terça-feira, 2 de agosto de 2022

Cinema - Um Heroi (قهرمان)

De: Asghar Farhadi. Com Amir Jadidi, Mohsen Tanabandeh e Sahar Goldust. Drama, Irã / França, 2021, 127 minutos.

Quem acompanha a carreira do cineasta iraniano Asghar Farhadi sabe que a deterioração das relações humanas a partir de eventos cotidianos, quase prosaicos, costuma ser a matéria-prima para as suas obras que, ao mesmo tempo, também costumam traçar um panorama político, cultural, social e religioso de seu País de origem. Nesse sentido parte-se do microcosmo muitas vezes doméstico para uma análise do todo, de questões maiores - ainda que poucas vezes o espectro seja ampliado para além do dia a dia daqueles que acompanhamos. Foi assim nos ótimos e premiadíssimos A Separação (2011) e O Apartamento (2016). É assim também com Um Heroi (قهرمان) que, após alguns meses de atraso, finalmente entra em cartaz nas salas do País. Aqui temos a história de um sujeito desesperado que aposta em uma mentira para tentar se livrar da cadeia. E é claro que a coisa desanda e toma proporções enormes, o que afetará a todos que estão a sua volta.

Rahim Soltani (Amir Jadidi) está preso por causa de uma dívida com um agiota que não conseguiu pagar - e eu confesso ter ficado absolutamente surpreso em descobrir que as pessoas podem ser privadas de liberdade por não "pagarem seus boletos", por mais conservador que o Irã seja. Em meio a uma espécie de indulto ele fará o possível para que o seu credor, um certo Bahram (Mohsen Tanabandeh) retire a queixa e aceite uma espécie de acordo para o pagamento (o que envolverá uma boa quantia de dinheiro obtida por vias escusas). Esse é só o começo de uma história cheia de idas e vindas, de tomadas de decisão moralmente duvidosas, de ações corretas e incorretas em cascata e de pessoas entrando no modo sobrevivência a qualquer custo. Com tudo piorando quando a namorada de Rahim, Farkhondeh (Sahar Goldust) se apresentar como pivô de um golpe que envolve o furto de uma bolsa que contém 17 moedas de ouro, e que servirão para quitar parte da dívida.

Quer dizer: servirão em partes, já que Bahram não tá pra negócio - ele só aceita o pagamento integral - o que fará o casal mudar de estratégia, optando pela devolução da bolsa com as moedas. Situação que atrairá a atenção da mídia, convertendo o protagonista em uma espécie de heroi involuntário que, mesmo diante de sua própria desgraça, escolheu não usar aquilo que não lhe pertence para benefício próprio. Dessa forma ele permanecerá na prisão - para tristeza de seu filho pequeno e dos demais familiares, que seguirão no embate. E como desgraça pouca é bobagem, entrará na equação uma generosa instituição de caridade que pretende levantar fundos para auxiliar Rahim em seu pleito. Ainda que toda a história não passe de um grande estratagema em que o "heroi acidental" se empenha em transparecer uma certa benevolência quase ingênua, reforçada pela sua fala mansa e gestos comedidos. Ainda que o sorriso permanente e bizarro - talvez de nervoso - converta-o em uma figura eventualmente psicótica (que mostra os dentes mesmo quando não seria a hora pra isso).

"Onde no mundo as pessoas são celebradas por não fazerem o mal?" A pergunta de Barham à certa altura da projeção parece óbvia, mas em um mundo veloz e tecnológico como o que vivemos é muito comum ver pessoas anônimas ou famosas alçadas a heróis ou vilões nacionais em um piscar de olhos (com as redes sociais tendo papel central nisso). E é assim que Amir Jadidi acrescenta camadas na composição de Rahim, o que faz com que sempre estejamos em dúvida sobre como nos comportar em relação a ele. Devemos torcer? Não gostar? A existência de um filho com deficiência influencia? Ele teve azar ao falir um negócio que o descapitalizou? Ou ele tem algum segredo a mais que pode ter a ver com uma certa predisposição para o charlatanismo (e até para a violência, como sugerem os instantes de explosão)? Para os carcereiros ele parece um homem de boa fé, pronto pra retornar ao convívio à sociedade. Mas até que ponto? Essas incertezas ricas em contradições são o que dão o molho para essa experiência cinematográfica valiosa que nos faz lembrar o tempo todo de que jamais devemos ser precipitados em nosso olhar. Nem tudo é o que parece. Por maiores que sejam as evidências.

Nota: 9,5


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