terça-feira, 29 de outubro de 2024

Cinema - A Garota da Vez (Woman of the Hour)

De: Anna Kendrick. Com Anna Kendrick, Daniel Zovatto e Autumn Best. Suspense / Policial / Drama, EUA, 2024, 94 minutos.

Uma jovem resolve participar de um programa de auditório no estilo Namoro na TV e, após uma bateria de perguntas e respostas com três candidatos, ela dá o veredicto e seleciona aquele que parece ter mais afinidade. Só que tem um pequeno probleminha: o escolhido é um serial killer doentio, responsável pela morte de quase uma dezena de mulheres na década de 70. Ela não sabe. Ninguém da produção sabe. E se não fosse inspirada em fatos reais, vamos combinar que A Garota da Vez (Woman of the Hour), que está em cartaz nas salas de cinema do País, quase penderia para o excessivamente excêntrico. Mas o fato aconteceu e, em tempos de forte apelo no subgênero true crime, esta pode ser mais uma história a encontrar seu público. Ainda mais com esse tipo de produção servindo como ferramenta acessória para o relevante debate a respeito do combate a violência contra a mulher - que pode surgir de forma inesperada.

E aqui, bota inesperada nisso. Porque por mais que Rodney Alcala (o ótimo Daniel Zovatto) pudesse emanar uma energia de celibatário involuntário virjão que, nos dias de hoje, passaria horas intermináveis em fóruns online (ou no Twitter) atacando mulheres aleatórias, o caso é que investigadores relatam que o assassino em série não chegava a parecer um sádico monstruoso, que tava com defeito na bússola moral. E que, por isso, estuprava e assassinava suas vítimas sem um pingo de remorso. Autor do livro The Killing Game: The True Story of Robert Alcala, o escritor conta que Cheryl Bradshaw (Anna Kendrick) havia simpatizado com ele, durante o programa, justamente pelo seu estilo leve, de respostas rápidas e inteligentes - especialmente por ele se apresentar como um fotógrafo, fã de motocicletas e de viagens. "Ele era charmoso e carismático", contou o promotor Matt Murphy, que trabalhou no caso.

 

 

Em partes, ainda que não se aprofunde tanto em detalhes sobre a personalidade de Alcala - alguém que, aparentemente, matava apenas pelo prazer de matar, já que não possuía histórico de abuso infantil, de abandono parental ou mesmo o diagnóstico de qualquer problema psiquiátrico mais severo -, o filme, a estreia de Kendrick na direção, realiza idas e vindas no tempo para mostrar como o serial killer atraía suas vítimas, sempre de câmera fotográfica na mão, se apresentando como uma espécie de profissional da área (o que era a desculpa perfeita para conduzir as mulheres a locais ermos com o pretexto de clicá-las). Já em outra linha do tempo, Cheryl é uma aspirante a atriz que está ficando enfastiada com o machismo galopante dos bastidores - é o final dos anos 70 -, e que vê no programa The Dating Show uma oportunidade para ter algum tipo de visibilidade para, quem sabe, chegar à indústria.

Apostando em contrastes, Kendrick filma as vívidas cenas de bastidores do programa de TV com aquele tom pastel típico de produções dos anos 70, com a fotografia mais saturada - com os diálogos com homens limítrofes quase soando excessivamente caricatos (mesmo com a ação se passando cinquenta anos atrás). Já nas cenas que envolvem Alcala e suas vítimas, a construção do suspense é bem executada e a gente consegue, de fato, ficar tenso - especialmente diante dos silêncios prolongados e do senso de isolamento e de desolação que antecede a tragédia (mesmo ao ar livre e de dia há um clima sombrio onipresente. "Qual de vocês que vai me machucar?" é a pergunta sugerida por uma mulher da produção à protagonista, num daqueles trocadilhos sobre frases que podem ser ditas em um programa estilo namoro na TV ou em um date com um assassino em série. São jogadas inteligentes que fortalecem a narrativa, tornando a coisa mais instigante do que poderia ser.

Nota: 7,5 


segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Novidades em Streaming - O Homem que Amava os Discos Voadores (El Hombre que Amava a los Platos Voadores)

De: Diego Lerman. Com Leonardo Sbaraglia, Sergio Prina e Mónica Ayos. Comédia / Drama, Argentina, 2024, 102 minutos.

Em tempos de proliferação de notícias falsas - e de seu inegável caráter prejudicial para a vida em sociedade -, não deixa de ser meio ambíguo o sentimento ao assistir à comédia O Homem Que Amava os Discos Voadores (El Hombre que Amava a los Platos Voadores), obra de Diego Lérman que acaba de estrear na Netflix. Se por um lado há aquele charme tradicional do cinema dos hermanos, dos lugares, dos sotaques e do caráter excêntrico da história - sobre um sujeito que cria um verdadeiro circo midiático em cima de objetos voadores não identificados que simplesmente não existem -, não deixa de incomodar uma certa condescendência com o protagonista que, a despeito de tentar enganar a sua audiência, é tratado como uma espécie de anti-heroi carismático que, por conta de sua paixão pelo jornalismo (e pela TV), faz de tudo pra entreter.

Sim, se a gente conseguir prestar atenção apenas no componente lúdico da coisa toda, talvez seja mais fácil digerir a história inspirada em fatos reais de José de Zer (Leonardo Sbaraglia, que geralmente é ótimo, mas aqui parece meio caricato, talvez de forma proposital), um repórter de um pequeno canal de televisão dos anos 80, que vê a oportunidade de aumentar o ibope a partir de uma história sobre supostos fenômenos extraterrestres ocorridos no interior. Sabe quando surge no meio do pasto ou em um descampado uma daquelas manchas arredondadas misteriosas, que ninguém sabe muito bem explicar (até porque perguntar a um engenheiro agrônomo ou a um biólogo quebraria o encanto) e que "queimam" a grama? Tipo as do filme Sinais (2002)? É esse o ponto de partida da perseguição de der Zer, que vai até o local em que o fenômeno está acontecendo, na província de Córdoba, para entrevistar moradores e procurar evidências, na tentativa de comprovar a tese estapafúrdia.


 

Claro que a coisa começa pequena, mas diante do burburinho e do aumento nos números da audiência, o sujeito vê ali a oportunidade de dar uma de Chuck Tatum, o protagonista de A Montanha dos Sete Abutres (1951), encarnado com paixão desmesurada por Kirk Douglas. Só que enquanto no clássico de Billy Wilder o protagonista - um jornalista de caráter meio duvidoso -, leva a situação de um homem preso em uma caverna ao limite para garantir a audiência, aqui a manipulação, a chantagem e a personalidade invariavelmente mitômana do protagonista, são encaradas com uma leveza desconexa e uma graciosidade meio torta. Sim, muito provavelmente de Zer era esse sujeito capaz de dobrar as pessoas, seduzindo-as para aparições em gravações falsas, sensacionalistas e cheias de mentiras, mas ao ignorar o caráter nefasto da prática, o que possibilitaria um debate mais relevante sobre o tema, a obra fica apenas no rasinho.

Ok, eu entendo que nem toda a produção precisa ser um tratado antropológico e social da vida moderna - e aqui estamos falando dos anos 80 e basta lembrar como era a nossa própria televisão nos anos 90 (com direito a entrevista com falso PCC, logo depois da prova da banheira), para lembrarmos que a mentira e a engambelação pela audiência não é de hoje. Só que os tempos mudaram demais pra esse pano seguir sendo passado. Mentir sobre ETs inexistentes pode ser o ponto de partida para paranoias, teorias da conspiração e alienação cavalar - e eu não quero ser o xarope que fica procurando caso em comédia boba. Mas o fato é que esse sujeito existiu de verdade. E falseou notícia de verdade. Como jornalista de formação é meio difícil ficar indiferente. E só encarar como um entretenimento. Há pontos satisfatórios que bordejam os limites entre o real e a ficção - na própria parte técnica, com o flerte com o surrealismo e o aspecto abstrato da coisa toda. Só que não é suficiente. Ao dar voltas e voltas em torno de um pedaço de mato queimado que deveria ser ponto de pouso de alienígenas, o filme ainda por cima aborrece. E se estende mais do que o necessário. Uma pena.

Nota: 4,5


terça-feira, 22 de outubro de 2024

Cinema - Robô Selvagem (The Wild Robot)

De: Chris Sanders. Com Lupita Nyong'o, Pedro Pascal, Kit Connor e Catherine O'Hara. Aventura / Animação, EUA, 2024, 102 minutos.

Vamos combinar que, nos tempos atuais, o cinema de animação não quer e nem precisa reinventar a roda. Salvo algumas raríssimas exceções, em geral produções do gênero se esmeram em entregar o melhor em termos de tecnologia (e de imagem), que servirá de base para narrativas edificantes, que se alternarão entre histórias de amadurecimento, de aceitação, de respeito ás diferenças ou de superação de dificuldades. Mesmo que as obras sejam para os pequenos, as produtoras têm se esforçado em lembrar esse público de que a vida não é só alegria: a gente vai sofrer, chorar, se indignar, se arrepender. Rupturas ocorrerão - a morte também. É preciso estar preparado para enfrentar os desafios de existir e experiências como Robô Selvagem (The Wild Robot) - que pinta como um dos favoritos à categoria Animação no próximo Oscar - funcionam como alegorias perfeitas para isso.

Pra começar trata-se de uma animação bonita de se ver - ela tem um traço vívido, que quase a aproxima dos filmes japoneses. Depois tem a narrativa de desenvolvimento sobre um robô modelo Rozzum que, após um aparente acidente aéreo, fica preso em uma ilha onde precisará aprender a sobreviver. E, por fim, há o carisma irresistível dos personagens - da protagonista Roz (Lupita Nyong'o), passando pela raposa Fink (Pedro Pascal), que se tornará uma espécie de inesperada amiga naquele cenário, até chegar à Pinktail (Catherine O'Hara), uma mãe gambá que parece meio perdida em meio a tantas ninhadas (a ponto de sequer dar bola no caso de alguém se "perder"). Aliás, será justamente Pinktail que dará a barbada sobre como criar o pequeno filhote de ganso Brightbill (Kit Connor), que se torna órfão após perder a sua família biológica justamente por uma fatalidade, envolvendo a própria Roz (que fugia de um urso).

 

 

Em linhas gerais essa também é uma obra sobre aprendizado. Sobre acerto e erro. E que vale também para os adultos - e as variadas piadas sobre os desafios da maternidade parecem ser justamente um aceno (ou um afago mesmo) para os adultos que, em muitos casos, acompanharão a sessão ao lado de seus pequenos. Roz admite que não "sabe ser mãe" - algo que não estaria em sua programação original. Mas o caso é que, quem sabe? Quando cai na ilha, a protagonista é tratada como uma espécie de monstro pelos demais animais - grandes ou pequenos, selvagens ou não. Todos fogem ou saem correndo, por mais amistosa que a grande engenhoca seja, sempre oferecendo seus préstimos com gentileza. Compreender o outro, seu espaço e as diferenças será um exercício de paciência. Primeiro, aprender a língua dos outros. Depois conhecer seus hábitos. Por fim, estabelecer um diálogo, um vínculo, uma aproximação.

Roz perceberá que o mundo selvagem não é fácil, justamente quando seu pequeno Brightbill sofrer preconceito - ele tem alguma deficiência que lhe impede de crescer normalmente como os demais. O que poderá comprometer o seu futuro já que a chegada do inverno de avizinha e será necessário aprender a voar o quanto antes, para que ele possa acompanhar as demais aves no processo migratório. E será essa jornada que assistiremos. As dificuldades, os medos, as incertezas. Ao cabo esse é o tipo de produção que faz com que a gente engula em seco e mareje os olhos em vários momentos (sendo um, em especial, aquele que envolve a primeira entrada de Brightbill na água e a sua dificuldade de nadar). Aprender não é fácil. É preciso repetir. E tentar e tentar. Pode parecer um papinho meio de coach, mas para as crianças pode ser legal perceber que não nascemos sabendo. E que levaremos muitos tombos. A maioria das animações mexem justamente nesse foro mais íntimo. E talvez seja por isso que nos comovem tanto.

Nota: 8,5


Pitaquinho Musical - Jamie xx (In Waves)

Nove anos separam o primaveril In Colour - que foi o nosso sétimo colocado na agora longínqua lista de melhores discos internacionais de 2015 -, de In Waves, o segundo trabalho do produtor britânico Jamie xx. Claro que o músico não parou durante esse tempo, contribuindo com diversos artistas, entre eles Romy e Oliver Sim, seus companheiros no The xx, que também lançaram projetos solo. Mas já faz muito tempo do último registro. E a realidade é que muita coisa aconteceu - de pandemia à guerras, passando por avanços tecnológico e crises políticas globais. E em meio a isso as pessoas ficando meio paralisadas, doentes e solitárias - mas também em busca de alguma válvula de escape. E é aí que entra a música e seu poder. De possibilitar a dança, mas também a imersão. A conexão com algo. Com pessoas. Com ideias. Com imagens mentais. E acho que Jamie xx faz essa ponte como poucos.

 

 

É meio curioso notar como as suas canções emergem ideais para a turbulência das pistas, em meio a algum tipo de transe ou catarse coletivas - possibilitadas pelos sintetizadores urbanos e pela polidez vítrea -, ao mesmo tempo que também parecem funcionar bem para o consumo solitário, em meio a alguma madrugada quente, que avança rumo ao raiar de um novo dia. É uma música ao mesmo tempo minimalista, que é quase um mantra aveludado e levemente tenso (como na abertura Wanna, que faz a apropriada transição do trabalho anterior para a ambientação mais selvagem deste), mas também elaborada, como no single Waited All Night, que justamente tem Romy nos vocais. "As pessoas precisavam dançar, sair de casa, se encontrar" chegou a comentar o artista em entrevistas, ainda no pós covid-19. O resultado desse conjunto parece todo depositado aqui: enérgico e quente (Baddy on the Floor), mas também primaveril e suave (The Feeling I Get From You). Difícil ficar alheio.

Nota: 9,0


segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Novidades em Streaming - Os Horrores de Caddo Lake (Caddo Lake)

De: Celine Held e Logan George. Com Eliza Scanlen, Dylan O'Brien e Lauren Ambrose. Drama / Suspense / Ficção Científica, EUA, 2024, 99 minutos.

Taí um filme que, por conta do roteiro mirabolante e com algumas surpresas, deve suscitar um sem fim de teorias malucas ou ainda uma série de vídeos de canais cinéfilos presunçosos que, supostamente, terão a explicação "definitiva" para aquilo que assistimos. Bom, Os Horrores de Caddo Lake (Caddo Lake), obra que está disponível na plataforma Max, foi produzido por M. Night Shyamalan - e dá pra sentir, em alguma medida, o DNA da filmografia do indiano na trama meio rocambolesca sobre uma criança que desaparece (e sobre adultos tentando encontrar alguma lógica naquele sumiço). No mais, para além da história a respeito de perda, luto e de pessoas tentando sobreviver em um ambiente meio inóspito, há uma boa construção do suspense, que poderá impactar aqueles que não estão menos preocupados com as reviravoltas e mais com a ambientação. Com o clima. Com aquilo que parece que gera medo para além do medo em si. Uma coisa meio simbólica. Imaginária.

Aliás, interessante notar como os filmes de suspense - ou de terror - costumam utilizar de forma eficiente o lago, o rio, a cachoeira, a floresta ou os elementos da natureza. Quanto mais inóspita, mais aterrorizante aparentará. Mais fechado, mais denso o arvoredo, mais melancólico e sombrio parecerá o entorno. No filme dos diretores Celine Held e Logan George ainda há um agravante: o lago que dá nome ao título baixou. E deixou evidente uma espécie de pântano, com galhos retorcidos, água essencialmente turva (e meio marrom) e uma sensação geral de estranhamento, que parece ampliada pelo fato de Paris (Dylan O'Brien) ser justamente um funcionário de uma empresa que trabalha na limpeza de canos e equipamentos junto a uma barragem do manancial, que se localiza no limite entre os estados de Louisiana e Texas. Paris tem um perfil meio taciturno, que se explica pelo fato de ele ter perdido a mãe após um trágico acidente em que ela perdeu controle do veículo, justamente sobre a ponte do lago - o que a levou a morte por afogamento.


 

Em paralelo a história de Paris acompanhamos uma segunda linha narrativa, onde somos apresentados à jovem Ellie (Eliza Scanlen), que tem uma turbulenta relação com sua mãe Celeste (Lauren Ambrose), o que envolve o desaparecimento do seu pai, no passado, em circunstâncias misteriosas. E como se tudo já não fosse tenso o suficiente - as brigas podem emergir de situações banais -, tudo piora quando Anna (Caroline Falk), a meia-irmã de Ellie de apenas oito anos, desaparece nas proximidades do lago. Anna será encontrada, sozinha, em meio ao pântano lodoso. Com tudo se tornando mais e mais curioso com o surgimento de animais improváveis, de mariposas já extintas e de barulhos que parecem vindos do além. Ali pelas tantas as histórias vão se cruzar e, bom, muito mais do que isso é meio difícil de falar, sob pena de estragar a experiência.

O caso é que esse é aquele tipo de filme que pode irritar um pouco o espectador que espera que tudo seja mais mastigadinho - com início, meio e fim bem definidos. Mas que poderá ser bem aproveitado se não houver uma fixação nisso. Não precisamos compreender tudo, afinal. Porque o que nos pega aqui é a experiência nebulosa sobre passado, presente e memória. E a tentativa de seguir em frente quando tragédias acontecem. Aqui e ali esse pode ser um projeto que acena - ainda que discretamente - para questões ambientais, já que as coisas ficam bastante estranhas justamente quando a água baixa (e a seca se torna irrefreável). Mas o principal é a instabilidade ilógica. As idas e vindas com os pequenos botes, que se lançam em estreitos e labirínticos córregos de água baixa, suja e rodeada por uma vegetação invasiva, que pode fazer as pequenas embarcações travarem. Voltas e voltas dentro da floresta enorme. E uma história que se amarra em dramas humanos, perdas e abandonos e uma certa necessidade de suspensão da descrença. Dá pra curtir de boas em uma noite descompromissada.

Nota: 7,5


quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Novidades em Streaming - No Lugar da Outra (El Lugar de la Otra)

De: Maite Alberdi. Com Elisa Zulueta, Francisca Lewin e Marcial Tagle. Drama / Policial, Chile, 2024, 92 minutos.

O conceito de liberdade para as mulheres está no centro da discussão do envolvente No Lugar da Outra (El Lugar de la Otra) - o enviado do Chile para a categoria Filme em Língua Estrangeira para o Oscar 2025, e que acaba de estrear na Netflix. O que é, afinal, ser uma mulher livre? Hoje em dia esse ideal poderia ser exemplificado pela capacidade delas em serem reconhecidas como seres ativos, pensantes e com vontades próprias - que reivindicam ainda seus direitos como cidadãs. Claro, as concepções por trás podem ser muito mais complexas, mas o que se sabe é que nem sempre foi assim - e décadas atrás era mais comum o controle de corpos, vozes e mentes, que convertiam as mulheres em sujeitos passivos na sociedade. No filme da diretora Maite Alberdi - do tocante documentário A Memória Infinita (2023), nominado ao Oscar no ano passado -, a trama se passa nos anos 50, no Chile. 

Sim, esse período anterior à era da "lacração"  - e que muitos extremistas de direita redpillados sonham com o retorno - é justamente aquele que relega mulheres à condição de donas de casa obedientes, que ocuparão seus dias cuidando da casa, dos filhos e das refeições dos demais (muitas vezes homens infantilizados, que parecem incapazes de sobreviver se não houver uma mulher na cozinha ou no tanque). E o mais curioso é o fato de que, quando essa obra inicia, com um crime bárbaro - no caso, o assassinato de um homem em pleno salão de chá do famoso hotel Crillón, de Santiago -, temos a impressão de que acompanharemos um thriller passional de tribunal, que revelará aos poucos as motivações da escritora Maria Carolina Geel (Francisca Lewin) para, simplesmente, sacar a arma, à luz do dia, e na frente de dezenas de outras clientes, para matar seu amante, Roberto Pumarino Vallenzuela. Mas não.


 

Aqui, o que perceberemos é que essa história meio hitchcockiana, de sangue e tragédia na classe média alta, será apenas uma desculpa para que Alberdi avance a narrativa para além do crime de amor e vísceras - especialmente após Mercedes (Elisa Zulueta), a secretária do juiz governamental que cuida do caso, ficar obcecada pelo ocorrido. Do estranhamento inicial com os pequenos conflitos - Mercedes chega a confrontar Geel por conta de um mero cigarro solicitado -, para o fascínio diante de uma vida de glamour, intelectualidade, sofisticação e independência vivida pela assassina, será um tapa. Ainda mais pelo fato de Mercedes estar meio que de saco cheio de sua própria vidinha ordinária - sempre confinada em uma casinha minúscula, com dois filhos adolescentes e barulhentos, compartilhando ainda o espaço com o marido, um fotógrafo meio pé rapado que utiliza a própria residência da família para a produção de fotos, em um estúdio apertado e improvisado.

Então quando o juiz envia Mercedes para a residência de Geel para uma apuração lateralizada, ela fica impactada pelo que encontra - no caso, roupas elegantes, acessórios luxuosos, maquiagens, perfumes, livros. E, principalmente, uma paz. Um tipo de paz que ela, aparentemente, não lembrava de ter sentido anos antes - e que guarda semelhança com as sensações vividas pela protagonista do divertido e caótico My Happy Family (2017), filme da Geórgia que já esteve na Netflix (infelizmente não está mais). Claro que a investigação seguirá normalmente, com testemunhas sendo ouvidas e o impacto da opinião pública em estado de choque por um evento real desta magnitude, sendo invariavelmente levado em conta. Com tudo se tornando mais complexo quando Mercedes resolve fazer uma visita à ré, que aguarda por sua sentença em uma Instituição coordenado por freiras - um espaço tranquilo, quase idílico -, ao mesmo tempo em que elabora uma nova obra de ficção.

 

 

Em uma carta destinada ao amante morto, Geel, que se inspirou em outro caso ocorrido anos antes, envolvendo a romancista María Luisa Bombal, em janeiro de 1941, no mesmo local, afirmou: "Roberto, minha natureza, minha personalidade, meus passatempos, minha idade, minha experiência são contrárias ao casamento. Se adicionar uma profunda sensibilidade à equação, sempre em conflito com as coisas e os seres, e um total ceticismo sobre a vida, você aceitará que nada em mim corresponde a essa instituição". Vai ver o amante desejava algo mais sério com a escritora - o que talvez envolvesse algum tipo de castração artística que não corresponderia à sua natureza. Óbvio que isso não é motivo para sair assassinando alguém. Só que essa morte passa a ter um cunho mais simbólico - um homem que morre para que uma mulher (re)nasça -, quando Mercedes se dá conta do significado de ser uma mulher livre. Uma mulher que não precisa encerar a casa. E nem ficar aos gritos com marido e filhos desrespeitosos. Ela apenas tem paz. Alguém afinal, precisa ir até o extremo. Geel teria matado por amor? Por amor a arte? Fica a reflexão.

Nota: 8,0

Pitaquinho Musical - Exclusive Os Cabides (Coisas Estranhas)

Junte uma pitada do rock divertido da Superguidis, adicione uma dose da psicodelia moderna de grupos como o MGMT e acrescente ainda uma porção da sonoridade noventista de coletivos como Pavement ou Pixies e talvez teremos uma pequena forma de resumir o tipo de som feito pelos catarinenses do Exclusive Os Cabides. Devo admitir que, em pleno outubro de 2024, tenho um pouco de ranço de banda metida a engraçadinha - mas o caso é que o completo descompromisso do disco Coisas Estranhas, segundo do grupo, foi me cativando a cada nova audição. Sabe aquele sentimento de "já ouvi isso antes, mas parece totalmente novo" que, muitas vezes, sentimos diante de um novo álbum? Foi exatamente o que rolou aqui. Já escutei isso aqui dezenas de vezes. Mas bora lá escutar de novo.

 

 

Meio que viralizado no Tik Tok por conta do single Lagartixa Tropical (É verdade que no verão / As lagartixas tomam banho nas caixas d'água / E a gente escova os dentes e / Fica contente e sorri), o grupo é daqueles que mistura cenários improváveis, objetos inanimados, amores tortos e animais estranhos (e marinhos) em um conjunto que, curiosamente, forma uma unidade - um bloco que faz sentido. "Quase todas (músicas) têm um tema estranho ou inusitado. E a foto da capa do disco nos influenciou desde o início, inspirando o nome do álbum" resume João Paulo Pretto, vocalista e guitarrista do quinteto, no material de divulgação. Pra quem quiser começar, recomendo ir direto em Luminária de Lava. Será um caminho divertido, ensolarado e sinuoso, que alternará melancolia e bom humor de forma certeira.

Nota: 8,5


segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Novidades em Streaming - Caçula (Didi)

De: Sean Wang. Com Izaac Wang, Mahaela Park, Joan Chen e Raul Dial. Comédia / Drama, EUA, 2024, 94 minutos.

[ATENÇÃO: TEXTO COM SPOILERS DE LEVE]

Vamos combinar que essa subcategoria dos filmes sobre amadurecimento (os chamados coming of age) - que geralmente nos apresentam a jovens adolescentes atrapalhados, que não sabem muito bem como agir nesse mundo que os cobra decisões um tanto adultas, de quem ainda é meio que uma criança -, é um tanto semelhante a das comédias românticas. A gente já sabe mais ou menos o que vai acontecer com os protagonistas. Vão sofrer, chorar, querer desaparecer do planeta instantaneamente quando tudo começar a dar errado. Mas ao final vão aprender que a vida é assim mesmo, que a gente tem altos e baixos, que passamos umas vergonhas danadas, e que, por incrível que pareça, tudo vai continuar normalmente. Em alguns casos, esse tipo de obra é capaz de retratar esses jovens com uma franqueza acachapante - e é justamente esse o caso do ótimo Caçula (Didi), longa de estreia do diretor Sean Wang (que obteve certa fama recente com o curta em documentário Nai Nai e Wài Pó, que foi indicado ao Oscar).

Até mesmo pela idade do realizador - que mal completou 30 anos -, essa parece ser uma experiência bastante autobiográfica, que nos apresenta ao adolescente Chris (Izaac Wang), um menino de 13 anos um tiquinho rebelde e um tanto introspectivo que, como qualquer outro ser dessa idade, passa boa parte das horas em frente ao computador, sonhando com o dia em que dará o primeiro beijo na gatinha da escola. Sim, pode parecer meio bobinho num primeiro momento, mas é interessante notar como Wang recria o verão de 2008 - que é o período em que se passa a história - de uma forma bastante realista e evitando os clichês mais batidos do gênero. Chris é conhecido pelos seus amigos mais próximos - um deles, o carismático Fahad (Raul Dial) -, como Wang Wang, o que, mais adiante lhe exasperará, já que parece haver uma vergonha meio subjacente (ou receio de sofrer preconceito) pelo fato de ser um imigrante nos EUA.


 

Em seu quarto, aquele caos visual natural da época, com pôsteres do Paramore e do Panic! At the Disco - aliás, a banda de Hayley Williams será a desculpa perfeita para tentar uma aproximação de Madi (Mahaela Park), a menina pela qual ele está caidinho desde que a viu pela primeira vez (quem nunca teve um amor a primeira vista no colégio que atire a primeira pedra), e que deixou escapar no My Space dela que o Riot! é o disco da vez. Enquanto elabora alguma estratégia meio improvisada e evidentemente cringe - dos treze aos dezesseis somos meio especialistas nisso -, que envolve um toque de celular com alguma música do grupo como forma de tentar emplacar uma linha de diálogo, o protagonista grava filmes de qualidade paupérrima para um Youtube ainda embrionário. No Facebook também em estágio inicial, Chris nota que Um Amor Para Recordar é o filme da vida de Madi e tudo pode ser uma desculpa para conversar infinitamente no chat da AOL, naquelas tardes meio calorentas.

E ao mesmo tempo em que tudo parece um tanto simples e com aquele ar de "já vi isso antes", os acontecimentos se atropelam de forma vigorosa, indo no limite entre o desconforto, a ternura e o frenesi. Insatisfeito com os rumos que as coisas tomam - especialmente depois de uma frustrada tentativa de date com Madi -, Chris descontará sua raiva na amorosa mãe Chungsing (Joan Chen), que mantém o sonho de ser pintora e, mais ainda, na irmã mais velha Vivian (Shirley Chen), que está concluindo o Ensino Médio e não vê a hora de vazar de casa. A rota para Chris é reconfigurada quando ele se aproxima de um grupo de skatistas mais velhos que o acolhem, especialmente depois de ele se apresentar como videomaker amador (mesmo sem ter qualquer habilidade para filmar um esporte tão movimentado). É claro que, nesse universo de mentiras, de raiva do mundo, de incertezas sobre o futuro, de medos e inseguranças, de receios e tudo o mais, a chance de que tudo saia do controle é gigante. A gente tem uma dúzia de vergonhas para lembrar depois que cresce e amadurece e tudo será história. No caso de Wang, ele cria um filme em que o final feliz está em apenas existir. E ser amado pela pessoa que mais te apoia nessa idade. Comovente.

Nota: 8,5

 

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Novidades em Streaming - Levante

De: Lillah Halla. Com Ayomi Domenica Dias, Loro Bardor, Grace Passô e Rômulo Braga. Drama, Brasil / Uruguai / França, 2023, 99 minutos.

"Nessa idade ele já tem pálpebras". Em uma das cenas mais indigestas do ótimo (e perturbador) Levante, um médico - que mais parece um pastor da Igreja Evangélica - tenta demover uma jovem da ideia de fazer um aborto. Os argumentos são variados, sempre tratando um feto em formação, por mais inicial que seja uma gravidez, como um ser que irreversivelmente PRECISA nascer. Independente da vontade da mulher - dos seus desejos, dos seus projetos, dos seus planos. Algo que, aliás, em um Brasil reacionário e de fundamentalismo religioso - e que sequer tem vergonha em colocar a culpa de agressões físicas e psicológicas nas vítimas e não nos criminosos -, não chega exatamente a surpreender. E basta lembrar que um grupo de extremistas de direita se prestou a se reunir na frente de um hospital do Espírito Santo, alguns anos atrás, para protestar contra um aborto em iminência. O fato de a paciente ser uma menina de dez anos estuprada pelo próprio tio, para o cidadão de bem capixaba, não pareceu ser um grande problema.

Afinal de contas a gente sabe que uma das especialidades desses radicais que utilizam o nome de Deus para se arrogar de uma superioridade moral que, muitas vezes, sequer existe, é vigiar a sexualidade alheia. Sob a desculpa de "proteger as crianças" deixam crimes do tipo - muitos deles praticados no ambiente doméstico, por alguém da família ou por algum conhecido - correr soltos. E ainda exigem que essas mulheres - muitas delas jovens, periféricas, pobres e pretas -, sejam mães na marra. Por que talvez haja algo sobre isso na Bíblia, sei lá. No excelente filme de estreia de Lillah Halla, a jovem Sofia (Ayomi Domenica Dias) é uma promissora jogadora de vôlei. Com apenas 17 anos está sendo sondada para a obtenção de uma bolsa para a prática do esporte no Chile - e a experiência internacional pode ser importante para a sua carreira que ainda se inicia. Só que na mesma semana que ela recebe a boa notícia sobre a oportunidade no País vizinho, ela também descobre que está grávida. E, óbvio, ela não quer ser mãe. Não agora. Talvez nunca.


 

Sofia tenta, inicialmente, esconder a gravidez de todos que a rodeiam - suas colegas que integram o projeto social dedicado ao esporte para minorias (com quem ela mantém uma amizade cheia de cumplicidade) e, principalmente, de sua treinadora, Sol (Grace Passô que, como de praxe, entrega tudo em qualquer tipo de papel, por mais minimalista que seja). Em relação ao seu pai - o apicultor João (Rômulo Braga) -, ela também evita o tema até o limite possível. Enquanto isso tenta encontrar uma solução, qualquer que seja, em um País que não costuma tratar situações do tipo como casos de saúde pública. Pautados pela ciência. Quando vai para a internet pesquisar sobre o assunto, Sofia tem extrema dificuldade para encontrar qualquer tipo de orientação no Google. "Estou grávida e não quero ter", digita no buscador, meio que em vão. Depois apela para "clínicas de aborto", sendo direcionada para o suposto hospital em que é atendida pelo médico que faz aquela chantagem macabra, que está no início dessa resenha. A coisa toda vira quase um filme de terror.

Equilibrando momentos mais sombrios, com instantes de uma leveza meio onírica, Lillah levanta a sua bandeira sem medo de evidenciar o fato de que, neste debate, ela tem lado. Um lado que, vamos combinar, já deveria, em outubro de 2024, estar mais do que consolidado: o de que a decisão a respeito do corpo da mulher deveria ser só da mulher (e não de um bando de idosos engravatados que criam suas leis não com a Constituição debaixo do braço, e sim com a Bíblia). Se aproximando do estilo intimista mas urbano de obras como Nunca Raramente Às Vezes Sempre (2020), a diretora evidencia esses contrastes entre a metrópole mais ou menos moderna - com suas estruturas de concreto, veículos e luzes neon -, mas que guarda cerca decadência que, metaforicamente, dialoga com as fraturas e os retrocessos do tecido social. Ao cabo, onde deveríamos evoluir, parece que, por vezes, nos atrasamos. "Deus é bom o tempo todo, o tempo todo Deus é bom", diz uma pichação irritante no concreto cinza. As meninas podem até ser livres para curtir a vida, dançar e sorrir ao som de Linn da Quebrada, Badsista, Irmãs de Pau e MC Carol. Mas inventa de engravidar e não ter o filho. A turma pró vida, se bobear, é capaz até de matar para que alguém nasça. Numa daquelas ironias mais brasileiras que o próprio Brasil. Filmaço.

Nota: 9,0


quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Pitaquinho Musical - Adorável Clichê (Sonhos que Nunca Morrem)

Vamos combinar que seis anos entre um lançamento de disco e outro para uma banda pode ser um hiato bastante longo - ainda mais em tempos tão urgentes, apressados e cheios de acontecimentos relevantes como os que vivemos. Ainda assim, esse foi o período levado pelos catarinenses da Adorável Clichê para maturar o seu segundo registro de inéditas. Intitulado Sonhos que Nunca Morrem, o trabalho parece um pouco mais polido, com os vocais mais destacados, do que no enevoado álbum de estreia, o elogiado O Que Existe Dentro de Mim (2018). Na essência, pouca coisa mudou no shoegaze psicodélico de guitarras primaveris - uma das marcas registradas do quarteto integrado por Gabrielle Philippi (voz e guitarra), Marlon Lopes (guitarra e voz), Gabriel Geisler (baixo) e Felipe Protski (teclado). O que para os fãs certamente é um atrativo a mais.


 

Com apenas nove músicas e cerca de 34 minutos de duração, esse é daqueles discos que por vezes parecem nostálgicos, familiares - especialmente pelas melodias levemente açucaradas, que servem de base para as letras enigmáticas, que se organizam como pequenos fragmentos poéticos. Um bom exemplo nesse sentido, está na ambígua Devagar, que parece uma canção sobre amores apressados, mas talvez seja apenas a respeito da importância da conscientização no trânsito (E eu confio tanto em você / Mas eu não quero te perder / Então vá devagar). Já o single Depressão é sobre a nossa habilidade única de fazer papel de trouxa, quando em meio a um relacionamento tóxico - daqueles em que ficamos catando migalhas da pessoa amada (Penso em ignorar / As mensagens que manda de quando se lembra de mim). Atmosférico em alguns momentos, barulhento em outros, esse é daqueles pra ouvir repetidamente.

Nota: 9,0


Novidades em Streaming - Il Buco

De: Michelangelo Frammartino. Com Antonio Lanza. Drama / Experimental, Alemanha / França / Itália, 2022, 93 minutos.

Il Buco é aquele tipo de filme que parece ser bastante divisivo. Por um lado o estilo contemplativo, quase experimental da produção - que venceu o Prêmio do Júri no Festival de Veneza -, deverá acertar em cheio o coração dos cracudos da cinefilia, sempre dispostos a ter mais paciência com obras com estruturas narrativas menos óbvias e um maior apelo sensorial. Por outro ângulo, o hermetismo eventualmente exagerado pode afastar o fã ocasional, que talvez se exaspere com tanto simbolismo e com o caráter vagaroso e fragmentado da experiência. Sim, o filme do diretor Michelangelo Frammartino é meio que oito ou oitenta. Pode dar sono se você der play depois de um dia cansativo de trabalho. Mas também pode te maravilhar com o espetáculo visual proporcionado pela natureza exuberante e pela poesia subjacente, que permitem ainda uma série de reflexões sobre o quão pequenos somos diante de tudo. 

Ao cabo o filme - disponível na Reserva Imovision - parece um documentário, mas não é. Quase não tem diálogos - à exceção de um instante em que um filme na TV recapitula a subida de um animado grupo de empresários ao topo da Pirelli Tower, um grande arranha-céu de Milão, na Itália. Nesse sentido, essa também é uma obra de contrastes. Se por um lado os ricaços celebram o avanço civilizatório representado pela ampla torre, por outro os habitantes de um pequeno povoado se acotovelam para assistir a essas imagens que parecem tão distantes de tudo. Ao lado um grupo de crianças brinca. E um coletivo de exploradores de cavernas se organiza para adentrar o Abismo Bifurto, uma das cavernas mais extensas do mundo, com 700 metros de profundidade, localizada no Sul da Itália. Não há muito que se saiba sobre essa expedição, sobre suas histórias ou motivações. Não há um protagonista entre eles, por assim dizer.


 

Quer dizer, talvez o protagonista seja a própria natureza em sua complexidade, as montanhas e as campinas, o gado que vaga calmamente, o silêncio e o minimalismo sonoro, e a cratera que surge como um espectro que tudo observa. E engole. Na primeira cena - evocativa e bucólica -, temos uma câmera localizada dentro do buraco, em seus primeiros metros. Com a escuridão contrapondo a claridão que invade por meio dos raios de sol (e com as cores). Essa oposição pode ser percebida em outros aspectos que envolvem vida e morte, saúde e doença, penumbra e luz, cidade e campo, subida e descida. Esses elementos dicotômicos surgem em toda a parte, sendo um dos exemplos mais gritantes o momento em que os exploradores entram na caverna e utilizam o fogo - feito com páginas de revistas velhas acendidas com fósforo -, para conseguirem ter alguma visão do que se encontra abaixo.

O fato de uma das imagens da revista ser a do ex-presidente dos Estados Unidos John Kennedy talvez também signifique alguma coisa, especialmente em uma década que culminaria com a corrida espacial e as disputas políticas nas entranhas do universo. Aqui a busca é outra, a pesquisa é mais íntima. Sendo observada, a alguma distância, por um dos moradores do vilarejo, que se comunica com o rebanho bovino aos grunhidos e que, por fim, padece de uma doença - sendo socorrido e levado para a sua casa pelos próprios moradores da Calábria local. Frammartino não se ocupa em explicar por quê as coisas acontecem. Elas apenas são como são. É uma espécie de ironia subjacente pensar que um idoso está a beira da morte, enquanto uma expedição avança até o limite de uma perigosa caverna nunca explorada. Com alguns dos homens fazendo uma parada para bater uma bolinha no entorno - até o momento em que a bola é tragada pelo buraco da caverna. No fim das contas talvez seja isso mesmo: todos iremos para o buraco. O entorno é belo. Mas vai acontecer.

Nota: 8,0


terça-feira, 1 de outubro de 2024

Novidades em Streaming - As Três Filhas (His Three Daughters)

De: Azazel Jacobs. Com Carrie Coon, Elizabeth Olsen, Natasha Lyonne, Jovan Adepo e Jay O. Sanders. Drama, EUA, 2024, 101 minutos.

[ATENÇÃO: TEXTO COM ALGUNS SPOILERS]

Em meio a tantos pequenos momentos de impacto do ótimo As Três Filhas (His Three Daughters), obra de Azazel Jabobs que está disponível na Netflix, um em especial ficou impresso na minha mente. Nele, Benjy (Jovan Adepo), o namorado de Rachel (Natasha Lyonne), confronta Katie (a ótima Carrie Coon), que passa boa parte do filme tratando-o como um intruso na casa que, provisoriamente, compartilham. "Sabe quantas refeições eu fiz aqui nos últimos meses? Inúmeras", argumenta o homem, que ainda faz referência à relação cordial que ele preserva com o sogro Vincent (Jay O. Sanders) - atualmente um idoso moribundo que padece de um câncer terminal. Katie, assim como a irmã mais nova Christina (Elizabeth Olsen), está em visita à Rachel - a filha do meio e de outro casamento, que mora com o pai das três -, para acompanhar aqueles que devem ser os últimos dias de vida do genitor.

O comportamento displicente de Katie em relação à Benjy - que, por milímetros não resvala no racismo, especialmente após ela argumentar que sequer se lembra de ter estado com ele anteriormente -, em alguma medida dá conta do descaso dela com a própria família. Mesmo estando por muito tempo ausente, chega ao apartamento de Rachel e do pai como uma espécie de general do exército sisuda, cheia de regras, enxergando defeito em tudo. Ao cabo, ela é uma mulher que não relaxa, que está tensa com as burocracias que podem advir de um futuro funeral - e que vão desde a elaboração do texto do obituário, até o futuro do apartamento, que deverá ser herdado por Rachel. Quando ela encontra a geladeira do local atrolhada de maçãs - algumas delas já ficando podres -, Katie se exaspera. Sendo que será justamente Benjy o responsável por esclarecer as coisas mais tarde: "é só o que Vincent, já muito fragilizado, gosta de comer. E é a Rachel quem está aqui todo o santo dia para picar a fruta e levar pra ele".


 

Em alguma medida esse é um ponto de virada interessante da narrativa que, conforme avança, só nos fará concluir o fato de que todas ali - especialmente as três irmãs - são pessoas com virtudes e defeitos, imperfeitas a partir dos mais variados ângulos, mas que talvez estejam em busca de fazer o melhor. Ou o que pensam ser o melhor. Até a cena de Benjy no conflito com Katie - em que ele revela como Rachel se ocupa em relação ao pai extremamente doente e que necessita de cuidados permanentes (para além dos paliativos, fornecidos pela clínica que lhes ampara) -, Rachel era apenas a maconheira meio indolente, cujo grande projeto de vida parece ser acreditar nas apostas online como fonte de renda (sim, as bets não são exclusividade do Brasil). Não parece ser difícil julgá-la. Ou mesmo se irritar, como faz uma Katie apreensiva, que não consegue relaxar nem quando liga pra família. Mas ao cabo é Rachel que está ali. Que permanece. Mesmo não sendo filha biológica de Vincent (que lhe adotou quando era ainda uma criança).

Como terceiro vértice desse triângulo, Christina é a hippie aposentada, atualmente casada e mãe de uma filha - uma fã de Grateful Dead e praticamente de ioga, que preserva um otimismo quase ingênuo (ao menos antes de explodir). Talvez sua trajetória não tenha muito a ver com aquilo que ela sonhou - e esse desequilíbrio entre a verdade e o que ela deseja que seja a verdade é transmitido de forma comovente pelo olhar anguloso de Elizabeth Olsen, quase o tempo todo encharcado por lágrimas. Aliás, esse é o tipo de projeto que se vale muito das impressionantes atuações, dos eficientes diálogos, dos pequenos acontecimentos entre pessoas distintas que colidem em um ambiente que parece menor do que é - e a claustrofobia de um apartamento fechado, com as três protagonistas tentando se entender diante da iminente morte do pai convalescente, torna tudo ainda mais trágico, sufocante. Alguém poderá dizer que não há muita novidade nesse tipo de drama doméstico, sobre conflitos porta adentro e sobre dores e traumas que emergem de forma inesperada. Ainda assim, esse é o tipo de obra de fácil identificação. Família é família, afinal. Em tempo, sobre Oscar: vai ser preciso uma campanha de arrancada nesses meses finais. Coon, Olsen e até Sanders podem ser lembrados. Até porque entregaram tudo. O espaço é curto. Aguardemos.

Nota: 8,0