Apesar de ter sido considerada uma pequena decepção dentro da programação do Festival de Cannes, vamos combinar que o novo filme de George Miller desde Mad Max: Estrada da Fúria (2015) - no caso Three Thousand Years of Longing - é cercado de expectativas. Adaptação de um dos contos de A. S. Byatt que integram a coletânea The Djinn in the Nightingale's Eye parece trazer uma mistura de romance e fantasia, a partir da história da solitária doutora Alithea Binnie (Tilda Swinton), que é convidada para uma conferência em Istambul, onde encontra um Djinn (Idris Elba) - um tipo de gênio -, que lhe oferece três desejos em troca de liberdade.
É a partir daí que surgem os problemas, especialmente quando a protagonista passa a duvidar que ele seja uma criatura real - ela, afinal, é uma estudante de história e de mitologia. Já o gênio defende o seu lado, contando histórias fantásticas de seu passado, o que a seduzirá para a realização de um desejo que surpreenderá os dois. Ainda sem título em português e data de lançamento no Brasil - a grande probabilidade é o início de 2023, dentro da temporada de premiações (e na corrida para o Oscar) -, o filme apresenta um trailer curioso, bizarro, cheio de excentricidades, daqueles que desperta o interesse. É tudo colorido, quase histriônico - com figurinos berrantes, cenários e efeitos especiais idem. A crítica tem se dividido. Mas, por aqui, já estamos ansiosamente Na Espera.
Vamos combinar: existem escritores que possuem uma capacidade única de se conectar com os leitores e, a meu ver, esse é justamente o caso da mineira Carla Madeira. Lançado pela Record, Véspera foi o minha segunda leitura da autora - a primeira foi o impressionante Tudo É Rio, que narra a inesquecível história do "triângulo amoroso" formado por Dalva, Lucy e Venâncio. E, sério, ambos os livros são difíceis de largar, no melhor sentido da palavra. Com personagens cheios de ambiguidades que, em muitos casos, tomam atitudes extremas (e até eticamente questionáveis), cada obra mergulha em um universo bastante particular, em que temas como masculinidade tóxica, opressão sexual, hipocrisia e violências cotidianas chegam no formato de torrentes - caudalosas, vigorosas, imprevisíveis. Mas, nos dois casos, o cenário geral dos protagonistas não se modifica, com a presença de mulheres fortes em meio a uma sociedade patriarcal.
Ainda assim não se trata de mero panfletarismo, já que autora se apoia em sutilezas, mesmo quando as sequências parecem bastante visuais. Quando, no primeiro capítulo de Véspera, Vedina abandona o próprio filho Augusto, em uma calçada de uma avenida movimentada - uma decisão impensada, completamente estúpida, no calor do momento de uma discussão -, esta se se apresentará mais adiante como uma figura atormentada por uma série de frustrações, o que a condyz a essa situação limite. O seu marido Abel, irmão gêmeo de Caim e que vive à sombra desse - como se fossem espectros opostos numa carcaça igual, sendo Abel o lado mais sombrio, taciturno e Caim o mais luminoso e extrovertido -, também guarda uma série de segredos obscuros que remetem à juventude e que, em meio a tragédias familiares grandes ou pequenas, parecem sempre prontos para vir à tona.
Em linhas gerais estamos diante de uma narrativa que é costurada em dois tempos que correm paralelamente - com passado e presente se encontrando e se recombinando, como uma espécie de elipse que alude a vésperas e contemporaneidades. Em uma dessas narrativas voltamos à juventude de Caim e Abel, que são nomeados dessa forma pelo pai, o beberrão Antunes Filho, como uma forma de punir a própria esposa Custódia (e a revelia desta). Na outra linha Vedina, é a mãe que roda em círculos enquanto, completamente arrependida da decisão tomada segundos antes e que deixaria Augusto à própria sorte, se empenha em decidir o que fazer após o desaparecimento do menino. Ligar para a polícia? Admitir que ela própria abandonou seu filho pequeno em uma rua movimentada? Inventar algum tipo de história que serviria de álibi?
De alguma forma, estamos diante de uma obra sobre rejeições variadas e sobre como lidamos com elas - abandonos que podem surgir já no colégio em meio ao bullying dos colegas, na ausência de um pai pouco amoroso, na fase adulta diante da negação de interesses amorosos. Como sofremos com isso e de que forma evoluímos é o que fará com que nos tornemos quem somos - o que não impedirá que questões que estejam escondidas no inconsciente surjam de maneira inesperada. Vedina certamente não queria abandonar Augusto, assim como Caim não queria se decepcionar com Abel, numa alusão metafórica mais do que perfeita à história bíblica. No centro de tudo está o casamento problemático e marcado pela frustração entre Vedina e Abel, o que também simboliza algum tipo de abandono. Com diversas personagens secundárias interessantes - caso dos padres Tadeu e Alberto, que possuem personalidades opostas, ou mesmo Veneza, a desejada melhor amiga de Vedina -, temos aqui uma obra magnética, daquelas que reverbera por muito tempo depois, em sua irrepreensível análise sobre a condição humana.
De: Radu Jude. Com Katia Pascariu, Olimpia Malai e Claudia Ieremia. Comédia dramática, Romênia / Croácia / Luxemburgo / Reino Unido / República Checa e Suiça, 2021, 106 minutos.
Talvez seja meio irônico pensar que um filme como Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental (Babardeala cu Bucluc Sau Porno Balamuc) só poderia ser feito em um contexto de pandemia. E isso porque não deixa de ser uma espécie de "rima" impressionante ver uma população inteira usando máscaras - no caso os habitantes de Bucareste, a capital da Romênia -, e perceber como, aos poucos, essas peças de pano vão começar a cair. Não literalmente, mas como uma metáfora mais do que perfeita para a hipocrisia da sociedade atual. Essa sociedade quadrada, machista, atrasada, apegada a valores e convenções que mais parecem saídas de algum ponto da Idade Média. Dirigida por Radu Jude a obra, originalíssima, foi a grande vencedora do Urso de Ouro no último Festival de Berlim, sendo também a enviada do País ao Oscar. Trata-se de uma experiência inventiva, curiosa, que aponta o conservadorismo de fachada como uma espécie de bizarrice de nossos tempos.
O filme já começa provocativo, ousado, ao mostrar um vídeo amador de um casal fazendo sexo. De forma bastante gráfica, a sequência exibe a naturalidade de um casal "funcionando" dentro de quatro paredes - com todos os fetiches, posições e ângulos possíveis. Aliás, se você tem uma vida a dois saudável, não vai encontrar nada diferente do que ocorre no cotidiano. Só que acontece que muitas pessoas não têm uma vida a dois saudável. E, assim, agem muito mais preocupados com a intimidade - e o rabo - alheios do que com a sua própria. Ocorre que o vídeo em questão é protagonizado pela professora de História Emilia (Katia Pascariu, em ótima caracterização), que dá aula em um educandário tipicamente tradicional, religioso. As imagens vazam. Vão parar na internet. Chocam as "famílias de bem". Que exigem uma reunião para decidir se Emilia deve ou não ser demitida. Demitida por ter cometido o "crime" de ter transado com o próprio marido. Vendo sua vida particular sendo exposta.
E por mais óbvia que a terceira parte do filme seja, ao escancarar a dissimulação do comportamento daqueles pais ávidos por algum tipo de justiça - com direito a uma bizarra exibição público do filme caseiro para que, a partir daí, sejam tomadas todas as medidas cabíveis -, é nas entrelinhas que o diretor enriquece a experiência. Especialmente nos primeiros dois terços da projeção. Na primeira parte, Emilia circula pela cidade, em meio a prédios decrépitos, estruturas arquitetônicas decadentes, paisagens plasticamente sofríveis e uma pobreza (inclusive de espírito) gritante. Enquanto tenta resolver com o próprio marido e com a escola a questão, em meio a conservas rápidas e telefonemas, se depara com o absurdo do cotidiano - sua violência nos detalhes, a beligerância das frestas, os contrastes de tudo. Em um dado instante a protagonista se depara com um motorista de uma grande caminhoneta estacionado em cima da calçada. Ocorre uma discussão, o motorista cheio da razão ameaça Emília - à moda daqueles que facilmente teriam apertado 17 em uma eventual eleição no Brasil - desferindo ainda palavrões, abusando de uma certa misoginia que, na atualidade, parece fora do armário, legitimada.
Em uma segunda parte tão curiosa quanto imprevisível intitulada "Breve dicionário de anedotas, sinais e maravilhas" é apresentada uma enorme coleção de recortes que, de alguma forma, resumem a Romênia em basicamente todas as suas esferas - políticas, sociais, culturais, religiosas, históricas e sexuais. É o País que descende da ditadura comunista de Nicolae Ceausescu, com todas as suas contradições, excentricidades e estranhezas, misturando tudo com alto grau de humor, nos fazendo rir mesmo quando essa gargalhada submerge do absurdo, do disparatado, do paradoxal. Ás vezes quase do grotesco. Toda essa sequência inicial parece preparar o terreno para os momentos finais quando, em meio a máscaras no rosto mal colocadas e expressões fechadas, pais, mães, militares, religiosos e todas essas instituições tão insuspeitas quanto sagradas exigem uma retaliação à professora. Algum tipo de linchamento público, que lhes devolva a tranquilidade do lar, o sono tranquilo no travesseiro, em meio as suas vidas simplórias, ordinárias, assépticas, vulgares, banais, comezinhas. Não deixem de assistir. Impagável é pouco - e o instante final, histriônico, é o fecho com chave de ouro!
Acho que uma das coisas que mais gosto no Wilco é a capacidade de se apropriar de um estilo ligado à temas (e regiões) mais classicamente conservadores - no caso o country rock - para criticar justamente a hipocrisia de certos extratos sociais tão comunitários, tão unidos e tão problemáticos. No Brasil, talvez exagerando um pouco, seria mais ou menos como se houvesse algum artista de sertanejo universitário, um que fosse, que se manifestasse de forma não tão favorável ao tipo de política perpetrada pelo atual presidente. Do título ambíguo - estamos falando de um "País Cruel" ou de uma vertente musical banhada em metáforas, como bem pontuou a Pitchfork em sua análise -, passando pela capa de ares tradicionalistas, tudo em Cruel Country, o décimo quinto trabalho de estúdio de Jeff Tweedy e companhia, parece remeter a essas convenções - e contradições.
Uma escuta despretensiosa talvez passe batida pelos temas que aparecem, aqui e ali, nas 21 músicas, que alcançam mais de 75 minutos de duração. Não significa necessariamente renegar o tempo todo a Terra do Tio Sam. Mas sim conseguir enxergar que, em meio a beleza evocativa que parte das paisagens rurais, bucólicas, também se esconde uma Nação que flerta com o que de pior pode haver na humanidade. Um bom exemplo desse expediente pode ser percebido na própria faixa-título, onde em meio a uma serena melodia de cordas Tweedy canta sobre como "ama seu País estúpido e cruel". Há outros instantes que são puro lirismo, numa mistura que vai do soturno à luminosidade, caso da maravilhosa Hearts Hard to Find (A realidade arruína tudo / Eu gosto de uma brisa / Balançando suavemente a árvore). Ambiguidade é a palavra-chave aqui. Não por acaso tudo parece econômico, modesto. Ainda que o resultado seja gigante.
De: Abbas Kiarostami. Com Babek Ahmed Poor, Amhed Amhed Poor e Kheda Barech Defai. Drama, Irã, 1987, 83 minutos.
Exemplificar o Novo Cinema Iraniano a partir de um único filme certamente não é tarefa fácil, mas eu tendo a acreditar que Onde Fica a Casa do Meu Amigo? (Khane-ye Doust Kodjast?), do diretor Abbas Kiarostami, possui muitas das características que resumem o movimento. Para começar trata-se de uma experiência absolutamente minimalista, que parte de um fiapo de história - e bota fiapo nisso - pra analisar o todo. Depois, há um forte caráter documental, capaz de converter o naturalismo em uma espécie de estética própria. Não há nada necessariamente grandioso em termos sonoros ou visuais. O virtuosismo técnico tem mais a ver com os movimentos inovadores de câmera do que com as ambientações que são simples, cotidianas. O ritmo pode até ser lento, mas há por trás um sem fim de significados em meio a alegorias e metáforas políticas, sociais, culturais, religiosas. Ao cabo, o cinema surgido após a Revolução Islâmica é plenamente dotado de sentidos. De um humanismo palpável. Ainda que arranque mergulhado em uma atmosfera modesta, quase meramente episódica.
Pois nessa pequena joia do cinema asiático, a narrativa começa em uma sala de aula, onde um grupo de alunos de apenas oito anos sofre uma carraspana de seu severo professor - o motivo é aquela baguncinha típica que rola antes da aula começar. Só que para o pequeno Nematzadeh (Amhed Amhed Poor) a situação é mais complicada já que já é a terceira vez que ele esquece o seu caderno e é nesse contexto que o educador ameaça: "se houver novo esquecimento, será expulso". Ao final da aula em meio a agitação e aos atropelos, Nematzadeh acaba machucando o joelho numa queda, sendo socorrido pelo melhor amigo Ahmad (Babek Ahmed Poor), um menino generoso e leal. No rebu que envolve passar uma água no ferimento, Ahmad se dá conta, ao chegar em casa, que ficou com o caderno do amigo por engano. O amigo que será expulso se não levar o material no dia seguinte. E, bom, é a partir daí que o protagonista empreende uma verdadeira via-crúcis na tentativa de descobrir onde fica a casa do amigo para tentar lhe entregar o caderno livrando-o, assim, de sua dolorida sina.
Olhando assim pode parecer quase ingênuo, simplório. Mas a partir da trajetória de Ahmad será possível perceber a discussão de uma série de temas nas entrelinhas - que vão do caráter arcaico do sistema educacional, passando pelo conceito de invisibilidade infantil, pelo poder da amizade, até chegar à carga vivida pelos pequenos, fruto de um modelo que visa a disciplina a partir do trabalho e do respeito pleno aos adultos, independente da circunstância. Em certa altura da projeção dois idosos dialogam sobre como educar uma criança. Um deles, o avô de Ahmad, lembra que, quando novo, seu pai costumava lhe dar uma bala toda a semana e uma surra a cada duas semanas. "Tinha dias que a bala ele esquecia, mas a surra não", garante, dando a entender de que esse padrão deve ser perseguido na formação da próxima geração. Ao que o outro homem retruca: "mas e se não houver motivos para uma surra?". É nesse tipo de contraste típico das narrativas iranianas, que reside uma boa parte da força argumentativa.
Indo de lá para cá com o caderno debaixo do braço, Ahmad atravessa montanhas, "viaja" a pé para cidades vizinhas, bate de porta em porta, investiga, pergunta, pensa que chegou no lugar certo mas não e até roda em círculos. Há um quê de mesquinharia nesse cotidiano em que ninguém se importa, ninguém ouve, em que o curso normal das coisas segue, enquanto a angústia do pequeno se expressa em pequenos gestos, em olhares tão doces quanto aflitivos, em um desespero que cresce. De alguma forma há uma instabilidade meio permanente que parece brotar da incerteza sobre tudo - tanto nos silêncios, como na repetição quase infinita das mesmas frases (normalmente em vão). Ao cabo trata-se de uma obra poética mas angustiante, morosa mas viva, que traça um paralelo com o tipo de drama visto em clássicos do neorrealismo italiano, caso de Ladrões de Bicicletas (1948), sobre um sujeito que tem a sua bicicleta roubada, o que o impede de trabalhar. Vale demais.
Mil novecentos e noventa e sete. Se paramos pra pensar nas nossas próprias vidas muito provavelmente existirão alguns anos que são mais relevantes do que outros. Com acontecimentos marcantes - ou nem tanto, mas que pra nós têm significado. O ano da formatura, da carteira de motorista, do primeiro emprego. Do primeiro beijo, do primeiro namoro, da primeira transa. A primeira bebedeira, o primeiro porre para além dos limites da cidade de origem. De tudo um pouco em meio a risadas nas escadas do colégio católico. Mil novecentos e noventa e sete marca alguma coisa no meio do caminho pra esse jornalista que, hoje, aos 41 anos, vos "tecla". Com quinze para dezesseis anos a gente costuma ser uma espécie de nada descobrindo meio que tudo. No final dos anos 90 a tecnologia ainda se resumia a uns celulares em formato tijolão que os pais dos colegas mais playboys utilizavam. Ou um Super Nintendo com Top Gear torando. Era o ano de filmes como Homens de Preto ou Gênio Indomável que, a sua maneira, dialogavam com a moçada, enquanto as acirradas disputas entre os Berdinazi e os Mezenga agitavam o folhetim da noite.
E aí eu me lembro como se fosse hoje da primeira vez em que assisti ao clipe de Monkey Wrench do Foo Fighters, na antiga televisão de tubo da época. A TV a cabo era uma novidade, um luxo recém chegado - e minhas tardes passaram a ser regadas à programas como o Gás Total e o Disk, ambos da MTV. Ver a Sabrina Parlatore anunciando o vídeo da banda de Dave Grohl e companhia era uma espécie de prazer que se mesclava com outras coisas que costumam deleitar os adolescentes. E eu me tornei meio que obcecado por aquela banda. Tão ruidosa mas ao mesmo tempo tão "assobiável". O clipe tinha fúria e doçura na mesma medida - era algo completamente novo pra quem convivia apenas com o que tocava nas rádios ou com apresentações de bandas de pagode aleatórias em shows de auditório dominicais. E não seria por acaso que The Colour & The Shape, disco que completou 25 anos de vida na última semana, se tornaria o primeiro CD adquirido da minha história.
Sim, porque ouvir música em 1997 não era como hoje, onde basta dar play no Deezer ou no Spotify que temos praticamente qualquer música ao nosso alcance. Bendita tecnologia! Mas naquela época, encontrar um disco que nos apaixonava e, mais do que isso, conseguir o dinheiro para comprá-lo, era uma espécie de pequena epopeia, digna de um livro sobre cultura pop que mistura Nick Hornby com Haruki Murakami. Lembro bem que revirei a cidade de Lajeado para ver se encontrava o disquinho da capa azul. Por "revirar a cidade" leia-se ir nas duas ou três lojas que comercializavam discos (uma no shopping local, talvez duas no centro) na tentativa de encontrar o trabalho. Foi em vão, o que fez a missão migrar para outras cidades - e fui encontrar o álbum na vizinha Encantado onde, com o apoio do colega Luciano Girardi (hoje um renomado dentista do citado município), consegui uma edição. Foram meses de espera, é bom mencionar. Mas que valeram a pena.
Ter esse ou aquele CD em 1997 era quase uma conquista pessoal. Se fosse importado então, era uma espécie de vitória em relação aos demais mortais. The Colour & the Shape tinha edição nacional, mas a banda de Dave Grohl e do recém-falecido Taylor Hawkins ainda era um recorte embrionário do grupo gigante que, muito mais tarde, viria a se tornar. Mas na raiz de tudo estavam aquelas músicas - Everlong, Wind Up, My Hero, Up in Arms - uns rockões animados e furiosos, envolventes e porrudos. Ok, hoje em dia a música avançou de tal maneira que o FF quase se tornou uma espécie pálida em meio a profusão de estilos da modernidade. Muitos deles com uma aura mais roqueira que o próprio rock. Ao menos em matéria de atitude. Mas esse disco foi, pra mim, o começo de tudo. Que ampliou meus horizontes - para o britpop, para o grunge realizado anteriormente, para outras vertentes. Pra quem já tinha a paixão pelos Beatles no sangue, esse foi um passo meio que natural. E que foi muito transformador. Em partes, sou quem sou hoje, gosto do que gosto, também por causa do The Colour... E esse passado, eu não posso renegar jamais.
Indo na contramão do Tik Tok e de outras modalidades de consumo cultural instantâneo, a americana Ethel Cain converte o seu álbum de estreia, Preacher's Daughter, em uma experiência que convida o ouvinte a um mergulho mais profundo para algum lugar do passado onde, no interior dos Estados Unidos, a jovem protagonista intercala a missa de domingo em meio a estradas de terra, com as expectativas pela chegada à vida adulta e a quebra de ciclos na busca por um lugar no mundo. Trata-se de um projeto bastante confessional, que mistura Bruce Springsteen e Taylor Swift, transformando a lenta evolução das canções em uma espécie de conto americano clássico, que perpassa gerações. "É sobre como a vida de várias mulheres se interliga e se completa", afirmou em entrevista à Pitchfork.
De hits como American Teenager, a músicas de títulos autoexplicativos como A House In Nebraska ou Family Tree o registro equilibra uma suntuosidade quase elegíaca - reflexo da criação em uma família religiosa (seu pai era pastor) - com o pop lento e soturno de contemporâneas como Lana Del Rey ou Sharon Van Etten. Essa ambiguidade também se reflete nas letras melancólicas, nostálgicas e otimistas que, de alguma forma, desconstroem o conceito de "sonho americano", meio à moda dos filmes alternativos de festivais. Um bom exemplo disso tudo está em Ptolomaea, um tour de force de mais de seis minutos, em que Ethel enfrenta seus demônios estando, aparentemente, sobre efeito de drogas (Que medo um homem como você traz a uma mulher como eu / Por favor não olhe para mim). Visceral.
De: Thomas Vinterberg. Com Mads Mikkelsen, Annika Wedderkopp, Thomas Bo Larsen e Alexandra Raraport. Drama, Dinamarca / Suécia, 2012, 116 minutos.
Violência sexual contra crianças. Sim, o assunto é grave, é sério e só de pensar sobre já nos gera desconforto. Só que o que o filme A Caça (Jagten) faz é abordar um outro lado dos casos de pedofilia: e se a acusação, aparentemente, for falsa? É possível acreditar em tudo o que diz uma criança? Há aí espaço para alguma dose de fantasia, capaz de se misturar com outros sentimentos complexos para os pequenos? Indicada à Palma de Ouro, a obra sueco-dinamarquesa aborda as consequências de uma denúncia que parece infundada na vida do professor de séries iniciais Lucas (Mads Mikkelsen). Todo mundo é inocente até que se prove o contrário? Sim, mas no caso em que é atribuído a um adulto esse tipo de crime, as repercussões na vida social podem ser imprevisíveis. Lucas está se recuperando de uma separação meio traumática e começa a trabalhar em uma creche - local em que é respeitado pelos colegas e, especialmente, pelos alunos.
Tudo corre relativamente be nessa tentativa de se reestruturar: Lucas possui bons amigos - seus companheiros de bebedeira e caçadas -, há uma boa chance de reaproximação do filho após o divórcio e Nadja (Alexandra Raraport) é a nova namorada. Só que essa rotina é quebrada no dia em que a diretora Grethe (Susse Wold) o chama em sua sala, para lhe relatar que uma aluna de apenas seis anos o teria acusado de exibir suas partes íntimas. Klara (Annika Wedderkopp, em caracterização impressionante) é uma menininha de imaginação fértil, que contava com o apoio de Lucas (e de sua simpática cachorra), para ir para casa. Ir para casa segura, na companhia de um adulto. No lar de Klara, a instabilidade típica da classe média: um pai que abusa do álcool, as brigas constantes dele com a mãe, um irmão adolescente que espalha hormônios e pornografia como se não fosse nada de mais. Lucas se torna uma espécie de porto seguro para a pequena.
Aliás, mais do que isso, Klara passa a nutrir uma espécie de paixonite pelo adulto - aquele tipo de fantasia inocente, que muitas vezes pode passar pela cabeça das crianças. Em um dia de brincadeiras entre professor e alunos ela acaba dando algo próximo de um beijo na boca de Lucas, que lhe explica, calmamente, que aquilo não é correto. E, movida por algum tipo de ressentimento, Klara cria uma história que parece existir apenas em sua cabeça - e, bom, daí pra frente o estrago está feito. Incapaz de provar que não é culpado - a diretora insiste na ideia tenebrosa de que "crianças nunca mentem" -, o professor vê a sua existência ser arruinada, sendo renegado por todos a sua volta: amigos, parentes, até os atendentes de supermercados da região. Na tentativa de se reerguer, conta com o apoio de seu irmão e do próprio filho - e é simplesmente comovente o esforço do jovem Marcus (Lasse Fogelstrom) em brigar pela inocência do pai.
Nesse ponto da resenha acho importante lembrar que, sim, os casos de pedofilia existem, são muitos e na grande maioria dos casos envolvem pessoas bem próximas da criança (especialmente familiares). Mas há um sem fim de acusações que podem ser consideradas falsas - e é importante lembrar da presunção de inocência e, nesse caso, o filme de Thomas Vinterberg (do recente Druk: Mais Uma Rodada) tem papel fundamental no sentido de analisar e tentar refrear a sanha punitivista que move a sociedade dos nossos tempos. Resolver um (suposto) crime com outro crime? Linchar? Se vingar apenas por se vingar? Ali adiante serão dois criminosos. Talvez apenas um, se não houver provas do crime que motiva o senso de justiça. A Caça é um filme ousado, que coloca o dedo na ferida em questões ligadas ao comportamento coletivo, de manada, e que não parece ter uma solução possível ou tão fácil em curto prazo. É um trabalho angustiante, comovente, dolorido. A caça pode virar caçador o tempo todo e vice e versa. O final impactante é a prova disso. Choca. E faz pensar.
De: Robert Eggers. Com Alexander Skargard, Nicole Kidman, Anya Taylor-Joy, Willem Dafoe e Ethan Hawke. Ação / Drama / Fantasia, EUA, 2021, 136 minutos.
Existem filmes que, para além da história em si, são uma verdadeira experiência - sensorial, magnética, auditiva e visual. Daquelas capazes de ativar todos os nossos sentidos. Talvez até de alguma forma aguçá-los, ampliá-los. E esse é justamente o caso de O Homem do Norte (The Northman), terceira produção dirigida por Robert Eggers - de A Bruxa (2015) e O Farol (2019) - e que o consolida como um dos grandes realizadores da atualidade. A trama em si é a clássica história de vingança, de um jovem príncipe que presencia o assassinato do próprio pai pelas mãos do tio - que usurpa o trono. Cenários, objetos, símbolos, vestimentas, pinturas, cânticos, religiões, ritos, profecias, superstições, guerra, honra e destino. São muitas as palavras que se confundem, que se misturam, formando um todo coeso, enquanto nós espectadores acompanhamos o desenrolar de olhos meio arregalados, com o desejo de não perder um segundo sequer.
Em resumo, é tudo muito perfeito aqui. É preciso, ao cabo, um esforço homérico para encontrar qualquer desvio, uma incerteza ou algum tipo de excesso. É um tipo de arte soberba, visceral, grandiosa. Há, por exemplo, no início do segundo ato, uma sequência em um barco, que conduz um grupo de selvagens nórdicos que, mais adiante, tomarão um povoado com a intenção de escravizar os locais. De forma tecnicamente impecável, a câmera sai de dentro da floresta para se "instalar" no interior da embarcação, num plano sequência imersivo, que contribui para a construção da atmosfera de pesadelo que acompanhamos (a trilha sonora é uma batucada animalesca, tribal, que remete a algo que vai no limite entre o místico e o macabro). Poderia ser apenas mais uma passagem qualquer. Mas ela mexe conosco. Nos posiciona dentro. Como se fôssemos observadores participantes do absurdo da selvageria de um período - no caso o final do Século 9.
Quando está na aldeia saqueada, o protagonista Amleth (Alexander Skarsgard) - o nome shakespereano não é por acaso - descobre que o algoz de seu genitor é, atualmente, um simples criador de ovelhas na Islândia. Anos se passaram desde o assassinato de seu pai. Mas o seu ímpeto pela desforra permanece. O tio, Fjölnir, o Sem Irmão (Claes Bang) já não é mais "rei" de nada. Nenhuma dinastia. Pouca importância. Para Amleth não há mais trono a ser retomado, monarca a ser deposto. Mas isso não impede o guerreiro de colocar em prática o seu plano de vingança. Especialmente após ser lembrado de seu destino pela bruxa vidente Seeress (Björk), em uma das tantas sequências que mesclam misticismo, folclore e alguma dose de bestialidade. Na propriedade, Amleth se converterá em escravo voluntariamente. Se reaproximará de seus familiares, que o tinham como desaparecido. E se empenhará em sua missão. O que não impedirá algumas reviravoltas interessantes no caminho, daquelas que nos tiram o chão.
Com uma fotografia belíssima - cheia de contrastes entre claro e escuro, vazio e preenchimento - com um ótimo uso dos tons de cinza, especialmente nos momentos em que parece haver uma espécie de transe sobrenatural, a obra ainda é um primor em matéria de paisagens (as locações na Islândia são deslumbrantes). Já a trilha sonora, propositalmente caótica, eventualmente turva, evoca sentimentos distintos como dramaticidade e tensão, sendo comovente e perturbadora em igual medida. Como afirmei acima, é uma obra sensorial, dotada de personalidade, com uma estética e uma atmosfera únicas - o que contribui para a sensação de novidade, mesmo onde poderia prevalecer a mesmice. Muitas pessoas estão comentando que este é o trabalho mais fraco de Eggers - ainda que seja o mais expansivo. A meu ver, o realizador se apropria com maestria dos códigos e da semiologia do período, discutindo nas entrelinhas temas relacionados à masculinidade, ao senso de justiça, à xenofobia e ao preconceito religioso. Não há nada pequeno nesse combo todo. É um dos filmes do ano.
É certo que não é o objetivo do Harry Styles se reinventar a cada novo disco lançado, mas não deixa de impressionar a capacidade do artista de imprimir a sua personalidade (e até algum frescor) a cada registro disponibilizado ao público. Com Harry's House não é diferente já que parece que a gente nunca tá ouvindo a mesma coisa de antes. Seja na abertura com o funk efervescente de Music for a Sushi Restaurante (adorei esse nome), passando pela guitarrinha à Vampire Weekend de Grapejuice, até chegar ao pop setentista de Satellite, o registro é um verdadeiro passeio magnético por estilos, cores e arranjos quase palpáveis em sua mescla de simplicidade e magnitude.
Um bom exemplo de tudo isso está na envolvente And It Was, o primeiro single e uma das grandes canções do ano, com Styles cantando sobre sentimentos agridoces e nostálgicos, mas "mascarando" tudo com sólidos sintetizadores à moda A-ha, que explodem em um dos grandes refrões do ano (Nesse mundo, somos apenas nós / E você sabe que não é igual a como era antes). Em entrevistas, Styles descreveu-a como uma música sobre "metamorfose, sobre abraçar as mudanças e quem éramos antigamente". De alguma forma, é o que o britânico faz o tempo todo em seu trabalho: chama os ouvintes para que se aprocheguem em sua casa, sentem-se, fiquem à vontade. E que saboreiem o que de melhor pode haver no pop moderno.
De: Marcelo Brennan. Com Thomás Aquino, Rodrigo García, José Dumont e Carla Salle. Drama, Brasil, 2020, 86 minutos.
Que joia do nosso cinema é esse pequeno filme chamado Curral - primeiro longa-metragem de ficção do diretor pernambucano Marcelo Brennan. Quer dizer, ficção ao menos em partes, já que é simplesmente impossível não identificar uma boa dose de realidade naquilo que acompanhamos. A trama nos joga para a pequena Gravatá, cidadezinha típica do interior onde, às vésperas das eleições municipais, o bicho tá pegando entre dois candidatos à prefeito rivais. Em meio a esse cenário turbulento, somos apresentados a Chico Caixa (Thomás Aquino) um modesto funcionário da Prefeitura, que é o responsável por conduzir o caminhão pipa que levará água às localidades que sofrem com a escassez hídrica. Só que, após bater de frente com o prefeito da situação Vitorino (José Dumont, em participação especial) ele é demitido, sendo recrutado após o episódio por um amigo de infância, no caso o advogado Joel (Rodrigo Garcia), que pretende se eleger como vereador e que, para isso, depende do apelo popular do protagonista na campanha.
Joel é tudo aquilo que esses jovens políticos que surgem meio que do nada, garantem ser: éticos, sem "rabo preso" com nenhuma sigla e interessados em proteger apenas os direitos do povão. "Eu nem precisaria estar na política, sou advogado" defende o sujeito que integra um daqueles partidos da nova (ou nem tão nova) política chamado, Avança Brasil. Acompanhado de Chico Caixa, Joel inicia uma campanha massiva pela cidade, percebendo logo o potencial que terá como moeda de troca, as políticas voltadas à distribuição da água. Acreditando inicialmente em Joel - num misto de ingenuidade com necessidade, já que o homem é pai de família e também precisa pagar os seus boletos - Caixa não demorará para ver as suas convicções sendo confrontadas. Especialmente quando a equipe do candidato passar a fazer promessas claramente vazias, num misto de clientelismo, troca de favores e compra de votos.
E por mais dolorido que seja constatar a falência completa de um modelo de disputa política atual que beira a beligerância, não deixa de ser divertido reconhecer aqui e ali toda a semiótica que envolve o pleito dos pequenos municípios Brasil afora. Estão lá desde os carros de som com grudentos jingles de campanha (Tá nervoso / tome um chá / é galego advogado / ele vem para mudar), passando pelos comícios em que artistas locais se vendem em troca de visibilidade e pelos candidatos vaidosos interessados apenas em si, até chegar ao apelativo papel da imprensa, que costuma se travestir de isenta enquanto funciona como "´pena de aluguel" de um dos lados (e a voz de locutor à moda antiga de um dos radialistas, admito, me fez gargalhar alto, pensando em alguma figuras típicas da nossa mídia local). Nesse sentido, a experiência navega no limite entre o trágico e o cômico, entre a desesperança e a reflexão.
Hábil em construir enquadramentos inteligentes - observe por exemplo o ângulo com que acompanhamos a mangueira sendo desenrolada do caminhão ainda na primeira cena -, Brennan ainda utiliza cenários, figurinos, objetos e outros elementos como forma de se comunicar com seu público. Em certa altura da projeção, Chico Caixa usa uma camiseta em que se lê um Enjoy Coca Cola - o que não deixa de ser uma grande ironia, em um cenário em que a população passa sede por não ter os recursos hídricos básicos. Aqui e ali também há nas entrelinhas um debate sobre temas como machismo, racismo, diferenças de classe e a falta de percepção de onde se está no espectro político (e de quem representa efetivamente o povo). Tudo filmado com um senso de naturalismo tão palpável, que quase me fez lembrar outra maravilha do nosso cinema, no caso o divertidíssimo Narradores de Javé (que, ironicamente, conta com José Dumont em um inesquecível papel). Está na Netflix e precisa ser descoberto.
Sexy. Enigmático. Elegante. Expansivo. Quem ouve Forgiveness, quarto disco dos americanos do Girlpool, quase nem reconhece a banda tímida, que surgiu para o mundo em 2015, com o gracioso Before The World Was Big. Do violãozinho introspectivo de notas modestas do começo, aos sintetizadores voluptuosos e as orquestrações reverberantes de agora, o caminho percorrido por Avery Tucker e Harmont Tividad rumo ao amadurecimento, foi como o de qualquer jovem chegando a fase adulta. Então talvez não haja nada mais natural do que a ingenuidade de outrora, dando agora lugar a uma postura mais confiante - mesmo que isso envolva versos sobre decepções amorosas, busca pelo perdão ou sexo descompromissado.
Em meio a melodias que vão do hipnótico (e quase robótico) como na abertura Nothing Gives Me Pleasure, passando pelo country cheio de personalidade de Faultline até chegar ao indie pop noventista de Dragging My Life Into a Dream (que não faria feio num projeto paralelo envolvendo o Teenage Fanclub e o The 1975) a dupla é pura personalidade ao mesclar estilos sem nunca descambar pra bagunça. E como se não bastasse tantos predicados, ainda há as letras, cheias de metáforas e sutilezas, que resultam em alguns dos melhores versos do ano, como no caso da absurdamente irresistível Butterfly Bulletholes (E como é dentro do mundo da noite? / Eu quero saber como viver sem medo da vida).
De: Bojan Vuletic. Com Mirjana Karanović, Jovana Gavrilović, Danica Nedeljkovic. Comédia dramática, Sérvia / Bulgária / França / Macedônia / Rússia, 2018, 94 minutos.
Quando Réquiem Para a Sra. J (Rekvijem Za Gospodju J) tem início, a primeira imagem que surge a nossa frente é um plano conjunto de uma sala de estar de ares simples - com mesinha, uma televisão daquelas de tubo meio antiga, objetos empilhados, estantes empenadas, um ar geral de desordem em meio a uma iluminação capenga. Tudo está em silêncio e o único barulho que escutamos sai do canto do quadro onde uma jovem senhora, meticulosamente, maneja um revólver. Há um senso meio palpável de solidão que só piora quando entra em cena uma outra mulher, mais idosa, que cruza pelo caminho rumo a cozinha. Uma troca de olhares e basta para que se estabeleça o esvaziamento de qualquer vínculo mais afetuoso. A residência decadente é, ao cabo, apenas um reflexo daqueles que habitam o local, não demorando para que se instale um senso de desolação, de tédio que, aparentemente, levará a mulher que empunha a arma a pretender o suicídio.
Repleto de sutilezas, o filme de Bojan Vuletic - o enviado da Sérvia para a edição do Oscar de 2018 e que está disponível no Mubi (sempre ele) - é mais um daqueles que parte do microcosmo doméstico para analisar o todo. Não demora para que a gente compreenda que a solitária senhora J. do título (a mulher com a arma, que conduzirá a narrativa e que é interpretada por Mirjana Karanovic) está prestes a completar o primeiro ano como viúva. Em meio a letargia dos dias, ela anda para lá e para cá em busca de encaminhar a documentação que lhe permita ter acesso a uma indenização - ela foi dispensada sem muita explicação da fábrica em que trabalhava, que passará por um processo de privatização. Ao mesmo tempo, organiza todos os preparativos para que possa dar fim a sua existência, indo atrás de balas para o revólver e até da instalação de sua foto na lápide, junto a do marido (o que resulta em um instante ao mesmo tempo comovente e engraçado).
Aliás, a intenção bem clara do diretor aqui não é deixar o espectador necessariamente triste. Sim, estamos diante de uma suicida em potencial que zanza em estado catatônico pelo bairro, em meio a enquadramentos pouco óbvios e planos sequência que estendem ao máximo a sensação de dor na alma. Mas, aqui e ali, a narrativa é salpicada por momentos de um humor cínico, em que a crítica à burocracia estatal e ao absurdo de praticamente ter de encaminhar em cartório a própria morte, se cruza com o histrionismo dos familiares, especialmente da filha mais velha que é incapaz de compreender (ou perceber) a dor da mãe. E a cena em que a protagonista flagra a jovem transando para, mais tarde, revelar que está grávida é tão trágica, quanto cômica. "Que bom", afirma ela, mal movendo os músculos do rosto e nem se mexendo do sofá - onde está deitada -, ao saber da novidade.
São esses detalhes que enriquecem o todo ainda que talvez a obra, propositalmente arrastada - quase como um zumbi daqueles de filmes de morto-vivo -, não funcione para todos os paladares. Nesse sentido não são poucos os momentos em que o diretor enquadra por longos segundos (talvez até minutos) um grupo de pacientes que aguarda em alguma fila. A espera ali parece fazer parte. Mas espera pelo quê exatamente? Quando volta a indústria em que trabalhava para tentar reaver algum tipo de papelada a estrutura está sucateada, decadente (assim como são os remanescentes). As pinturas estão gastas, os galpões esvaziados, o som do vento é só o que se escuta. Mas, por incrível que possa parecer, ainda há espaço para algum otimismo no terço final, quando a trama quase flerta com o realismo mágico. É um fiapinho de esperança. Mas que funciona direitinho.
De: Roland Emmerich. Com Patrick Wilson, Halle Berry, John Bradley e Donald Sutherland. Ficção científica, EUA, 2022, 120 minutos.
Não sei se é a idade que vai deixando a gente mais impaciente pra esse tipo de experiência, mas o caso é que eu não gostei de absolutamente nada nesse Moonfall: Ameaça Lunar (Moonfall) - mais nova bizarrice de Roland Emmerich (de Independence Day e 2012). Tá tudo errado aqui. Tudo. Incluindo os efeitos especiais, que mais parecem coisa de estudante de computação gráfica em início de carreira, do que resultado de um filme que custou quase US$ 150 milhões. Sim, acreditem, quem deposita uma cifra astronômica dessas num projeto tão raquítico, tão inconsistente? Ok, eu sei que o cinema blockbuster tem como princípio básico o entretenimento. Só que o problema é que esse aqui sequer alcança esse objetivo. Pra começar o roteiro é tão desconectado de qualquer sentido, que faz com Não Olhe Para Cima (2021) de Adam McKay, um outro exemplar daquilo que se pode chamar de cinema-catástrofe, pareça uma obra-prima do cinema.
Na trama acompanhamos Brian Harper (Patrick Wilson), um astronauta desacreditado após uma tragédia que destruiu um satélite e tirou a vida de um colega de profissão 10 anos atrás. Aqui, ele volta a ativa para uma missão que visa salvar a humanidade após a Lua sair de sua órbita e entrar em rota de colisão com a Terra - o que começa a gerar um sem fim de problemas. No tal acidente do passado que acompanhamos no começo do filme, Harper se empenha em salvar a vida de sua colega de profissão Jo Fowler (Halle Berry), que hoje é uma "grandona" na Nasa. Paralelamente, um nerdola mais estereotipado que os integrantes de The Big Bang Theory (papel de John Bradley) é o esquisitão conspiracionista, que vê sua teoria esdrúxula sobre o desvio de eixo do satélite confirmar algo sobre a Lua ser, na realidade, um satélite artificial (com direito a engenhocas que fornecem energia a algum tipo de "vida inteligente" em seu interior, que é oco).
Aliás, oco. (ou oca) Taí uma palavra que resume bem a forma como a narrativa vai sendo costurada, por meio de explicações científicas apressadíssimas (e pouco lógicas) e um empenho sôfrego em converter, novamente, os Estados Unidos no salvador da Pátria. Ou "das pátrias". E aí haja bandeira norte-americana tremulando, oficiais em roupas camufladas, diálogos quadrados que parecem saídos de churrascos de clubes de tiro conservadores e personagens tão rasos quanto pratos de buffet que só permitem pegar um pedaço de carne no bandejão (inclusive os secundários, que parecem inúteis basicamente o tempo todo). E o que acontece em um combo tão completo do desastre é que no fim das contas nós, espectadores, que estamos acompanhando o desenrolar, pouco nos importamos. No fim a gente só quer que tudo acabe de uma vez porque esse tipo de filme não colaria nem em meados dos anos 80.
Aliás, até os anos 80 aparecem de forma deslocada no roteiro - a inserção de uma discussão sobre a música África, do Toto, ainda no comecinho pretendia, o quê? Soar nostálgica só porque está na moda? E, aproveitando, porque em filmes desse tipo personagens que supostamente deveriam ser inteligentes tomam decisões tão estúpidas? Ou se comportam como pessoas que parecem ter algum tipo de deficiência cognitiva? Lá pelas tantas, diante de uma grande dúvida, o nerdola se pergunta: o que Elon faria numa situação dessas? É sério? Elon? Ele tá falando de quem eu estou pensando? Com tantos elementos tão terraplanistas tudo se torna triplamente pior quando nos damos conta que a obra não tem sequer a leveza, o senso de humor ou a presença de espírito de não se levar tão a sério. No fim das contas a gente sabe qua o mundo vai ser salvo, com trilha sonora edificante, por algum americano aleatório e meio cínico voltando pra casa como heroi, enquanto a cena o acompanha em câmera lenta. É tudo dolorosamente previsível. Desgraçadamente falho. Tediosamente monótono. Mas vocês podem ir, por conta e risco: tá lá na Amazon Prime.
De: Joachim Trier. Com Anders Danielsen Lie, Hans Olav Brenner e Renate Reinsve. Drama, Noruega, 2011, 94 minutos.
Existe uma cena silenciosa (e comovente) que dá conta do completo vazio sentido pelo protagonista do inquietante Oslo, 31 de Agosto (Oslo, 31. August), filme que está disponível no Mubi. Nela, o jovem Anders (Anders Danielsen Lie) entra em um clube com três amigos ao final de uma madrugada de festa - o dia está amanhecendo. Os amigos resolvem pular na piscina, insistem para que Anders entre com eles. Ele olha, mas parece olhar para o nada. Sua mente viaja por alguns instantes. Ele levanta e vai embora, afinal, qual o sentido de tudo aquilo? Como fugir do pessimismo, do niilismo que lhe invade diante de tudo? Anders é bem nascido, vem de uma família claramente estruturada, pôde estudar, é branco, hétero. Está longe de ser uma minoria. Mas é um jovem viciado em drogas que está quase concluindo o processo de reabilitação. A madrugada da piscina é a conclusão do dia de licença que ele recebeu para participar de uma entrevista de emprego. Uma tentativa de se recolocar, de tentar se incluir novamente na engrenagem social.
Muito antes de chamar a atenção do mundo nesse ano pelo maravilhoso A Pior Pessoa do Mundo (2021), Joachim Trier converteu esse roteiro em uma verdadeira (e dolorosa) via crúcis de um jovem em busca de um reencontro consigo mesmo - de preferência em um universo livre de cocaína, heroína e outras substâncias. Mas como ter forças para recomeçar aos 34 anos tendo, basicamente, nada? Um encontro com o amigo Thomas (Hans Olav Brenner) quase se converte em uma sessão de terapia improvisada entre os dois. Percorrendo a vizinhança, a dupla submerge em reminiscências, olhando para o passado na tentativa de trilhar o futuro. Anders se lamenta, mas a vida de Thomas está tão melhor assim? Cuidar dos dois filhos pequenos, encontrar outros casais que ele nem gosta tanto assim, a completa ausência de amor (e de sexo), a rotina entediante, algumas sessões aleatórias de Battlefield no videogame e... é isso? É essa a vida que aguarda um ex-hedonista?
Quando vai para a tal entrevista de emprego a situação piora. As coisas até não começam assim tão ruins - o futuro empregador do protagonista parece se afeiçoar dele, sorri, elogia sua produção textual ( é uma vaga para roteirista júnior ou algo do tipo). Mas lá pelas tantas, observando seu currículo, ele pergunta onde estão as informações após o ano de 2005. Ao que Anders responde, com inescapável sinceridade: "eu era um viciado em drogas. Drogas de todos os tipos. Mas estou limpo há 10 meses. Nem álcool eu tomo". Mas não adianta. É como se houvesse um selo em sua testa, uma tatuagem, onde estivesse escrito: "viciado". E aí o rapaz percebe que há ainda o estigma social a s ser superado. O preconceito. A ideia de que um consumidor de drogas sempre será um problema. A entrevista se encerra de forma desastrosa. No dia de folga de Anders não há emprego, somente a dor do passado que lhe assombra. E que parece prontinho a bater novamente na porta.
Hábil na construção da narrativa, Trier adota longos planos sequência com câmera na mão, o que confere um caráter quase documental à experiência. Há um naturalismo palpável, como se nós, espectadores, fôssemos observadores que estão em volta, nas frestas - e a fotografia meio granulada, quase pálida contribui para esse clima próximo, familiar. Os personagens são complexos, não há julgamentos morais. A gente sabe onde aquilo tudo vai dar, mas, é quase como se déssemos algum tipo de razão a Anders. Passássemos pano para ele. Como viver num mundo tão afetado pela mesmice? Com tantos planos óbvios para o futuro? Com tanta coisa meramente ordinária acontecendo? O que pode, afinal, nos comover, em meio a esse mar de monotonia? São questões duras, complexas, que não são respondidas nunca e que nos deixam um travor meio amargo na conclusão. Há instantes de beleza, sim (a cena do bar é bonita, mas carregada de ambiguidade). Mas o marasmo é o que vai definir os próximos movimentos. Que envolverão, inescapavelmente, uma agulha, uma seringa e um braço. Doloroso é pouco.
De: Juliana Rojas e Marco Dutra. Com Isabél Zuaa, Marjorie Estiano e Miguel Lobo. Fantasia / Drama / Terror, Brasil / França, 2018, 135 minutos.
É um drama sobre questões sociais? Um suspense sobre os desafios da maternidade? Ou seria ainda uma experiência de terror que evoca temas folclóricos? É urbano? É rural? É fantasia? Ou realidade? São tantas as possibilidades em uma análise do ótimo As Boas Maneiras, obra de Juliana Rojas e Marco Dutra, que o resultado são mais perguntas do que respostas, ao final da projeção. E não há nada de errado nisso, porque esse é aquele tipo de filme que permanece conosco, nos faz viajar, inferir, discutir. Da indefinição de seu gênero, passando pelo roteiro dividido em duas partes bem delineadas, a obra tem complexidade sem nunca soar excessivamente hermética. Ao cabo trata-se de um resgate da clássica lenda do folclore, mas de um jeitinho bem brasileiro.
Na trama somos apresentados a Clara (Isabél Zuaa), mulher negra que mora em um bairro periférico de São Paulo e que consegue uma vaga como babá do filho da grávida Ana (Marjorie Estiano), em um luxuoso apartamento. A conversa inicial parece cercada de amenidades mas, aqui e ali, já evidencia o contraste entre a dupla de protagonistas: Ana é a burguesa que não é capaz nem de comprar os seus alimentos, ao passo que Clara se empenha em suas funções, por mais que resista à ideia de se tornar também a empregada do local. Em meio a acontecimentos aleatórios - e que são carregados de tensão -, como uma ida até a geladeira de madrugada, ou um passeio pelo bairro no solidão do avançar das horas (Ana é sonâmbula), vai se ampliando a percepção de que algo estranho está prestes a acontecer. Especialmente nas noites de lua cheia, momento em que o mistério aumenta.
Enigmática, a "patroa" entrega pouco sobre seu passado. Quando ela encontra uma amiga no shopping esta parece querer evitar ao máximo qualquer contato. Não há namorado ou família presente - o seu aniversário é de uma solidão devastadora. Tanto que Ana convida Clara para uma cerveja nessa noite. Ambas se aproximam, a amizade salta para um algo a mais. É mais um tema que se instala na narrativa. Mais um ponto de quebra de lógica, daqueles em que há confluências entre polos opostos. Como um todo, a obra parece ser uma ampla alegoria sobre distancias que aproximam, sobre segredos que vêm à tona, sobre castelos contemporâneos de conto de fadas urbano. Novamente dá pra se dizer que não há facilidades: há sugestões, gestos, pontas que escapam e que nos encontram. A cena em que Clara vai a um bar, por exemplo, talvez parecesse apenas deslocada se não fosse esse um filme que discute, nas entrelinhas, temas ligados ao trabalho, aos preconceitos por baixo dos panos, ao fluxo geral da vida (quase ordinária em seu cotidiano).
Tecnicamente soberba, a obra é primorosa ao evocar no espectador sentimentos variados - e é incrível como uma simples cena em que Ana está sentada na sala de jantar, com uma ampla janela ao fundo em que se vê uma enorme lua cheia, comunique tanto. A sequência parece uma pintura e há todo um quê de artes plásticas e literatura que saltam da tela a todo instantes - como se estivéssemos em uma espécie de inesperado filme da Disney live action tão nacional quanto peculiar. Outro aspecto relevante diz respeito à trilha sonora, com as composições originais servindo quase como uma expansão do universo onírico da história. O que fica, por fim, é o elogio à capacidade de nossos realizadores de ir além da comédia Globoplay ou do suspense policial, misturando elementos de fantasia e até de sobrenatural para a construção de um universo único que jamais deixa de "conversar" com os tempos que vivemos. Como comprova o mais do que ilustrativo último ato.
Com a já habitual dramaticidade, Sharon Van Etten converte We've Been Going About This All Wrong - o seu sexto registro de inéditas em um novo veículo para expressar dolorosas confissões sobre relacionamentos, perdas e até coragem de dar a volta por cima. Na realidade, esta é quase uma tradição da artista - e um dos aspectos que mais atraem seus devotos fãs. O sofrimento, afinal, não se restringe apenas aos versos - ela é capaz de dizer coisas como Já faz um tempo desde que nos tocamos / Todas as portas se fecham / Eu vi a queda / Eu vi você desfeito / Estive escrevendo na poeira (na abertura Darkness Fades) da forma mais desavergonhada possível -, mas também às melodias econômicas e ao mesmo tempo expansivas e até a forma de cantar, flexionando as palavras ao máximo como se assim fosse possível ampliar (e tratar) as dores. Ao cabo, esse parece ser aquele disco pra ouvir numa tacada só, como uma espécie de expiação que se revolve entre sintetizadores calorosos, pianos delicados e percussão trovejante. Pode parecer meio desesperançoso para alguns paladares. Mas é tudo muito bonito, elegante, o que torna a experiência tão majestosa quanto honesta. Se preferir comece com Come Back ou Mistakes. Será difícil não mergulhar no resto.
Desigualdade social, violência, pandemia, extremismo religioso, racismo, milícia, destruição da natureza. Tudo ao mesmo tempo e agora - e nesse sentido a impressão que fica é a de que nunca foi tão necessário um novo disco de rap do Criolo como este Sobre Viver. Aliás, há todo um quê de literalidade na obra, a quinta de estúdio, já que o artista perdeu a irmã precocemente para o covid-19 há pouco menos de um ano. "Como a gente se fortalece, como a gente segue em frente? A música consegue tirar o que a gente tem de melhor, a música sempre nos dá uma segunda oportunidade" refletiu, em entrevista recente ao site Tracklist, citando o episódio, que aparece na soberba canção Pequenina (Cuidar da minha irmã, agora só em prece / Ela não tá mais aqui é que esse mundo não te merece). A propósito, o canto vigoroso e poético de Criolo, um verdadeiro mestre em misturar (e até recriar) estilos, surge com contundência em meio ao caos perpetrado por esse atual momento que vivemos - e canções de títulos autoexplicativos como Pretos Ganhando Dinheiro Incomoda Demais, Quem Planta Amor Aqui Vai Morrer e Diário do Kaos funcionam quase um diário de nossos tempos. Com participação de convidados como Milton Nascimento e Liniker, o paulistano mostra que está em ótima forma.
De: Jacques Tourneur. Com Robert Mitchum, Kirk Douglas, Jane Greer e Virginia Huston. Suspense / Noir, EUA, 1947, 96 minutos.
É ainda no comecinho de Fuga do Passado (Out of the Past), que pode ser conferido na HBO Max, que Whit Sterling (Kirk Douglas), um chefão da máfia ligado ao mundo dos jogos, relata ao detetive Jeff Bailey (Robert Mitchum) sobre a vez que apostou em um cavalo e este chegou em último lugar. "Depois disso eu investi 40 mil dólares para comprar esse cavalo e..." - nesse momento a expressão de Jeff se altera pelo que ele imagina ter sido o trágico destino do animal. "Claro, por que ao adquiri-lo eu o coloquei em uma abundante pastagem, longe das disputas, assim ele não mais me atrapalharia". Ocorre que em um filme noir esse tipo de diálogo tão prosaico quanto ambíguo pode ter bem mais do que um significado. Whit está "contratando" Jeff para que ele encontre a jovem Kathie (Jane Greer) que, o homem alega, teria tentado lhe assassinar com quatro tiros, levando-lhe ainda 40 mil dólares (olha a rima aí). "Eu não quero vingança. Eu só a quero de volta", garante o sujeito.
Nessa parte do filme já está em andamento um longo flashback de quase 40 minutos, em que Bailey relata para Ann Miller (Virginia Huston), seu interesse romântico atual, eventos que teriam ocorrido três anos antes. E que dariam conta de seu passado misterioso e cheio de segredos que, agora, parecem prontos à vir à tona. Tentando fugir daquilo que deixou para trás, o protagonista é hoje um dono de posto de gasolina em uma pacata cidadezinha do interior - um cenário tão idílico e silencioso que até o funcionário do posto é um garoto surdo e mudo (Dickie Moore). Só que a calmaria é interrompida com a chegada de um certo Joe Stephanos (Paul Valentine), que será a deixa para um inesperado reencontro com a sua real identidade. Whit pretende não apenas vê-lo - ele está instalado em uma pousada junto ao Lago Tahoe, no limite entre a Califórnia e Nevada -, mas também tem para ele uma nova missão: ajudá-lo a escapar de dívidas com o imposto de renda. O que também lhe possibilitará a solução de uma série de pendências que pareciam enterradas no passado.
No relato de Bailey a Ann entenderemos que o protagonista foi atrás de Kathie, alcançando-a no México. E será lá mesmo que ele se apaixonará por ela - num romance arquetípico clássico de obras do gênero, em que o suposto mocinho se aproxima da vilã. Ou será o contrário? O caso é que no clássico de Jacques Tourneur nada é o que parece e o tempo todo temos a impressão de estarmos sendo passados para trás. Há uma beleza meio bucólica no cenário campestre - suas casas de campo, rios, pradarias e belos cenários - que formam o contraste perfeito com a dureza e a trilha de violência que acompanharemos quando o roteiro chega nos dias atuais. Bailey tentará estar um passo a frente de Whit o tempo todo. E vice-versa. Em meio aos dois Kathie é a figura enigmática, de movimento ambíguo, fazendo com o que espectador trafegue até o último segundo da trama em um universo de incertezas. Ela ama Bailey de fato? Ou está só esperando o momento certo para traí-lo?
Utilizando todos os elementos do noir clássico dos anos 40 - a fotografia escurecida, os diálogos rasgantes, as disputas surpreendentes, o passado obscuro que insiste em reaparecer, a mulher fatal, a nuvem de fumaça provocada pela quantidade absurda de cigarros fumados, as reviravoltas e traições -, o filme nos conduz em uma espiral de eventos fragmentados em que quase perdemos o fio condutor. Hábil em criar instantes de tensão - como aquele em que Whit encontra de forma "inesperada" um Bailey cheio de culpa em um hotel mexicano -, a obra ainda possui aquele senso de humor debochado, que torna a experiência ainda mais gratificante. "Você é uma folha que o vento sopra de uma sarjeta a outra", lembra o protagonista à Kathie em certa altura. O caso é que ele mesmo não percebe que, tão perto que está do objeto de sua ambição, acabará ele próprio indo para o bueiro.
De: Sebastian Meise. Com Franz Rogowski, Georg Friedrich e Thomas Prenn. Drama, Áustria / Alemanha, 2021, 118 minutos.
Pode parecer meio estranho pensar que uma Lei tão hedionda como aquela que ficou conhecida como Parágrafo 175 tenha sido revogada somente em 1994 na Alemanha. Instituída em 1871 pelo Código Criminal Germânico, ela criminalizava os atos homossexuais entre homens. Ampliada na época do nazismo, a medida passaria por diversas emendas no transcorrer dos anos, condenando dezenas de milhares de homens, num tipo de perseguição que ainda parece bastante presente, especialmente nos meios mais reacionários (como é o caso daquele churrasco dominical em família, que você participa). E é justamente essa abominação jurídica que serve como pano de fundo para o ótimo Great Freedom (Große Freiheit), filme disponível na plataforma Mubi e que foi o enviado da Áustria na última edição do Oscar. A trama revoltante nos apresenta a Hans (Franz Rogowski, ótimo, como de costume), um sujeito que é preso diversas vezes após a Segunda Guerra Mundial por cometer o "crime" de ser homossexual.
Pouco preocupado em mostrar os bastidores - ou mesmo o lado mais burocrático desses encarceramentos -, o diretor Sebastian Meise centra a narrativa no interior da prisão (nas celas minúsculas, nos pátios pouco convidativos, nos salões cheios de concreto e de estruturas metálicas) e, consequentemente, na completa falta de sentido desse tipo de detenção. Especialmente para quem já vinha de uma longa estada em campos de concentração. Andando aqui e ali em meio aos outros presos, Hans estabelece algum tipo de relação com Viktor (Georg Friedrich), o assassino com quem divide a cela. E por mais deformada que essa amizade pareça, será justamente ela que fará com que o protagonista não perca completamente a sua humanidade. Aos trancos e barrancos, em meio a encontros e desencontros, a dupla se ajudará, seja fornecendo um cigarro ou improvisando uma tatuagem. E, bom, não é preciso ser nenhum adivinho pra saber que essa parceria poderá avançar para algo a mais, especialmente em um contexto de tão profunda solidão.
Ao cabo, trata-se de uma obra sobre empatia. Sobre compreender e respeitar o outro. E até sobre amor. Por maiores que sejam as diferenças. Com sutileza, Meise vai pincelando a experiência com pequenos instantes que denunciam o absurdo do comportamento preconceituoso - e não deixa de ser curioso notar como a prisão por homossexualidade é capaz de provocar reações mais exacerbadas do que aquelas que envolvem crimes reais. Da mesma forma, o diretor pontua os avanços da dupla central de forma econômica, apostando em gestos, em olhares ou em pequenas atitudes que vão clareando o todo - tudo com ambiguidade, sem nunca parecer exagerado. E mesmo os saltos narrativos - o filme se passa em três linhas temporais diferentes, em 1945, 1957 e 1969 -, ocorrem de forma bastante orgânica, com os eventos de cada período servindo para fortalecer a ideia que a obra pretende difundir. E nunca é demais lembrar do quão bizarro é criminalizar alguém por amar/gostar/ter desejo por alguém do mesmo sexo.
Tecnicamente bem executado, o projeto até se arrisca mais em um ou outro plano sequência ou mesmo no uso da luz (ou da falta dela) como um recurso quase sufocante em alguns momentos - embora em linhas gerais tudo seja muito discreto, econômico (a trilha sonora, por exemplo, quase inexiste). Mas o destaque mesmo são as interpretações, a entrega dos atores - e Rogowski mais uma vez dá um verdadeiro show em sua capacidade de comunicar muito com seu esguio corpo ou mesmo com seus olhos oblíquos, o que amplia a percepção acerca de sua versatilidade. No fim esta é uma obra de resistência, de pacificação, uma espécie de ode ao progressismo, que avança para uma nota mais otimista ao final, ainda que não haja exatamente uma grande surpresa nesse contexto. Vencedor do Prêmio do Juri na mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes, o filme vem para comprovar a qualidade da safra internacional desse ano.
Ok, já é possível afirmar com segurança que estamos devidamente "arcadefirezados" com o lançamento do belo WE - que deixa para trás a má impressão provocada pelo anterior Everything Now (2017), que foi uma espécie de nota menor na discografia do Arcade Fire. Com quase 20 anos de estrada é óbvio que os canadensesnão são mais os mesmos da época de Funeral (2004) - e essa maturidade parece ser meio palpável na sobriedade das melodias, que talvez estejam um tom abaixo da anarquia evocativa de Rebellion (Lies) ou Neighboorhood #2 (Laika). Só que isso não significa perda de gás ou de personalidade. Aliás, com o mundo como está - com pandemia, guerras, dependência digital, extremismo político de direita e outras dores pessoais dos próprios integrantes -, a banda encontra nessa nova leva de canções o veículo perfeito para discutir as tantas incertezas quanto ao futuro. "Combata a febre com TV / Na idade em que ninguém dorme / E as pílulas não fazem nada por mim /Na era da ansiedade", entoa Win Butler já na fantasmagórica abertura Age of Anxiety I. É só um aperitivo do que está por vir. Até o dia clarear o caminho será tortuoso. Mas com a beleza habitual, o coletivo joga luz até mesmo nos instantes mais sombrios. E nisso, vamos combinar, eles são mestres.
De: Jay Duplass e Robert Cohen. Com Bridget Everett, Jeff Hiller, Murray Hill e Mike Hagerty. Comédia / Drama, EUA, 2021, 190 minutos.
Filmes e séries sobre desajustados sociais tentando se encaixar nesse mundo costumam render ótimas histórias - como comprova Alguém em Algum Lugar (Somebody Somewhere), uma das estreias do semestre na HBO Max. Com apenas sete episódios, a minissérie nos conduz ao coração dos Estados Unidos - mais precisamente no Estado do Kansas -, onde somos apresentados à Sam (a ótima Bridget Everett) mulher de meia idade que vive uma vidinha ordinária em uma cidade pacata, daquelas típicas do interior. De luto pela morte de uma de suas irmãs - em circunstâncias não muito claras -, Sam alterna sua existência entre um trabalho não muito empolgante e os conflitos familiares que envolvem sua irmã mais nova Tricia (Mary Catherine), seu pai Ed (Mike Hagerty) e sua mãe Mary Jo (Jane Drake Brody), gravitando também em seu entorno o cunhado Rick (Danny McCarthy) e outras figuras excêntricas.
Produzida pelos irmãos Jay e Mark Duplass (aliás, foi o que me atraiu para a série), a atração faz lembrar os filmes de Todd Solondz, mas com um pouco mais de otimismo. Sam, por exemplo, a despeito da mesmice e da resignação de seus dias, parece encontrar uma motivação para viver quando faz amizade com Joel (Jeff Hiller), colega de trabalho que se apresenta como um antigo colega de classe da protagonista. Aos trancos e barrancos eles vão vivendo, persistindo e encontrando na paixão pela música um ponto em comum - e não é por acaso que sequências como aquela em que a dupla canta Piece of My Heart da Janis Joplin sejam tão evocativas já que, ao cabo, a série nos faz lembrar que a arte também serve para nos socorrer nos momentos mais desalentadores. Aliás, há no último episódio uma outra sequência daquelas para guardar no coração, com Sam e Joel, acompanhados também de Fred (Murray Hill), entoando mais uma linda canção.
Sim, em um ou outro momento bate aquele sentimento de "ok, pra onde esse negócio vai me levar, afinal?", mas quando a gente percebe está rindo e se emocionando com aquelas figuras tão deslocadas, tão à margem, apenas por não se encaixarem em um certo padrão. Ou, minimamente, por não agirem como o esperado. Tricia, por exemplo, paga vale como representante da família de bem, temente à Deus, empresária de uma pequena loja de quinquilharias, que sequer percebe que o próprio marido (que às vezes mais parece o filho) a trai com a sua sócia. Todos eles arrogados como bastiões da moral e dos bons costumes. É esse tipo de incongruência que denuncia a hipocrisia da pequena cidade, da vida em comunidade, que se sobressai em cada fresta da narrativa, que aproveita seus acontecimentos pouco convencionais para discutir temas distintos, como, poder da amizade, culpa católica, vida de aparências e fuga do passado - com um olhar de incertezas para o futuro.
E, nesse sentido, é difícil não se identificar. Alternando ótimas piadas travestidas de comentários sociais - como na cena em que Sam e Fred estão decidindo em qual igreja entrar, se deparando com quatro opções distintas na mesma quadra -, com fragmentos mais comoventes, como os encontros recheados por música, a série é um prodígio sobre dizer muito, com pouco. Há uma mistura de vidas rurais - e de agricultura mesmo -, que se entranham em famílias conservadoras que vão se colidindo até encontrar força para persistir na amizade, nos encontros inusitados, no aleatório que dá cor a experiência. É algo trágico, sensível, nostálgico e engraçado em medidas iguais, condição ampliada pela fotografia empastelada, pelos figurinos interioranos e opacos e pelo comportamento geral meio torpe. Mas quando a gente vê já tá encantado e torcendo para que todos aqueles desajustados se encontrem no caminho. Nunca é tarde, afinal, para (re)começar. E sair da letargia dos dias.
De: Thomas Stuber. Com Franz Rogowski, Sandra Hüller e Peter Kurth. Drama, Alemanha, 2018, 126 minutos.
Corredores, empilhadeiras, caixas, estrados. Uniformes, crachás, registros de ponto. É possível encontrar algum tipo de "emoção" na rotina tão repetitiva do dia a dia em um supermercado? Há alguma beleza possível nesses espaços de bastidores de compras? Em pacotes de alimentação e em produtos de limpeza? Bom, por mais paradoxal que isso pareça, o diretor Thomas Stuber prova, com Nos Corredores (In den Gängen), filme baseado em conto de Clemens Meyer, que há. Apostando em ângulos de câmera pouco óbvios, em uma iluminação discreta, em um desenho de produção tão sutil quando grandioso - o que não é afinal um depósito senão um amontoado de objetos agrupados de forma mais ou menos ordenada? - o realizador nos contará a história de Christian (Franz Rogowski), um sujeito taciturno, de poucas palavras, mas bastante observador, que começa a trabalhar no turno da madrugada em um supermercado.
Como em qualquer novo local, ele passa pelo seu "batizado" - as brincadeiras e a impaciência de seus novos colegas, os pequenos ensinamentos -, com uma resignação que parece saltar de seus olhos curiosos. Circulando pelos corredores, aprendendo a dirigir a empilhadeira, se atrapalhando, avançando, pegando um café aqui e ali, a vida ao seu redor vai acontecendo sem grandes novidades. Ao espectador a experiência do tédio e do enfado é consolidada em movimentos que se repetem - como nas sequências insistentes em que Christian veste seu uniforme de forma quase robótica (sensação ampliada pelos cortes secos) -, e pela pouquíssima engenhosidade que envolve o trabalho, afinal, lá pelas tantas o protagonista se familiarizará com aquilo para o qual foi contratado. E, o que mais? Algum segredo sobre o passado? Quais os motivos de tanto silêncio? De tanto ouvir e pouco se manifestar? Pra quê tantas tatuagens? Qual o sentido afinal dessa existência tão ordinária quanto solitária?
Sem muita pressa, Stuber vai entregando as pistas aos poucos, misturando aqui e ali fragmentos de obras distintas como a francesa O Valor de Um Homem (2015) ou a mexicana Almacenados (2015) - ambas sobre o universo do trabalho -, em que não muito acontece, mas quando nos damos conta, estamos diante de uma ampla reflexão sobre ressocialização, relação empregado e patrão, oportunidades, entre outros. Em Nos Corredores há um carismático superior, no caso o veterano Bruno (Peter Kurth), que parece ficar preocupado com a chegada de Christian (estaria ele sendo descartado?), e uma colega de trabalho misteriosa, chamada Marion (a sempre ótima Sandra Hüller), que despertará enorme curiosidade no protagonista. Qual é, afinal, a história da mulher? O que lhe move? Qual o diálogo possível com uma colega? É flerte ou é amizade? São tantas as pequenas perguntas que careceriam de enormes respostas que é praticamente impossível ficar alheio a um projeto desse tipo.
Em entrevistas para o Festival de Berlim, onde o projeto foi exibido, o diretor explicou que a "solidão é um aspecto muito importante no cinema" - e talvez aí esteja a chave. No caso de Christian há um detalhe interessante que é como ele vive a solidão: de forma resiliente, manifestando pouco sobre seus sentimentos, sendo feliz em pequenos instantes, como se tateasse em piso desconhecido. Quem assiste fica meio que no vácuo, mas vai sendo agraciado aqui e ali com um ou outro comentário ou alguma reflexão que contribuirá para fazer o encaixe narrativo. Toda essa intenção sendo ampliada por um ótimo uso da trilha sonora - que em muitos casos surge de forma diegética, o que forma uma espécie de balé mecânico meio aleatório nesse vai e vém cotidiano. Ainda assim, vale mencionar: trata-se de uma experiência absolutamente aberta, o que talvez desagrade alguns paladares. Já quem se aventurar, certamente irá se identificar com essa a dura ideia de que a nossa existência ocorre, em grande parte, em meio a cubículos fechados, equipamentos frios e relações pouco profundas.
De: Mary Lynn Bracht. Editora Paralela, 2020, 306 páginas.
O contraste entre a beleza poética da escrita e o argumento comovente é uma das marcas do imperdível Herdeiras do Mar, meu primeiro contato com a obra de Mary Lynn Bracht. Trata-se de um livro duro, quase indigesto, mas que apresenta uma história que é, para muitas pessoas, desconhecida - no caso, sobre as jovens coreanas que, durante a Segunda Guerra Mundial, foram enviadas para regiões longínquas para servirem como "mulheres de consolo" para soldados japoneses. Sim, essa experiência repugnante é vivida por Hana, que é conduzida à região da Manchúria por Morimoto - um soldado japonês linha dura que sequestra a jovem quando ela tinha apenas 16 anos. Sob ocupação japonesa Hana é considera, em sua Coreia natal, uma cidadã de segunda classe, com pouquíssimos direitos. Ainda assim ela orgulha-se em ser uma haenyeo, como são conhecidas as mulheres que trabalham no mar como mergulhadoras marinhas - atividade tão perigosa quanto lucrativa.
Em seu ofício, realizado na Ilha de Jeju, Hana segue de perto os passos da mãe, encarando sua rotina com independência e coragem. Ela também é responsável por Emi, sua irmã sete anos mais nova - o zelo envolve jamais deixa-la sozinha, especialmente em meio às rotinas da praia. Só que em certo dia, um instante de desatenção selaria o destino de Hana que, para proteger sua irmã, praticamente se deixa capturar por Morimoto. Levada ao bordel militar, ela sofrerá as mais duras atrocidades e os mais cruéis abusos sexuais e psicológicos. O sonho de reencontrar sua família é o que a mantém, enquanto encara a seu doloroso dia a dia. Com idas e vindas no tempo, a obra se alternará entre os eventos do passado - no caso o verão de 1943 - e os do futuro, em dezembro de 2011, com Emi, agora aos 77 anos, ainda sonhando com a perspectiva de reencontrar sua irmã. Aliás, por vergonha, ela mantém o ocorrido em segredo dos filhos Hyoung e Yoonhui, o que impactará a vida de todos quando as verdades começarem a vir à tona.
Ao cabo, Herdeiras do Mar pode ser uma jornada tão exaustiva quanto recompensadora. É um livro oportuno sobre o absurdo da guerra, escrito com maestria, e que mantém o suspense até as últimas páginas. Das tentativas de fuga de Hana ao empenho de Emi na busca por informações, a jornada das irmãs é narrada em meio a devaneios febris sobre o passado, num quase flerte com o realismo mágico. Enfraquecida, exaurida, mal alimentada, Hana sofre um processo de desumanização que lhe condiciona a ser "apenas" alguém destinada a satisfazer sexualmente um grupo de boçais. Em trens em que não se sabe o destino e em bordeis, Hana fará amizade - ou algo perto disso - com outras jovens, como é o caso de Keiko. O apoio entre elas, as poucas trocas de palavras, a sororidade, o comportamento empático também contribuirão para que Hana não esmoreça. Com as esperanças sendo renovadas após ela ser enviada para a Mongólia.
Em uma das tantas belas passagens, Hana se isola em sua própria imaginação, se enxergando mergulhada nas profundezas de um oceano, evadindo-se de seu entorno. "Ela aprende a prender a respiração quando um soldado invade seu corpo, e sente como se estivesse lutando para respirar antes de emergir à superfície em busca de ar. Nunca olha os homens no rosto. É melhor nem sequer pensar neles como pessoas. Em vez disso eles são máquinas enviadas a ela ao longo do dia. Ela se concentra na promessa de que tudo vai acabar, porque sempre acaba, e então dorme. Consegue controlar sua mente e escolher o que permite que a invada." São instantes sublimes, quase delicados como este, que servem para evidenciar as contradições entre o evocativo do texto, redigido com grande sensibilidade, e o martírio da história. Uma simples vaca sofrendo em meio ao pasto pode ser uma metáfora para a dor de Hana. Que só será extirpada na marra, à força. Bracht fez um trabalho magnífico em sua estreia. Uma experiência envolvente, inquietante, aflitiva e sensorial, um verdadeiro documento histórico que evidencia a misoginia, especialmente em tempos de guerra, em meio a outros absurdos do processo de colonização.