terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Pitaquinho Musical - The Smile (Wall of Eyes)

Vamos combinar que existem discos que a gente escuta, cantarola o refrão, decora as letras e consome instantaneamente. E há, por outro lado, aqueles álbuns que são feitos para serem saboreados aos poucos. Que nem sempre são fáceis - e que exigem do ouvinte uma atenção a mais, uma persistência que, em muitos casos, nem combina tanto com essa coisa moderna da absorção cultural imediata, mas que parece estar sempre olhando para o seguinte, para o que vem depois, para o próximo. Que o Thom Yorke é uma espécie de elo de resistência a esses modelos mais óbvios, mais comerciais, não chega a ser exatamente uma novidade. Era assim no Radiohead, com sua música cósmica, etérea, enevoada e alienígena funcionando como uma metáfora pra tempos tecnológicos, urgentes e um tanto caóticos que antecipariam a virada do milênio. É assim também com o The Smile, que chega ao segundo trabalho com Wall of Eyes.



Mais uma vez trabalhando ao lado do parceiro de longa data, o guitarrista Jonny Greenwood, e de Tom Skinner - o baterista do coletivo Sons of Kemet - Yorke volta novamente seu olhar para questões contemporâneas e fatalistas, casos da pandemia (Friend of a Friend) ou de disputas de espaços políticos (Teleharmonic). Tudo por meio das letras enigmáticas, ambíguas, que se somam às melodias caleidoscópicas, que nos levam de lá para cá em uma mistura de jazz, eletrônica minimalista e algo que se aproxima do rock. Um bom exemplo desse expediente, pode ser encontrado em Read the Room, que remonta a um Radiohead da era King of Limbs. Mesmo com guitarra, baixo e bateria mais tradicionais, neste caso chama a atenção a forma pouco convencional que o instrumental ondula como se feito de fragmentos, que vão no limite entre a inquietação e a desordem. São músicas harmoniosas mas conflitantes, que se comprimem e se expandem, criando um universo próprio. Caso de outras joias, como a instigante Bending Hectic.

Nota: 8,5


Cinema - Vidas Passadas (Past Lives)

De: Celine Song. Com Greta Lee, John Magaro e Teo Yoo. Drama / Romance, EUA, 2023, 106 minutos.

Vamos combinar que talvez o grande mérito de Vidas Passadas (Past Lives) seja justamente fugir da narrativa óbvia, previsível, que, muito provavelmente em outros tempos, movimentaria romances como esse. Sim, a obra da Celine Song te pega pela nostalgia - e não há absolutamente ninguém que não vá se recordar de uma paixão juvenil, de um amor ainda ingênuo, enquanto acompanha a história. Como seria? como poderia ter sido? Enfim, esse tipo de coisa. Mas ao mesmo tempo a experiência não é mesquinha ou romanticamente vazia ao imaginar que tudo seria um mar de rosas se, efetivamente, tivéssemos permanecido com o primeiro amor. Aliás, é muito raro alguém namorar, casar, constituir família e ficar eternamente com aquele coleguinha de sala de aula, ou com a vizinha do bairro que era companhia de brincadeiras (quando a sexualidade mal tinha despertado). Dá pra contar esses casos nos dedos. E olhe lá.

Nesse sentido, há uma parte que gosto bastante no filme, que é o instante em que Nora (Greta Lee) e Arthur (John Magaro) estão deitados na cama, quando ela finalmente conseguiu ter o primeiro encontro com Hae Sung (Teo Yoo), 24 anos depois de sua família deixar a Coréia do Sul, em direção ao Canadá (por motivos de trabalho). Num misto de ciúmes contidos e senso de humor, Arthur brinca sobre esta ser a etapa da história em que ele, o norte americano branco, está interferindo no destino dos dois, que só se casaram pra que ela obtivesse o Green Card e que isso poderia ter ocorrido com qualquer outro homem. "Aliás, esse é o momento em que você me abandona para retornar a Coreia do Sul com ele, sua grande paixão da juventude", ele completa. Sim, como eu disse acima, talvez se esse fosse um filme previsivelmente romântico. Mas ocorre que Nora agora tem uma carreira como escritora em Nova York. E, como dito por sua própria mãe, deixar algo pra trás também pode significar ganhos.

E o caso é que a gente percebe, durante a experiência com o filme, que somos seres em transformação. Que estamos mudando o tempo todo. E que talvez coisas que tivessem profundo significado lá no passado, sejam agora apenas isso. Coisas do passado. Na nossa memória. Que, aqui e ali, regressarão de forma afetuosa em nossa mente. Em certa altura, Nora - que quando era uma adolescente moradora de Seul recebia o nome de Na Young - comenta com o atual marido sobre o fato de não se sentir nada coreana depois de tantos anos. "Mas ao mesmo tempo eu me sinto extremamente coreana quando estou com ele", verbaliza ao companheiro, sobre os encontros com Hae Sung. Afinal de contas, aquele homem por quem ela nutriu uma paixonite na juventude, é extremamente coreano. No sentido mais tradicional da coisa: meio conservador, taciturno, sério, com um carisma quase negativo. Não há idealização aqui ou a conversão de Hae Sung num sujeito dinâmico, extrovertido, magnético, sedutor. Ele talvez siga sendo mais ou menos quem ele era. Já Nora? Bom, Nora hoje é Nora. Com outro nome e tudo.

Todos esses pontos são interessantes no filme: uma mulher que não abre mão de sua carreira de escritora em ascensão por uma utopia amorosa, a quebra de paradigma em relação ao casal que deveria ficar junto no final (em detrimento do casal possível), o certo apelo à nostalgia que mexe com as nossas próprias recordações e memórias. São muitas sequências interessantes, inclusive as que envolvem o antagonismo da própria cidade acinzentada - o caso de Nova York -, em um comparativo com certo bucolismo asiático, com suas estátuas, áreas verdes e outros. Tudo isso é elegante, instigante, o que envolve ainda uma trilha sonora existencialista, que se soma à observações culturais da própria Coreia, como a sedutora história do In-Yun - que dá conta de uma lenda sobre nos encontrarmos em milhares de vidas passadas (nos esbarrando, que seja) para, a partir desse acúmulo, nos relacionarmos. "É há algo que usamos para seduzir alguém", comenta Nora em tom de deboche, em um dos primeiros encontros com o futuro marido. Ao cabo, esse é um filme que seduz em todos os sentidos. Por mais simples que seja.

Nota: 8,5


segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Livro do Mês - Suíte Tóquio (Giovana Madalosso)

Editora Todavia, 2020, 210 páginas.

[ATENÇÃO: ESSE TEXTO TEM ALGUNS SPOILERS]

Uma das partes mais impactantes e, paradoxalmente divertidas, de Suíte Tóquio, livro da paranaense Giovana Madalosso, ocorre já no terço final. Nela, Fernanda, uma das protagonistas, está começando a entrar em desespero por causa do desaparecimento de sua filha Cora. Já foi até a polícia, já percorreu a cidade, tudo meio em vão. A solução encontrada por Cacá, o marido gratiluz de Fernanda? Dispor um baralho de tarô na mesa de centro da bela casa em que residem, pra ver o que dizem as cartas. "O meu oráculo", como ele afirma. Não bastasse o absurdo da sequência em si, Cacá ainda faz questão de retirar a carta com um movimento devagar, supostamente calculado - aquela coisa de terapeuta holístico de ocasião, um tipo de negócio que a classe média adora (e que talvez os ajude, em alguma medida, com seus males). Quando vê um carro na carta, Cacá fica exultante. "O carro indica iniciativa, conquista", comenta o homem para, mais adiante, concluir: "ela certamente não foi a pé, e sim de táxi".

E eu admito a vocês que essa é a só a ponta do iceberg no que diz respeito ao desleixo de Fernanda e Cacá, em relação a criação de Cora. Pais ausentes e narcisistas, parecem muito mais preocupados com suas próprias existências - que incluem hedonismos escapistas e prazeres furtivos, que dão conta do completo vazio existencial que percorre suas almas. Fernanda é uma diretora de conteúdo de um programa de TV e é sondada para um cargo mais alto no canal em que trabalha. Anda pra lá e pra cá em viagens pelo Brasil, prestando contas para a produtora estrangeira a respeito de um documentário que está filmando. Numa dessas andanças, conhece (e se apaixona) por Yara, uma diretora de fotografia daquele tipo descolada, que não parece muito interessada em se prender a alguém. Ainda mais se esse alguém for uma mulher casada, insatisfeita com o seu casamento meia bomba e que, de quebra, ainda tem uma filha. Sobre Cacá, ele é apenas o marido "falso bobo", que a gente nem entende bem que papel que tem nesse mundo.

Tanto é que, quando o livro começa, nem chegamos a nos surpreender com os eventos em si: a obra inicia com Maju, a empregada do casal "sequestrando" Cora. Sim, do susto inicial, afinal de contas o roubo de crianças é um crime grave e uma chaga que assola o País e assombra pais dia e noite, a uma certa compreensão das intenções por trás do seu ato, não demora muito. E aqui, a meu ver, está o mérito inicial de Giovana: ao burlar os limites maniqueístas da equação óbvia entre mocinhos e bandidos, a escritora adiciona complexidade aos seus personagens (e a sua trama). Maju é a mulher de vida humilde que sempre foi uma espécie de segunda mãe para Cora. Aliás, talvez em alguns casos até primeira mãe (como a gente já cansou de ver por aí). Supostamente da "família" foi contratada por Fernanda para um regime quase servil, que envolvia dias seguidos de trabalho e eventuais folgas quinzenais - e nestas tinha direito, tal qual uma prisioneira de fato, a uma visita íntima em seu quartinho (a tal Suíte Tóquio do título).

Com uma prosa fluída, a autora conduz a trama em duas linhas narrativas. Em uma delas, Maju e Cora iniciam a sua jornada de ônibus, numa espécie de road movie improvisado. Que resultará acidentado mais adiante, quando perdem suas malas e a condução, indo parar em um motel decadente, tendo ainda de se virar a pé e em caronas pouco convidativas de caminhoneiros de beira de estrada. Nesta parte, também será possível perceber como Maju teve uma vida sofrida, também do ponto de vista do amor (o que parece estar diretamente relacionado a sua absurda rotina como doméstica, que lhe impedia de ter uma vida pra chamar de sua). Já na outra linha, acompanhamos a pasmaceira do casal central, com suas crises pessoais mesquinhas, suas idas e vindas e a inacreditável demora até constatar o que havia ocorrido com sua própria filha - um descaso que, vá lá, talvez beirasse o criminoso. O que também nos faz pensar sobre os delitos ocorridos no romance. Ao cabo, aqui temos a obra pé na estrada típica, com a vida dos personagens sendo movida por uma eterna busca de qualquer fiapo que seja - de ternura, de amor, de afeto, de sexo ou de redenção. Um projeto imperdível, vertiginoso e excentricamente cômico.


sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Curta Um Curta - O ABC da Proibição de Livros (The ABC of Book Banning)

O que os livros O Olho Mais Azul, de Toni Morrison, O Senhor das Moscas, de William Golding, O Conto da Aia, de Margaret Atwood, Matadouro 5, de Kurt Vonnegut e O Caçador de Pipas, de Khaled Hosseini têm em comum? Bom, além de serem grandes obras da literatura universal, eles integram uma bizarra lista de mais de duas mil publicações eliminadas de distritos escolares dos Estados Unidos. Classificados como restritos, questionados ou simplesmente banidos, os livros não estão disponíveis para milhares de estudantes em 37 estados do País. Sim, uma medida de apagamento que remonta o nazifascismo europeu e que censura obras de literatura queer e sobre questões raciais, além de publicações de cunho feminista ou de igualdade de gênero. Quem decide se este ou aquele livro pode ser lido? Muitas vezes integrantes das próprias comunidades escolares, representados por aquele "cidadão de bem" habituado à teorias conspiratórias, que variam do pânico moral à delírio comunista.

E o que o documentário em curta O ABC da Proibição de Livros (The ABC of Book Banning) faz? Bom, de forma muito corajosa o trio de diretoras Nazenet Habtezghi, Sheila Nevins e Trish Adlesic joga luz à essa questão, apontando as contradições por trás desse banimento, que busca supostamente "limpar" as prateleiras daquilo que consideram inadequado. Mesclando animações, imagens documentais e entrevistas, as realizadoras reúnem um grupo de crianças para discutir com naturalidade o tema - bem como o absurdo de proibir qualquer obra que seja. Nesse contexto, surge ainda uma voz relevante nessa luta, no caso o da centenária Grace Linn, uma defensora da democracia, da liberdade e da proteção da literatura, que realizou um discurso para mais de 500 pessoas em um condado da Flórida, no Texas (como não poderia deixar de ser, o paraíso desse perigoso tipo de controle). Carismática, criativa e muito dinâmica, a obra está disponível no Paramount Plus e é uma das indicadas na categoria Curta Documentário. Vale cada segundo!


quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

Cinema - Folhas de Outono (Kuolleet Lehdet)

De: Ari Kaurismäki. Com Alma Pöysti, Jussi Vatanen e Janne Hyyti'inen. Drama / Comédia, Finlândia, 2023, 81 minutos.

Quem acompanha a carreira do diretor Ari Kaurismäki já sabe que há uma certa tradição na sua obra, de unir o universo do trabalho com o das relações pessoais, estabelecendo um vínculo entre esses ambientes, apontando como um afeta o outro. Em seus filmes - sempre experiências meio secas, dotadas de um humor sombrio, torto, que parece até mesmo rir do absurdo do mundo - somos apresentados a figuras que parecem buscar seu lugar no mundo, ao passo que vivem rotinas vazias, ocas, repetitivas. Ainda assim é nesse aspecto mais ordinário da existência - em seus acasos, surpresas, pequenos acontecimentos -, que parece residir a sua força narrativa. Sim, não há grandes eventos aqui. Ainda que a violência meio institucionalizada esteja meio pelas frestas. Com as personagens e suas expressões opacas funcionando como uma espécie de resposta resignada, letárgica. O que, em alguma medida os deixa imobilizados.

E talvez não seja por acaso que uma de suas principais trilogias tenha recebido o sugestivo nome de Trilogia do Proletariado. Nessa trinca de filmes intitulados de Sombras no Paraíso (1986), Ariel (1988) e A Garota da Fábrica da Caixas de Fósforos (1990), a pasmaceira existencial é evidenciada em rimas visuais que colocam seus protagonistas como figuras vulneráveis, eventualmente alienadas, que apenas subsistem em meio a mecanicidade do mundo. Na terceira obra da trilogia, talvez não seja por acaso, por exemplo, que o diretor se prenda tanto em sequências que mostrem os maquinários em funcionamento, em cenas meio repetidas, que se alternam pela busca niilista de algum tipo de prazer eventual - seja em cigarros infinitamente acendidos, seja em boates aleatórias, com músicas estranhas. É um universo meio que de fanfarronice, que vai no limite entre o documental e o excêntrico, entre a crítica social e a besteirada.

Sim, já vi muita gente falando que não gosta tanto do estilo do realizador justamente por esse certo apelo ao deboche, como forma de analisar a tragédia da vida. E tá tudo bem. Mas um olhar mais apurado possibilitará justamente entender essa contraposição entre indústrias barulhentas e seus chefes cheios de exigências pra cima do proletariado, que contrastam com bares, karaokês, bebidas e hoteis decadentes. A propósito, a Finlândia que o diretor apresenta costuma se distanciar daquela que nos acostumamos a ouvir falar - a da qualidade de vida acima de tudo. Nas suas obras sobram criminosos, estelionatários, cenários sombrios, grosserias diversas. No recente Folhas de Outono (Kuolleet Lehdet), que venceu o Prêmio do Júri no Festival de Cannes, todo esse expediente se repete, sendo reforçado e martelado por notícias que saem do rádio e da televisão, a respeito das guerras do mundo e de outras tragédias universais - o que talvez tornasse ainda mais mesquinha a busca particular (e hedonista) por felicidade? Talvez.

Na trama, Ansa (Alma Pöysti) é uma funcionária que trabalha no estoque de um supermercado e que perde o emprego após tentar esconder um sanduíche vencido que deveria ir para o lixo. Por outro lado, Holappa (Jussi Vatanen) é um operário de uma empresa de jateamento de areia, que também está por um fio no seu cargo por conta do alcoolismo. Duas almas solitárias que se cruzarão, a partir de um acontecimento absolutamente fortuito: no caso a prisão do novo chefe de Ansa, em seu novo emprego. Só que as tentativas de estabelecer vínculo meio que falharão miseravelmente: Holappa simplesmente perderá o bilhete em que Ansa escreve o seu número de telefone. O que fará com que os dois batam cabeça pela cidade, em meio a calçadas, ruas e cinemas. Com diálogos curtos e muitos silêncios, esse é aquele tipo de experiência que se vale de olhares e de movimentos corporais sutis mas que dizem muito. Pode não ser tão palatável, mas tem aquela coisa do cinema pelo cinema, da arte acima de tudo. Que foge de convenções e que tem personalidade própria em sua análise contemporânea das relações humanas.

Nota: 8,5


terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Pitaquinho Musical - Bill Ryder-Jones (Iechid Ya)

Uma mistura de Arcade Fire com Mercury Rev - especialmente o da fase Deserter's Songs (1998) -, adicionada de um tequinho de MPB e muito provavelmente teremos o resultado, em termos de sonoridade, do que é Iechid Ya, o quinto disco de Bill Ryder-Jones em carreira solo. Ex-integrante do The Coral, o artista inglês elabora, aqui, uma coleção de canções que evoluem para além do folk mais simplificado visto em trabalhos anteriores - caso de Yawn (2018) -, para adicionar uma série de outros ingredientes. O resultado são canções que vão no limite entre o onírico e o agridoce, o nostálgico e o encantador - o que pode ser percebido já na inaugural I Know That It's Like This (Baby), uma música que homenageia a ex-namorada, a brasileira Christinha (o que também explica a presença do sampler de Baby, entoado por uma Gal Costa que parece diluída no mundo dos sonhos).

 



Em linhas gerais esta também é uma obra de contrastes. Se por um lado as letras podem pender pra certo existencialismo, como no caso do single If Tomorrow Starts Without Me  (Valeu a pena esperar? / Quanto isso vale para você? / E parece bom estar de passagem), uma música sem refrão e imersa em uma sofisticação pegajosa, por outro o coralzinho infantil que surge na ótima We Don't Need Them insere um componente meio lúdico à coisa toda. Sentimento ampliado pelo tambor de fanfarra, pelo pianinho agridoce e pelo refrão popíssimo. Mas o brilho mesmo vem de composições angustiadas, meio empoeiradas, que versam sobre as lutas para manter sanidade mental (não podemos esquecer que depois do último disco houve uma tal de pandemia), e que dialogam com o melhor da psicodelia noventista, casos de This Can't Go On e e Thankfully for Anthony (esta última, sério, será a melhor do ano).

Nota: 8,5


Onze Considerações Sobre os Indicados ao Oscar 2024

A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas revelou na manhã desta terça-feira (23/01), os indicados ao Oscar 2024. A cerimônia ocorre na noite do dia 10 de março, o que permite uma boa janela para que consigamos nos atualizar - e conferir o maior número de filmes possíveis (o que sempre é algo prazeroso, especialmente para os que gostam da temporada de premiações). Como de praxe, a gente faz uma pequena listinha com algumas análises sobre os nominados, destacando esnobes, ausências e obviedades da relação!

1) Começando pela lista de Melhor Filme que, a bem da verdade, não teve nenhuma grande surpresa. Quem acompanha de perto as prévias, já tinha mais ou menos o desenho estabelecido. E, honestamente, fico feliz em ver blockbusters como Barbie disputando o mesmo espaço com queridinhos do cinema alternativo, como Vidas Passadas. O favorito da categoria parece ser Oppenheimer que, com suas treze indicações, chega com força à disputa.

2) Nas categorias de interpretação não há dúvida de que a ausência mais sentida pelos fãs é a de Margot Robbie, a nossa atual (e eterna) Barbie. Só que, de forma diametralmente oposta, a presença de America Ferrera entre as lembradas como Atriz Coadjuvante, foi uma boa surpresa! Falando em surpresa, não levava muita fé na Annette Bening por Nyad, até mesmo porque o filme não é aquilo tudo. Mas tanto a veterana quanto Jodie Foster foram lembradas pela obra.

 

3) Já entre os atores, um leve esnobe rolou para o Bradley Cooper que, a despeito da campanha massiva, foi ignorado por seu trabalho em Maestro (ainda que o filme tenha sido lembrado em muitas outras categorias). O mesmo valendo para o Leonardo DiCaprio, que ficou de fora por Assassinos da Lua das Flores. Entre os coadjuvantes, imaginava-se que Charles Melton poderia ter sido lembrado por Segredos de Um Escândalo. Aliás, em linhas gerais é possível afirmar que a obra de Todd Haynes foi uma decepção - especialmente nas categorias de interpretação, onde havia grande expectativa. Além de Melton, Natalie Portman e Juliane Moore ficaram de lado (o que não tira o brilho do filme, que terá resenha em breve por aqui). Em tempo: muito bom ver o Sterling K. Brown - o eterno Randall, de This Is Us, lembrado por American Fiction, filme que ainda não vimos (mas já amamos).

4) Foi muito legal ver a Justine Triet, de Anatomia de Uma Queda, sendo lembrada na categoria Direção. Só que a presença dela significou a ausência da Greta Gerwig que, imaginava-se, podia concorrer por Barbie. No mais, esta também foi uma categoria sem grandes surpresas.

5) Agora, surpresa MESMO veio da categoria Documentário - algo que, aliás, tem ocorrido nos últimos anos. Como assim o Still: A História de Michael J. Fox sendo solenemente ignorado? E o que dizer de American Symphony, com toda a campanha massiva feita pela Netflix?  Bom, por outro lado, esse cenário também significa visibilidade para filmes que, até então, eram menos comentados, caso de Bobi Wine: O Presidente do Povo.

 

6) Uma esnobada FORTE parece ter sido na categoria Roteiro Adaptado, com a ausência de Assassinos da Lua das Flores. Não li o livro base, mas até onde entendi, a equipe que trabalhou o roteiro teria mexido bastante no texto (especialmente nas partes que se referem ao FBI), o que fez com que o apelo fosse reduzido. 

7) Em relação aos filmes estrangeiros, o Dalenogare passou a temporada toda dizendo que a França jogou no LIXO não apenas a chance ter um indicado forte como Anatomia de Uma Queda, como muito provavelmente seria o favorito na sua categoria. Resultado: Sabor da Vida, o enviado oficial, ficou de fora. Assim como Folhas de Outono, o novo projeto do sempre excêntrico Ari Kaurismäki (aliás, uma pena).

8) Uma surpresa enorme na categoria Animação foi a presença de Meu Amigo Robô entre os lembrados - o que deixa para trás mesmices como o novo das Tartarugas Ninja.

9) A gente quase não fala das categorias de curta, mas na relação de live action creio que a ausência mais sentida seja a de Estranha Forma de Vida, o famoso filme dirigido por Pedro Almodóvar, que é estrelado por Pedro Pascal e Ethan Hawke. 

10) Nas categorias técnicas, uma das mais aplaudidas pelo público presente foi a lembrança de Godzilla Minus One para Efeitos Visuais. O hype em cima desse filme tá tanto que essa indicação talvez seja o empurrãozinho que faltava para assistir o filme. Já em Fotografia, que bacana ver O Conde sendo lembrado - um filme do começo do ano passado, muitas vezes ignorado, mas que vale ser (re)descoberto. Surpresa das boas)

11) E o Saltburn, hein galera? Que sai com simplesmente ZERO indicações?

 

Confira a lista completa:

Melhor Filme

    American Fiction
    Anatomia de Uma Queda
    Barbie
    Os Rejeitados
    Assassinos da Lua das Flores
    Maestro
    Oppenheimer
    Vidas Passadas
    Pobres Criaturas
    Zona de interesse

Melhor Ator Coadjuvante

    Sterling K. Brown (American Fiction)
    Robert de Niro (Assassinos da Lua das Flores)
    Robert Downey Jr. (Oppenheimer)
    Ryan Gosling (Barbie)
    Mark Ruffalo (Pobres Criaturas)

Melhor Atriz Coadjuvante

    Emily Blunt (Oppenheimer)
    Danielle Brooks (A Cor Púrpura)
    American Ferrera (Barbie)
    Jodie Foster (Nyad)
    Da'vine Joy Randolph (Os Rejeitados)

Melhor Figurino

    Barbie
    Assassinos da Lua das Flores
    Napoleão
    Oppenheimer
    Pobres Criaturas

Melhor Maquiagem e Cabelo

    Golda
    Maestro
    Oppenheimer
    Pobres Criaturas
    Sociedade de Neve

Melhor Curta Metragem em Live

    The After
    Invincible
    Knight of Fortune
    Red, White and Blue
    The Wonderful Story of Henry Sugar

Melhor Curta de Animação

    Letter to a Pig
    Ninety-Five Senses
    Our Uniform
    Pachyderme
    War Is Over! Inspired by the Music of John & Yoko

Melhor Roteiro Adaptado

    American Fiction
    Barbie
    Oppenheimer
    Pobres Criaturas
    Zona de Interesse

Melhor Roteiro Original

    Anatomia de uma Queda
    Os Rejeitados
    Maestro
    May December
    Past Lives

Melhor Canção Original

    “The Fire Inside” (Flamin’ Hot)
    “I’m Just Ken” (Barbie)
    “It Never Went Away” (American Symphony)
    “Wahzhazhe (A Song For My People)” (Assassinos da Lua das Flores)
    “What Was I Made For?” (Barbie)

Melhor Trilha Sonora

    American Fiction
    Indiana Jones e a Relíquia do Destino
    Assassinos da Lua das Flores
    Oppenheimer
    Pobres Criaturas

Melhor Documentário

    Bobi Wine: The People’s President
    The Eternal Memory
    Four Daughters
    To Kill a Tiger
    20 Days in Mariupol

Melhor Documentário Curta

    The ABCs of Book Banning
    The Barber of Little Rock
    Island in Between
    The Last Repair Shop
    Nǎi Nai & Wài Pó

Melhor Filme Internacional

    Io Capitano (Itália)
    Perfect Days (Japão)
    Sociedade da Neve (Espanha)
    The Teachers’ Lounge (Alemanha)
    Zona de Interesse (Reino Unido)

Melhor Animação

    O Menino e a Garça
    Elementos
    Nimona
    Homem-Aranha: Através do Aranhaverso
    Robot Dreams

Melhor Design de Produção

    Barbie
    Assassinos da Lua das Flores
    Napoleão
    Oppenheimer
    Pobres Criaturas

Melhor Montagem

    Anatomia de Uma Queda
    Os Rejeitados
    Assassinos da Lua das Flores
    Oppenheimer
    Pobres Criaturas

Melhor Som

    Resistência
    Maestro
    Missão: Impossível - Acerto de Contas Parte Um
    Oppenheimer
    Zona de Interesse

Melhores Efeitos Visuais

    Resistência
    Godzilla Minus One
    Guardiões da Galáxia Vol. 3
    Missão: Impossível - Acerto de Contas Parte Um
    Napoleão

Melhor Fotografia

    El Conde
    Assassinos da Lua das Flores
    Maestro
    Oppenheimer
    Pobres Criaturas

Melhor Ator

    Bradley Cooper (Maestro)
    Colman Domingo (Rustin)
    Paul Giamatti (Os Rejeitados)
    Cillian Murphy (Oppenheimer)
    Jeffrey Wright (American Fiction)

Melhor Atriz

    Annette Bening (Nyad)
    Lily Gladstone (Assassinos da Lua das Flores)
    Sandra Hüller (Anatomia de uma Queda)
    Carey Mulligan (Maestro)
    Emma Stone (Pobres Criaturas)

Melhor Direção

    Justine Triet (Anatomia de uma Queda)
    Yorgos Lanthimos (Pobres Criaturas)
    Christopher Nolan (Oppenheimer)
    Martin Scorsese (Assassinos da Lua das Flores)
    Jonathan Glazer (Zona de Interesse)

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Novidades em Streaming - How to Have Sex

De: Molly Manning Walker. Com Mia McKenna-Bruce, Lara Peake e Enva Lewis. Drama, Grécia / Reino Unido, 2023, 91 minutos.

Quando chegam à ilha grega de Malía para passar as férias de verão, Tara (Mia McKenna-Bruce), Em (Enva Lewis) e Skye (Lara Peake) são pura empolgação juvenil. Do alto dos seus cerca de dezessete anos, estão no local só pelas festas, pela bebedeira, pela azaração. Pelos encontros e desencontros típicos da idade - e enquanto assistia a How to Have Sex, a magnética estreia em longas da diretora Molly Manning Walker, me perguntava onde essa trama ia desembocar. Tara, especialmente, chega ao lugar como uma jovem iluminada, que parece bem no meio da transição entre certa infantilidade destemida - ela se agarra as demais, brinca o tempo todo, gargalha - e a necessidade urgente de chegar à vida adulta. Com uma espécie de barreira que parece demarcar esse limite entre um ponto e outro, no caso o fato de, entre as três amigas, ser a única que ainda não transou (ainda que o conceito de virgindade, nos dias de hoje, pareça ser bem mais amplo do que a mera penetração em si).

E mesmo que se divirta muito com as demais amigas, é interessante notar como essa pressão angustia Tara. O que fará com que, aos poucos, e no decorrer daqueles dias insuportavelmente agitados de verão, seu brilho vá se apagando. Tara é uma garota absolutamente linda - ou ao menos atende certo padrão, naquilo que se estabelece como belo nessa sociedade de aparências acima de tudo. E ela deveria ter, ao menos em tese, total tranquilidade para decidir como, quando, onde e por quê deveria se relacionar (ou transar) com quem quer que fosse. Só que não é o que acontece - e a meu ver é isso que torna esse projeto, que venceu a mostra Um Certo Olhar no mais recente Festival de Cannes - tão especial. No final da adolescência, ao cabo, parece que precisamos fazer tudo para ontem sendo que temos toda a vida ainda pela frente. E, imaturos, talvez sejamos incapazes de perceber as coisas que nos rodeiam de uma forma mais ampla, mais crítica e fazendo valer as nossas vontades que vão para além dos papeis previamente "escritos" (ainda mais para as mulheres, diante de todas as violências que sofrem o tempo todo).

Nesse sentido, não deixa de ser interessante notar como Tara, aparentemente, vai cansando de tudo aquilo. Daquele ambiente que, não demorará, se apresentará inóspito para uma menina tão jovem, tão pequena e pressionada pelas incertezas que misturam baixa autoestima, com necessidade permanente de validação. Aos poucos a carga vai ficando pesada, as bebedeiras parecem perder o sentido em meio a vômitos, mal estar generalizado e sentimento de solidão - com tudo piorando quando a protagonista sofre uma violência grotesca que, geração a geração, parece se perpetuar uma sociedade machista, misógina e invariavelmente estúpida. O que não deixa de ser uma espécie de paradoxo, uma vez que jovens que se vendem como quebradores de regras, que bebem, se drogam e praticam sexo mais livremente do que nunca, parecem incapazes de se livrar de práticas que, ao cabo, não deveriam ser repetidas. Ainda mais sem consentimento.

De estilo frenético e claustrofóbico o filme discute, em apenas noventa minutos, um sem fim de temas que assolam a juventude - de sensação (e necessidade) de pertencimento, passando por responsabilidade afetiva, aceitação, hipervalorização do sexo, aparências, sororidade, conceitos de masculinidade e relacionamentos abusivos (sendo importante veículo de identificação dessas ocorrências). Pouco antes de efetivar sua primeira transa com um esquisito qualquer - um gurizinho com a autoestima na lua -, Tara afirma não estar à vontade, por estarem na praia, com areia por toda a parte. Ao que o jovem responde com um "não seja estranha" - já que forçar a barra na orla deve ser, em sua visão deturpada, algo entre o romântico e o safado. Em alguns momentos a obra, que está disponível na Mubi, pode soar incômoda, não apenas pela temática em si, mas pelo frenesi constante, que nos leva do riso à reflexão em segundos. Mas essa é uma experiência bastante sensorial também sobre rupturas. E sobre quando percebemos o aumento de nossa capacidade em tomar decisões, deixando para trás inclusive certas amizades (se assim for necessário).

Nota: 8,5


sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Pitaquinho Musical - Green Day (Saviors)

Aparentemente o tempo de espera por um bom álbum do Green Day acabou. Ascensão da extrema direita, pandemia, guerras, os Estados Unidos ainda recolhendo os cacos do trumpismo (que é capaz de retornar) e cá estamos, celebrando uma banda que crescemos escutando - e que seguimos admirando, após 35 anos de existência. Especialmente por eles não terem simplesmente virado os tiozões do churrasco (ou do barbecue), que passam seus domingos entre idas à missa e a encontros no clube de tiro, enquanto tergivesam sobre os Estados Unidos não serem mais os mesmos do passado. Ok, pode não haver tanta novidade assim em termos de sonoridade em Saviors - o décimo quarto disco da carreira longeva -, mas o caso é que o frescor vem de outras partes. Das letras debochadas, dos riffs bem encaixados, dos refrões grudentos. Isso já rolava em Dookie (1994)? Que bom, porque estávamos com saudades desse punk pop acelerado, com musiquinhas de três minutos, que conseguem ao mesmo tempo acenar para os anos 90, sem deixar de ser atual.

Tomemos como exemplo o ótimo single de abertura The American Dream Is Killing Me. Com título autoexplicativo, Bille Joe e companhia parecem atualizar os temas de American Idiot em um hino roqueiro que debocha do estilo de vida americano, com referências à crise imobiliária e às teorias conspiratórias que invadem o zap do conservador médio. O expediente provocativo se repete em ótimas músicas como Look Ma, No Brains! (Não sei muito sobre história / Porque nunca aprendi a ler), em 1981 (Deus, abençoe o fim dos tempos / Dor, comunistas e cocaína) e na grudenta Strange Days Are Here to Stay (Estamos no inferno? Ou isso é apenas uma fantasia?). Quando fala de sua experiência pessoal, o vocalista também vai fundo e acerta em cheio, como no caso do single Dilemma, que traz uma profunda reflexão sobre seus dias de rehab e de luta contra o vício - tudo embalado em uma melodia energizante, que remete aos melhores momentos do começo da carreira. É legal ter o Green Day "de volta". Com a qualidade que parece vir com a maturidade, tudo fica ainda melhor.

Nota: 8,0


Cine Baú - Pacto de Sangue (Double Indemnity)

De: Billy Wilder. Com Barbara Stanwyck, Fred MacMurray e Edward G. Robinson. Suspense / Noir, EUA, 1944, 106 minutos.

Em uma das primeiras cenas do clássico noir Pacto de Sangue (Double Indemnity), o vendedor de seguros Walter Neff (Fred MacMurray, naquele estilo carismático canastrão) vai até a mansão Los Feliz Boulevard, com a intenção de renovar a apólice dos veículos de um de seus clientes. No local é recebido pela esposa do homem, uma loura sedutora embalada em uma reveladora toalha, recém saída do que parece ser um banho de sol. Quando desce as escadas sobre um delicado tamanco de salto alto, o sujeito não consegue deixar de observar a tornozeleira usada por sua anfitriã. E, vá lá, talvez ele nem precisasse ser um podólatra de plantão já que suas cantadas meio baratas, que evoluem a partir de diálogos enigmáticos e divertidos - com aquela dose certa de safadeza de duplo sentido - entregam: o sujeito já está caído pela senhora Phyllis Dietrichson (Barbara Stanwyck).

Quando o filme começa, vemos um desabalado Neff atravessar de forma cambaleante os corredores do escritório da agência de seguros em que trabalha. Ele, um homem de 35 anos, solteiro, sem cicatrizes visíveis: "ao menos até agora a pouco". Quando pega o telefone na intenção de fazer uma ligação para o seu chefe, uma espécie de investigador de seguros chamado Barton Keyes (Edward G. Robinson), Neff pretende fazer uma dolorosa confissão. É o momento em que a obra volta no tempo para uma narrativa sobre ganância, traições e dinheiro obtido de forma ilegal. O caso é que do encontro entre Neff e Phyllis surge um plano: fazer com que o marido da jovem, um homem mais velho que trabalha em uma indústria, assine um seguro de vida para, mais adiante, sofrer uma morte "acidental". Acidental entre aspas, porque a dupla central se empenhará em colocar em prática um ousado estratagema com vistas a ficar com o dinheiro da apólice da vítima.

Ao cabo, essa é uma obra em que tudo funciona direitinho - com cada etapa se encaixando em outra, o que deixa o espectador em suspense o tempo todo. O fato de Keyes confiar demais em Neff como um de seus principais empregados, certamente adiciona uma pimenta a mais - especialmente após o vendedor se apaixonar por Phyllis e se tornar obcecado com a ideia de dar cabo do marido desta. Ainda mais quando ela revela sofrer uma série de maus tratos deste. Só que Keyes também é um habilidoso investigador. Capaz de identificar qualquer falha que possa sugerir haver algum tipo de trapaça para a obtenção do dinheiro dos seguros (seja por meio de mortes encomendadas, suicídios meio mal explicados ou acidentes questionáveis). Então, para que haja sucesso na empreitada é necessário que o plano seja impecável. À prova de qualquer equívoco, o que envolverá trocas de identidades, um acidente em um trem e questões de difícil solução, como o fato de o morto não ter conhecimento de que possuía uma apólice de seguro de vida).

Dirigida por Billy Wilder, em roteiro coescrito por Raymond Chandler, a partir da obra de James M. Cain, a obra receberia uma série de indicações ao Oscar, ainda que tenha saído de mãos abanando na ocasião - e hoje em dia ninguém lembra de O Bom Pastor, de Leo McCarey. Tudo isso não tira o brilho da produção, com sua tensão sufocante e roteiro engenhoso, que estabeleceria um certo padrão para as narrativas noir, com seus detetives antiquados e ambiciosos, que se veem atrapalhados diante de loiras frias e maquiavélicas. Não por acaso, em 1998, o filme se tornaria o 38º melhor de todos os tempos, de acordo com lista elaborada pelo American Film Institute (AFI). Aliás, no conjunto de elogios há ainda um marcante comentário feito por Alfred Hitchcock, que após conferir Pacto de Sangue teria dito que desde esse filme "as duas palavras mais importantes em filmes são 'Billy e Wilder'". Um elogio e tanto para o realizador que, mais adiante, realizaria uma série de obras-primas, como, Farrapo Humano (1945), Crepúsculo dos Deuses (1950), A Montanha dos Sete Abutres (1951) e Quanto Mais Quente Melhor (1959), entre outros.


quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Tesouros Cinéfilos - Dente Canino (Kynodontas)

De: Yorgos Lanthimos.Com Angeliki Papoulia, Mary Tsoni, Christos Stergioglou e Hristos Passalis. Drama / Suspense, Grécia, 2009, 94 minutos.

Em um contexto atual de filhos superprotegidos e pais helicóptero que, em muitos casos, mantém crianças (e até jovens) enclausurados, alienados em suas bolhas - preservando-os ao máximo das dores do mundo -, não deixa de ser interessante notar como Dente Canino (Kynodontas) não apenas se mantém atual, como parece melhorar a cada ano. Sim, em um olhar superficial do sempre provocativo cinema do grego Yorgos Lanthimos pode-se perceber, vá lá, talvez apenas o caráter grotesco da obra. Que é, de fato, perturbadora em uma série de questões. Mas lá no fundo parece haver algo a mais nessa alegoria a respeito de pais preocupadíssimos com as influências externas. E que no nosso íntimo também nos incomoda. Talvez seja o senso de humor um tanto estranho, subjacente. Ou os cenários bucólicos, de jardins verdejantes. Tudo contrastando com as atrocidades que acompanhamos e que emergem dessa família disfuncional.

Na trama, um casal vive em uma grande propriedade, aparentemente isolada de tudo, com seus três filhos já adultos - um rapaz e duas garotas (todos na faixa dos vinte e poucos anos). Não demora para que percebamos o inusitado fato de as "crianças" serem apartadas da vida exterior. Para além dos altíssimos muros da residência um universo de perigos, de medos, de incertezas. De monstros abstratos. Isoladas do mundo, se tornam também distantes do conhecimento. Ou de qualquer coisa que as desenvolva, do ponto de vista intelectual. Em uma das sequências mais impactantes, por exemplo, o menino se depara com um gato no jardim. Incapaz de lidar com o animal de forma mais racional, tritura-o com uma tesoura de poda. Uma cena peculiar que dá conta da estranha metodologia adotada pelos genitores, em que a educação advém de jogos bizarros, peculiares e que preservam a sensação de permanente confinamento.

Como não poderia deixar de ser, nesse cenário o sexo também é tratado como um tabu - algo que, inevitavelmente, nos faz refletir sobre essa sociedade tão hipócrita quanto conservadora, moralista e de culpa religiosa em que vivemos. Enquanto os pais se regozijam em satisfazer seus desejos em meio a fantasias e a sessões de filmes pornô, aos filhos cabe uma espécie de descoberta tardia que nem a natureza é capaz de resolver. Ao rapaz competem as visitas esporádicas de uma certa Christina (Anna Kalaitzidou) - que trabalha como vigilante na indústria em que está empregado o pai. Sessões sexuais mecânicas, com a intenção de satisfazer apenas o básico. Já às meninas, cabe aquilo que se supõe em sociedades machistas, misóginas: no caso o celibato forçado, que as impedirá de serem supostamente corrompidas ou mesmo amaldiçoadas no futuro. É a famosa mentalidade que se vê satisfeita com as experimentações sexuais de seus meninos, ao passo em que abomina a liberdade e o desejo femininos. No cerne dessa história perversa parece estar, ao cabo, uma análise mais ampla da sociedade como um todo: patriarcal, preconceituosa, problemática e que, por fim, exalta adultos infantilizados que, mais adiante serão incapazes de tomar decisões ou mesmo lidar com a "sujeira" do mundo.

Lá pelas tantas, os filhos começam a fazer perguntas. "O que é um zumbi?". "O que é uma xoxota?". "E se aquele avião cair no quintal?". Em resumo, o mundo é imenso e é simplesmente impossível isolar quem quer que seja, especialmente em uma era tão tecnológica, de acesso facilitado à informação. Em certa altura, Christina empresta para a filha mais velha dois filmes em VHS - um do Tubarão e outro do Rocky. É um choque. Que evidencia o poder transformador da cultura - sendo que, até aquele instante, o único contato dos filhos com as artes era por meio daquelas geradas por eles mesmos (vídeos em família, danças esquisitas em eventos festivos). Não conhecer outras realidades pode ser problemático e essa obra claustrofóbica, que ganhou o prêmio de Cannes da Mostra Um Certo Olhar e foi indicada ao Oscar na categoria Filme em Língua Estrangeira, parece nos lembrar disso o tempo todo. Assombrosa, repulsiva e sombriamente engraçada essa produção joga luz sobre a paranoia atual, com esse microcosmo funcionando como uma alegoria para tempos de polarização, de extremismo político e até de intolerância religiosa pautada pelo medo do outro.


Curta Um Curta - A Incrível História de Henry Sugar (The Wonderful Story of Henry Sugar)

Vamos combinar que quando Wes Anderson consegue unir suas trucagens técnicas com uma boa história, o resultado costuma dar bom. E é justamente esse o caso de A Incrível História de Henry Sugar (The Wonderful Story of Henry Sugar), curta-metragem disponível na Netflix, que deverá ser um dos indicados ao Oscar em sua categoria (talvez seja até o favorito à estatueta). Aqui temos, assim como ocorre com Asteroid City (2023) e A Crônica Francesa (2021), uma obra metalinguística, com a geografia e os enquadramentos simétricos típicos do diretor, que se somam ao desenho de produção de encher os olhos (sério, os cenários parecem saídos de uma espécie de livro de colorir) e à fotografia de cores cintilantes. A trama é baseada em um conto de 1977, escrito por Roald Dahl, e volta quase 100 anos no tempo para nos apresentar a Henry Sugar (Benedict Cumberbatch), um homem riquíssimo (e solteiro), que herdou uma fortuna que serve, na maioria dos casos, pra financiar o seu vício em jogo.

Só que em certo dia, circulando por sua biblioteca, ele se depara com um livro escrito por um médico que acompanha o misterioso Imdad Khan (Ben Kingsley) - uma narrativa sobre a capacidade mística do sujeito de conseguir enxergar sem necessitar dos olhos. Em resumo, com seus poderes ele poderia, por exemplo, identificar uma carta de baralho que tivesse a sua face virada para baixo, apenas com a mente. No filme de Anderson, temos a história dentro da história de como Imdad aprende a sua habilidade - o que envolve um encontro com um guru que, supostamente, seria capaz de levitar enquanto meditava. Só que Imdad morre lá pelas tantas. O que não impede Henry de ficar fascinado com tudo aquilo. Aliás, mais do que fascinado: determinado a colocar em prática os ensinamentos do guru, para que ele possa se dar bem e lavar a baia nos cassinos. Em alguma medida, talvez a experiência seja até mais interessante pela beleza que parte de sua paleta de cores vivíssima. O que não reduz o impacto da mensagem de tintas redentoras.


terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Cinema - Os Rejeitados (The Holdovers)

De: Alexander Payne. Com Paul Giamatti, Da'Vine Joy Randolph e Dominic Sessa. Comédia / Drama, EUA, 2023, 133 minutos.

Muito tem se dito sobre como Os Rejeitados (The Holdovers) é um filme sobre a solidão. Mas a meu ver, para além de uma análise sobre a nossa eterna busca por algum tipo de conexão com outras pessoas, a obra parece ser também sobre as nossas inseguranças. E sobre como lidamos com elas. Qual é o momento, afinal, que nos sentimos à vontade para falar sobre nossas fraquezas? Nossos temores? Todos temos nossos medos e muitas vezes eles ficam bem guardados - ainda mais para minorias, pessoas vulneráveis, desajustados. Na trama conduzida por Alexander Payne - aliás, se há um diretor talhado para esse tipo de produção que vai no íntimo de suas personagens para eviscerar suas dores, é ele - voltamos para dezembro de 1970, em um internato da região da Nova Inglaterra. O clima é de véspera de férias e de preparação para as festas de final de ano, onde o severo professor de História Antiga Paul Hunham (Paul Giamatti) é recrutado para permanecer no campus, atuando como supervisor de alunos impossibilitados de irem para a casa durante o recesso.

Os motivos para a permanência dos jovens no educandário são os mais variados - indo desde o menino que é filho de imigrantes coreanos que estão a uma distância geográfica considerável, passando pelo rapaz cujos pais estão em uma espécie de missão no Paraguai, até chegar ao caso de Angus Tully (Dominic Sessa), um adolescente meio rebelde mas bastante inteligente, como comprovam suas notas em um boletim entregue ainda no começo do filme. Só que o caso é que Angus não vai com a cara de Paul. Aliás, ele não parece ir com a cara de ninguém - como perceberemos na rivalidade declarada à Teddy Kountze (Brady Hepner). Angus está animado para as férias e ele sequer sonha com a hipótese de ficar naquele espaço isolado (e congelado), com colegas e um professor que ele abomina com todas as suas forças. Só que uma ligação de última hora o fará perceber que os planos mudaram: sua mãe está indo para uma Lua de Mel tardia e recomenda que seu filho fique no local até a volta das férias.

Claro que esse contexto será a deixa para a já tradicional história sobre figuras com personalidades distintas que, no limite, não parecem ter algo em comum - mas que precisarão se aproximar, e até unir forças, em meio a circunstâncias adversas. Ao professor e aos cinco alunos, se junta ainda Mary Lamb (a ótima Da'Vine Joy Randolph, que tem vencido todos os prêmios da temporada e surge como uma das favotiras na categoria Atriz Coadjuvante para o Oscar), a cozinheira da escola, uma mulher preta, acima do peso e que está de luto por ter perdido seu jovem filho adolescente. E será nesse contexto cheio de adversidades - de neve sem fim, de solidão excruciante, de programas de televisão pouco atrativos e de entretenimento nulo -, que todos ali se aproximarão. Especialmente Angus, Paul e Mary que, mais adiante e perto da noite de Natal, se verão realmente sozinhos no colégio.

Com atuações impressionantes do trio central - Giamatti também surge como nome forte pro Oscar e ele sabe entregar esse homem comum, misantropo e niilista como ninguém -, temos aqui a jornada típica de superação, que consegue ser engraçada, reflexiva e comovente (às vezes até na mesma sequência). Em certa altura, Paul descobre por exemplo quais os segredos que envolvem a complexa relação de Angus com seu pai. Para mais adiante, o jovem se dar conta de que seu tutor talvez não tenha conseguido ser tão bem sucedido não apenas em termos de carreira acadêmica, mas também em sua vida pessoal - fosse por conta de sua total inabilidade social, que se soma ao estrabismo e a uma doença incurável que o faz suar o tempo todo, deixando-o ainda com mau cheiro. E todos esses instantes de vulnerabilidade surgirão, aqui e ali, de forma bastante orgânica, coesa, com cada uma das personagens desabando e revelando suas inseguranças, justamente ao se sentirem mais conectadas entre si. Fugindo dos estereótipos, essa é aquela obra que aquece o coração e que mostra pessoas imperfeitas, buscando qualquer fiapo que possa às unir. O que faz com que nos identifiquemos de pronto.

Nota: 8,0


segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Novidades em Streaming - A Sociedade da Neve (La Sociedad de la Nieve)

De: A. J. Bayona. Com Enzo Vogrincic, Agustin Pardella, Tomas Wolf e Diego Vegezzi. Drama, Espanha / Uruguai / Chile / EUA, 2023, 144 minutos.

"O que acontece quando o mundo te abandona?". Vamos combinar que é bastante conhecida a história do time uruguaio de rúgbi que sofreu um grave acidente na Cordilheira dos Andes, durante um voo de Montevidéu à Santiago do Chile. Já foi tema de filme, de documentário, de reportagens e de obras literárias - aliás, o diretor J. A. Bayona utilizou como material base justamente o livro do escritor e jornalista Pablo Vierci. Então, faria algum sentido recontar essa trágica jornada de luta pela sobrevivência, cinquenta anos depois do ocorrido? Na verdade sim porque o filme Vivos (1993) parecia muito mais centrado no impacto do canibalismo como uma medida extrema, em um ambiente sem acesso a nenhum recurso para aplacar a fome. E nem o frio ou a sede. Em A Sociedade da Neve (La Sociedade de la Nieve) há um olhar muito mais atento para o senso de camaradagem que envolve a todos que estavam a bordo do bimotor da Força Aérea Uruguaia - de passageiros a tripulantes.

Nesse sentido, o filme de Bayona - que já chegou a afirmar que thriller O Impossível (2012) foi o ponto de partida para pesquisas sobre o tema -, parece tratar a história com muito mais sensibilidade e respeito à memória dos envolvidos. Que não por acaso aceitaram, pela primeira vez, que fossem utilizados os nomes reais. Da queda a quatro mil metros de altura, que arremessa a aeronave de forma violenta a um local chamado, por coincidência, de Valle de Las Lágrimas, até o resgate, 72 dias depois do episódio ocorrido em 13 de outubro de 1972, acompanhamos o esforço coletivo dos sobreviventes em tentar encontrar qualquer fiapo de esperança, que lhes possibilitasse o retorno para casa. E, em alguma medida, é simplesmente impossível não se emocionar em sequências tipo aquela em que o grupo consegue fazer o rádio funcionar (a muito custo), para no instante seguinte ouvir a transmissão sobre o encerramento das buscas, após seis missões enviadas pelo Governo em dez dias de operações.

Ao cabo, essa é uma experiência dolorosa, que converte a geografia da cordilheira em um descampado amplo, mas ao mesmo tempo claustrofóbico, sufocante e absurdamente gelado (o frio, aliás, é palpável). Quando uma expedição se arrisca alguns metros morro acima para tentar encontrar a cauda da aeronave - onde poderia estar o rádio transmissor -, o grupo se dá conta da imensidão de tudo, que os esconde em um espaço "impossível de sobreviver". "Aqui, os estranhos somos nós", revela Numa Turcatti (Enzo Vogrincic), que funciona como um narrador onipresente a ditar os passos e as consequentes missões de todos ali. Em entrevista para o Uol, outro sobrevivente, Roy Harley (Andy Pruss), chegou a dizer que não havia tempo para chorar os mortos, "porque isso tirava a nossa energia". Tecnicamente impecável, a produção ainda se utiliza de tomadas de câmera bastante próximas do rosto dos personagens, o que não apenas fortalece o vínculo com os espectadores, como também reforça o sentimento de desolação a cada nova etapa em que a esperança parece se reduzir.

Ainda assim não deixa de ser interessante de notar como, a despeito de todo o aparato técnico - que envolve uma fotografia eficiente e sombria (quase não se vê o sol naquele deserto gelado), uma trilha sonora impactante e um desenho de produção com locações reais -, talvez nada funcionaria se não fosse o senso de amizade, de coletividade e de empatia do grupo, que possibilitaria a sobrevivência de 16 pessoas, das 45 que estavam no avião. O que parece dialogar com a obra de Vierci (que não li). "Ele (o escritor) foi ótimo em entrar na mente dos personagens e explicar não apenas os fatos, mas o que aconteceu com eles por dentro. E então encontramos uma perspectiva que me deu a chave para contar a história de uma maneira que eu não tinha visto antes", comentou Bayona em entrevista ao Hollywood Reporter. O resultado é uma produção comovente e emocionante, que consegue dar destaque à personalidade e a subjetividade daqueles indivíduos, com seus medos, anseios, incertezas. Reinventar a vida, seus vínculos, seus valores, crenças e costumes. Foi isso que aqueles jovens fizeram, nesta que talvez seja uma das jornadas de sobrevivência mais inspiradoras da história.

Nota: 8,5


sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Pitaquinho Musical - Kali Uchis (Orquídeas)

Vamos combinar que não pode haver nada mais contemporâneo em matéria de música, do que a mescla de estilos fluindo de forma orgânica, com personalidade. E se tem uma artista na atualidade que mistura gêneros onipresentes na música norte americana - em especial o R&B e o hip hop - rearranjando-os com boas doses de reggaeton, merengue, bolero, salsa e outras sonoridades latinas, esta é a Kali Uchis. Aliás, com Orquídeas, seu segundo disco em espanhol - e o quarto em sua carreira -, a artista nascida na Virgínia (e filha de imigrantes colombianos), inaugura oficialmente a safra de grandes álbuns, que deve ser uma marca de 2024. Funcionando quase como peça complementar do sofisticado e etéreo Red Moon In Venus - nosso 11º colocado na lista do ano passado -, a cantora investe em uma coleção de canções que promove uma vibrante infusão, que explora justamente a diversidade da música latina.

 

 

São canções como Igual Que Un Ángel, feita em parceria com o mexicano Peso Pluma, que fogem do óbvio do reggateon meio estereotipado, ao possibilitar variações de batidas que evocam o pop sofisticado dos anos 90, mas que adicionam camadas eletrônicas oníricas e sintetizadores que, aqui e ali, quase arremessam a música para o campo da psicodelia à Tame Impala (e, sim, talvez às vezes eu force a barra no que enxergo). Já Te Mata, um bolero imprevisível, parece ter nascido pra ser hit com seu refrão grudento que vai no limite da música meio breguinha e com sua letra potente sobre buscar por amor próprio em um contexto de relacionamentos tóxicos e de negligência (Você tem que aceitar que eu sou uma memória agora / Se você está procurando um culpado, então olhe no espelho). Há outras joias imperdíveis aqui, casos de Me Pongo Loca, Tu Corazón Es Mío, Labios Mordidos e Muñekita, nesse álbum que foi lançado cedo, mas que deve brilhar durante toda a temporada.

Nota: 9,0


quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

Novidades em Streaming - O Mundo Depois de Nós (Leave the World Behind)

De: Sam Esmail. Com Julia Roberts, Mahershala Ali, Ethan Hawke, Myha'la Herrold e Kevin Bacon. Ficção científica / Drama / Suspense, EUA, 2023, 129 minutos.

[ATENÇÃO: ESSE TEXTO POSSUI ALGUNS SPOILERS]

Por quê os cervos aparecem do nada na casa? Qual o sentido daquele barulho estridente? E o avião que solta um monte de fôlderes contra os Estados Unidos? E a casa do vizinho destruída? E como pode, com tanta oferta disponível nos dias de hoje, uma menina de 13 anos ser fã de Friends? Como? COMO??? Sim, são muitas as perguntas sem resposta no recém lançado pela Netflix O Mundo Depois de Nós (Leave the World Behind) e até não teria problema nenhum concluir o filme com mais dúvidas do que certezas. Isso até é bem normal na produção atual. Finais ambíguos, abertos, com pontas meio soltas, cabendo a nós juntar tudo pra dar algum sentido - e eu não li o livro de Rumaan Alam pra saber se segue a mesma lógica. Só que aqui parece ser justamente a falta de um sentido - algo que pudesse amarrar de alguma maneira esses eventos todos - que incomoda. Ok, o mundo está sendo abalado por um ataque terrorista cibernético de grande escala. E por causa disso os flamingos vieram tomar banho na piscina do jardim. Sei lá.

Talvez essas sejam questões menores no combo todo, até mesmo porque, como suspense e como drama familiar, a obra de Sam Esmail (nome por trás da série Mr. Robot) funciona direitinho. A gente fica meio que preso naquele universo intrigante, tentando adivinhar o que vai acontecer. Ou até mesmo o que aconteceu de verdade. No cerne, uma série de questões espalhadas: a primeira e mais gritante parece envolver os limites da tecnologia (e de como ela ao mesmo tempo pode nos aproximar e nos afastar). "O caso é que eu odeio pessoas", comenta Amanda (Julia Roberts), ainda no comecinho do filme, como que justificando a escolha por uma casinha isolada em Long Island para uma espécie de refúgio da rotina, das gentes, de todos. Ela passa um tempo olhando pela janela o vai e vem dos seres humanos em mais um amanhecer prosaico. E aquilo meio que irrita ela. Aliás, quem não se irrita com as pessoas, né? Nós, esses serem inúteis e individualistas.

E aqui está o segundo ponto da narrativa: justamente a nossa dificuldade atual de se relacionar. De ter qualquer tipo de empatia. De não julgar previamente aquele que mal conhecemos. Quem nunca? Em tempos de polarização política, basta o cara usar um sapatênis para que já tiremos conclusões prévias: "a lá o votante do Novo, de certo deve ter um barber shop com temática roqueira, que passa o dia todo tocando Pink Floyd sem que ele sequer compreenda as letras". A gente faz isso, o tempo todo. "Eu vejo bolsonaristas" parece ser um mantra. No trânsito, na fila do mercado. Aliás, a bandeirinha do Brasil estampada em qualquer parte já nos ajuda a saber quem são os ditos. Só que Amanda fica meio apreensiva quando, do nada, aparecem na casa alugada por ela no Airbnb, justamente os donos da moradia. No caso G.H. Scott (Mahershala Ali) e sua filha Ruth (Myha'la Herrold). Sob a alegação de ter havido um apagão na cidade - todos estão sem luz e sem internet -, eles pedem abrigo na casa da qual são os proprietários. Para estranhamento de Amanda, seu marido Clay (Ethan Hawke) e os filhos.

Sem redes sociais, sem internet, sem TV que seja eles não conseguem ter nenhuma informação. Não conseguem também se investigar - suas vidas, seu passado, quem são. Amanda alugou a casa online, então sequer consegue ter certeza se G.H. é de fato o dono. E a situação piora para o lado dela, quando o componente racial parece ser motivador da desconfiança. Claro, mais adiante a obra fará um aceno para a importância dos laços de afeto, da união como caminho para a pacificação em um universo que parece fadado ao colapso - social, político, religioso, tecnológico e ambiental (este, me parece, o terceiro ponto que está nas entranhas da narrativa). Os flamingos tomando banho na piscina parecem ser um lembrete de que o caos climático tem destruído ecossistemas - gerando reações diversas da natureza. Enxurradas, seca, degelo, extinção de espécies, ciclones, desertificação. Estamos nos implodindo, nos autodestruindo e talvez os cervos nos olhando com aquela cara de what a fuck possam fazer algum sentido meio de realismo fantástico na coisa toda. Ainda que nada se explique. A arte como porto seguro em meio ao colapso, pode ser um quarto ponto? Basta lembrar como ela foi importante na pandemia. Talvez eu só escolhesse uma outra série pra representar. Ou vai ver esse caminho afetuoso e nostálgico seja parte do combo da esperança por dias melhores.

Nota: 7,5


terça-feira, 9 de janeiro de 2024

Picanha.doc - A Memória Infinita (La Memoria Infinita)

De: Maite Alberdi. Com Paulina Urrutia e Augusto Góngora. Documentário, Chile, 2023, 85 minutos.

Em uma das tantas cenas comoventes de A Memória Infinita (La Memoria Infinita) - documentário chileno que, muito provavelmente, deve estar no próximo Oscar (está na short list) - Paulina Urrutia e Augusto Góngora assistem na televisão algumas cenas históricas, que remontam à época da ditadura militar do País vizinho. E mesmo com o Alzheimer já em um estado de visível avanço, Augusto olha para a tela e afirma, consternado: "Pinochet". Como quem tem na retina ou em algum lugar do cérebro, um tipo de lembrança que não se apaga. E eu sinceramente não sei se esse fragmento foi engendrado de forma proposital ou não pela diretora Maite Alberdi. Mas do jeito que foi filmado gerou um instante muito potente. É difícil, afinal, esquecer dos horrores de um sistema opressor - que gera perseguições a adversários políticos, torturas, mortes. E que parecem guardados mesmo para alguém que vê sua memória esvanecer.

Augusto Góngora, afinal, foi um renomado jornalista cultural e apresentador de TV chileno. Com várias obras lançadas - e um certo ativismo paralelo no que diz respeito ao combate à ditadura Pinochet (algo que pode ser percebido nos detalhes, como no caso da presença de um pequeno cartaz com a palavra "No" nas paredes de sua casa, que alude a um plebiscito realizado após o golpe de Estado). Já Paulina, carinhosamente chamada de Pauli, foi (e ainda é) uma importante atriz no Chile, tendo servido também o País como Ministra da Cultura e das Artes. No filme somos apresentados à rotina do casal, e ao esforço comovente de Paulina para que Augusto não esqueça, que seja, das coisas mais básicas. De que ela é sua mulher, de que eles estão em sua casa, que os livros que estão a sua volta fazem parte da coleção juntada durante toda uma vida. Ao cabo, é uma obra comovente e afetuosa, dura mas também divertida, sobre a persistência nos cuidados com alguém que padece de uma doença tão severa e misteriosa.

Assim, se por um lado o filme diverte quando o próprio Augusto faz piadas a respeito de sua condição, por outro se torna praticamente impossível não se emocionar, como no momento em que Augusto clama pela presença dos amigos, aos quais acusa de ter-lhe abandonado (algo que ocorre em uma madrugada aleatória, quando a doença já apresenta estado avançado). E quem já conviveu com parentes ou amigos que sofreram de Alzheimer sabe o estranhamento que pode gerar o fato de uma pessoa próxima não mais te reconhecer - algo que, para Paulina, é doloroso. Burlando os limites entre a ficção e a realidade, a obra intercala cenas da atriz em ensaios de peças de teatro ou apresentações de dança, com momentos íntimos dela com Augusto. Instantes em que ela também "encena", fazendo o carinhoso papel de memória viva do próprio marido, por meio de repetições exaustivas de informações (mesmo que essa informação seja a respeito dela mesma, que lhe lembra de ser sua companheira).

Com uma riquíssima coleção de imagens de arquivo, a obra permite ver o quão afetuosa foi a vida de Augusto e Paulina em absolutamente todos os momentos. Amorosos, faziam questão de verbalizar esse carinho um pelo outro - o que em tempos tão brutos como os que vivemos (e os que eles viveram também, no Chile de Pinochet), ajuda a dar um calor no coração. Só que todo esse contexto também contribui para que a dor diante do que assistimos aumente. Ainda mais pelo aspecto alegórico do esforço de memória que, no que diz respeito a ditadura, deveria contribuir para a não repetição de certos erros históricos. "Sem memória nós vagamos confusos, sem saber para onde ir", afirma a inscrição introdutória de um dos livros de Góngora, em seu auge como jornalista vibrante e combativo. Suave, a obra vencedora do Prêmio do Júri no Festival de Sundance faz esse paralelo de forma sutil, sem forçar a mão. É difícil não se comover.


Curta Um Curta - Camp Courage

Jamais haverá melodrama ficcional que se equipare aos efeitos reais (e devastadores) causados por uma guerra. Porque vamos combinar que o atual conflito entre Rússia e Ucrânia, de tão distante que está de nós, por vezes parece algo abstrato, que não nos diz respeito. Que não integra a nossa realidade. E pequenas obras como o tocante documentário em curta Camp Courage - que está disponível na Netflix e é um dos prováveis candidatos em sua categoria no Oscar 2024 -, servem para nos lembrar das dores reais de quem sofre, de fato. Possibilitando o exercício da empatia que, em alguma medida, também nos humaniza. Aqui acompanhamos a rotina da pequena Milana, uma pré-adolescente de onze anos, que perdeu parte da perna em uma explosão ocorria em 2015, quando tinha pouco mais de dois anos. Não bastasse esse trauma em si, ela ainda perderia a mãe no mesmo atentado, ocorrido na cidade de Mariupol. 

 


Anos depois, a guerra de 2022 obrigaria a jovem, criada pela amorosa avó Olga, a se retirar da Ucrânia, buscando refúgio na Eslováquia. Só que a fuga de sua pátria de origem não significará paz - e muito menos a solução para as dores de guerra. E como forma de tentar superar os medos, Milana tem a oportunidade de se juntar à outras pessoas em um acampamento na cidade de Piesendorf, na Áustria - um projeto do coletivo Mountain Seed Foundation, organização sem fins lucrativos que tem a missão de minimizar o sofrimento de quem teve perdas devastadoras em conflitos tão brutais. Para Milana, que basicamente sobreviveu por um milagre após ter sido encontrada pelos bombeiros em meio aos destroços, não será fácil superar desafios que envolvem escalar montanhas, rapeis e outras atividades. "Quando você sofre traumas como o de Milana fica muito mais difícil ultrapassar essa borda e enfrentar o desconhecido", analisou o diretor Max Lowe. Cheia de instantes comoventes, esta é uma experiência redentora e que vale ser conferida.


segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Novidades em Streaming - Saltburn

De: Emerald Fennel. Com Barry Keoghan, Jacos Elordi, Rosamund Pike, Alison Oliver e Richard E. Grant. Suspense / Comédia, Reino Unido / EUA, 2023, 127 minutos.

Vamos combinar que existe um certo magnetismo em Saltburn que faz com que seja simplesmente impossível desviar os olhos da tela. Sim, o novo filme de Emerald Fennel - de Bela Vingança (2020) -, pode ser exagerado, excêntrico, muitas vezes improvável. Em alguns momentos até meio sem sentido. Em alguns instantes não parece sequer haver lógica no comportamento dos personagens - por mais complexas ou ambíguas que sejam as suas personalidades. A gente é surpreendido porque a narrativa nos conduz a isso, ainda que nunca consolide as suas etapas para além de um conjunto de instantes provocativos ou iconoclastas. Chocar por chocar? Talvez. Estamos falando de uma simples obra de arte, em que a diretora considerou ok colocar o seu protagonista bebendo água de banho misturada com sêmen como forma de fortalecer uma ideia de vínculo amoroso (ou de amizade), que se mescla com a intenção alegórica de simplesmente "engolir" alguém. Com todos os fluídos, sangues e peles.

E Fennel, não se pode negar, é bastante literal nessa abordagem e mais de uma vez nos apresenta a Barry Keoghan como o doidinho de bairro que parece disposto a qualquer coisa para alcançar a ascensão social. Um jovem alpinista - como se diz no linguajar das elites. Aliás, parêntese importante: Keoghan tem se especializado em entregar figuras carismáticas, esquisitas, introspectivas e sombrias, que talvez não tenham comparecido à mais recente sessão com o psiquiatra e que tem grande chance de não estarem com a paroxetina em dia - e basta pensar em sua formidável participação em O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017), A Lenda do Cavaleiro Verde (2021) e Os Banshees de Inisherin (2022) para que tenhamos a certeza de que ele encarna figuras extravagantes como ninguém. E [SPOILER] isso que nem vou me aprofundar na cena em que ele sacode o esqueleto e a rola, peladão, em uma mansão tão decadente quanto pomposa, ao som da energética Murder on the Dancefloor, de Sophie Ellis-Bextor [FIM DO SPOILER].

Aliás, a tal mansão é justamente a Saltburn, que dá título a obra. É nela que Oliver Quick (Keoghan) - estudante de origem humilde, com direito a pais problemáticos (envolvidos com tráfico de drogas, violência e outras tragédias) - vai parar, a convite do charmoso e carismático Felix (o boa pinta Jacob Elordi). Felix é tudo aquilo que Oliver não consegue ser. Enquanto o primeiro é uma figura atraente, extrovertida e cheia de vida, o segundo é fechadão a ponto de ser relegado, em um primeiro momento, a amigo ocasional de um nerd estudante de matemática da Universidade de Oxford, onde todos ali são acadêmicos. Só que num certo dia, Oliver ajuda Felix com sua bicicleta que está com o pneu furado, levando ainda seus livros para a biblioteca. Com o "gelo quebrado", uma improvável amizade se forma. E para que o tristonho Oliver não precise retornar para o seu lar disfuncional nas férias, Felix o leva junto à imponente mansão de sua família.

E lá ele terá contato com outras figuras curiosas da família Catton, caso de Elspeth (a mãe de olhos meio perdidos encarnada com vivacidade por Rosamund Pike), sir James (Richard E. Grant, claramente se divertindo no papel do patriarca de modos afetados), além de Venetia (Alison Oliver), uma jovem tão hedonista quanto niilista e que servirá como ponte para que Oliver, aqui e ali, estreite os laços com todos. Orbitando esse núcleo ainda há a problemática Pamela (Carey Mulligan em papel pequeno, mas eficiente), que interpreta uma amiga de Elspeth, que tenta de recuperar após alguns relacionamentos frustrados e um período em rehab. Mas o centro de tudo é Oliver. É dele que não conseguimos desviar a atenção. Todos os seus gestos parecem calculados. Seu comportamento parece ambíguo o tempo todo - e o filme nos leva de lá para cá em meio a cenários verdejantes que parecem contrastar com a violência que se avizinha. Ao cabo esse é um projeto meio entortado, espirituoso, que talvez não seja de fácil digestão. Mas a arte tem dessas surpresas, nos divertindo em meio ao caos, ainda que nem tudo pareça ter qualquer lógica depois de tudo. A vida também é assim, não esqueçamos.

Nota: 8,0


quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

10 Melhores Leituras de 2023

Acho que vou ser meio repetitivo se disser que não li tanto quanto gostaria nesse ano - mas quem, ao cabo, consegue cumprir essas metas à contento? Ainda assim, devo dizer que foi um 2023 de excelentes leituras, com destaque para os autores contemporâneos (aliás, sempre procuro tentar contribuir para que essas obras alcancem mais públicos) e atenção, também, para um ou outro clássico moderno. Para 2024 estabeleci a modesta meta de tentar ler dois livros por mês - um total perfeitamente alcançável de 24 no ano? Acho que sim, né. Não custa sonhar. Enquanto isso, segue a nossa nata da nata das Melhores Leituras de 2023.


10) Kafka à Beira-Mar (Haruki Murakami): Dois enredos distintos inter-relacionados que, inevitavelmente se cruzarão. Em capítulos alternados, conhecemos a história do jovem Kafka, um adolescente de 15 anos que, para tentar escapar de uma maldição familiar edipiana foge de casa meio que sem rumo, com o objetivo de tentar localizar a mãe e a irmã. Em sua jornada, encontrará abrigo em uma suntuosa biblioteca particular na tranquila cidade de Takamatsu - espaço que é dirigido pela enigmática bibliotecária senhorita Saeki (mulher elegante, de modos discretos). No local, Kafka fará amizade com a esperta Oshima enquanto desvendará, paulatinamente, segredos que envolvem seu passado. Na outra linha temporal acompanharemos a história de Satoru Nakata, um homem idoso que, após passar por um trauma na infância, adquire excêntricos poderes sobrenaturais. Ainda que talvez não seja a melhor porta de entrada para a obra de Murakami - especialmente pelas suas voluptuosas 578 páginas - aqui temos um livro fluído e engenhoso, que aposta na fantasia, no subconsciente e no universo onírico em sua composição. Com referências do mundo pop e de tragédias gregas, essa odisseia aborda temas diversos como, luto, memória, destino e até mesmo o poder das artes. Leia a resenha completa.


9) O Filho de Mil Homens (Valter Hugo Mãe): "A Matilde, talvez por criar viúva o seu único filho, enojava-se do mesmo jeito mas agia diferente. [...] Se, pelo menos, o pudesse mandar embora, mesmo que não tivesse mais familiares, nem muito para onde ir. Ficariam sozinhos um do outro. A Matilde queria acreditar que, mandando embora, o filho poderia resolver o problema, como se longe dali não florisse, não gesticulasse, não subisse um tom nas sílabas mais bonitas das palavras quando falava a rir, talvez longe dali não fosse maricas". Quando lemos o trecho acima, nos damos conta de que essa obra é, apenas nas aparências, uma narrativa sobre um sujeito perto dos 40 anos, que deseja ardorosamente ter um filho. Sim, o pescador Crisóstomo quer aplacar a solidão vivenciada em sua casa isolada na beira da praia - indo encontrar no órfão Camilo a oportunidade de preencher a sua metade vazia. Mas quando outros personagens - marginalizados, minoritários, vulneráveis - vão se juntando àquela família meio improvisada, de almas tão excêntricas quanto generosas, percebemos que este é um livro sobre os excluídos sociais, os invisíveis, e a sua eterna busca por um lugar no mundo. Ao cabo essa é uma obra sensível e lírica, que faz emergir a esperança, a partir do amor. Leia a resenha completa.

 

8) Chuva de Papel (Martha Batalha): Um romance tragicômico, intenso, sensível. Assim pode ser resumida a experiência com a terceira obra de Martha Batalha - que alcançou enorme sucesso depois de A Vida Invisível de Eurídice Gusmão. Aqui temos uma obra que tem o Rio de Janeiro como cenário - um local cheio de histórias, tal qual o protagonista Joel Nascimento, um repórter veterano (e decadente), que foi um importante cronista de seu tempo, sendo responsável por um sem fim de narrativas sobre essa fervilhante cidade. Após meio século em redações noticiando o Lado B da Cidade Maravilhosa, enfrenta problemas financeiros e familiares, que se somam ao alcoolismo incurável. Após uma tentativa de suicídio peculiar, o sujeito acaba indo morar de favor com a tia de um amigo - seu nome é Glória, uma senhora enérgica, que exige não apenas boas maneiras de seu inquilino improvisado, como também mais interações. A esse arranjo se junta ainda a vizinha Aracy, uma idosa falante. O resultado desse "encontro" inesperado repleto de atritos cotidianos será uma amizade repleta de companheirismo, que preencherá as horas dos três, que passarão a compartilhar desejos, anseios e escolhas pessoais, em uma narrativa surpreendente, crua e cheia de sagacidade.

 

7) Aniquiliar (Michel Houellebecq): Essa foi minha quarta leitura de Houellebecq e devo admitir que já me acostumei ao fato de que suas obras podem começar em um lugar e terminar em outro - e não estamos falando apenas de geografia. O que interessa ao cabo é o painel político, social e cultural que ele costuma tecer em seus trabalhos, geralmente tomando a França como pano de fundo. Um pano de fundo que a converte de forma não tão involuntária, em um microcosmo do mundo. Democracia em ruínas, burocracia governamental, fanatismo religioso, deep web, doenças da alma e do corpo, uma espécie de aniquilação meio que generalizada de tudo. Aqui, a trama inicia como um thriller político - que enveredará para o romance doméstico em tempos de distopia (e de busca por migalhas de felicidade em meio ao caos). É em meio aos prédios acinzentados do Ministério da Economia que o setor de Inteligência do Governo recebe um tipo curioso de ataque virtual: um vídeo bastante realista em que um ministro cotado para a presidência surge sendo decapitado. O que pretendem os criminosos digitais? Estariam ligados a quem? A grupos ambientais? À extremistas de direita? À fundamentalistas religiosos? Esse é só o ponto de partida de uma obra cínica, poética, iconoclasta e, creia, sensível. Leia a resenha completa.

 

6) Gosma Rosa (Fernanda Trías): Devo confessar que, enquanto lia essa obra da uruguaia Fernanda Trías, só conseguia pensar no quanto o livro havia sido certeiro como alegoria para um mundo que precisa lidar com o rescaldo de uma pandemia. Afinal, todos os elementos estavam lá - da névoa avermelhada que simboliza o perigo, dos infectados que precisam permanecer em quarentena, da sensação de isolamento mesmo em uma grande cidade. Do abandono de qualquer esperança. Da necessidade de se apegar a qualquer fiapo de afeto para que não percamos a nossa humanidade. Ou mesmo a empatia. A romancista, ao cabo, havia lido a tragédia da covid-19 como uma metáfora perfeita dos nossos tempos? Sim, não fosse o fato de obra ter sido lançada ainda antes da pandemia. Com a vida imitando a arte ou vice e versa, o livro tem chamado a atenção como uma novela que fica no meio do caminho entre uma distopia clássica à moda de 1984 ou Fahrenheit 451 e um romance catástrofe no estilo dos de J.G. Ballard. "Com uma arquitetura sutil de camadas e mecanismos, e sempre intensa e evocativa, a publicação atravessa os gêneros (ciência, ficção, distopia, ecocatástrofe) e se instala em um território único" resume o crítico literário Ramiro Sanchiz, na orelha do livro. Leia a resenha completa.

 

5) Salvar o Fogo (Itamar Vieira Júnior): A cada novo livro de Itamar Vieira Júnior uma ideia parece cada vez mais consolidada: a de que seus trabalhos buscam dar voz às minorias, aos vulneráveis sociais, aos marginalizados. Aqui não temos mulheres de classe média em seus dilemas suburbanos ou homens de meia idade em crise existencial - um tipo de literatura que alcançaria talvez sem muita dificuldade uma boa comunidade de leitores. Ao contrário, agindo quase como um Guimarães Rosa da nova geração - guardadas todas as proporções, naturalmente -, o autor baiano aposta no microcosmo que parte de narrativas familiares para uma análise do todo. O texto aqui é o do chão batido, da natureza em simbiose com o homem, dos conflitos territoriais, das instituições poderosas - seja o Estado ou a Igreja - que tentam silenciar o gritos dos excluídos. Das tradições, do folclore, da religião. Da luta. Da política. Do corpo. Do Brasil profundo. Foi assim com o elogiadíssimo Torto Arado - nosso livro favorito de 2020. É assim com Salvar o Fogo, uma leitura caleidoscópica, sinuosa, poética e envolvente, que busca rompaer o muro do silêncio e fazer reverberar vozes. Leia a resenha completa.


4) Diorama (Carol Bensimon):  Morando há tempo nos Estados Unidos, a protagonista Cecília é uma taxidermista que trabalha em um museu de história natural restaurando animais. É um ofício meticuloso, minucioso que visa a preservar a memória de espécies diversas a partir da reformulação de seus ecossistemas. Em resumo, trata-se de extrair a pele para reconstruir animais mortos. Em meio a rotina de trabalho ao lado do colega Greg - com quem divaga sobre a vida, cotidiano e amores (a relação de Cecília com o músico Jesse está em crise) -, ela recebe uma ligação vinda de Porto Alegre: após um AVC, seu pai Raul está mal de saúde. Só que retornar para a capital gaúcha será revisitar memórias de infância que parecem presas a um passado distante. Ainda que sigam vivas. Mais ou menos como as corças que protagonizam os cenários vibrantes construídos com esmero por Cecília - em seus dioramas artísticos, tridimensiomais. Repleto de ambiguidades e de idas e vindas, Bensimon constroi seu livro com uma prosa saborosa que discute temas como homossexualismo em uma região conservadora, a preservação da camada de ozônio (uma novidade nos anos 80) e mesmo a espetacularização de casos de violência. Leia a resenha completa.


3) Solitária (Eliana Alves Cruz): Quartinho da empregada. Esse tipo de espaço que alude a um Brasil pós-abolicionismo é um dos principais cenários dessa ótima história de libertação. De luta para se livrar dos grilhões em um País que ainda parece experimentar um orgulho mesquinho relacionado à classe social. A senzala atual, afinal, é simbolizada por aquele cômodo pequeno, precário, naturalmente distante, isolado. É nesse cubículo mal iluminado, sem janelas, que vivem Eunice e sua filha, Mabel. Essa "solitária" improvisada dará no apartamento gigante de dona Lúcia, a patroa que, ao lado do marido Tiago, tenta conferir certo ar de normalidade àquela rotina. Em um microcosmo em que Eunice atua na invisibilidade constante - lavando, passando, cuidando da filha da patroa -, o que se tem é a metáfora arquitetônica perfeita de um Brasil de retrocessos. Só que esse tecido tão supostamente bem estruturado começará a ruir quando um crime horrendo ocorre: a morte de uma criança que, de forma inexplicável, cai de um dos andares mais altos. Com uma prosa ágil, intensa, fluída e assertiva, a autora nos convida a uma série de reflexões sobre esses contrastes ainda vivos em um País que mal recolhe os cacos de um governo de extrema direita. Livraço. Leia a resenha completa.


2) Caminhando com os Mortos (Micheliny Verunschk): Uma história sobre intolerância religiosa - e de como o discurso institucional extremista pode estragar não apenas a vida de uma pessoa, mas de um povoado inteiro. Às vezes por muitas gerações. Mais ou menos assim é possível resumir a experiência com essa atualíssima obra da escritora Micheliny Verunschk - que foi muito premiada recentemente, com O Som do Rugido da Onça, que conquistou o Jabuti de Melhor Romance Literário. Em um Brasil que tem um congresso capaz de tomar decisões mais com a Bíblia debaixo do braço do que com a Constituição Federal - acenando para o retrocesso em temas que já deveriam ter avançado -, a história de uma jovem queimada vida pela própria família, na intenção de expurgar os demônios, o pecado e a bruxaria não chega exatamente a surpreender. Aliás, em entrevista ao site Quatro Cinco Um, ela afirma ter se inspirado justamente em notícias do tipo. Brinco que esse livro é uma história de zumbis, pessoas seguindo alguns preceitos até virarem walking deads", afirmaria. É um livro forte, poderoso, às vezes até difícil em sua prosa atmosférica, bucólica. Mas é imperdível. Leia a resenha completa.


1) Como se Fosse Um Monstro (Fabiane Guimarães): Quais os limites da maternidade, das escolhas femininas e das expectativas sociais em relação aos papeis das mulheres? Estas são algumas perguntas que rondam o soberbo segundo romance de Fabiane Guimarães - uma narrativa envolvente sobre tomadas de decisão e de que maneiras elas impactam não apenas a própria vida, mas também as das pessoas ao redor. Na Brasília do final dos anos 80, a jovem Damiana sai do interior para trabalhar na casa de um casal rico da cidade grande - os patrões se chamam Daniela e Érico. No ambiente asséptico daquele lar, ela tentará compreender a dinâmica dos dois, ao mesmo tempo em que lhe chamará a atenção o "entra e sai" de meninas que chegam diariamente para entrevistas realizadas à portas fechadas. Não demorará para que Damiana compreende o motivo daquela estranha movimentação: os patrões estão em busca de alguém que lhes sirva de barriga de aluguel. É essa história de cárcere forçado, de culpa, de vulnerabilidade e de direitos femininos que será narrada em um encontro entre Damiana, agora uma idosa que reside no campo, e a jovem jornalista Gabriela. Um romance contundente e fascinante, que estabelece a autora como uma das mais importantes da atualidade.


Agora sim podemos dizer, pessoal: que venha 2024! Ótimo ano cheio de saúde e realizações - com muitos filmes, músicas e leituras pra todos nós! =)