quarta-feira, 18 de abril de 2018

Tesouros Cinéfilos - A Fita Branca (Das Weiße Band)

De: Michael Haneke. Com Christian Friedel, Ernst Jacobi, Rainer Bock e Ulrich Tukur. Drama, França / Itália / Áustria / Alemanha, 2009, 144 minutos.

Não são poucas as vezes em que me pergunto quais as circunstâncias geradoras de sentimentos como o ódio, o preconceito ou a intolerância. Onde é, afinal, que brota tanta raiva - especialmente entre os jovens (essa "nova" e tão assustadora juventude reacionária)? Onde nascem esses meninos e meninas tão bem vestidos e alimentados, tão eloquentes e participantes ativos da vida social que não suportam um negro, um pobre, um viciado, um índio, um deficiente, um homossexual ou um agricultor entre aqueles que estão no seu convívio? De onde vem toda essa hostilidade, essa aversão e essa repulsa que andam a passos galopantes nas redes sociais lotadas de pessoas que parecem até mesmo se orgulhar de seu comportamento discriminatório? Será na mesa de domingo, ao lado do avô de descendência germânica que não hesita em proferir uma piada misógina ou racista? Será na igreja? Na sala de aula? Ou em outras instituições, entre elas a própria família?

O dramaturgo alemão Bertolt Brecht já dizia que a "cadela do fascismo está sempre no cio" e, é possível afirmar que, mesmo no mais sutil dos tons, a obra-prima moderna A Fita Branca (Das Weiße Band) fala exatamente sobre isso. Indiretamente, sem esfregar na cara de ninguém, ela aborda a origem desse mal. Origem esta que pode estar relacionada a uma educação excessivamente formal e religiosa, que reprime a sexualidade ou qualquer outro tipo de comportamento que fuja do padrão imposto pelos guardiões da moral e dos bons costumes. A trama nos desloca para um vilarejo do norte da Alemanha no ano de 1913. No local vivem crianças, adolescentes e suas famílias - com estas últimas as educando com a pesada mão da repressão e na permanente busca da "inocência e da pureza" como virtudes únicas a serem perseguidas.



Ocorre que, em um certo dia acontece um estranho (e cruel) acidente com o médico local (Rainer Bock), cujo cavalo tropeça em um afiado arame que fora esticado entre duas árvores. Além de desconhecerem os autores da armadilha - que resulta em um cavalo sacrificado e no médico hospitalizado por mais de dois meses com um braço quebrado - os moradores passam a conviver com outros estranhos eventos. Em um deles o filho do Barão local desaparece, sendo encontrado preso e ferido. Uma mulher morre em um acidente de trabalho de difícil explicação. Um incêndio inicia. E uma criança com deficiência tem seus olhos arrancados de forma cruel. Quem estaria por trás de tanta atrocidade? De onde viria esse mal-estar e essa violência que se espalham como se fossem uma grande onda de terror nesta pequena comunidade?

Haneke, como é de praxe em sua filmografia, não oferece soluções fáceis. Mas a partir da narração em off do professor local (Christian Friedel) - e não chega a surpreender o fato de, justamente um educador, ser a voz mais lúcida do filme - é possível montar um pequeno quebra-cabeças histórico, capaz de transformar as oprimidas crianças da película nos futuros monstros que gestariam o holocausto e o nazismo como um todo. É a violência gerando violência e se perpetuando de geração em geração, com nenhum sentimento de culpa ou qualquer tipo de empatia pelo próximo. Uma equação simples demais, mas que ecoa até os dias de hoje, com crianças crescendo em lares frios, nada amorosos e até violentos e que irão reproduzir, no futuro, estes mesmos comportamentos. Sim, o diretor é tradicionalmente pessimista. E, com A Fita Branca, ele parece atingir o grau máximo de niilismo.


Fotografado em um requintado preto e branco pelo diretor de fotografia Christian Berger, a obra, vencedora da Palma de Ouro em Cannes em 2010, tem clima bergmaniano não apenas pela ausência da paleta colorida s e pelo hábil uso do som diegético (que permite ouvir corredeiras, as folhas das árvores ou o barulho de insetos), mas também pelo ceticismo com que encara instituições conservadoras e retrógradas, como a Igreja. E não é por acaso que personagens como o pastor local (Burghart Klaubner) surgem como se fossem os grandes vilões da história - sempre dispostos a utilizar a violência como medida disciplinatória, por menor que tenha sido a transgressão cometida pelas crianças. Nunca fácil, a obra de Haneke pode chocar pela violência excessiva e até mesmo gráfica. Mas dado o ódio que reina contra as minorias - seja nas redes sociais, seja nas reuniões das "famílias de bem" - o austríaco acerta em cheio em sua triste abordagem de um passado que segue tão atual.

segunda-feira, 16 de abril de 2018

Picanha em Série - La Casa de Papel

Sim, a gente já sabe que você não aguenta mais ouvir falar de La Casa de Papel. Você abre as suas redes sociais, lá está a série em alguma postagem. Você vai para o trabalho ou para a faculdade, os seus colegas não falam de outra coisa. Até nas reuniões dominicais de família as discussões polarizadas sobre política - a propósito, #lulalivre - deram lugar para outras personagens de um certo programa da TV espanhola. E, caso você esteja querendo fugir do hype a todo o custo, temos uma má notícia: as pessoas falam da série porque ele é boa. Aliás, boa não. Ótima! O que significa que, a menos que você não se importe em ser um alienígena nas rodas de conversa já citadas, você TERÁ de assistir ao programa sobre o grupo de oito assaltantes que invade a Casa da Moeda da Espanha, fazendo os funcionários de reféns, com o objetivo de praticar um roubo milionário.

Sim, a premissa não tem nada de novo - e obras como O Plano Perfeito (2006), de Spike Lee, já beberam dessa mesma fonte. Mas o caso é que La Casa de Papel tem um pouco mais a oferecer, funcionando também, para além do mero entretenimento, como uma espécie de análise do painel político/econômico/social da Espanha nos últimos anos. Não por acaso o índice de desemprego galopante - que até 2016 (ano de lançamento da primeira temporada da série) ultrapassava fácil a casa dos 20% da população economicamente ativa na terra de Miguel de Cervantes e de Pablo Picasso, em alguns anos, como 2013, alcançando inacreditáveis 26% - também tem a ver com esse contexto. Assim, pessoas desesperadas para levantar dinheiro a qualquer custo (seja para dar um futuro melhor para o filho, seja para dar melhores condições para o pai doente), não chegam a ser algo surpreendente.



Em La Casa de Papel cada um dos bandidos tem as suas motivações próprias, e os oito levam nomes de capitais ou cidades importantes ao redor do mundo - Tóquio (Úrsula Corberó), Nairobi (Alba Flores), Berlim (Pedro Alonso), Moscou (Paco Tous), Denver (Jaime Lorente), Rio (Miguel Herrán), Helsinque (Darko Peric) e Oslo (Roberto García). Coordenados pelo sujeito chamado de Professor (Álvaro Morte) realizarão, minuciosamente, cada etapa do plano que consiste em entrar no local, render as dezenas de funcionários tornando-os reféns e iniciar a impressão de milhares de cédulas espanholas. É claro que a execução do plano não será tarefa simples, já que os assaltantes serão vigiados de perto pela equipe da investigadora Raquel Murillo (Itziar Ituño), que negocia diretamente com o professor. Além de terem de lidar com as inesperadas reações daqueles que estão a eles submetidos.

Um dos grandes trunfos da série está em não reduzir a disputa entre ambos os lados em uma maniqueísta luta do bem contra o mal - e eu imagino o bug na cabeça do integrante da família de bem batedora de panela quando ele se ver torcendo pelo bandido. E este é um dos grandes prazeres da série. Quem é o malfeitor nesse caso? O sistema que tanto oprime e que é capaz de corroer a esperança do povo (e de seus trabalhadores) por dias melhores? Os marginais, que mantém civis como reféns para alcançar seus objetivos? A polícia que, no modo "bandido bom é bandido morto", não hesita em torturar e assassinar aqueles que violam as leis? Os bancos e as grandes corporações, que, cada vez mais ricos, ignoram os anseios das camadas menos favorecidas? Sim, nas aparências La Casa de Papel pode até parecer uma simples história de mocinho contra bandido. Mas ela possui uma certa complexidade que nunca nos escapa - e que nos faz pensar e MUITO no que tem ocorrido em nosso Brasil Pós-Golpe.



Centrando ainda a sua força na complexidade das relações humanas - nunca sabemos como reagiremos, quem amaremos ou quem desejaremos que esteja longe de nós - a série ainda equilibra de maneira irrepreensível os momentos de drama, de comédia, de ação e de suspense (e não são poucas as sequências em que somos capazes de saltar da poltrona diante de cada detalhe revelado). Com edição ágil - a história em suas duas temporadas não dura mais do que cinco dias - o programa faz idas e vindas no tempo para mostrar como o Professor, sujeito de grande inteligência e dotado de uma paciência de Jó, articula cada detalhe da ação de forma meticulosa, o que fará com que, quase sempre, ele esteja um passo a frente da polícia. Quase sempre. Ou não. Como dissemos durante essa pequena resenha essa não é uma história de mocinho e de bandidos convencional. Assim, se você se pegar sorrindo ao final dos 22 episódios disponíveis na Netflix, não se surpreenda. Afinal de contas adoramos tramas com finais felizes!

quinta-feira, 12 de abril de 2018

Cine Baú - O Conformista (Il Conformista)

De: Bernardo Bertolucci. Com Jean-Louis Trintignant, Stefania Sandrelli, Gastone Moschin e Enzo Tarascio. Drama, Itália / França / Alemanha, 1971, 113 minutos.

Um homem tenta se ajustar à sociedade arrumando um casamento com uma bela mulher burguesa e colocando-se à disposição para prestar serviço ao governo e à ideologia vigente e, enfim, sentir-se "normal". Acontece que o ano é 1938, o país é a Itália, e o "serviço" é ir até a França durante sua lua-de-mel encontrar um antigo professor de filosofia que, taxado de subversivo, vem divulgando ideias antifascistas que podem comprometer a tirania dominante do ditador Mussolini, para então armar uma emboscada que resultará no assassinato de seu antigo tutor e amigo.

Mesmo que a sinopse acima case muito bem em um filme de suspense, não vejo motivo para me desculpar pelo spoiler da última frase do parágrafo anterior, pois não é disso que o filme busca tratar em suas quase duas horas. A obra O Conformista, considerada uma das mais expressivas do cineasta Bernardo Bertolucci, é um exímio estudo de personagem de um homem que, de natureza auto-repressora, acaba por fazer parte de um período histórico que, pautado pela tortura e violação de direitos fundamentais, dizimou milhares de vidas contando com o apoio de parte considerável da população, com traumas ressonantes até hoje. E como alguém aparentemente comum pôde vir a naturalizar e apoiar tamanhos horrores que ocorreram nos regimes de Hitler e Mussolini?


Marcello, vivido brilhantemente por Jean-Louis Trintignant (que pode ser visto hoje em dia nas obras mais recentes do cineasta austríaco Michael Haneke, como Amor e Happy End) é o legítimo conformista do título que, mesmo ao tentar se adequar em uma sociedade que parece não ser a mais apropriada a seus anseios, mantém-se em constante conflito interno - resultado de desejos reprimidos e fatos passados mal resolvidos, demonstrados tanto em sua amizade íntima com um porta-voz cego do regime fascista (uma metáfora óbvia), o affair com a esposa de costumes liberais de seu alvo, quanto as reminiscências de uma experiência homossexual frustrada no início da adolescência com um homem mais velho.

Com uma fotografia excepcional de Vittorio Storaro (Apocalypse Now), esteticamente o filme já é uma experiência memorável, seja nos planos mais abertos em que vemos o palácio do governo fascista de maneira imponente, ou outros mais íntimos onde temos o ponto de vista do protagonista de maneira torta. Mas o roteiro adaptado do livro de Alberto Moravia ainda presenteia o cinéfilo com uma reflexão política que continua atual desde a época de seu lançamento. Ao tentar esmiuçar a psique de seu personagem-título, Bertolucci não só nos faz aplaudir seu maravilhoso plano final como nos aterroriza ao repararmos que, conforme a clássica citação de Brecht, a cadela do fascismo está sempre no cio. Que nos digam os grupos neofascistas, amigos e até familiares presentes no dia a dia, que infestam os almoços da "família de bem" e as redes sociais manifestando mensagens de ódio, saudosos pelo retorno de tempos tenebrosos. Frutos de uma sociedade que desaprendeu a amar o próximo e não soube resolver seus conflitos mais íntimos, conforme essa obra-prima tão pungente é capaz de sugerir.

quarta-feira, 11 de abril de 2018

Cinema - Madame (Madame)

De: Amanda Sthers. Com Toni Collette, Harvey Keitel, Rossy de Palma e Tom Hughes. Comédia dramática / Romance, França, 2017, 91 minutos.

Parece inacreditável que, em pleno ano de 2018, ainda haja espaço para filmes maniqueístas, estereotipados e até mesmo misóginos como este inacreditável Madame (Madame), que está em cartaz nos cinemas. Aliás, a obra da diretora Amanda Sthers trata seus personagens de forma tão simplista e mesquinha, que são muitos os momentos da película que beiram o constrangimento. Fora os diálogos péssimos, as interpretações forçadas, o roteiro absurdo... Na trama o casal de americanos Anne (Toni Collette) e Bob (Harvey Keitel), recém-chegados em Paris, organizam um jantar para 12 pessoas. Quando o filho de Bob reaparece de forma inesperada para o evento, a supersticiosa anfitriã resolve incluir a empregada Maria (Rossy de Palma) no evento - como se esta fosse uma convidada especial vinda diretamente da realeza espanhola. Tudo para evitar que 13 pessoas sentem a mesa.

Bom, a ideia do filme, que até poderia parecer original, logo se torna a desculpa mais que perfeita para um festival de piadas de mau gosto e para uma série de comentários sociais absolutamente distorcidos e vulgares. Em uma das cenas, por exemplo, Anne brinca sobre o fato de Maria calçar 40 - o que seria um absurdo no universo das mulheres elegantes. Ela arremata o assunto dizendo que a famosa marca Louboutin nem fabricaria os seus calçados com esta numeração. Em outra sequência, Anne incentiva a sua relutante empregada a "sair da ABC para viver um momento HBO" - o trocadilho aparentemente esperto (o salto de um canal americano de televisão popular para um outro de apelo mais intelectual) é apenas um veículo para reforçar a ideia de que aquela noite, para Maria, será como uma espécie de sonho que, no dia seguinte, se desbotará, fazendo com que ela retorne a sua rotina de empregada.



Alguém poderá argumentar dizendo que a obra aborda com bom humor o choque de classes e que a jornada libertadora de Maria, ao final da película (não se preocupem com spoiler, afinal de contas vocês só verão essa película se quiserem se autoflagelar), poderia servir como exemplo a ser seguido. Não, me desculpem. Mas abordagem do choque de classes com bom humor e, principalmente, com inteligência, se dá em obras mais consistentes e complexas, e que são capazes de problematizar e transformar um microcosmo particular em uma metáfora de fato para uma sociedade doente, individualista e com pouca empatia - o que podemos ver em obras atemporais e distintas, como o nacional Que Horas Ela Volta? ou no clássico O Anjo Exterminador, de Luiz Buñuel. Já em Madame, só o que vemos é o mau gosto e uma predileção para personagens rasos, hipócritas e sempre óbvios - quem é ruim é ruim o tempo todo e quem é bonzinho (ou tolinho) é da mesma forma durante as (intermináveis) uma hora e meia do filme. Ninguém tem qualquer profundidade, seja o professor de música introspectivo, seja o empresário do mundo das artes.

Aliás, pra vocês compreenderem o quão lamentável é esse filme, uma das únicas frases que Bob consegue dizer a respeito das virtudes de Maria é que ela "tem um belo traseiro". Ainda que, em outro momento, outra personagem não hesite em afirmar que Maria tem um "sotaque engraçado" - sim, ela é espanhola e, como todos os espanhóis, ela tem um sotaque engraçado (ao menos é o que conclui algum dos xenófobos insignificantes que estão no recinto). Pra não dizer que todas as piadas, diálogos e comentários são ruins, havia uma piada boa. Sim, uma! Em certo momento Anne fala para Maria dos vários espanhóis de sucesso que existem no mundo - e, entre eles, cita Pedro Almodóvar, em uma brincadeira divertida com a atriz que já integrou o elenco de oito filmes do diretor. Só que infelizmente isso é pouco para livrar a cara deste que é, seguramente, um dos piores filmes do ano.

Nota: 2,0


segunda-feira, 9 de abril de 2018

Tesouros Cinéfilos - Incêndios (Incendies)

De: Denis Villeneuve. Com Rémy Girard, Mélissa Désormeaux-Poulin, Marwan Maxim e Lubna Azabal. Drama, Canadá, 2010, 130 minutos.

Surpreendente. Assombroso. Impactante. Formidável. Pungente. A lista de adjetivos que possam qualificar um filme como Incêndios (Incendies) parece não ter fim. Aliás, isso pode parecer meio paradoxal na abertura de uma resenha, mas, a dica é ver a obra do diretor Denis Villeneuve (A Chegada) de posse do menor número de informações possíveis - o que certamente tornará a experiência ainda mais impressionante (e olha aí mais um adjetivo). A trama se passa no Canadá, onde os irmãos gêmeos Jeanne (Mélissa Désormeaux-Poulin) e Simon (Marwan Maxim) acabam de perder a mãe, Nawal (Lubna Azabal). Em uma reunião com o notário Jean (Rémy Girard) para tratar do testamento, eles são informados de que Nawal deseja ser enterrada sem caixão, nua e de costas, sem que haja qualquer lápide ou túmulo. Mais do que isso: deixa dois envelopes, um a ser entregue ao pai deles e outro para o irmão.

Só que aí há um problema: além de os irmãos jamais terem sabido da existência de um outro irmão, eles acreditavam que o seu pai estivesse morto. O quebra-cabeças proposto pela falecida mãe será completado com Jeanne e Simon recebendo um envelope para, aí sim, poderem construir a lápide. Sim, a trama é intrincada e envolvente e, é preciso que se diga, há uma atmosfera de suspense permanente que acompanha os eventos que vão sendo descortinados. E, enquanto Jeanne deseja atender o pedido da mãe - o que envolve uma ida a Palestina para uma profunda investigação, que esclarecerá uma série de pendências relativas ao passado de Nawal - Simon preferiria que ela fosse enterrada de forma tradicional, passando a borracha na história (o que também tem a ver com o fato de a mãe sempre ter sido uma figura silenciosa e distante).



Em terras palestinas, Jeanne entenderá que as feridas abertas pela luta entre cristãos e muçulmanos afetaram diretamente a sua progenitora. Integrante do grupo de estudantes que se opunha ao partido nacionalista - encabeçado por milícias da direita cristã (alô fãs do Bolsonaro) que massacravam refugiados - Nawal ainda engravida de um muçulmano (o que seria o equivalente a um rival político). E conforme a realidade vai sendo atirada na cara de Jeanne ela, comovida, vai compreendendo as motivações de sua mãe. "A morte nunca é o fim da história", alerta o notário Simon em certa altura de película. E, como comprova a trágica existência de Nawal na Palestina - separada do filho e tendo de conviver como uma pessoa "amaldiçoada" pela família cristã - o seu silêncio e a sua aura misteriosa são partes de uma vida consumida pela culpa, pela dor e até pela vergonha.

Tendo na edição uma de suas grandes forças - o filme realiza idas e vindas no tempo para mostrar aspectos da vida de Nawal (bem como a luta pela sua sobrevivência em um cenário de grande hostilidade) e da rotina dos jovens na tentativa de contemplar o pedido da mãe -, a obra, indicada pelo Canadá ao Oscar na categoria Filme em Língua Estrangeira, ainda conta com excelentes interpretações de todo o elenco. E como se já não bastassem as suas outras qualidades - o ótimo desenho de produção, a fotografia amarelada (e melancólica) -, a película ainda reserva para o terço final um dos mais surpreendentes desfechos da história do cinema. É um filme sobre coincidências. E sobre a capacidade que podemos ter, ou não, de perdoar. Em uma época em que a intolerância e o ódio ordenam as ações das famílias de bem, uma película como Incêndios é, curiosamente, uma verdadeira lição de vida.

quinta-feira, 5 de abril de 2018

Cinemúsica - Encontros e Desencontros (Lost In Translation)

O flerte com a cultura pop - e, consequentemente, com o universo da música - já é uma espécie de tradição no que diz respeito a a filmografia da diretora Sofia Copolla. Desde a estreia com As Virgens Suicidas (1999) até, mais recentemente, em Bling Ring: A Gangue de Hollywood (2013) muitos foram os artistas que emprestaram as suas canções para as películas dela - de Carole King e Phoenix a Kanye West e My Bloody Valentine. O que dá, diga-se de passagem, uma boa ideia da diversidade de estilos e da pluralidade pensada pela filha de Francis Ford na hora de escolher as trilhas sonoras que comporão suas obras. Pois um dos filmes mais queridos da diretora, o ótimo Encontros e Desencontros (Lost In Translation), também tem um repertório inesquecível de canções que vão desde as ambientais - que servem como uma paisagem sonora perfeita para o sentimento de solidão que invade os protagonistas - até chegar em petardos mais intensos, como, God Save The Queen dos Sex Pistols.

B.B. King, Elvis Costelo, Peaches, Nat King Cole, Air e Chemical Brothers e mais alguns outros embalam os momentos que resultarão na aproximação entre Bob Harris (Bill Murray), estrela de cinema que está em Tóquio para fazer um comercial de uísque e Charlotte (Scarlett Johansson), que está na capital japonesa para acompanhar o marido fotógrafo (Giovanni Ribisi), que lhe deixa o tempo todo sozinha no hotel por que só pensa em trabalho. Ambos têm dificuldades para dormir (e até para existir) e, acabam, aqui e ali, se encontrando meio que sem querer no bar do hotel, na piscina ou no elevador. Não demora para que, dali, a despeito da diferença de idade, nasça uma grande amizade entre ambos, que se sentem isolados em relação ao contexto em que estão inseridos - que é o de uma metrópole fria, individualista, apressada, urgente e, invariavelmente, multicolorida (como mostram as sequências nas casas de jogos).



Diga-se de passagem, também nestas cenas, a confusão produzida pelos efeitos sonoros que saem caoticamente de cada aparelho serve como metáfora perfeita para a bagunça interior que parece invadir cada um dos protagonistas. Nesse sentido os encontros, a conversa, a cumplicidade que começa a acontecer, os eventuais silêncios e sorrisos tímidos e até o sentimento de euforia por esta "novidade", formam a representação do acolhimento tão sonhado, da saudade do que não foi, daquilo que era pra acontecer mas não era possível. O Japão urbano e a sua balbúrdia representam a vida daquelas personagens naquele instante que, como se estivessem perdidas no mundo, procuram o aconchego perdido. E tudo isto embalado por uma trilha sonora que mescla na medida certa shoegaze, música eletrônica e pop francês - o que acaba sendo a equação perfeita para uma espécie de nostalgia romântica vivida por qualquer um de nós, seja na memória afetiva da paixãozinha adolescente que não aconteceu, seja nas decepções amorosas que fazem parte da vida.

Mas, numa análise geral, nenhuma passagem musical é mais marcante para mim do que aquela em que Charlotte canta - e a voz rouca e sussurrada de Johansson parece perfeita para isso - o clássico oitentista Brass In Pocket, do The Pretenders. A melancolia onipresente, os olhares trocados, o clima de fim de festa bêbado e entorpecido, uma charmosa desafinação, a letra ousada e provocante - 'Cause I gonna make you see / There's no one else here / No one like me / I'm special so special / I gotta have some of your attention give it to me -, tudo é perfeito nesse instante que, pode-se dizer, resume a obra e aquilo que ela tenta nos mostrar, com precisão. Murray não poderia estar mais perfeito como o sujeito que vivencia aquilo com a consciência de um mundo que não lhe pertence. Scarlett, carismática, magnética e encantadora, é capaz de fazer até a porta do quarto do hotel se apaixonar. Mas não era pra ser, o que, diga-se, não é problema, já que esta é a vida real. E o que nos resta disso tudo? A música, que serve para embalar nossas alegrias e tristezas na medida certa.

terça-feira, 3 de abril de 2018

Músicas Gêmeas - Vampire Weekend x Pachelbel

Esse é um dos meus casos preferidos de música gêmea - e, devo confessar a vocês o fato de não saber se foi deliberado ou não. Como não pesquisei, não tenho certeza sobre (e se alguém quiser ajudar, é mais que bem-vindo). O causo é que o Johann Pachelbel é um compositor alemão de música clássica que nasceu no século 17 e contribuiu com um grande acervo de números barrocos. Um de seus mais famosos, lançado em 1694, se chama Canon In D Major - aquele tipo de composição melodiosa para violino que a gente costuma ouvir em filmes de época. Pois há quem ache que, lá no fundinho da música Step, do Vampire Weekend, é possível encontrar uma sonoridade idêntica a utilizada por Pachelbel. Alguma semelhança nos andamentos, nas notas... não sei, difícil explicar. Me digam vocês se há alguma coisa ou se é viagem da minha cabeça. Em tempo, a canção Step está no disco Modern Vampires Of he City (2013), um dos melhores desse milênio.


Disco da Semana - Kacey Musgraves (Golden Hour)

Existem alguns discos que estabelecem uma conexão imediata com o ouvinte. Uma sensação de bem-estar e de satisfação quase semelhante ao que acontece quando liberamos ocitocina após alguma atividade estimulante e prazerosa - e vai ver também somos inundados por hormônios do tipo, quando escutamos músicas agradáveis. Há também uma certa familiaridade, como se fizéssemos parte daquilo. Como se o artista estivesse dialogando diretamente conosco. Já estivemos em contato com isso. Já vivemos algo parecido. E se pensarmos na música pop como um todo - matéria-prima de 90% do disco Golden Hour, terceiro trabalho da americana Kacey Musgraves (os outros dez por cento são folk/country) - essa impressão parece se ampliar a cada curva ensolarada, a cada verso aconchegante, a cada melodia assobiável.

É um álbum simplesmente irresistível, envolvente, gostoso de ouvir. Assim como já era Pageant Material, trabalho anterior de Kacey, tão rico quanto este. E, aqui, é preciso ressaltar a ousadia da texana: se no registro anterior predominava um country eventualmente estereotipado - ainda que legitimamente saboroso - agora a artista parece disposta a flertar diretamente com uma música mais radiofônica, o que provavelmente significará a porta de entrada para que um público ainda maior a conheça. Ainda assim, é preciso que se diga, um material acessível ou comercial jamais significa, no caso de Kacey, um cancioneiro óbvio ou previsível. Ao contrário, ao imprimir o seu vocal limpo, melodioso e afinado aliado aos arranjos eletrônicos e coloridos que emanam de cada uma das treze canções, a cantora transforma Golden Hour em um verdadeiro "caldeirão da música moderna", mas tudo sem deixar de lado a sua personalidade.



Tomemos como exemplo Butterflies - terceira canção do disco e primeiro single. Ao utilizar a figura da borboleta (e sua metamorfose até chegar a vida adulta) como metáfora para os relacionamentos consistentes que ganham força com o passar do tempo, Kacey apela para versos de grande riqueza e que fogem do lugar comum. Now you're lifting me up instead of holding me down / Stealing my heart instead of stealing my crown / Untangled all the strings round my wings that were tied (algo como Agora você está me erguendo, em vez de me conter / Roubando meu coração em vez de roubar minha coroa / Desenrolou todas as cordas em torno de minhas asas que estavam amarradas), narra a artista com naturalidade apaixonante. E como se não fosse suficiente, no esperto, multicolorido e divertido refrão, ainda brinca com a expressão "borboletas no estômago", fechando o ciclo para aquela que, muito provavelmente deverá ser a música do ano para diversas publicações.

O expediente se repete outras vezes em músicas que falam sobre existencialismo (Oh, What a World), solidão (Lonely Weekend), liberdade nos relacionamentos (Space Cowboy) e sentimentos ambíguos (Happy and Sad). Aqui e ali é possível perceber como o registro alterna momentos mais sorridentes (a já citada Butterflies) e outros mais reflexivos (como no caso da inaugural Slow Burn). Mas o sentimento que temos ao escutar o disco é o de que as canções parecem estar conectadas como se formassem, juntas, um panorama dos relacionamentos, suas idas e vindas, da euforia a tristeza, da alegria a lamentação, numa espécie de "tecido" que forma a existência de cada um de nós. E que dialoga de maneira fácil, direta, descomplicada. Escutar Golden Hour é, verdadeiramente, experienciar uma "hora dourada". Assim como são aqueles momentos únicos com quem gostamos ou em que fazemos aquilo que nos dá prazer. É o tipo de sentimento que nos ocorre ao ouvir um dos discos do ano. Justamente o caso deste.

Nota: 9,3

segunda-feira, 2 de abril de 2018

Grandes Cenas do Cinema - Dúvida (Doubt)

Filme: Dúvida
Cena: Meryl Streep revela ter dúvidas

[SPOILER ALERT: se você não viu o filme e não quer ter alguma surpresa desagradável, melhor ler o texto depois de assistir]

O que faz determinada sequência se tornar clássica, no cinema? O contexto em que a cena está inserida? Os atores envolvidos? O seu potencial icônico? Será que quando Alfred Hitchcock concebeu a cena do chuveiro, em Psicose, sabia que ela seria lembrada anos mais tarde como uma das mais inesquecíveis do cinema? E o Steven Spielberg que fez um extraterrestre (e um bando de garotos) cruzarem a lua? Há sequências que estão na memória por frases proferidas pelas personagens - caso, por exemplo, de vou fazer uma oferta que ele não pode recusar, dita por Don Vito Corleone (Marlon Brando), em O Poderoso Chefão (1972). Ou, mais recentemente, eu vejo gente morta, dita por Haley Joel Osment em O Sexto Sentido (1999). Enfim, são muitas as sequências que estão para sempre nos corações dos cinéfilos e, este jornalista que vos escreve, acredita haver, no excepcional filme Dúvida (Doubt), de 2008, uma cena com este potencial.


Mais precisamente a sequência final em que a irmã Aloysius (Meryl Streep), devastada pelo sentimento de culpa, revela "ter dúvidas" sobre aquilo fez - e, para mim, o famoso i have doubts, dito em tom autocomiserativo à personagem de Amy Adams (irmã James), será sempre lembrado, mesmo daqui há 50 anos, como um dos mais inesquecíveis momentos da sétima arte (ou ao menos neste milênio). É uma sequência delicada, comovente e que humaniza pela primeira vez a personagem durona vivida por Streep - a rígida diretora da escola Saint Nicholas, localizada no Bronx. Conduzindo o educandário com mão de ferro e adotando uma postura conservadora e antiquada na hora de disciplinar os estudantes, irmã Aloysius tem dificuldade em lidar com o carismático padre Flynn (Philip Seymour Hoffman) que, recém chegado ao local, traz consigo uma forma de ensino mais progressista, que estimula os alunos sem os amedrontar. É o clássico conflito que coloca frente a frente a tradição e a modernidade, o obsoleto e o vanguardista.

Só que lá pelas tantas a irmã James acredita ter motivos suficientes para acreditar que possa estar havendo um caso de pedofilia na escola, envolvendo o padre Flynn e o primeiro aluno negro recebido no local, o excluído Donald Miller (Joseph Foster) - e vale destacar que a trama se passa em 1964, período de importantes transformações na sociedade. É aí que inicia a cruzada moral que colocará a irmã Aloysius contra o sacerdote - sendo que esta fará de tudo para tentar expulsá-lo do instituto. As dúvidas da personagem de Meryl? É que ela nunca teve uma prova verdadeira de que algo possa ter, de fato, ocorrido. E a dor por ter expulsado do educandário um sujeito tão querido por todos a consumirá. Em um filme tão cheio de grandes interpretações que resultaram em indicações ao Oscar para Streep, Hoffman, Adams e também para Viola Davis (que interpreta a mãe de Donald e fica apenas ONZE minutos em cena), com um desenho de produção tão rico e com um roteiro tão envolvente, a sequência final, aquela que motiva este quadro Grandes Cenas do Cinema, é a cereja do bolo!