Acho que vou ser meio repetitivo se disser que não li tanto quanto gostaria nesse ano - mas quem, ao cabo, consegue cumprir essas metas à contento? Ainda assim, devo dizer que foi um 2023 de excelentes leituras, com destaque para os autores contemporâneos (aliás, sempre procuro tentar contribuir para que essas obras alcancem mais públicos) e atenção, também, para um ou outro clássico moderno. Para 2024 estabeleci a modesta meta de tentar ler dois livros por mês - um total perfeitamente alcançável de 24 no ano? Acho que sim, né. Não custa sonhar. Enquanto isso, segue a nossa nata da nata das Melhores Leituras de 2023.
10) Kafka à Beira-Mar (Haruki Murakami): Dois enredos distintos inter-relacionados que, inevitavelmente se
cruzarão. Em capítulos alternados, conhecemos a história do jovem Kafka,
um adolescente de 15 anos que, para tentar escapar de uma maldição
familiar edipiana foge de casa meio que sem rumo, com o objetivo de
tentar localizar a mãe e a irmã. Em sua jornada, encontrará abrigo em
uma suntuosa biblioteca particular na tranquila cidade de Takamatsu -
espaço que é dirigido pela enigmática bibliotecária senhorita Saeki
(mulher elegante, de modos discretos). No local, Kafka fará amizade com a
esperta Oshima enquanto desvendará, paulatinamente, segredos que
envolvem seu passado. Na outra linha temporal acompanharemos a história
de Satoru Nakata, um homem idoso que, após passar por um trauma na
infância, adquire excêntricos poderes sobrenaturais. Ainda que talvez não seja a melhor porta de entrada para a obra de Murakami - especialmente pelas suas voluptuosas 578 páginas - aqui temos um livro fluído e engenhoso, que aposta na fantasia, no subconsciente e no universo onírico em sua composição. Com referências do mundo pop e de tragédias gregas, essa odisseia aborda temas diversos como, luto, memória, destino e até mesmo o poder das artes.
Leia a resenha completa.
9) O Filho de Mil Homens (Valter Hugo Mãe): "A Matilde, talvez por criar viúva o seu único filho, enojava-se do mesmo jeito mas agia diferente. [...] Se, pelo menos, o pudesse mandar embora, mesmo que não tivesse mais familiares, nem muito para onde ir. Ficariam sozinhos um do outro. A Matilde queria acreditar que, mandando embora, o filho poderia resolver o problema, como se longe dali não florisse, não gesticulasse, não subisse um tom nas sílabas mais bonitas das palavras quando falava a rir, talvez longe dali não fosse maricas". Quando lemos o trecho acima, nos damos conta de que essa obra é, apenas nas aparências, uma narrativa sobre um sujeito perto dos 40 anos, que deseja ardorosamente ter um filho. Sim, o pescador Crisóstomo quer aplacar a solidão vivenciada em sua casa isolada na beira da praia - indo encontrar no órfão Camilo a oportunidade de preencher a sua metade vazia. Mas quando outros personagens - marginalizados, minoritários, vulneráveis - vão se juntando àquela família meio improvisada, de almas tão excêntricas quanto generosas, percebemos que este é um livro sobre os excluídos sociais, os invisíveis, e a sua eterna busca por um lugar no mundo. Ao cabo essa é uma obra sensível e lírica, que faz emergir a esperança, a partir do amor. Leia a resenha completa.
8) Chuva de Papel (Martha Batalha): Um romance tragicômico, intenso, sensível. Assim pode ser resumida a experiência com a terceira obra de Martha Batalha - que alcançou enorme sucesso depois de A Vida Invisível de Eurídice Gusmão. Aqui temos uma obra que tem o Rio de Janeiro como cenário - um local cheio de histórias, tal qual o protagonista Joel Nascimento, um repórter veterano (e decadente), que foi um importante cronista de seu tempo, sendo responsável por um sem fim de narrativas sobre essa fervilhante cidade. Após meio século em redações noticiando o Lado B da Cidade Maravilhosa, enfrenta problemas financeiros e familiares, que se somam ao alcoolismo incurável. Após uma tentativa de suicídio peculiar, o sujeito acaba indo morar de favor com a tia de um amigo - seu nome é Glória, uma senhora enérgica, que exige não apenas boas maneiras de seu inquilino improvisado, como também mais interações. A esse arranjo se junta ainda a vizinha Aracy, uma idosa falante. O resultado desse "encontro" inesperado repleto de atritos cotidianos será uma amizade repleta de companheirismo, que preencherá as horas dos três, que passarão a compartilhar desejos, anseios e escolhas pessoais, em uma narrativa surpreendente, crua e cheia de sagacidade.
7) Aniquiliar (Michel Houellebecq): Essa foi minha quarta leitura de Houellebecq e devo admitir que já me acostumei ao fato de que suas obras podem começar em um lugar e terminar em outro - e não estamos falando apenas de geografia. O que interessa ao cabo é o painel político, social e cultural que ele costuma tecer em seus trabalhos, geralmente tomando a França como pano de fundo. Um pano de fundo que a converte de forma não tão involuntária, em um microcosmo do mundo. Democracia em ruínas, burocracia governamental, fanatismo religioso,
deep web, doenças da alma e do corpo, uma espécie de aniquilação meio que generalizada de tudo. Aqui, a trama inicia como um thriller político - que enveredará para o romance doméstico em tempos de distopia (e de busca por migalhas de felicidade em meio ao caos). É em meio aos prédios acinzentados do Ministério da Economia que o setor de Inteligência do Governo recebe um tipo curioso de ataque virtual: um vídeo bastante realista em que um ministro cotado para a presidência surge sendo decapitado. O que pretendem os criminosos digitais? Estariam ligados a quem? A grupos ambientais? À extremistas de direita? À fundamentalistas religiosos? Esse é só o ponto de partida de uma obra cínica, poética, iconoclasta e, creia, sensível.
Leia a resenha completa.
6) Gosma Rosa (Fernanda Trías): Devo confessar que, enquanto lia essa obra da uruguaia Fernanda Trías, só conseguia pensar no quanto o livro havia sido certeiro como alegoria para um mundo que precisa lidar com o rescaldo de uma pandemia. Afinal, todos os elementos estavam lá - da névoa avermelhada que simboliza o perigo, dos infectados que precisam permanecer em quarentena, da sensação de isolamento mesmo em uma grande cidade. Do abandono de qualquer esperança. Da necessidade de se apegar a qualquer fiapo de afeto para que não percamos a nossa humanidade. Ou mesmo a empatia. A romancista, ao cabo, havia lido a tragédia da covid-19 como uma metáfora perfeita dos nossos tempos? Sim, não fosse o fato de obra ter sido lançada ainda antes da pandemia. Com a vida imitando a arte ou vice e versa, o livro tem chamado a atenção como uma novela que fica no meio do caminho entre uma distopia clássica à moda de
1984 ou
Fahrenheit 451 e um romance catástrofe no estilo dos de J.G. Ballard. "
Com uma arquitetura sutil de camadas e mecanismos, e sempre intensa e evocativa, a publicação atravessa os gêneros (ciência, ficção, distopia, ecocatástrofe) e se instala em um território único" resume o crítico literário Ramiro Sanchiz, na orelha do livro.
Leia a resenha completa.
5) Salvar o Fogo (Itamar Vieira Júnior): A cada novo livro de Itamar Vieira Júnior uma ideia parece cada vez mais consolidada: a de que seus trabalhos buscam dar voz às minorias, aos vulneráveis sociais, aos marginalizados. Aqui não temos mulheres de classe média em seus dilemas suburbanos ou homens de meia idade em crise existencial - um tipo de literatura que alcançaria talvez sem muita dificuldade uma boa comunidade de leitores. Ao contrário, agindo quase como um Guimarães Rosa da nova geração - guardadas todas as proporções, naturalmente -, o autor baiano aposta no microcosmo que parte de narrativas familiares para uma análise do todo. O texto aqui é o do chão batido, da natureza em simbiose com o homem, dos conflitos territoriais, das instituições poderosas - seja o Estado ou a Igreja - que tentam silenciar o gritos dos excluídos. Das tradições, do folclore, da religião. Da luta. Da política. Do corpo. Do Brasil profundo. Foi assim com o elogiadíssimo Torto Arado - nosso livro favorito de 2020. É assim com Salvar o Fogo, uma leitura caleidoscópica, sinuosa, poética e envolvente, que busca rompaer o muro do silêncio e fazer reverberar vozes.
Leia a resenha completa.
4) Diorama (Carol Bensimon): Morando há tempo nos Estados Unidos, a protagonista Cecília é uma taxidermista que trabalha em um museu de história natural restaurando animais. É um ofício meticuloso, minucioso que visa a preservar a memória de espécies diversas a partir da reformulação de seus ecossistemas. Em resumo, trata-se de extrair a pele para reconstruir animais mortos. Em meio a rotina de trabalho ao lado do colega Greg - com quem divaga sobre a vida, cotidiano e amores (a relação de Cecília com o músico Jesse está em crise) -, ela recebe uma ligação vinda de Porto Alegre: após um AVC, seu pai Raul está mal de saúde. Só que retornar para a capital gaúcha será revisitar memórias de infância que parecem presas a um passado distante. Ainda que sigam vivas. Mais ou menos como as corças que protagonizam os cenários vibrantes construídos com esmero por Cecília - em seus dioramas artísticos, tridimensiomais. Repleto de ambiguidades e de idas e vindas, Bensimon constroi seu livro com uma prosa saborosa que discute temas como homossexualismo em uma região conservadora, a preservação da camada de ozônio (uma novidade nos anos 80) e mesmo a espetacularização de casos de violência.
Leia a resenha completa.
3) Solitária (Eliana Alves Cruz): Quartinho da empregada. Esse tipo de espaço que alude a um Brasil pós-abolicionismo é um dos principais cenários dessa ótima história de libertação. De luta para se livrar dos grilhões em um País que ainda parece experimentar um orgulho mesquinho relacionado à classe social. A senzala atual, afinal, é simbolizada por aquele cômodo pequeno, precário, naturalmente distante, isolado. É nesse cubículo mal iluminado, sem janelas, que vivem Eunice e sua filha, Mabel. Essa "solitária" improvisada dará no apartamento gigante de dona Lúcia, a patroa que, ao lado do marido Tiago, tenta conferir certo ar de normalidade àquela rotina. Em um microcosmo em que Eunice atua na invisibilidade constante - lavando, passando, cuidando da filha da patroa -, o que se tem é a metáfora arquitetônica perfeita de um Brasil de retrocessos. Só que esse tecido tão supostamente bem estruturado começará a ruir quando um crime horrendo ocorre: a morte de uma criança que, de forma inexplicável, cai de um dos andares mais altos. Com uma prosa ágil, intensa, fluída e assertiva, a autora nos convida a uma série de reflexões sobre esses contrastes ainda vivos em um País que mal recolhe os cacos de um governo de extrema direita. Livraço.
Leia a resenha completa.
2) Caminhando com os Mortos (Micheliny Verunschk): Uma história sobre intolerância religiosa - e de como o discurso institucional extremista pode estragar não apenas a vida de uma pessoa, mas de um povoado inteiro. Às vezes por muitas gerações. Mais ou menos assim é possível resumir a experiência com essa atualíssima obra da escritora Micheliny Verunschk - que foi muito premiada recentemente, com O Som do Rugido da Onça, que conquistou o Jabuti de Melhor Romance Literário. Em um Brasil que tem um congresso capaz de tomar decisões mais com a Bíblia debaixo do braço do que com a Constituição Federal - acenando para o retrocesso em temas que já deveriam ter avançado -, a história de uma jovem queimada vida pela própria família, na intenção de expurgar os demônios, o pecado e a bruxaria não chega exatamente a surpreender. Aliás, em entrevista ao site Quatro Cinco Um, ela afirma ter se inspirado justamente em notícias do tipo. Brinco que esse livro é uma história de zumbis, pessoas seguindo alguns preceitos até virarem walking deads", afirmaria. É um livro forte, poderoso, às vezes até difícil em sua prosa atmosférica, bucólica. Mas é imperdível. Leia a resenha completa.
1) Como se Fosse Um Monstro (Fabiane Guimarães): Quais os limites da maternidade, das escolhas femininas e das expectativas sociais em relação aos papeis das mulheres? Estas são algumas perguntas que rondam o soberbo segundo romance de Fabiane Guimarães - uma narrativa envolvente sobre tomadas de decisão e de que maneiras elas impactam não apenas a própria vida, mas também as das pessoas ao redor. Na Brasília do final dos anos 80, a jovem Damiana sai do interior para trabalhar na casa de um casal rico da cidade grande - os patrões se chamam Daniela e Érico. No ambiente asséptico daquele lar, ela tentará compreender a dinâmica dos dois, ao mesmo tempo em que lhe chamará a atenção o "entra e sai" de meninas que chegam diariamente para entrevistas realizadas à portas fechadas. Não demorará para que Damiana compreende o motivo daquela estranha movimentação: os patrões estão em busca de alguém que lhes sirva de barriga de aluguel. É essa história de cárcere forçado, de culpa, de vulnerabilidade e de direitos femininos que será narrada em um encontro entre Damiana, agora uma idosa que reside no campo, e a jovem jornalista Gabriela. Um romance contundente e fascinante, que estabelece a autora como uma das mais importantes da atualidade.
Agora sim podemos dizer, pessoal: que venha 2024! Ótimo ano cheio de saúde e realizações - com muitos filmes, músicas e leituras pra todos nós! =)