatisfações, diferenças geracionais -, que terminarão, inevitavelmente, na cama.
E não é que Anne esteja necessariamente insatisfeita com Pierre, que parece ser um sujeito paciencioso, preocupado com as finanças, as rotinas da casa e os jantares burocráticos com seus pares - sempre luxuosos, com boa gastronomia, vinhos e conversas intelectualmente pedantes. Só que a protagonista, além de ter seus segredos do passado - que vão sendo despejados em pequenas pílulas -, enxerga em Théo um certo frescor que lhe retira da monotonia dos dias. E dos cuidados com as filhas pequenas ou das visitas óbvias à manicure, onde trabalha sua irmã e única amiga Mina (Clotilde Courau). O tempo está passando e Théo - a despeito do corpo esguio que faz com que nunca percamos de vista que, sim, ele é apenas uma criança de 17 anos - é a pura libido desajeitada do final da adolescência, com desejos borbulhantes e difíceis de serem controlados.
É uma coisa meio instintiva, animalesca - o que Breillet evidencia com closes efervescentes de beijos, toques e outros, com Anne sempre sendo apresentada como uma predadora em um papel de poder, mais ainda quando a coisa avança para o campo da (ir)responsabilidade afetiva ou as conveniências da vida adulta. Nada ali parece estar certo. Mas acontece. E muito. Normalmente debaixo dos panos. Especialmente no ambiente doméstico - e supostamente ilibado - das famílias, com seus jardins muitos verdes e cerquinhas brancas cândidas. Ainda assim, o que a diretora parece nos fazer querer perceber é que as motivações nem sempre são óbvias. Está na sutileza e na ambiguidade das conversas, nas reflexões sobre eventos do passado, nas preocupações futuras. Julgar Anne por um ato abominável em seu cenário cômodo de privilégios, seria o caminho fácil. Mas ao burlar esses limites, a diretora também nos testa. Tornando esta uma das grandes experiências cinematográficas da temporada.
De: Ernst De Geer. Com Asta Kamma August, Herbert Nordrum e David Fukamachi Regnfors. Comédia / Drama, Suécia / Noruega, 2024, 98 minutos.
Nunca devemos abrir mão de quem somos. Da nossa personalidade ou natureza. Ainda mais para se dobrar a convenções sociais que não dialogam em nada com o que nos caracteriza. Mais ou menos essa parece ser uma das mensagens que fica do bonito e instigante A Hipnose (Hypnosen) - filme de estreia do diretor Ernst De Geer, que está disponível na Mubi. Especialmente para as mulheres, vamos combinar que é muito mais comum a busca por se adequar à padrões. À códigos morais. Pra tentar se encaixar em uma sociedade muitas vezes hipócrita, que supostamente valoriza a autenticidade, mas que não hesita em apontar dedos quando os supostos limites são ultrapassados. E, nesse contexto, nada mais inteligente do que jogar a história para o universo dissimulado das startups, onde por baixo do suposto véu do ambiente oxigenado, reside um ambiente de alta toxicidade, individualista e de busca desenfreada por poder e ascensão financeira.
Na trama acompanhamos o jovem casal Vera (Asta Kamma August) e Andre (Herbert Nordrum) que, a despeito das gritantes diferenças de comportamento, parece conviver de forma harmoniosa em meio a tarefas cotidianas e a expectativa que antecede os dias em que participarão de um daqueles programas de aceleração - em que jovens cheios de ideias apresentam novas tecnologias para investidores interessados. O produto de Vera e Andre é um aplicativo voltado à saúde reprodutiva das mulheres e que teria sido inspirado em um episódio ocorrido na pré-adolescência de Vera que, ao menstruar pela primeira vez, teria sido impactada pela notícia de que era hemofílica. E por mais relevante que possa ser esse conceito, ele encontrará algumas barreiras que envolvem não apenas a toxicidade da disputa em si - apenas um sairá vencedor -, mas também as seguidas crises de ansiedade da protagonista, o que ela compensa com o vício em cigarro.
Determinada a parar de fumar, Vera, vai a uma sessão de terapia em que ela passa por uma sessão de hipnose. A despeito da desconfiança inicial, a jovem sai do consultório mais leve. E estimulada a encarar a vida com mais naturalidade, sem filtros - mais ou menos como uma versão europeia e menos extravagante do que o personagem de Jim Carrey em O Mentiroso (1997). Só que em um contexto de tanto faz de conta, de tanta engambelação para ser aceita como o que ela estava prestes a adentrar - com suas reuniões em pequenos cubículos, conduzidas por sujeitos liberaloides e prepotentes, do alto de suas camisas estampadas e sapatênis -, era meio óbvio que a coisa sairia do controle. O que no começo é encarado como um traço de personalidade interessante de Vera - sua franqueza atroz soa atrativa e ousada, com imprevisíveis quebras de protocolo -, logo se converte em um sem fim de situações constrangedoras, ao lado de pessoas desconhecidas.
O auge da controvérsia se dá quando Vera adota um cachorro de "faz de conta" - um pet invisível que ela carrega para lá e para cá, em meio a jantares e encontros pelos ambientes empolados da empresa de tecnologia que organiza a disputa. Andre aparentemente tem boas intenções - está focado, quer organizar a coisa, chega até a negar uma transa ou uma proximidade a mais com a namorada, sob a desculpa de estar determinado a vencer essa corrida tão típica do capitalismo tardio. Só que ao não relaxar para absolutamente nada e não se divertir nunca, ele também perderá a mão - percebendo mais tarde que aquele teatro todo, aquela encenação hipócrita, talvez seja mais excêntrica que o comportamento insensato de sua parceira de vida. Com diversas camadas e múltiplas possibilidades de discussão, essa é uma obra que escancara a falsa sinalização de virtude desse segmento - supostamente atento a questões de gênero, de sustentabilidade e de respeito às diferenças -, ao mesmo tempo em que nos faz refletir a respeito da importância de não abrirmos mão de nossa integridade. O que não é pouco.
De: Rachel Lambert. Com Daisy Ridley, Dave Merheje, Megan Stalter e Bree Elrod. Comédia / Drama, EUA, 2023, 94 minutos.
Se existe algo que parece legítimo dos relacionamentos da era moderna é a capacidade dos jovens de se autossabotar. Dificuldades de encontrar alguém interessante, de estabelecer laços ou de ter responsabilidade afetiva tem sido parte das reclamações nas redes sociais. Mas vamos combinar que também é preciso se ajudar. Se desarmar. E retirar aquela barreira que impede uma relação mais profunda. Mais sólida. No caso do filme Às Vezes Quero Sumir (Sometimes I Think About Dying) temos em Fran (Daisy Ridley) o exemplo da protagonista introspectiva, silenciosa e com pendor pra depressão que, ao menor sinal de intimidade, parece disposta a jogar tudo pro alto e sair correndo. E, ok, talvez muitos prefiram a solitude do que alguma companhia desagradável. Mas não parece ser o caso de Fran que, em meio a sua rotina repetitiva de trabalho e de alimentação à base de queijo cottage, tem uma série de devaneios com a morte, com florestas abandonadas e bichos que lhe sobem pelo corpo.
Em alguma medida, Fran poderia ser apenas chata mesmo. Acontece. A gente conhece o tipo - aquele sujeito que, debaixo do véu da quietude, possui um ar de superioridade que apenas esconde a baixa autoestima eventual. A vida dela, em uma pequena cidade costeira sem muitos atrativos, se resume a ir ao trabalho, cumprir os protocolos do dia, mandar alguns e-mails, organizar planilhas. Quando uma colega está em vias de se aposentar, ela parece incapaz de celebrar verdadeiramente a nova etapa da vida da mulher que está de saída da empresa (que tem aquele escritório de estilo meio The Office). Enquanto os demais se ocupam da festividade surpresa e do cartão, ela está apenas interessada na sua fatia de bolo. E em não interromper a sua existência ordinária em frente ao computador. Ao menos é assim até a chegada de Robert (Dave Merhege), um sujeito sociável e carismático, que chega pra dar uma inesperada mexida no coração da protagonista.
O relacionamento, quando é com uma pessoa do perfil de Fran, inevitavelmente vai pra um lado meio torto. Robert tem genuíno interesse a respeito da jovem. Quer saber mais sobre ela, a família o passado. Se namorou ou não, se foi casada, quem são seus amigos, o que lhe interessa. Quais seus gostos. Para ele, é apenas estranho esse silêncio todo. Mais ainda quando ela reage mal diante das perguntas dele. Robert, um fã de cinema, que já foi casado duas vezes e que se mudou da grande cidade justamente para esquecer um segundo divórcio traumático, agora tende de lidar com um novo "trauma". O da candidata a par romântico incapaz de dialogar normalmente, sem se sentir ferida, magoada, inquirida ou o que quer que seja. No Tinder, já vi gente se queixando do fato do match fazer perguntas. Sério mesmo? Num mundo em que não se sabe mais conversar sem que seja por uma tela - justamente onde Fran se solta -, como se faz pra aprofundar o vínculo, sem que esse projeto de relação já morra na origem?
Será, evidentemente, um exercício de paciência que talvez nem todos terão - eu, como espectador, me coloquei mais de uma vez no lugar de Robert. Fosse eu no lugar sugeriria a Fran, inicialmente, um bom terapeuta - por experiência própria, foi o que fiz quando o pânico social bateu. Um tratamento que lhe ajude nos traumas, nas dores - e, em geral, o espectador fica meio no escuro nesse tipo de cinema mais alternativo, já que não há nada sobre passado, ou o que contribui para a formação de uma alma despedaçada. Fran parece inteligente e dotada de um senso de humor refinado. Mas não é suficiente para se unir a alguém. Talvez ela nem seja só, ainda que eu tenda a achar que absolutamente todo mundo procura alguém pra dividir a vida, os sorrisos, um filme ou um pão com queijo cottage no café da manhã. É isso que faz uma existência em tons pasteis ganhar cor. E contribuir para sair da mesmice. A vida, afinal, pode ser curta. E nem todos os momentos serão extraordinários. Assim, talvez caiba a nós encontrar aquela faísca de beleza no cotidiano.
A oração menos no sentido estrito da religião e mais como uma súplica ligada à música, às artes e suas conexões. O que envolve também a sua capacidade de cura. Assim pode ser resumido, em alguma medida, o conceito por trás do do sofisticado, grandioso e poético Prece, quarto trabalho de estúdio da mineira Luiza Brina. Numa entrevista ao podcast Vamos Falar Sobre Música, a artista explicou que começou a escrever as suas orações - parte delas norteia o disco -, após uma severa crise de pânico ainda em 2010. Repleto de participações especiais - se Silvana Estrada a Iara Rennó passando por instrumentistas reconhecidos da região, como o percussionista Maurício Tizumba -, o projeto parece reforçar ainda a importância da coletividade no processo de construção das manifestações culturais - o que se observa não apenas na profusão de vozes , mas na riqueza das orquestrações, que tornam a experiência riquíssima para o ouvinte.
Ainda assim, por mais amplo e cheio de curvas surpreendentes que seja o registro, de forma alguma isso significa excesso de hermetismo. Com uma leveza quase onírica, a cantora converte cada canção em um fragmento de tapeçaria fina, capaz de se conectar com temas diversos ligados à MPB de fora do eixo - e que unem o o folclore, o encontro com a natureza e o aceno às religiões de matriz africana. Evidentemente os temas mais "mundanos" mão ficam de fora, como no caso da maravilhosa Oração 18, que talvez conte com os versos mais bonitos da temporada (Pra viver junto é preciso poder viver só / Pra gente se encontrar / Pra andar junto é preciso poder andar só / Pra gente caminhar). Brina já havia brilhado no cósmico Tão Tá (2017) e no romântico Tenho Saudade Mas Já Passou (2019). Mas com Prece ela alcança não apenas a maturidade, mas também a excelência de sua arte - rara, meticulosa e extremamente requintada. Uma joia.
De: Goran Stolevski. Com Anamaria Marinca, Alina Serban e Mia Mustafa. Drama, Macedônia / Croácia / Polônia / Sérvia / Suécia, 2024, 107 minutos.
Talvez hoje em dia, à exceção dos reacionários extremistas de direita, a grande maioria das pessoas sabe que as configurações de família se alteraram drasticamente nas últimas décadas. Aquela cena de pai, mãe e filho - como desejam as famílias de bem conservadoras -, parece a cada dia mais distante em um cenário de pais ausentes, divórcios ocorridos, preconceitos generalizados e a busca incessante por uma rede de apoio pra chamar de sua. Sim, a divertida série Modern Family pode ter debochado desses novos conceitos mas, em tempos em que as pessoas tem mais liberdade pra exercitar a sua sexualidade (e seus desejos), se tornam mais comuns esses novos arranjos. Significa que eles serão ideais? Não, nem perto disso. Dificuldades existirão. E maiores ainda elas serão em países com políticas mais retrógradas, ou ideais ultrapassados. E conjugar todos esses elementos é o que o diretor Goran Stolevski faz com maestria, no ótimo Housekeeping for Begginers (Domakinstvo za Pocetnici), disponível na plataforma da Apple TV.
Nas aparências, essa parece ser apenas uma trama sobre uma mulher que tem de lidar não apenas com a dor da perda, mas também cos filhos de sua ex, quando esta é diagnosticada com um câncer terminal. Só que Dita (Anamaria Marinca) é uma assistente social - alguém que parece ter um perfil existencial menos turbulento do que aquele em que ela encontra no entorno de Suada (Alina Serban), sua parceira que padece da severa doença. Suada, como não poderia deixar de ser, está mal humorada com as últimas notícias a respeito de sua saúde - com a raiva sendo reforçada pelo péssimo atendimento recebido não apenas por ela, mas por outras minorias em um hospital público em seu País Natal, a Macedônia. "E se ela não fosse uma cigana?", esbraveja contra o médico de plantão, em uma sequência ainda nos primeiros minutos, que evidencia a xenofobia e o racismo estrutural, que se espalham pela narrativa.
Em casa, as coisas não estão melhores, especialmente pelo fato de a filha mais velha de Suada, Vanesa (Mia Mustafa), converter o local em uma espécie de comuna improvisada, com vários outros jovens de etnias, gêneros e preferências sexuais distintas se acotovelando, enquanto tentam encontrar apoio uns nos outros. "Viramos a ONU por sua culpa", brinca alguém em certa altura. As discussões políticas e sociais envolvem as diferenças culturais e geográficas entre todos ali. Tudo sendo observado atentamente por Mia (Dzada Selim), a irmãzinha pequena de Vanesa, que é acarinhada pelo invasivo Ali (Samson Selim), parceiro de Toni (Vladimir Tintor), um homem gay de meia idade, que parece guardar algum tipo de parentesco com Dita. Ao mesmo tempo em que todos ali, naquele ambiente claustrofóbico e apertado, brigam juntos, também se amam juntos. Porque, externamente, num mundo tão cheio de ódio e de intolerância contra qualquer um que fuja do padrão, as coisas podem ser piores.
Por isso que quando Suada morre, Dita recebe as condolências de uma ex-colega de trabalho em uma frase que só pode ser explicada pelo medo de ser quem se é de verdade, em uma sociedade fraturada: "soube que sua prima morreu, meus pêsames", comenta a colega. "O quão próxima você era dela?". Os olhos marejados de Dita são o doloroso sinal entregue ao público de que não apenas a morte da ex está doendo. Mas também o fato de ter de esconder isso das outras pessoas. Quando ela assume as filhas de Suada - ainda que vivendo as turras com elas -, uma papagaiada juntando ela a Toni busca fazer de conta que eles são um casal hétero. Para descrença generalizada do entorno. E, nisso tudo, o que o filme parece querer mostrar é que, no fim das contas, família é quem está ali, independente do que aconteça. Das dores sofridas, das frustrações recorrentes, dos sonhos interrompidos. Ao cabo, esta é uma obra frenética, caótica, barulhenta. Por vezes incômoda. Mas que se converte em uma peça de resistência, diante de um mundo obtuso, quadrado, antiquado. Vale conferir.
Um disco muito mais pessoal e sobre si - e talvez mais distensionado na abordagem política ou de problemas sociais. Assim pode ser encarada a experiência com Universidade Favela, o quarto registro de estúdio do rapperEdgar. Porque o fato é que, por mais ativista que a pessoa seja, em muitos casos ela também quer relaxar, viver a vida, curtir, transar - especialmente após o Brasil se livrar de uma pandemia brutal e de uma extrema direita que parecia só se fortalecer. Nesse sentido, talvez não seja por acaso a abertura do álbum já ser com a movimentada Descansa Militante, em que os versos descontraídos e sensuais funcionam quase como uma carta de intenções a respeito do trabalho (Eita, caralho / Olha só, mas quem diria / Comecei na militância / E acabei na putaria). "É como se fosse uma sinopse, um indicativo da estrutura óssea do projeto", explicou o artista, nas entrevistas de divulgação.
O expediente se repete em outros momentos em que a urgência da vida periférica, com suas ameaças e caminhos incertos, se cruza com a diversão, a festa e os prazeres, como no caso da imprevisível Perigos Noturnos, em que uma madrugada vertiginosa é descrita como uma explosão de dança, sexo, dores e preconceitos. Misturando estilos distintos como trap, dancehall, grime, funk e reggaeton, Edgar consegue ser universal e particular em igual medida, ao retratar a quebrada como um espaço de profusão cultural, que encontra outras artes, línguas e experiências. Em Origami, por exemplo, ele mescla o berimbau e as religiões afro, com a cultura oriental - a partir da participação da japonesa Maia Barouh - sempre com rimas potentes, divertidas e cheias de comentários sociais bem resolvidos. Ao cabo, trata-se de uma experiência inventiva, fluída, sexy e mais explícita que ultrapassa os limites da América Latina. Pra deixar no repeat.
De: Ken Loach. Com Ebla Mari, Dave Turner, Claire Rodgerson e Trevor Fox. Drama, Reino Unido / Bélgica / França, 2023, 113 minutos.
Vamos combinar que, nos tempos brutos que vivemos, não tem sido muito fácil manter a esperança por dias melhores. Ascensão da extrema direita, xenofobia, intolerância religiosa, crise climática, pandemia, tecnologia desenfreada - enfim, nada parece contribuir para um cenário de pacificação, em meio a tanta turbulência. E talvez seja justamente o excesso de otimismo - numa narrativa que, por vezes, beira a utopia -, o que tenha incomodado os espectadores acostumados ao estilo áspero do britânico Ken Loach que, com O Último Pub (The Old Oak), entrega aquele que, muito provavelmente, deve ser o seu último trabalho como diretor (ele está com 88 anos). Afetuosa e inspiradora a obra é daquelas que, mais uma vez, reforça a importância da coletividade e da empatia ao contar a história de um grupo de refugiados da Síria, que chega a uma pequena cidade conservadora do interior da Inglaterra, tendo de lidar com os preconceitos dos moradores locais.
Ao cabo, essa história é meio universal - seja no Brasil, nos Estados Unidos, na Inglaterra ou onde quer que seja. Para esses extremistas mais reacionários, imigrantes não costumam ser muito bem-vindos. E é por isso que um grupo de moradores da modesta Durham, no nordeste do País, fica exasperado quando aportam no local algumas famílias sírias saídas da zona de conflito. No passado, Durham já foi pujante - especialmente por causa da mineração, que garantia certa estabilidade econômica. Só que os tempos mudaram e os trabalhadores tiveram de lidar com o desemprego e com a recessão, especialmente no período em que Margaret Thatcher esteve no poder (o que reduziria, ainda, o poder dos sindicatos). Há um ressentimento no ar, que se amplia com a especulação imobiliária em um cenário de declínio, o que permitirá às famílias estrangeiras terem um teto pra chamar de seu. Entre elas a jovem Yara (Ebla Mari), que encabeçará uma luta para ser aceita, junto com sua mãe, seus irmãos e os demais refugiados.
Evidentemente que nada se comparará com a situação da Síria e da crueldade propagada por milícias governamentais locais. O que não impede Yara de sofrer todo o tipo de violência - aliás, já na chegada, ela tem a sua câmera fotográfica danificada por um hooligan delirante, que lhes recebe aos gritos. Conforme os dias passam, a jovem encontra algum amparo em uma antiga taverna (o The Old Oak do título original), mantida pelo carismático TJ (Dave Turner), um sujeito boa praça que, ao mesmo tempo que faz o meio de campo com os seus antigos amigos de mineração (servindo-lhes cerveja em meio a ruminações existenciais), também acolhe Yara. Mais do que isso, quanto mais eles se aproximam, mais será possível perceber que a história de lutas - seja ela de trabalhadores, de imigrantes ou de qualquer outra minoria -, sempre guardará semelhança. Especialmente pelo fato de ambos estarem, historicamente, na ponta mais frágil desse tecido social. Seja no neoliberalismo falido, seja no campo de batalha.
Há, por exemplo, uma sequência muito bonita em que Yara encontra, em uma sala adjacente do pub, uma coleção de fotos que remonta justamente aos tempos de greve - em que operários humilhados se empenhavam em garantir seus direitos. Em um dos quadros, é possível ver a frase "quando a gente come junto, permanece junto", que fornecerá à dupla uma espécie de insight que converterá o local em um espaço de acolhimento para qualquer pessoa em vulnerabilidade ou em extrema pobreza. Claro que a tarefa não será fácil. Muitos dos moradores da região estão de olho naquilo que consideram uma espécie de traição de TJ com os seus. "Agora tudo é para eles?", pergunta um menino em certa altura. "É que eles perderam tudo, saíram de suas casas só com a roupa do corpo", retruca o homem. Com um sem fim de instantes comoventes, essa é uma obra que nos lembra da importância da solidariedade, da pacificação e da aceitação da dor do outro. Os trabalhadores das mineradoras se sentiram abandonados com o fechamento das fábricas. Tiveram raiva, foram iludidos, perderam financeiramente. E encontraram um culpado fácil nos imigrantes - e não nas falhas do capitalismo. Tudo isso pode ser terreno fértil para o fascismo. E é preciso estar atento a isso. A quem são, de fato, os inimigos. Pode ser meio utópico, talvez até sonhador. Mas se abandonarmos a esperança, talvez o nosso coração pare de bater. É o que fica.
De: Fábio Meira. Com Vera Holtz, Louise Cardoso, Arlete Salles e Amanda Lyra. Drama, Brasil, 2023, 95 minutos.
Quem já parou pra ouvir na íntegra os cerca de dezesseis minutos do Bolero de Ravel sabe que, a despeito do ritmo sem muitas variações e da melodia uniforme e repetitiva, a orquestração vai subindo, conforme a música avança - até explodir em um clímax quase caótico com o instrumental marcado pelo saxofone vigoroso e pelos pratos e bumbos potentes. Nesse sentido, talvez não seja por acaso a escolha da obra como forma de marcar o ápice dos acontecimentos do ótimo Tia Virgínia, filme do diretor Fábio Meira (de As Duas Irenes, 2017) e que acaba de estrear para aluguel na plataforma da Claro TV. Em alguma medida é justamente esse o tipo de evolução que observamos nessa narrativa tipicamente familiar - em que três irmãs e outros parentes se reúnem para celebrar o Natal. Ocasião perfeita não apenas para comemorar, mas para fazer vir à tona mágoas, chantagens emocionais e outros conflitos domésticos.
Sim, a gente já viu essa história dezenas de outras vezes, mas aqui há todo o charme da classe média tipicamente brasileira - com o misto de afeto e raiva sendo ampliado pelas entregas comoventes das atrizes Vera Holtz, Arlete Salles e Louise Cardoso que, aparentemente, teriam o desejo de estar fazendo qualquer outra coisa no mundo, do que estarem reunidas entre si no dia 24 de dezembro (o que é uma coisa meio normal, ainda que grande parte das pessoas não admita isso). "Às vezes tenho a impressão de que no Natal eu envelheço o que envelheço no ano inteiro", comenta Virgínia (Holtz), num tom ranzinza e irônico, ainda no começo do filme, o que ditará o seu comportamento dali pra frente. Protagonista, a tia Virgínia é uma idosa que ocupa seus dias em meio a atividades prosaicas, como ajustar pacientemente o pêndulo de um antigo relógio mecânico, e os cuidados com a mãe (a veterana Vera Valdez), uma nonagenária que parece estar com perda de memória.
Aliás, cuidar da mãe, como veremos mais adiante, parece ser um fardo carregado por uma mulher que escolheu ser solteira a vida toda, sem filhos. O que não evitará julgamentos dos demais. Quando Valquíria (Cardoso) e, especialmente, Vanda (Salles), chegam a casa, o desequilíbrio daquele tecido doméstico vai se ampliando. Sensação fortalecida por pequenas rimas visuais e detalhes que evidenciam o senso de ruptura de um grupo de pessoas que talvez nunca tenham sido tão próximo, mas que se forçam a isso para que rituais e convenções sociais sejam cumpridos. Onde já se viu, afinal, não haver um encontro de família no Natal? Na primeira sequência em que as três irmãs estão juntas em cena, Virgínia se queixa a respeito da cor das suas rosas, que não parecem ser mais tão vistosas, como em outros tempos. "É a ação do tempo, né, o presépio também está desbotado", comenta Valquíria, ampliando o componente alegórico que envolve a passagem do tempo.
Essas pequenas críticas sobre o cheiro da casa, sobre uma visita não realizada aqui e ali ou sobre uma simples janela fechada para que se evite a entrada de poeira, serão motivo para choques minúsculos em uma casa naturalmente não muito grande, sombria, antiga - o que amplia o sentimento de claustrofobia e de completa falta de autonomia. Os sobrinhos da tia parecem nutrir certo carinho por ela, mas só até o momento em que se percebem outras intenções como motivação - especialmente as financeiras. Em meio a longas divagações sobre quem fica em cada quarto, ou a respeito de qual prato será cozinhado, Virgínia inevitavelmente surtará. Há segredos relacionados a casa e traumas vividos após a morte do pai delas, sendo o estopim a discussão sobre colocar ou não uva passa em uma receita de arroz. Aliás, nada mais família do que isso. O de converter problemas inexistentes em sofrimentos gigantescos. Ao cabo, o resultado desse conjunto é uma experiência divertida, turbulenta e irresistível.
Vamos combinar que o conceito de uma usina - um tipo de estabelecimento industrial equipado de máquinas, onde se processa e se transforma a matéria-prima -, parece totalmente adequado ao que encontramos no quinto trabalho do gaúcho Marco Benvegnú, o nome por trás do Irmão Victor. Seja pela dificuldade em categorizar o som - que mescla estilos distintos indo da psicodelia sessentista, passando pelo soft rock da década seguinte, até chegar ao jangle pop moderno -, pela complexidade dos arranjos ou pela poética torta, tudo parece elaborado em um processo contínuo de (des)construção, como ele explicou em entrevista ao Tenho Mais Discos Que Amigos. "Eu costumo sair para caminhar na rua, paro em algum parque, alguma praça e escrevo algumas ideias. Depois chego em casa, leio o que fiz e penso ‘bom, isso tá péssimo’. Repito esse processo por alguns dias até sair algo que me agrade" salientou a respeito do processo criativo.
Sobre Micro-Usina, Marco ponderou ainda que o projeto é influenciado pelo fato de as gravações terem sido feitas em cidades distintas, como, Passo Fundo - seu município de nascimento -, Porto Alegre, Florianópolis, Toulousse (na França) e São Paulo. "Meus movimentos pelas cidades servem como uma espécie de fio condutor que dá sentido a essas músicas, me permitindo observá-las de forma mais objetiva do que faria com um diário pessoal", destacou no material de divulgação. O resultado são canções de letras divertidas e literárias que aludem aos Mutantes e a coletivos modernos como O Terno, como é o caso da ótima Amarrado no Pulso do Cão (É uma febre ao contrário / Desencantando a cada passo / Sempre mastigando gelo). Aliás, os títulos curiosos das músicas também são um capítulo a parte, sendo meio impossível ficar alheio a Miska Bella Foi a Missa, Rua da Catequese e, especialmente, a excêntrica e estranhamente onírica Canção de Ninar Landinense. Vale conferir!
De: Ryusuke Hamaguchi. Com Hitoshi Omika, Ryo Nishikawa, Ayaka Shibutani e Ryuji Kosaka. Drama, Japão, 2024, 106 minutos.
"Não há saber mais ou saber menos: há saberes diferentes". (Paulo Freire)
Em uma das cenas centrais de O Mal Não Existe (Aku Wa Sonzai Shina) - mais recente trabalho do sempre ótimo Ryusuke Hamaguchi -, os moradores de uma pequena aldeia montanhosa dos arredores de Tóquio, participam de uma assembleia com dois executivos de uma grande empresa, que prometem fazer um investimento turístico no local. Vestindo trajes sociais e utilizando um tom empolado - típico de quem passa seus dias em escritórios alvos e bem arejados -, os profissionais explicam aos nativos os detalhes do projeto, que envolve a construção de uma espécie de camping de luxo (chamado glamping) na região. As desculpas para a execução da obra costumam ser as mesmas de sempre: geração de empregos e de renda, melhorias na infraestrutura ou qualquer outro aspecto relacionado ao capitalismo tardio e a sua sanha por lucros a qualquer custo.
Quando a apresentação de power point é encerrada - com direito a adição de um vídeo institucional higienizado, provavelmente elaborado por alguma agência de publicidade desconectada da realidade -, os habitantes do povoado promovem uma chuva de perguntas. Sobre questões relevantes, como, local onde será instalada a fossa - uma vez que há um lençol freático que alimenta a comunidade com água limpa -, de como se evitarão as queimadas na estação dos ventos e de quais serão os sistemas de contenção no solo para evitar o assoreamento, que certamente resultará do revolvimento da terra e da vegetação do topo do morro para a implantação de uma estrutura totalmente invasiva. Acuados, os investidores prometem retornar à Tóquio para, na próxima reunião, ocasião em que o contrato deverá ser devidamente fechado, apresentar as soluções. Se é que haverá solução, já que, sabemos bem, nesse caso quem costuma mandar é o capital. E o lobby financeiro.
Em tempos em que as discussões a respeito da importância de se preservar o meio ambiente e de agir de forma mais sustentável estão mais em alta do que nunca - ainda que o bloco negacionista de extrema direita insista na teoria conspiratória de que o aquecimento global é uma farsa ou uma invenção do comunismo -, a obra de Hamaguchi coloca o dedo na ferida ao fazer com que olhemos para o presente como um espelho para o futuro. Na trama acompanhamos o viúvo Takumi (Hitoshi Omika), que vive com sua filha Hana (Ryo Nishikawa) nesse ambiente idílico, pacífico e tranquilo - em que tudo o que se escuta é o barulho dos pássaros, o vento na copa das árvores e o som das corredeiras. Na rotina de Takumi, o trabalho como cortador de lenha se alterna com o da busca de água nos córregos, o trato dos animais e outras rotinas típicas do campo. "Sou uma espécie de faz tudo aqui", resume para a dupla de especuladores.
O caso é que não apenas Takumi, mas grande parte dos moradores dali não deseja a chegada do empreendimento, que visa se beneficiar de subsídios no pós-pandemia. Não há por quê. Eles já vivem da terra, com qualidade de vida, utilizando os recursos naturais na medida certa para a produção de alimentos. Há um restaurante pequeno e aconchegante no local, que é famoso pelos cozidos elaborados com a água cristalina - e que possui uma clientela fixa. Ninguém ali precisa sangrar o meio ambiente para que meia dúzia de turistas urbanos ocupem e desequilibrem o lugar. Há uma série de riscos que podem comprometer o bem estar de todos ali - e que se refletirá mais adiante, sem um controle desse movimento. Hamaguchi, que dirigiu recentemente o premiado Drive My Car (2021), constroi a obra como uma experiência onírica, poética e contemplativa em que tudo flui sem pressa, com calma, em meio a planos longos, abertos e uso da trilha sonora (de Eiko Ishibashi) como amplificador de sensações. Uma sequência de Takumi rachando lenha pode levar minutos. Aquele é o cotidiano dele, em simbiose com o ambiente. Só que lá pelas tantas um tiro é escutado. "Eles caçam veados nas redondezas", explica o protagonista. O mal parece existir apenas ao redor. Mas, sem uma ação mais drástica, ele pode chegar perto.
De: Thea Sharrock. Com Olivia Colman, Jessie Buckley, Anjana Vasan e Timothy Spall. Comédia, EUA / França / Reino Unido, 2023, 100 minutos.
Uau, as mulheres falam palavrão! Fui com boa vontade assistir a esse Pequenas Cartas Obscenas (Little Wicked Letters) - até mesmo por que os fiapos de história sempre podem render boas tramas. Especialmente no interior do Reino Unido - como ficou evidenciado, por exemplo, no recente Os Banshees de Inisherin (2022). Só que vamos combinar que sempre será um problema meio sério uma comédia incapaz de fazer rir. Com tudo ficando ainda pior ao percebermos que tá rolando uma forçação de barra - e, na real, é meio vergonha alheia a gente ver piadas sendo despejadas, enquanto ficamos indiferentes a tudo. Não tem graça filmar, repetidamente, o rosto da atriz Anjana Vasan em close, só para evidenciar seus olhos grandes e esbulgalhados. Jessie Buckley mostrando a bunda meio que, do nada, pra polícia? Nossa, quanta subversão (bocejo). E o que dizer da cena boba em que uma das coadjuvantes faz uma pequena "ode" ao ovo?
É meio bobo, como se tudo fosse uma esquete meio esticada e um tanto exagerada em que absolutamente nada parece muito verossímil naquele cenário. Claro, a ideia de discutir feminismo, movimento sufragista e papel da mulher na sociedade sempre será bem-vinda. Mas o antagonismo frente ao patriarcado visto aqui é apenas oco, numa história que se estende e que parece dar apenas voltas em torno de si. Bom, a trama nos joga para o anos de 1920, em Littlehampton, na Inglaterra, onde um pequeno escândalo, aos poucos tomará proporções épicas. Tudo começa quando a solteirona Edith Swan (Olivia Colman, que se esforça em entregar o melhor) passa a receber uma série de cartas não identificadas, cheias de insultos e palavrões. Dada a relação conturbada de Edith - uma religiosa devota e conservadora -, com a sua vizinha de porta, a liberal e desbocada Rose Gooding (Buckley), não demora para que a culpa recaia sobre a segunda.
Rose é presa após o testemunho de Edith - tudo com a ajuda da policial Gladys (Vasan) que, na realidade, tem dúvidas sobre a autoria do crime (a caligrafia das cartas parece não bater com a da autora). Com tudo piorando depois de vir à tona a história de que as duas vizinhas teriam tido uma amizade, no passado, interrompida após uma confusão em uma festa de família. Só que o caso é que Rose é muito carismática, daquele estilo desinibido, que fala alto, ri e se integra, e acaba tendo a fiança paga por uma dupla de amigas da própria Edith - o que lhe permite aguardar o julgamento do caso em liberdade. E é justamente no momento em que ela está solta, que há uma explosão no envio de cartas, com praticamente todos os moradores do povoado recebendo mensagens com insultos. O que atrairá a atenção da imprensa nacional - e devo confessar que a narração em off de uma emissora de rádio, fazendo o relato dos eventos, é uma das partes mais engraçadas da produção.
Só que ainda assim é pouco. E lá pelas tantas perde a graça o lance de verbalizar os xingamentos - seja na delegacia de polícia, no tribunal, ou mesmo na rua. Ainda mais porque são frases quase sem sentido - coisas como "você é um saco murcho que quer ser fodido pela narina", com derivações para "vadia fedorenta", "puta triste e catinguenta e "rabuda carcomida". Ok, em uma sociedade em que as mulheres são criadas para o decoro excessivo, sendo imediatamente julgadas ao não se comportarem de acordo com o que rege a cartilha do patriarcado, a trama tem seus pontos. Só que ainda assim parece tudo meio sem sutileza. Rose, uma mãe solo que vive com um homem negro, parece uma personagem meio irreal no entre guerras (e, não, não há a necessidade de ser realista, mas apenas crível). Ainda mais se pensarmos que, nos dias de hoje, a luta das mulheres pela manutenção de direitos segue a todo vapor, em um cenário de avanço da extrema direita, de extremismo político e de misoginia. É certo que as coisas não eram fáceis. E não é um punhado de palavrões a revelia que resolve.
"Todas as músicas foram escritas a partir de uma sensação emocional de vertigem e de rotação". A explicação dada pela britânica Griff para aquilo que pode ser um pequeno conceito por trás do seu ótimo disco de estreia, não poderia estar mais adequada para alguém de apenas 23 anos. De quebra, a sensação de que as paixões torrenciais se intercalam com instantes de coração partido sem muita linearidade, parece combinar com a música pop dançante, de sintetizadores catárticos, apresentada pela artista em Vertigo. Sim, esse é um disco que pode passar meio batido em meio a um batalhão de coisas sendo lançadas - e 2024 tem sido espetacular em matéria de música boa. Só que o caso é que, aqui, vale prestar atenção. Não que a cantora tenha algum grande diferencial em relação a outras de sua geração - que tem a mesma capacidade de converter a montanha russa emocional da pós adolescência em canções românticas, pegajosas, tão explosivas quanto melancólicas. Mas tudo é muito bem produzido, enérgico, vibrante.
Em alguma medida, talvez seja isso o que se espera de um artista pop. Que seja capaz de fazer com que nos identifiquemos de forma descomplicada, direta. Toda e qualquer pessoa adulta já passou pelas suas quando o assunto é o amor, as decepções, os arrependimentos. Griff canta sobre tudo isso com ares de veterana, parecendo meio debochada em alguns momentos, alegórica em outros e honesta com seus sentimentos sempre. O que sempre culmina em um refrão caudaloso ou em uma ponte que fará o seu público cativo cantar com gosto. Tomemos como exemplo a excelente Astronaut, que se inicia com um piano noventista (cortesia de Chris Martin do Coldplay), para mais adiante se espalhar em sintetizadores e efeitos, enquanto a letra abusa do trocadilho ao usar a figura do astronauta para falar de alguém que precisa de mais "espaço" (num relacionamento). É revigorante. Mas há outros grandes momentos - como Cycles, So Fast, Miss Me Too, Tears for Fun e Hole In My Pocket, esta última utilizando a metáfora do bolso furado em que se perde tudo, pra falar da solidão. Pra deixar no repeat por horas.
De: Ishana Night Shyamalan. Com Dakota Fanning, Olwen Fouére, Georgina Campbell e Oliver Finnegan. Suspense, EUA, 2024, 102 minutos.
Eu juro pra vocês que não queria reduzir a primeira obra de Ishana Night Shyamalan a isso, mas o caso é que Os Observadores (The Watchers), a estreia da jovem de apenas 24 anos na direção, parece apenas uma grande homenagem ao próprio pai, o cineasta M. Night Shyamalan, que é produtor do filme. Um tributo em que alguns de seus temas centrais - religião, folclore, ação da natureza, passagem do tempo e medo do futuro - reaparecem aqui repaginados, meio confusos, ainda que, aqui e ali, com alguma personalidade. Bom, o caso é que histórias sobre pessoas isoladas ou perdidas no meio da mata fechada não chegam a ser exatamente uma novidade e, aqui, Ishana dá uma requentada no assunto, ao nos contar a história de Mina (Dakota Fanning, apática, como sempre), uma funcionária de uma pet shop de uma pequena cidade ao Norte da Irlanda, que é incumbida de levar uma espécie de papagaio meio raro (e bem valioso) para um zoológico próximo de Belfast.
Claro que tudo não passará de uma desculpa para que Mina se embrenhe em uma floresta sombria de árvores pontiagudas, pássaros agitados e barulhos estranhos, na tentativa de cumprir o seu objetivo para, ali adiante, se perder. No começo do filme - pra quem não viu sequer o trailer, como é o meu caso -, a gente tende a achar que será uma narrativa solitária sobre sobrevivência. Com monstros, ou qualquer que seja o desafio enfrentado, servindo como algum tipo de alegoria para a superação de traumas do passado ou de algum tipo de problema psicológico (digamos, aquilo que a gente meio que se acostumou a encontrar em algumas produções da A24). Mas quando a jovem é acossada por algum mal desconhecido já nos primeiros instantes dentro da mata, ela é salva por um trio de moradores do local - uma idosa de nome Madeline (Olwen Fouére), além de Ciara (Georgina Campbell) e Daniel (Oliver Finnegan) -, que lhe levam para dentro de um bunker, onde explicarão o funcionamento do espaço.
Admito que, até esse momento, estava achando tudo um tanto instigante. Ainda mais pelo fato de o refúgio possuir uma janela espelhada que dá para a rua - que é de onde os "observadores" poderão assistir a eles. Em alguma medida, há um tipo de ensaio para o que poderia ser uma crítica à cultura vazia dos reality shows - quando chega ao espaço fortificado, Mina descobre que um dos únicos passatempos dessa prisão improvisada é o de assistir cópias em DVD de programas estilo De Férias com o Ex ou algum outro com pessoas muito bonitas querendo se pegar. "Que barulho é esse?", questiona a protagonista em certa altura. "São os aplausos", comenta Madeline, enquanto Ciara ensaia uma dança ocasional. Só que, infelizmente, essa ideia, que apareceria em outras produções melhor acabadas da atualidade, como é o caso do excelente Não! Não Olhe! (2022), de Jordan Peele, é abandonada mais adiante. Perdendo totalmente o sentido. Aliás, o que acontece com outras subtramas, como as que envolvem a relação da Madeline com sua irmã, especialmente após a traumática morte da mãe, quinze anos atrás.
No mais, essa será uma típica história de luta pela sobrevivência e de tentativa de fuga, com seus códigos e clichês bem estabelecidos. Os humanos só podem sair de casa e ir pra floresta para caçar durante o dia, quando os seres da mata se refugiam, longe da luz solar, em crateras profundas. À noite, há uma pressão para a entrada na casa, que é ampliada pela capacidade dos monstros de aparentarem outras pessoas - como no caso de John (Alistair Brammer), o marido de Ciara que sai para um dia de investigação e nunca mais volta. Ao cabo, parecia haver algum potencial para que essa não fosse uma história estilo mais do mesmo, mas o caso é que não há nenhuma grande novidade. Como já disse, o próprio componente mais místico dos seres da natureza e de seu comportamento frente à ação dos humanos, já foi abordado por Shyamalan pai, em obras como A Vila (2004), A Dama na Água (2006) e Fim dos Tempos (2008). Significa que não estaremos atentos a novos lançamentos de Ishana? Óbvio que não. É recém o primeiro filme dela. E ainda há muito para crescer. Especialmente quando ela conseguir cortar o cordão umbilical.