De: Diones Camargo e Adriane Mottola. Com Celina Alcântara e Pedro Nambuco. Drama, Brasil, 2018, 50 minutos.
O debate público sobre violência e abuso policial poucas vezes esteve tão em alta. Em praticamente todas as semanas (pra não dizer dias) somos surpreendidos com notícias a respeito de operações militares desastrosas em favelas ou morros, que resultam no assassinatos de civis que, invariavelmente, são pobres e pretos. E em governos autoritários como o de Bolsonaro e de Wilson Witzel, este tipo de prática parece ter sido ampliada. Na chamada guerra contra o tráfico - que também poderia ser chamada de guerra contra o POVO - não há limites para a violência. Vale tudo. Guarda-chuvas podem ser confundidos com armas e trabalhadores com bandidos, com a população vulnerável se transformando no "inimigo" a ser combatido. E assim morrem diariamente Ágathas, Kauans, Amarildos, Lucianos, Evaldos e tantos outros que viram apenas manchete. Estatística. Sem comoção. Sem dor. Apenas mais um que vai, por que assim é a vida, né?
O que a perturbadora peça de teatro A Mulher Arrastada faz é jogar luz sobre um desses tantos episódios de violência envolvendo uma polícia despreparada, que trata pessoas comuns como bandidos, de acordo com a matiz de sua pele. Exibida no Teatro do Sesc na noite de quarta-feira (25/09), como parte da programação do Palco Giratório, a peça resgata a história de Cláudia Silva Ferreira que não apenas foi morta pela polícia num dia qualquer de março de 2014: ela ainda teve o seu corpo praticamente desfalecido arrastado pelo camburão por quase MEIO QUILÔMETRO. E foi justamente por causa desse episódio grotesco - há imagens na internet que eu me recuso a assistir, sinceramente -, que Cláudia, trabalhadora, casada, mãe de família, proprietária de um corpo de todos os seus "pedaços" se transformou, para a mídia, apenas na "mulher arrastada". Sem nome. Coisificada. Como muitas vezes são os pobres e pretos que morrem, reduzidos à condição de objeto. E aí está um dos tantos subtextos possíveis, nessa impressionante obra que, não por acaso, tem sido premiada Brasil afora, desde que estreou no ano passado.
"Competir com a realidade seria muito difícil, então tivemos de reimaginar esse episódio abominável, para tornarmos ele catártico para o público", explicou a atriz Celina Alcântara em um pequeno bate-papo após a exibição da peça. Foi assim que o roteirista Diones Camargo e a diretora Adriane Mottola chegaram ao cenário - composto apenas por alguns biombos e uma espécie de maca usada em necrotérios -, com o público disposto como se estivesse em uma arena. O uso da luz e do som constroem uma ambientação claustrofóbica, incômoda, daquelas que faz o espectador se remexer o tempo todo na cadeira, conforme o episódio é reencenado. Os fatos não são apresentados em ordem cronológica: a peça inicia com o ator Pedro Nambuco, que interpreta o policial, proferindo uma série de frases aparentemente desconexas, que dão conta de sua confusão mental, enquanto trafega nervosamente por um canto do cenário, em meio ao público que está ali confinado - como se estivesse em uma espécie de "ônibus imaginário".
E este, no fim, é um dos tantos méritos da obra. Há muita simbologia. E muita simbologia que até nos escapa. Em dado momento, ainda no preâmbulo, o policial abraça Cláudia (Celina), como se esta fosse uma "refém" dele. E não seriam os pretos, os pobres, o povo, reféns reais desse tipo de política policial que lhes destrói as vidas? Em meio ao espetáculo, Celina realiza uma espécie de comovente monólogo em que chama a atenção para o absurdo do episódio, com o espectador imerso em um ambiente de dor, daqueles em que é difícil não se comover. Tudo ocorrendo com o policial circulando em meio a plateia como se fosse um espectro que reflete cada um de nós que, afinal de contas, pouco fazemos para que o racismo estrutural, institucionalizado, e mesmo a violência contra a mulher ou a misoginia possam ser refutados. Ou minimamente discutidos. Trata-se de uma peça arrebatadora, curta, daquelas que mete o dedo na ferida e que faz todo o mundo ficar paralisado em seu ato final. A pergunta que fica é: até quando? Sem resposta, o que fica é o gosto amargo, enquanto a escuridão (e a inquietação) nos invade.
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quinta-feira, 26 de setembro de 2019
quinta-feira, 1 de setembro de 2016
Palco Picanha - Cine Floyd no Teatro da Univates
Como o próprio slogan do Picanha diz, nossas maiores paixões são música e cinema. Quando um evento une essas duas formas de arte então, melhor ainda! E foi exatamente o sentimento de satisfação que tomou conta dos que tiveram a oportunidade de conferir, neste último dia 31 de agosto, a apresentação do projeto porto-alegrense Cine Floyd no Centro Cultural da Univates. Pra quem não conhece, a banda formada por Arthur Tabbal (Guitarra e Vocal), Ettore Sanfelice (Baixo), Gabriel Sacks (Bateria e Vocal) e Max Sudbrack (Teclados) traz para os palcos a famosa sincronia do incensado disco The Dark Side of the Moon, do Pink Floyd, com o filme O Mágico de Oz (obra de 1939 do diretor Victor Fleming, de ... E o Vento Levou).
Particularmente, nunca havia experimentado assistir à junção das duas obras para verificar a veracidade de que ambos se complementariam e, como bom fã de Pink Floyd, poder assistir à execução ao vivo da obra-prima de uma de minhas bandas favoritas e, ainda assim, matar a curiosidade em relação a esta lenda urbana era um compromisso imperdível. E, de fato, foi uma noite especial: a banda executou com precisão milimétrica todos os compassos de forma a tornar a sincronia perfeita e, embora alguns elementos do álbum original não estivessem presentes (os corais femininos e inserções de saxofone), a qualidade do som apresentado foi digno de um exímio concerto musical. Não bastasse tudo isso, a porção final do espetáculo contou com a performance da clássica (e extensa) canção Echoes (do álbum Meddle, de 1971) em sincronia com a porção final do filme 2001: Uma Odisseia no Espaço, obra máxima do gênio Stanley Kubrick.
Mas e aí, seria realmente proposital a composição de The Dark Side of the Moon de forma a fazer sentido com a execução do filme? Confesso que permaneço sem uma resposta clara sobre isso. É inegável reconhecer algumas coincidências durante a película e as músicas executadas, mais precisamente a partir da quinta faixa, The Great Gig in the Sky, a qual coincide com a cena em que Dorothy presencia um furação, o "espetáculo no céu" do qual a música fala, ou o momento em que Money começa a ser executada e as imagens se transformam em cores vibrantes, bem como sua batida que sincroniza perfeitamente com a marcha dos personagens em cena. Quando a menina encontra o personagem Espantalho, podemos ouvir a frase "the lunatic is on the grass" da faixa Brain Damage, enquanto o mesmo personagem apresenta um comportamento um tanto estranho (seria o lunático da música? Pouco provável, visto que a canção refere-se a Syd Barrett, fundador e líder da banda que teve que se afastar devido a problemas mentais e com drogas).
A livre interpretação também é parte da graça toda. Confesso que achei curioso que, no momento da execução de Us and Them, em especial na frase "which is which, and who is who", apareça uma bruxa em cena (que em inglês é witch, cuja pronúncia é similar a which, que significa "cujo"). Outra brincadeira interessante é que, durante a derradeira faixa Eclipse, Dorothy encontra o Homem de Lata e, praticamente durante a frase "beg, borrow or steal", ela encoste na lataria - o que não deixa de ser curioso pois a pronúncia de steal (roubar, em inglês) é similar a steel (aço). São momentos isolados que fazem com que fique praticamente impossível se livrar da sensação de estranhamento mas que, devido à capacidade do cérebro humano de reconhecer padrões e buscar familiaridades, podem sim representar apenas uma coincidência - afinal, na maior parte do tempo nada que nos chame muito a atenção acontece.
No entanto foi no momento final, com Echoes e a viagem literal e lisérgica proporcionada por Kubrick em seu 2001, que houve o melhor momento da noite, com a canção elevando ainda mais os sentimentos das imagens evocadas na tela - quem assistiu a Interestelar (de Christopher Nolan, 2014) verá de onde saiu a referencia de seu terço final - e é assombroso pensar que aqueles efeitos todos foram filmados durante a década de 70. Não à toa, conta-se que à época pessoas reuniam-se para assistir 2001 sob efeito de LSD para embarcar na viagem de Kubrick - e não é de se duvidar que o Pink Floyd tenha realizado o mesmo feito para compor esta maravilhosa canção.
Ademais, resta-nos parabenizar a iniciativa da Univates em trazer mais um grande espetáculo para a nossa região. Que venham muitos mais!
Particularmente, nunca havia experimentado assistir à junção das duas obras para verificar a veracidade de que ambos se complementariam e, como bom fã de Pink Floyd, poder assistir à execução ao vivo da obra-prima de uma de minhas bandas favoritas e, ainda assim, matar a curiosidade em relação a esta lenda urbana era um compromisso imperdível. E, de fato, foi uma noite especial: a banda executou com precisão milimétrica todos os compassos de forma a tornar a sincronia perfeita e, embora alguns elementos do álbum original não estivessem presentes (os corais femininos e inserções de saxofone), a qualidade do som apresentado foi digno de um exímio concerto musical. Não bastasse tudo isso, a porção final do espetáculo contou com a performance da clássica (e extensa) canção Echoes (do álbum Meddle, de 1971) em sincronia com a porção final do filme 2001: Uma Odisseia no Espaço, obra máxima do gênio Stanley Kubrick.
A livre interpretação também é parte da graça toda. Confesso que achei curioso que, no momento da execução de Us and Them, em especial na frase "which is which, and who is who", apareça uma bruxa em cena (que em inglês é witch, cuja pronúncia é similar a which, que significa "cujo"). Outra brincadeira interessante é que, durante a derradeira faixa Eclipse, Dorothy encontra o Homem de Lata e, praticamente durante a frase "beg, borrow or steal", ela encoste na lataria - o que não deixa de ser curioso pois a pronúncia de steal (roubar, em inglês) é similar a steel (aço). São momentos isolados que fazem com que fique praticamente impossível se livrar da sensação de estranhamento mas que, devido à capacidade do cérebro humano de reconhecer padrões e buscar familiaridades, podem sim representar apenas uma coincidência - afinal, na maior parte do tempo nada que nos chame muito a atenção acontece.
sexta-feira, 20 de maio de 2016
Palco Picanha - Frida Kahlo, À Revolução
Como se não fosse suficiente a gente falar sobre música e cinema - assuntos que adoramos dar pitacos, mesmo sem muito conhecer - agora resolvemos falar também de teatro! É o quadro novo aqui do site, o Palco Picanha (criativo, né?). E na estreia, uma pequena análise da ótima peça Frida Kahlo, À Revolução, exibida na noite de ontem, no Teatro da Univates,
Isso não significa, por exemplo, que o cenário, as luzes, o figurino e outros elementos, ainda que minimalistas, não sejam bem utilizado pelos artistas - no caso a protagonista Juçara Gaspar, que vive Frida, e o músico Luciano Alves que, como se nem estivesse presente, executa a trilha sonora incidental, ao vivo. Para contar a história da pintora mexicana nascida no início do século passado, em formato de monólogo (ou fluxo de pensamento), são necessárias apenas algumas vestes - que servirão para indicar as pequenas ou grandes mudanças na vida da artista -, um cavalete com algumas pinturas, uma aquarela, uma cadeira de rodas, uma manta vermelha e um colete ortopédico. Um ou outro jogo de luz. Uma sonoridade simples e ao mesmo tempo complexa. Importará, afinal, para o público presente, no trabalho dirigido por Daniel Colin, a mensagem sobre o princípio revolucionário e sobre a "arte como denúncia solidária e solitária", como diz o material de divulgação do evento.
A história, ainda que enxuta apresentada em apenas 60 minutos, resgata diversos momentos da vida de Frida, entre eles, o conturbado relacionamento com o pintor muralista Diego Rivera, as andanças do casal pelos Estados Unidos e pela Europa, onde sua arte regionalista e folclórica era tratada com certa curiosa distinção pelos burgueses locais, as dificuldades decorrentes de uma poliomelite contraída quando ainda tinha seis anos de idade e que lhe comprometeram os movimentos da perna direita pelo resto da vida, a bissexualidade - em uma contagiante cena com a participação involuntária da plateia -, além dos seus diversos abortos. Ao representar a perda de um filho, por sinal, talvez esteja a cena mais impactante e comovente de toda a peça, quando um manto vermelho aliado a um palco banhado por luz da mesma cor, forjam uma poça de sangue que talvez não fossem suficientes para diagnosticar o quão devastado estava o coração da artista nessa ocasião.
Nesse sentido, são os aspectos mais humanos dessa "personagem real" que são capazes de fazer com que ela transcenda a condição de mito. A luta pela revolução, com dezenas de citações ao comunismo, ao socialismo e a Trotsky - que lhes serviu inclusive como hóspedes - talvez fosse capaz de fazer arrepiar os pelos da família de bem mais raivosa presente no local (aquela mesma fatia do público, pequena, que se recusou inclusive a aplaudir o espetáculo) e que se regozija, por exemplo, com o fim do Ministério da Cultura. Mas o que pede Frida - e a sua intérprete Juçara -, em cada excerto de seu verborrágico e necessário discurso é que nos "revolucionemos a nós mesmos". Que não fiquemos acomodados, que sejamos capazes de questionar o status quo ou aquilo a que somos obrigados a engolir goela abaixo. Enfim, que possamos viver a vida com mais leveza, atentos as coisas simples, a natureza, talvez até com alguma ingenuidade a mais - mas sem perder a paixão vibrante e explosiva por aquilo que nos rodeia e comove. Assim como era a arte de Frida Kahlo. E só essa mensagem, já é suficiente para que a peça tenha valido. E muito.
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