quarta-feira, 29 de abril de 2020

Tesouros Cinéfilos - Em Um Mundo Melhor (Hævnen)

De: Susanne Bier. Com Mikael Persbrandt, Tryne Driholm, Markus Rygaard, William Jøhnk Nielsen e Ulrich Thomsen. Drama, Dinamarca / Suécia, 2010, 117 minutos.

Eu não sei qual é o mundo que vai ficar para as próximas gerações, mas confesso a vocês que não ando nada otimista. Guerras, pandemia, desigualdade social. Violência - gratuita em muitos casos. Ódio, preconceito, intolerância. Dificuldade generalizada de convívio em um cenário de globalização e de tecnologia e de diferenças - culturais, religiosas - que jamais são respeitadas. E o belíssimo Em Um Mundo Melhor (Hævnen) consegue quase abarcar todos esses temas, espreitando o microcosmo que envolve duas famílias dinamarquesas, com seus dilemas, anseios e filhos. Aliás, o que estamos, de fato, ensinando aos nossos filhos? Quais as lições que têm ficado? Talvez a diretora Susanne Bier (dos igualmente espetaculares Brother e Depois do Casamento) nem fosse assim tão ambiciosa, mas obras como esta conseguem fazer com que a gente reflita sobre quase tudo que nos rodeia. Sobre como estão as nossas relações. Se há gente doente ou passando fome. Se alguma criança sofre bullying - e qual será o reflexo disso no futuro. É uma obra grande em seus pequenos instantes. Que diz muito mesmo quando nem pareça querer dizer tanto.

Nesse sentido, uma das melhores sequências do filme é também uma das mais surpreendentemente dolorosas. Nela, o médico cirurgião Anton (Mikael Persbrandt) - um pacifista que atua em uma nação africana devastada pela guerra atendendo feridos -, é surpreendido por uma briga envolvendo seu filho de cinco anos e um outro menino da mesma idade, em uma pracinha qualquer da cidade. Quando o pai do outro garoto aparece, Anton é violentamente atacado. Aos gritos de "não encoste no meu filho", o outro sujeito lhe dá dois tapas na cara. Três. Um tipo de ataque imprevisível. Humilhante. Que dá conta de um universo em que falta o diálogo. Em que problemas relacionados à masculinidade frágil são resolvidos de forma estúpida, grosseira, boçal. Como se a vitória pudesse ser de quem agride mais, de quem grita mais. E, em choque por ter sido aviltado por um homem que ele nem conhecia, ele precisará ensinar os seus dois filhos - o outro é o adolescente Elias (Markus Rygaard), que NINGUÉM sairá ganhando com a violência. Ninguém vencerá se agredindo. Mas o mundo é bruto. E, especialmente, pessoas desse tipo são toscas, estúpidas. Sempre prontas a afrontar, como se a conversa para a resolução de conflitos pudesse ser uma iniciativa frágil ou menor.



É como quando ocorre uma briga no trânsito. Aliás, vocês já perceberam como muitos homens são machões no trânsito? E se tiverem uma arma consigo, serão ainda mais. Aliás, esse desejo bélico pelo revólver, essa síndrome da compensação que provavelmente nem Freud explicaria, esse negócio de resolver tudo na porrada, no tapa na cara - no tapa na cara desferido a um desconhecido. Um desconhecido que trabalha auxiliando pessoas pobres em um cenário de guerra que lutam para sobreviver, toda essa mistura que é fruto de um mundo globalizado e conectado que não conversa, é que o torna Em Um Mundo Melhor uma experiência cinematográfica daquelas que dilacera nosso coração. Enquanto Anton está empenhado em seu trabalho humanitário, seu filho Elias é acossado por um bando de valentões da escola apenas por ser mais retraído e ter os dentes mais proeminentes. Só que Elias fará amizade com Christian (William Jøhnk Nielsen), um coleguinha de escola que está revoltado por ter perdido a sua mãe para um câncer (essa doença inútil que não deixou de existir em meio à pandemia). Christian ajudará Elias a dar cabo dos valentões do bullying - usando a violência, de uma forma reprovável. E achará que, TAMBÉM ELE, pode auxiliar o afável Anton a resolver o problema com o valentão do parquinho. Dos dois, três tapas humilhantes, inexplicáveis.

O filme assim nos mostrará, da pior forma possível, com um prenúncio de tragédia anunciada, que a violência nunca será o melhor caminho. Que esta só poderá gerar mais violência. Mais dor. Mais sofrimento. Seja no País africano em que Anton trabalha - contexto em que ele tem de conviver com uma brutal milícia que estupra e dilacera mulheres -, seja no dia a dia, nas ruas, na escola, no trabalho e nas relações sociais. Tornar o mundo um lugar melhor é algo que os olhos azuis de Anton não conseguirão sozinhos. O mundo é bruto e o próprio Anton não é perfeito - há mágoas carregadas por sua ex-mulher Marianne (Tryne Driholm), que nos fazem questionar o comportamento do médico. Suas escolhas. Trata-se de uma obra que, do alto de sua complexidade, faturou não por acaso o Oscar de Filme Estrangeiro na cerimônia de 2011. É um filme, além de tudo, bonito, com sua fotografia granulada (e aconchegante) e bela trilha sonora, que acompanha cada personagem de perto. E que busca exaltar os pequenos e poderosos instantes de leveza, como forma de enfrentar essa crueldade toda - como na bela sequência em que pai e filhos se empenham em empinar uma pipa. Há esperança em meio ao caos. Ou sempre haverá alguém para não devolver um tapa dado. Fica a lição.


terça-feira, 28 de abril de 2020

Músicas (Tri)Gêmeas - The Hollies x Radiohead x Lana Del Rey

Como brincou um "internauta" comentando no Youtube: "Creep do Radiohead, é a minha música preferida da Lana Del Hollies". Bom, esse é um caso raro de plágio que atravessa gerações, em uma maçaroca de grandes canções e de melodias semelhantes. Até mesmo porque quando o The Hollies lançou The Air That I Breathe num longínquo 1973, jamais poderia imaginar que o Radiohead recuperasse o fraseado sonoro da canção para a composição de Creep, que integra o disco Pablo Honey. E como se já não bastasse o plágio - o tribunal obrigou a banda de Thom Yorke a pagar os royalties da música para Albert Hammond e Mike Hazlewood -, a cantora Lana Del Rey tratou de fazer o "plágio do plágio" ao incluir a música Get Free, no ótimo disco Lust For Life. Bom, o Radiohead que já estava pagando royalties pro Hollies exigiu de Lana 100% do faturamento sobre a canção, em um litígio que desobrigou a artista a creditar à canção a Yorke e companhia. Sobre as semelhanças entre as três composições? Bom, vocês que me digam - eu continuo gostando das três!




Pérolas da Netflix - O Mínimo Para Viver (To the Bone)

De: Marti Nixox. Com Lily Collins, Keanu Reeves, Alex Sharp e Liana Liberato. Drama / Comédia, EUA, 2017, 107 minutos.

A gente teria tudo para ter todos os pés atrás em um filme sobre anorexia - tema, aliás, pouco explorado no cinema, talvez também pelas dúvidas geradas em relação aos benefícios ou não desse tipo de debate em obras de ficção. A grande diferença, a meu ver, e que está presente no delicado O Mínimo Para Viver (To the Bone) é que a "curadoria" pôde ser feita pela própria Lily Collins, atriz que protagoniza o filme e que lutou contra a doença na adolescência. Para reviver a experiência, Lily participou de um programa de emagrecimento assistido, que buscava conferir mais realismo às cenas (doloridas, por sinal), em que o seu esquálido corpo aparecia. "No ano passado eu escrevi um livro e, uma semana antes de receber o script do filme, eu escrevi um capítulo sobre as minhas experiências [com a doença]. Foi como se o universo tivesse colocado estas coisas na minha esfera para me ajudar a encarar um medo que eu costumava ter e colocá-lo para fora como alguém que já passou por isso", revelou em entrevista, à época de lançamento da película.

A meu ver a experiência bastante particular de Lily confere mais força para um filme que mostra pessoas estigmatizadas por transtornos alimentares, em um tipo de batalha muito mais psicológica (ou emocional) do que necessariamente física - ainda que seja o corpo o afetado. É ele que o doente vê "distorcido", devendo a mente ser trabalhada no processo. É tudo muito complicado, mas a obra de estreia da diretora Marti Noxon olha com carinho para seus personagens, injetando drama e bom humor na medida certa no transcorrer da história e jogando luz para um assunto delicado, complexo, mas que precisa ser discutido. Na trama, Lily é a jovem Ellen que é enviada por sua família para uma clínica para pacientes com distúrbios alimentares diversos. Nessa clínica com procedimentos nada ortodoxos ela fará amizade com outros pacientes, com suas histórias vindo aos poucos à tona, estabelecendo uma realidade surpreendente em que pessoas bonitas e saudáveis destroem as suas vidas na busca pela aparência "perfeita".


É um filme nem sempre fácil e os mais sensíveis certamente terão muitos motivos para se emocionar no transcorrer da película. Eu mesmo conhecia pouquíssimo sobre o tema - aliás, para mim foi uma surpresa (vejam bem a minha falta de conhecimento sobre o assunto) saber que mulheres anoréxicas ou bulímicas não engravidam. Ou tem muito mais dificuldade de engravidar. E, tão difícil quanto, de manter uma gestação saudável durante a gravidez. E, bom, no filme há uma mulher com transtorno alimentar que está grávida e não é necessário ser nenhum expert para saber que isso não será nada fácil. Nesse contexto, a obra também se ocupa em mostrar que muitos desses distúrbios podem ser decorrentes de outros traumas psicológicos que teriam seu nascedouro nos primeiros anos de vida, sendo muitos deles ocasionados por comportamentos inadequados dos pais. E não estamos apenas falando de abusos sexuais e de violência física: o abuso psicológico, de pais que desejam filhos "perfeitos", também entra neste combo de possibilidades.

Na mesma entrevista, Lily Colins disse que admitir seu passado (agora visto, em partes, no filme), lhe fez se sentir livre. Com calafrios, mas me sentindo muito livre: "compartilhar minha história com distúrbios alimentares e o quão pessoal este filme é foi uma das melhores experiências da minha vida." Para algumas pessoas ligadas a saúde, o filme pode ter um efeito contrário por funcionar como uma espécie de "gatilho" para pessoas emocionalmente abaladas - ainda que eu acredite que só a possibilidade de debate sobre um tema tão espinhoso já faça vale a pena. E é uma obra que não é só chororô: há o Keanu Reeves que interpreta um médico excêntrico, há o jovem Alex Sharp como interesse romântico de Ellen - um garoto que é fã das artes e que serve como um divertido alívio cômico. E há a abordagem ao mesmo tempo repleta de sutilezas, de bom humor e de otimismo, o que em tempos tão brutos pode nos fazer bem. Eu não conhecia sobre o tema e saí da sessão com uma ótima impressão. Convido vocês a fazer o mesmo.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Grandes Filmes Nacionais - Tropa de Elite 2: O Inimigo Agora É Outro

De: José Padilha. Com Wagner Moura, Irandhir Santos, André Ramiro, Milhem Cortaz, André Mattos, Maria Ribeiro, Seu Jorge e Tainá Müller. Drama / Policial, Brasil, 2010, 114 minutos.

Em uma das cenas mais icônicas do cinema nacional moderno, o capitão Nascimento (Wagner Moura), ouve um áudio que é fruto de um grampo telefônico. O material é revelador: nele uma jornalista fala para o deputado estadual Fraga, um defensor dos direitos humanos (papel de Irandhir Santos) que o governador do Rio de Janeiro pode estar diretamente ligado à milícias que não apenas estão por trás de uma série de assassinatos, como participam ativamente do "jogo político". É uma sequência decisiva do sempre atual Tropa de Elite 2: O Inimigo Agora É Outro e que, de certa forma, começa a fechar o arco dramático do icônico personagem de Moura que percebe, afinal, que o sistema é todo corrompido. Podre em todas as suas entranhas. E esse instante quase pequeno diante de tantos momentos inesquecíveis, dá conta do arrojo do roteiro perpetrado por José Padilha, Bráulio Mantovani e Rodrigo Pimentel. Sim, porque seria muito cômodo entregar um segundo filme que seria mais do mesmo, com Nascimento caçando bandidos, berrando seus bordões e saindo como herói nacional das famílias reacionárias de bem brasileiras. Mas o cinema não é feito para isso. É feito para colocar o dedo na ferida. Para questionar o status quo. E isso, o Tropa 2 faz como poucas obras.

E talvez seja por isso que muita gente não simpatize tanto com a sequência, como simpatizou com o primeiro filme. É no primeiro que "brota" o policial fascista e intempestivo, que não tem muito saco pra traficante, que mata primeiro pra perguntar depois. Que tá cagando para os direitos humanos ou para as circunstâncias que levam jovens de periferia ou em vulnerabilidade social a cometerem crimes. Para o Nascimento da obra de 2007 - que se passa, na verdade, em 1997 -, "bandido bom é bandido morto" e serão esses os ensinamentos que ele levará aos dois policiais que se candidatam para lhe suceder - no caso o Neto (Caio Junqueira) e o Matias (André Ramiro). No segundo filme, o capitão Nascimento surge em tela como uma figura já desgastada pelos cabelos brancos e numa pilha de nervos por causa de uma operação do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) do Rio de Janeiro, que sai completamente do controle. Nela, Matias (agora um policial do Bope) avança para cima de bandidos que promoviam um motim na penitenciária de Bangu 1, promovendo uma chacina de presos. Um movimento desautorizado pelo capitão Nascimento, que culmina na morte do traficante Beirada (Seu Jorge). A ação desastrada seria a ideal para que a opinião pública caísse matando, né? Em partes. Em pouquíssimas partes, por sinal.


Apesar do burburinho na imprensa - ecoado pela voz do deputado Fraga -, Nascimento perceberá que, para a população, a operação em Bangu foi um sucesso. E que um ato quase fascista é saudado como uma ação bem sucedida - e a patética cena em que as famílias de bem aplaudem o capitão, de pé, quando ele entra em um restaurante de luxo, dá conta disso (aliás, isso continua tão atual). Esse fato alçará o capitão à condição de subsecretário da Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo em que Matias será rebaixado - uma forma de tornar ele um bode expiatório que atende o clamor de alas da esquerda -, indo trabalhar para uma corporação da polícia militar que é corrupta até as suas entranhas e que se utiliza de sua influência para obter uma série de vantagens financeiras. A estes dois universos que, em tese, deveriam trabalhar para o mesmo lado, se juntará o apresentador de programa de TV sensacionalista e candidato a alpinista político Fortunato (o sempre ótimo André Mattos), o governador Gelino (Julio Adrião) e os policiais milicianos capitão Fábio (Milhem Cortaz) e, especialmente, o major Rocha (Sandro Rocha). Todos eles integram um sistema que aos poucos irá se corroer, conforme as comunidades são ocupadas por uma polícia fascista, que se aproveita de seu poder para exigir da população que, literalmente, PAGUE para sobreviver.

Um sistema que se desmantelará e culminará na sequência citada no começo desse texto, que retira parte do heroísmo e do idealismo que Nascimento depositava na polícia. Se o Bope não aceitava corruptos no primeiro filme, será no segundo que ele perceberá a brutalidade do universo em que está inserido - e não haverá Bope que salve a pele, inclusive, de seus protegidos (caso de Matias). Trata-se de um filme que, dez anos antes da existência da família Bolsonaro no poder, já se ocupava da Máfia das Milícias (e de sua CPI) como matéria-prima, denunciando o que de mais podre existe na natureza daqueles órgãos institucionais que deveriam defender o cidadão - e não matá-lo. Era divertido ver o capitão Nascimento esbofeteando um playboyzinho maconheiro e traficante de segunda linha no primeiro filme? Talvez fosse. Mas é no segundo que ele mergulha na podridão, trabalhando diretamente em uma instituição governamental. Demora um pouco pra cair a ficha - aliás, ela começa a cair em cenas prosaicas, como aquela em que ele tenta instruir seu filho de 10 anos a dar golpes corretos na escolinha de judô. "Eu não gosto de bater nas pessoas que nem você faz", devolve o menino, paralisando o capitão. Fazendo-o desabar, em uma cena das mais tocantes.


E é no poder desse debate que, afinal, reside a força do segundo Tropa de Elite: na discussão sobre a violência policial, seus exageros, sua falta de medida. Suas milícias que surgem como paladinas da justiça, na pretensão de fazer esta com as próprias mãos, matando inclusive figuras proeminentes de nossas política (e, aqui, me refiro especificamente ao caso Marielle, que aconteceria bem mais tarde). É ao jogar luz sobre estes temas, que Padilha torna esta segunda obra tão atemporal - ela sai do campo das ideias, do Vigiar e Punir do Foucault, para nos esfregar na cara uma realidade brutal que nos assombra e que ganha força no formato de uma narrativa que, vejam só que ironia, culmina no desligamento de um Ministro da Justiça que poderia estar muito perto de evidenciar um esquema envolvendo milicianos e uma das mais importantes famílias de políticos do País. É um filme dinâmico, bem montado, cheio de grandes interpretações que, não por acaso se tornou o 35º melhor da história, de acordo com votação feita pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Prestes a completar 10 anos de seu lançamento, Tropa 2 nunca esteve tão atual. E merece ser revisitado - até mesmo porque está na hora de as pessoas começarem a gostar da película pelo motivo CERTO. Não é presunção ou petulância. É apenas um fato. E só.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Pérolas da Netflix - Tigertail (Tigertail)

De: Alan Yang. Com Tzi Ma, Christine Ko, Joan Chen, Fiona Fu e Kuei-Mei Yang. Drama, EUA, 2020, 91 minutos.

Existe uma sequência do filme Tigertail (Tigertail) que funciona mais ou menos como uma carta de intenções a respeito dos temas propostos pela película de Alan Yang (que dirigiu anteriormente episódios da série Parks and Recreation). Nela, um pai conversa com sua filha sobre as escolhas dela, especialmente na área dos relacionamentos, que poderão determinar o seu futuro. O pai está bastante preocupado com a parte financeira, com os bens materiais, em garantir uma boa casa, com conforto e segurança. A filha não parece muito afetada com isso: o que importa é que ela ama seu namorado (e candidato a marido), acreditando que o resto virá nessa "esteira". Só que a grande ironia deste filme é que, ao olharmos para as escolhas feitas pelo pai - seu nome é Grover e é interpretado na terceira idade pelo astro Tzi Ma - em sua existência será ele, agora, um paladino da moral no que diz respeito as decisões que serão tomadas pela filha Angela (Christine Ko) daqui para a frente?

Nesse sentido, a obra quase me fez lembrar a letra da canção O Velho e O Moço do Los Hermanos, em que numa espécie de reminiscência, o eu lírico de um idoso olha para o passado como quem suplica por uma nova chance para alterar aquilo que já está posto e quais seriam as consequências disso (E se eu fosse o primeiro / A voltar pra mudar / O que eu fiz / Quem então agora eu seria). Bom, o caso é que nós não temos como saber e como já foi dito em outras resenhas, somos o mais puro combo de imperfeições, procurando se adequar a um mundo complexo, recheado por convenções sociais questionáveis e padrões excentricamente estabelecidos. Quando jovem, bem jovem, no caso, Grover perde o pai em meio a um contexto de guerra em Taiwan, sendo criado pelos avós, em meio as lavouras de arroz. Já na idade adulta, reencontra a mãe e lhe faz a promessa de lhe garantir uma vida de qualidade, ao passo que deve encarar as novas responsabilidades que este momento lhe traz.


Para Grover, o símbolo de uma vida melhor - financeiramente, emocionalmente - está em migrar para os Estados Unidos. Enquanto não alcança esse objetivo, o rapaz trabalha em uma indústria (aliás a mesma em que sua mãe também é operária) e namora a jovem e Yuan (Joan Chen), sua verdadeira paixão. Só que quando sua mãe quase perde um braço em um acidente na indústria, Grover decide aceitar o convite de seu patrão para uma temporada trabalhando na Terra do Tio Sam. A condição: que case com sua filha Zhenzhen (Fiona Fu). Assim, o rapaz deixa uma vida simples no Oriente, local em que estaria perto de sua mãe e de sua verdadeira paixão, para investir em uma carreira que provavelmente lhe dará mais dinheiro, mais estabilidade, ainda que num casamento que claramente será infeliz, com uma pessoa que ele não gosta. E num local desconhecido, com barreiras de língua e todas as dificuldades iniciais em "projetos" do tipo. Preciso dizer a vocês se isso deu certo? Quando Grover aparece na versão idoso, brigando o tempo todo com sua filha e morando sozinho em um local ok, mas com pouca "vida" a gente já sabe que não.

Todos nós, afinal, fazemos escolhas erradas em nossas vidas - um emprego que escapa, uma paixão que poderia ter sido, uma viagem desperdiçada, pequenos instantes que não voltam mais. E o filme nos lembra o tempo todo que assim é a vida e não cabe a nós julgar. A própria Angela perderá o seu amor mais adiante e do que, afinal, terá adiantado as escolhas prévias? As brigas? Os desentendimentos? Nossos desejos parecem nunca ter fim e, em épocas de Instagram, as nossas vidas nunca parecerão tão suficientes quanto as demais. E Tigertail discute todos esses temas apostando na sutileza, em avanços pequenos e econômicos, em pequenos instantes que nos fazem largar um "aah, então é sobre isso que o filme está falando". Aliás, guardadas as proporções de estilo narrativo, esta obra me fez lembrar outro filme sobre pessoas que buscam ser felizes trocando a geografia, como se ela pudesse determinar a felicidade de alguém: o ótimo e melancólico Foi Apenas Um Sonho (2008), do Sam Mendes. Nele, o casal vivido por Kate Winslet e Leonardo DiCaprio acredita que poderá salvar seu casamento que desmorona, se conseguirem se mudar para Paris. Demora um pouco para que eles percebam que o problema do relacionamento deles está NELES e não no local onde moram. Pode ser tarde para que a gente perceba as coisas de forma um pouco mais cristalina. Ou nem tão tarde assim, já que a vida é feita de imprevisibilidades. Melhor assim, afinal.


quinta-feira, 23 de abril de 2020

Tesouros Cinéfilos - Seven: Os Sete Crimes Capitais (Se7en)

De: David Fincher. Com Morgan Freeman, Brad Pitt, Gwyneth Paltrow e Kevin Spacey. Suspense / Policial, EUA, 1995, 126 minutos.

Dentro do subgênero dos "filmes de serial killer", é provável que poucos sejam tão queridos e lembrados pelo público quanto Seven: Os Sete Crimes Capitais (Se7en). Lançado em 1995 por David Fincher (que mais adiante dirigiria Clube da Luta e A Rede Social), a obra reuniria Morgan Freeman e Brad Pitt como dois policiais encarregados de uma investigação que envolve um assassino que pratica seus crimes tomando por base cada um dos pecados capitais. Uma ideia genial já na origem, vamos combinar. Não bastasse um criminoso de modos imprevisíveis e excêntricos e dois delegados de personalidades distintas - Freeman o sisudo, pessimista e quase niilista William Somerset (que está pronto pra se aposentar, claro), Pitt o impetuoso, idealista e expansivo David Mills (o novato, óbvio) -, o filme ainda tem um dos finais mais EXPLODIDORES DE CABEÇA do cinema moderno - daqueles que permanecem conosco assim que os créditos começam a subir. É amargo, é quase delirante e é cinema hollywoodiano de altíssima qualidade, diga-se.

Só que até esse final ocorrer, somos assombrados juntos com Somerset e Mills com as cenas bárbaras dos crimes cometidos a sangue frio, que vão se descortinando no espaço de uma semana. Tudo começa com o assassinato de um homem obeso (a gula) que é praticamente OBRIGADO a comer até morrer, num tipo de tortura lenta, mas calculada, que estabelece a natureza do assassino que começará a ser perseguido. A avareza, a preguiça, a luxúria e a soberba aparecem em seguida, em crimes tão impactantes quanto os anteriores. Aliás, a sequência envolvendo a preguiça e a luxúria são daquelas de embrulhar o estômago, com o serial killer demonstrando uma ausência total de compaixão, um tipo de sociopatia doentia que vai evoluindo conforme os dias passam e a dupla de investigadores vai sendo surpreendida. E a construção do suspense e da tensão nesse transcorrer é não menos do que espetacular, com a montagem (indicada ao Oscar) se alterando cenas de crimes bárbaros e escritórios em que documentos são analisados e pistas para a formação do quebra-cabeças vão sendo gestadas.


Nesse sentido, trata-se do famoso filme "que passa voando", já que mal temos tempo de respirar entre um assassinato e outro. A chuva proposital que cai desvairadamente durante toda a semana em que o filme transcorre, contribui para o clima de melancolia generalizada e de desalento que se estabelece durante a narrativa e que dialoga com o estado de espírito dos detetives, diante da brutalidade e do absurdo dos crimes cometidos. A fotografia escurecida, a claustrofobia dos ambientes sufocantes, a trilha sinuosa de Howard Shore, tudo isso somado às pistas que são inseridas em pequenas doses, em pequenas pílulas (uma frase tirada de um livro, um detalhe esquisito em uma foto, uma digital enganosa), vão estabelecendo uma condição de sufocamento que deveria servir de aula para qualquer aluno de cinema que tenha o desejo de escrever um suspense. Aliás, é tudo tão bem orquestrado, que até as sequências de ação são injetadas de forma imprevisível e surpreendente, como é o caso da perseguição a um potencial suspeito, bem no meio do filme.

Não bastasse todos esses predicados, o filme ainda estabelece o vilão John Doe (Kevin Spacey) como uma figura perturbada, que mistura religião, beligerância e literatura, utilizando citações a autores como Dante Alighieri, John Milton e Geoffrey Chaucer para espalhar pistas - o que torna uma sequência prosaica como a ida de Somerset a uma grande biblioteca, como uma das melhores da película (pela tensão no ar, pela imprevisibilidade, pela falta de conhecimento generalizado). É um filme que também se utiliza de pequenos recursos sonoros e visuais - repare a forma como Doe mergulha um simples saquinho de chá em uma xícara, quase ao final -, e que vai se tornando maior, conforme nos surpreende. Especialmente quando percebemos que a resolução do caso não se dará no tradicional modo detetives + perseguição + sujeito preso de filmes do gênero (e, vamos combinar que a cena em que Doe surge ensanguentado ao pé da da escada da delegacia se ENTREGANDO a Mills é ao mesmo tempo repugnante e aterradora, investindo em um plot twist que só aumenta a nossa curiosidade, ao passo que TAMBÉM nos assombra).



E, como cereja do bolo, a película ainda conta com personagens secundários relevantes - a esposa de Mills, Tracy (Gwyneth Paltrow) terá importância na reta final, especialmente a partir de uma gravidez revelada e do desejo da concretização do sonho americano, de preferência longe de um cenário de violência. Aliás, será nessas minúcias que passaremos a nos importar com os personagens, sendo a cena do jantar (aquela do metrô), uma das mais importantes nesse sentido. E se um metrô que "chacoalha" uma casa, uma vida, seria uma metáfora óbvia para o universo em que estão envolvidos aqueles investigadores (com a lógica de suas existência sendo balançada pelo criminoso que procuram), ela ainda serve para a inserção de um divertido alívio cômico que envolve uma "taça" de vinho entregue ao personagem de Freeman - e que também serve para denunciar a diferença de personalidade de ambos os investigadores. É o filme completo que, 25 anos depois de seu lançamento, segue valioso. Merece demais ser revisitado.

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Novidades em Streaming - Fiona Apple (Disco)

Quem me conhece sabe que eu costumo brincar com a frase "este é o álbum do ano", que é proferida repetidamente, sempre que ouço algum disco novo que me agrade. Mas, em muitos casos, admito a vocês: trata-se de uma hipérbole, um tipo de exagero que visa apenas chamar a atenção para esse ou para aquele registro que, muitas vezes, nem é tanto assim. Mas eu tenho a impressão que com Fetch the Bolt Cutters, quinto disco da Fiona Apple, a frase em questão fará todo o sentido. O trabalho tem sido celebrado pela crítica e pelo público como o lançamento do ano! Um tipo de material raro, que condensa todas as experimentações testadas pela artista anteriormente, em uma coleção de músicas caóticas mas divertidas, experimentais mas acessíveis. Anárquica, Fiona adota a entropia como modus operandi, nos fazendo navegar por paisagens sonoras que saltam do piano delicado para a percussão nervosa em segundos - com o seu vocal (e o de seus cachorros) também servindo para a criação de melodias únicas, nunca óbvias, mas sempre instigantes. É aquele tipo de disco para ouvir, ouvir e ouvir e ir descobrindo, a cada nova audição, algum novo elemento, algum outro encaixe, uma diferente quebra de lógica - sendo o todo complementado pelas letras sarcásticas, debochadas, que tornam tudo ainda melhor. Quem quiser testar pode começar por Cosmonauts, Shameika ou Ladies. Vai ser uma bela porta de entrada.



A Volta ao Mundo em 80 Filmes - Adam (Marrocos)

De: Maryam Touzani. Com Nisrin Erradi, Lubna Azabal, Hasna Tamtaoui e Aziz Hattab. Drama, Marrocos, 2019, 98 minutos.

Um mulher grávida vaga pelas ruas de uma pequena cidade marroquina em busca de trabalho e de um lugar para dormir. Ouve vários nãos. Quando ouve algum sim para o trabalho ele vem seguido de um não para o pernoite. Após algum tempo consegue abrigo na casa de uma mulher taciturna, que possui uma filha e que tem uma espécie de padaria em casa. Não vai demorar muito para que percebamos que Adam (Adam) é um filme sobre sororidade. Sobre mulheres ajudando mulheres a seguir em frente, a superar obstáculos ou mesmo traumas do passado. É claro que não será um processo fácil, especialmente em uma sociedade machista. E talvez isso explique a resistência inicial de Abla (Lubna Azabal) em receber em sua moradia a jovem grávida Samia (Nisrin Erradi). Uma jovem grávida e sozinha, sem um marido, em uma sociedade fechada, conservadora, patriarcal, é uma pária. Alguém que vive a margem e que possui uma reputação manchada, indigna. E será preciso superar esses preconceitos meio generalizados para seguir em frente.

Trata-se de uma obra delicada e soberbamente conduzida pela diretora estreante Maryam Touzani. É uma película de silêncios, que flui sem pressa e que se utiliza de pequenos eventos cotidianos como recurso narrativo para que a história se desenrole. Como exemplo, Abla parece ser experiente em panificação, mas não tem muito saco para a elaborada produção do rziza - espécie de guloseima típica de lá. Em certo dia Samia surpreende Abla com a elaboração de uma fornada de rziza que se torna um sucesso no mercado. Uma pequena ocorrência que aproximará as duas, que lhes permitirá conhecer um pouco mais uma da outra - de suas histórias, suas angústias e seus desejos. Samia foi abandonada após engravidar - assim como acontece com muitas mulheres mundo afora. Já o drama de Abla é ter perdido o seu marido, no passado. Sozinhas - não que precisem de um marido, como lembra uma delas em determinada altura -, precisarão enfrentar a aspereza do mundo. E, juntas, será melhor.


É claro que não teríamos um filme se não houvesse conflito - e as personalidades distintas da dupla de protagonistas resultarão em pequenas animosidades. Não será de pronto que uma perceberá a importância da outra em sua vida, mas esse "desabrochar" se dará de maneira elegante, classuda. Vale observar, por exemplo, o uso das cores nos figurinos - especialmente no de Abla. Se inicialmente utilizava vestidos de tons opacos, pálidos, sem vida, lá pelas tantas arriscará algum tom mais forte, que denunciará uma clara alteração de seu estado de espírito - com direito, inclusive, a uma piada a respeito da adoção da cor azul! O uso de maquiagem e de outros acessórios tipicamente femininos, como tiaras, será o complemento para personalidades em evolução e que estão deixando, definitivamente, o passado doloroso para trás - e não será por acaso que uma cena em que a dupla escuta a cantora marroquina Warda será tão exemplar do sepultamento de eventos ocorridos anteriormente. É preciso seguir em frente, afinal.

Simpático ao utilizar as ruas movimentadas e cheias de vida do Marrocos - seus vendedores ambulantes, artistas de rua, cantores e outros -, como uma forma de nos apresentar um contexto que "respira" à sua maneira, o filme não se furtará em nos mostrar as dificuldades de uma maternidade não desejada e os conflitos decorridos de um evento do tipo - o que também será simbólico de um tipo de acontecimento bem comum em nossa sociedade: a da mãe que, inevitavelmente, criará um filho sozinho (e a gente até perdoa as alusões bíblicas qe, a meu ver, não ajudam muito). Exibido na mostra Um Certo Olhar, do Festival de Cannes, Adam foi o filme enviado pelo Marrocos, na última edição do Oscar, para concorrer na categoria Filme em Língua Estrangeira. Não se classificou para a final. Mas serviu para que lançássemos o nosso olhar para um cinema que foge dos padrões hollywoodianos - e que tem MUITO a dizer. Vale conferir.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Pérolas da Netflix - Ele Está de Volta (Er Ist Wieder Da)

De: David Wnendt. Com Oliver Masucci, Fabian Busch, Katja Riemann e Christoph Maria Herbst. Comédia / Drama, Alemanha, 2015, 116 minutos.

É simplesmente impossível assistir a um filme como Ele Está de Volta (Er Ist Wieder Da) e não pensar na nossa situação. Não faz muitos anos que um político lunático aparecia em programas de TV como o CQC e o Super Pop destilando ódio, atacando minorias, sendo preconceituoso, xenófobo, intolerante. O que, inicialmente, parecia uma piada de mau gosto - quem se comportaria, afinal, de forma tão reacionária, tão fascista? -, com o tempo foi ecoando entre a população. Começou a tirar do armário aquele parente fascistoide que estava louco para fazer as suas piadas racistas em paz, sem se preocupar com o politicamente correto, que tornava o mundo um lugar "chato", cheio de pessoas que não achavam mais graça nisso. A forma encontrada para legitimar o absurdo? Alçar ao cargo máximo do País aquela mesma figura pateticamente boçal que dizia na TV que preferia ver o filho morto a namorando um "bigodudo" ou que garantia não ter criado os mesmos filhos em ambiente promíscuo como o que a Preta Gil (!) frequentava. Sim, o tiozão do pavê que "brinca" sobre quilombolas e arrobas, que elogia a Ditadura Militar e que pretende fuzilar adversários políticos é a prova viva de que a cadela do fascismo está realmente sempre no cio - parafraseando Bertold Brecht.

Bom, o que Ele Está de Volta (Er Ist Wieder Da), esse imperdível filme alemão - que já deveria ter sido resenhado aqui - faz é metaforizar em cima dessa ideia, ao imaginar como seria se Adolf Hitler em pessoa se materializasse na terra, mais precisamente na própria Alemanha, nos dias de hoje. Bom, é isso que acontece quando o führer acorda em um bairro alemão e percebe que não está mais num contexto de guerra - ela já se extinguiu faz 70 anos, como mostram os jornais atuais. Embasbacado com as mudanças, com a tecnologia, com a presença do povo nas ruas, Hitler (o ótimo Oliver Masucci) fará amizade com um dono de banca de jornal e, mais tarde, com um jovem jornalista fracassado, de nome Fabian (Fabian Busch), que enxerga na figura excêntrica do general nazista reencarnado, uma oportunidade de retorno ao canal de TV em que trabalhava. A sacada genial da película? Tratar tudo com um senso de humor à moda Sacha Baron Cohen, adotando um estilo documental que aproxima a obra de um realismo quase constrangedor.


Com o objetivo de fazer uma espécie de esquete humorística, Fabian levará Hitler - que ele acredita ser um comediante, um tipo de Andy Kaufman que não sai nunca do papel - a cenários prosaicos, nas montanhas, na praia ou conversando com as pessoas. Mas será em um canal de TV que ele começará, de fato, a ser respaldado: com um discurso sobre a importância do patriotismo, da religião, da garantia das liberdades individuais ele começará a ganhar adeptos pela Alemanha. Viralizará quando youtubers lhe descobrirem. E encontrará eco nas ruas, quando pessoas comuns começarem a reclamar dos imigrantes que lhes tomam seus empregos e da importância da manutenção da raça branca. Com um tipo de carisma meio "torto", Hitler começará a recrutar jovens em comunidades de inceis misóginos, todos eles brancos, héteros e frustrados, com sérios problemas psicológicos e de dificuldade de relacionamento, que integram um sem fim de comunidades neonazistas que flertam com ideais nacionalistas de extrema direita e que pregam o ódio, o preconceito e a intolerância contra o diferente. Sabe o Bolsonaro dizendo que bateria em dois homens se os visse beijando na rua? Pois é, o filme mostra, de alguma forma, que o nazismo está enterrado em uma superfície bem curta, com uma parte dos alemães sonhando efetivamente com o retorno daqueles dias. Dias de uma Alemanha forte, respeitada. Sem judeus, imigrantes, pretos e outras minorias, claro.

Devo admitir que não ter assistido a esse filme logo que foi lançado me fez bem - a obra é de 2015. Assim, foi possível perceber com mais clareza como se dá a ascensão de figuras asquerosas como o nosso presidente, que apenas legitimam o discurso de ódio que sempre esteve escondido na população. E ainda que o tema seja seríssimo - a suposta possibilidade da ascensão de uma extrema direita, o que já é REAL -, o filme utiliza o deboche como ferramenta em favor da narrativa, flertando com o absurdo e com o nonsense. [ALERTA DE SPOILER] Em uma ótima sequência em que Hitler faz ilustrações de pessoas que passam nas ruas, ele diz para um cigano não se preocupar pois haverá um "destino" para ele. Em outra, a população fica aterrorizada ao descobrir que o führer matou um cachorrinho (todo mundo esqueceu dos milhares de judeus?). E o que dizer da referência ao filme A Queda, que surge de forma inesperada e divertida? Esses pequenos instantes servem, inegavelmente, de alívio cômico, ainda que a mensagem geral seja nos fazer perceber que não adianta "matar" Hitler. Ele pode estar em cada um de nós. No vizinho. Na tia. No empresário. No estudante de administração. Em nós mesmos, cheios de preconceitos. "Eu não menti para o povo, eles sabiam EXATAMENTE por que estavam votando em mim", lembra Hitler a Fabian em uma das últimas sequências. E é isso que fica em tempos e Bolsonaro. Ele pode até ir parar na lata de lixo da história política, mais adiante. Mas as suas ideias estapafúrdias não morrem. Podendo renascer daqui a... 30, 50 ou 70 anos.


sexta-feira, 17 de abril de 2020

Novidades em Streaming - Henrique Oliveira (Disco)

Aqui no Picanha a gente comprova que o santo de casa faz SIM o milagre. Sim, não basta apenas falar de música, é preciso fazer e é exatamente isso que o meu grande amigo Henrique Oliveira - que divide a "caneta" comigo aqui no site - fez, ao lançar para o mundo o seu segundo trabalho como cantor e compositor. Intitulado Era Tudo O Mesmo, o álbum conta com nove faixas e reflete o "inconformismo pela acomodação, pelo medo do risco e pela futilidade dos sentimentos", na análise do artista. Para ele o registro é como uma fagulha no meio de um mar de frieza, mas polvilhado com uma dose de cinismo. "É sobre como ter um coração em um mundo que não está preparado para isso", filosofa, evocando a imagem da dificuldade que as pessoas têm de não se permitirem pelo medo de se machucar. Comparado com o anterior Pouco de Muito, Muito de Quase Nada (2017), o novo disco também parece mais arejado, com uma produção mais limpa e que muito provavelmente se conectará melhor com o ouvinte - não apenas pela temática, mas também pelo aceno às melodias mais palatáveis. Vale conferir!


Grandes Cenas do Cinema - A História Sem Fim (The Neverending Story)

Cena: O simpático cavalo Artax vai morrer. E nós precisamos lidar com isso.


Vamos combinar, pessoal: definitivamente NÃO É qualquer morte. Não é. É uma morte que, se não nos traumatizou para sempre na juventude, nos ensinou, da forma mais dura, que os seres que amamos também partem dessa para melhor. Eu devia ter, sei lá, uns sete ou oito anos quando assisti A História Sem Fim (The Neverending Story) pela primeira vez. E simplesmente em TODAS as vezes que penso no filme, lembro da dolorosamente melancólica sequência em que o simpático cavalinho branco Artax agoniza no Pântano da Tristeza, enquanto o jovem Atreyu (o ótimo Noah Hathaway) tenta retirá-lo, em vão, em meio a muitos gritos, do meio daquele ambiente inóspito. Trata-se de uma cena totalmente inesperada e que vem logo depois de uma longa sequência em que a natureza da amizade entre Atreyu e Artax é estabelecida - eles atravessam vários cenários em um clima bastante aventuresco, parando apenas para um cochilo e para comer.

Quando a gente vê o filme pela primeira vez a gente não acha que o Artax vai morrer. A narrativa ainda está no início, mal a primeira meia hora de película se desenrolou. Aliás, o próprio Atreyu, incrédulo, parece meio que não acreditar naquilo que assiste: ele chega a rir, quase em tom de deboche, da incapacidade do cavalo de sair daquele lugar. Algo tipo "vamos lá, sai daí de uma vez, e vambora". Só que só percebe que o negócio é sério MESMO quando a água já está quase tapando a cabeça do animal. E há ainda um componente ainda mais sádico nesse sequência ordinária: só sucumbem ao Pântano da Tristeza aqueles seres vivos que sentem algum tipo de melancolia enquanto tentam percorrer o lodaçal, o que significava, como cereja do bolo, que Artax estava TRISTE naquele momento. No momento em que se despedia do seu melhor amigo! Aliás, uma piada que corre na internet é que esta é uma das mais angustiantes sequências do cinema de um amigo perdendo o outro para a "depressão".


Bom, eu não sei como as crianças mais mimadas de hoje em dia lidam com a realidade sendo esfregada em vossas caras, mas nós tivemos de lidar com a morte do Mufasa em Rei Leão e do personagem do Macaulay Culkin em Meu Primeiro Amor - além da do Artax, o que vamos combinar, pode ter ajudado a nossa geração a lidar melhor com o luto e com a consciência sobre a morte. Ou vai ver nós crescemos mais impactados mesmo. E, só pra constar, eu não li o livro do escritor alemão Michael Ende, no qual é inspirada a obra de Wolfgang Petersen, mas quem leu diz que, no livro, a situação é ainda pior por que o cavalo, um animal fantástico, FALA com o Atreyu. Então, ele simplesmente diz ao seu amigo que ele deve seguir adiante, enquanto ele próprio aguarda o seu trágico e agoniante destino no pântano. E eu tô aqui me perguntando qual a classificação indicativa dessa obra, por que, vamos combinar, né?

Bom, brincadeiras a parte, A História Sem Fim é uma obra nostálgica, metalinguística e até existencialista a respeito da importância da literatura na nossa construção e na nossa formação. Tanto que quando o jovem Bastian (Barret Oliver) entra na história, ele descobre um local chamado Fantasia, que está "desaparecendo" por causa da chegada do Nada (e que é representado pela grotesca figura de um lobo). Esse Nada bem poderia ser a redução do número de leitores ou de pessoas interessadas em literatura pelo mundo (o livro foi lançado em 1979, período em que a TV ganhava cada vez mais espaço nos lares), ao passo que a Fantasia, é simbolizada pela nossa capacidade de estabelecer conexões com um universo imaginário - que nada mais é do que aquilo que fazemos, quando nos envolvemos com algum livro (nos deixar levar por um universo fantástico). Divertida e comovente, a obra envelheceu bem e segue se valendo de seu carismático "elenco", cheio de criaturas mágicas - caso do Comedor de Pedra e cachorro voador Falkor -, como um de seus trunfos. Ainda que a morte inacreditável de Artax seja aquilo que, definitivamente, ainda martele em nossas memórias. De chorar!

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Pérolas da Netflix - Viver Duas Vezes (Vivir Dos Veces)

De: Maria Teresa Ripoll. Com Oscar Martinez, Mafalda Carbonell, Inma Cuesta e Antonio Valero. Comédia / Drama, Espanha, 2019, 101 minutos.

De Longe Dela (2006) a Para Sempre Alice (2014), não foram poucos os filmes que abordaram as angústias de pacientes e familiares que convivem com a Doença de Alzheimer. E se há um diferencial nessa verdadeira joia da Netflix chamada Viver Duas Vezes (Vivir Dos Veces) é a capacidade de tratar do tema com algum senso de humor. Não se trata de desrespeitar o sofrimento de quem se depara com um mal ainda sem cura, mas de tentar procurar o riso onde haveria apenas choro ou a esperança onde só existiria a angústia. Isso não quer dizer que não haverá lágrimas pelo caminho e, afinal de contas, não é assim a vida? Cheia de graça e de dor? Na trama, o sempre ótimo Oscar Martinez (visto no desvairadamente hilário Toc Toc) é o professor de matemática Emilio, um viúvo viciado em sudoku, música clássica e pão com tomate, que é diagnosticado com a já citada doença. O que fará com que ele, aos poucos, perca a memória - começando pelas mais recentes, até chegar nas lembranças antigas.

Só que lá nos confins da memória está a lembrança de seu primeiro amor da juventude: uma garota de voz doce, de nome Margarita, que trocava confidências com o rapaz em um tipo de paixão que nunca se resolveu e que agora está presa a um passado que esmaece a cada dia. Como se estivesse no universo do filme Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, Emilio tem medo de que Margarita suma de suas lembranças e resolve ir atrás dela, o que fará com que o filme se transforme, em sua segunda parte, em um simpático e divertido road movie, que contará com a espirituosa presença de sua neta, Blanca (Mafalda Carbonell) - uma garotinha de cerca de doze anos, cheia de personalidade - e de seus pais Felipe (Nacho Lopez) e Julia (Inma Cuesta), que é filha de Emilio. Aos trancos e barrancos, com brigas, discussões, revelações, motivos para sorrir e para chorar, perceberão que a viagem servirá muito mais para um acerto de contas generalizado entre a família, do que para atender um exótico pedido de um idoso doente.


Com extrema habilidade, a diretora Maria Teresa Ripoll centra sua força nos diálogos cheios de tiradas engraçadas e inteligentes, que nos farão rir e chorar na mesma cena, sem muito respiro. Delicada, a obra utiliza suas belas locações e sua trilha sonora arejada para evocar o efeito nostálgico da volta ao passado, trazendo como efeito primeiro a percepção de uma vida que poderia ter sido e não foi. No contraste entre Mafalda, a neta curiosa e "tecnológica", com Emilio, um velho solitário e eventualmente ranzinza, também haverá a percepção de que são mais próximos do que na realidade transparecem: a menina convive com uma doença (real, por sinal) que lhe limita os movimentos das pernas, ao passo que o idoso enfrentará em seus dias finais um tipo semelhante de limitação. No fim das contas, a obra também nos leva a pensar sobre nossas vidas, como as vivemos, como poderíamos vive-las e como sempre estamos em busca da felicidade - que muitas vezes está nas pequenas coisas.

Com personagens que são pura imperfeição e complexidade, a obra ainda se utiliza uma série de metáforas como forma de mostrar a passagem do tempo - e como as memórias se despedaçam -  para uma pessoa que sofre com o Alzheimer. E, nesse sentido, não há sequência mais arrebatadora do que a do muro com grafite, que vai perdendo as cores (e a vida), conforme os dias avançam. São nesses instantes que a película ganha força. E nos emociona. Para no instante seguinte nos fazer gargalhar - como na sequência em que a família se empenha em convencer uma enfermeira a fornecer o endereço de Margarita. Ou mesmo no encontro inusitado com a atual moradora da casa em que Margarita morou. É tudo contradição e complexidade num filme como este que, nas aparências, busca a realização de um sonho quase impossível de um senhor apaixonado. Mas que, no fim das contas, será a desculpa perfeita para uma transformação generalizada de todos que lhe rodeiam. Vale preparar o lenço de papel: no final, ele será necessário.


terça-feira, 14 de abril de 2020

Na Espera - Soul (Filme)

Definitivamente os cinéfilos precisarão ter paciência neste ano já que, com a crise estabelecida pelo coronavírus, muitas obras estão tendo suas estreias adiadas e outras tanta sequer tem data para acontecer. O mais recente filme a sofrer com o ajuste de datas foi a animação da Pixar Soul que, inicialmente, estava prevista para entrar em cartaz em junho e agora foi empurrada para o dia 19 de novembro desse ano, já que a pandemia ainda parece meio longe de arrefecer. E essas alterações na agenda significam também mudanças em todo o esquema de marketing que envolve a magnitude de um lançamento do tipo, já que são comuns na época da chegada de um novo filme as agendas de entrevistas com a imprensa, em programas de TV e em veículos de cultura. E, definitivamente, toda essa reformulação nos deixa tão melancólicos que nem o próprio trailer de Soul nos anima.


Não, mentira, nos anima sim. A trama parece ser mais uma daquelas obras prontas pra nos fazer rir e chorar na mesma cena e que nos fará, a exemplo do que já havia acontecido com Viva: A Vida É Uma Festa (2017) e Divertidamente (2015), refletir sobre comportamento - especialmente na iminência da morte. O elenco conta com nomes como Jamie Foxx, que vive um professor de música que luta para tocar no lendário clube de jazz The Blue Note, em Nova York, mas acaba sofrendo um acidente que "transporta" sua alma para fora do corpo. Será a deixa para uma narrativa cheia de sentimentalismo, de reflexões filosófica e existencialistas e de aprendizados, que deverão acertar em cheio os corações de adultos e crianças. O elenco conta ainda com a Tina Fey e a obra de Pete Docter e Kemp Powers já é tida como figurinha certa na noite do Oscar de 2021, especialmente na categoria Animação. É aguardar (mais um pouco) para ver. Estamos, claro, Na Espera.



Livro do Mês - Liberdade (Jonathan Franzen)

Ao lado de Jonathan Franzen, não foram poucos os autores que se aventuraram em dissecar as vísceras do american way of life e, consequentemente, a completa derrocada do sonho americano. De O Som e A Fúria de William Faulkner até Pastoral Americana de Philip Roth foram muitos os escritores que tentaram traduzir o sentimento de uma época, um tipo de zeitgeist de seu tempo, na literatura dos Estados Unidos. E não é diferente com Liberdade, que se aproxima do décimo ano de seu lançamento, mantendo a sua exegese intacta. No decorrer de suas mais de 600 páginas assistimos, embasbacados, como funciona o microcosmo dos Berglund, uma família de classe média tipicamente americana, cheia de contradições e de frustrações, se sonhos nunca concretizados, de arrependimentos materializados em escolhas erradas, ainda que bem intencionadas, em um contexto social que suga de suas figuras qualquer fiapo de esperança. Em uma narrativa descomplicada, Franzen evidenciará que somos figuras complexas e de escolhas igualmente complexas.

A propósito disso, não será difícil identificar em cada um de nós o idealismo juvenil de Walter - um dos protagonistas. Cheio de boas intenções, é preocupado com o meio ambiente, possui uma agenda claramente progressista, é gentil com as mulheres - entre elas a futura esposa Patty. Mas se verá as voltas, no futuro, com a indústria de mineração de carvão, que promete um projeto megalomaníaco de reflorestamento e de manutenção do ecossistema como contrapartida para seus negócios escusos. Walter precisa pagar as suas contas, afinal: os boletos vencem, as crianças, Joey e Jessica, estão crescendo, em meio a um mundo tecnológico, urgente, que olha com carinho para pessoas de sucesso e que pensem no dinheiro como uma estratégia central de suas vidas. Já Patty é a esposa que nunca aconteceu como jogadora de basquete, o que pontua um outro aspecto onipresente na discussão social: o do patriarcalismo que reina até hoje na sociedade. Relegada a dona de casa (e a mãe), saturará seus filhos até o limite da paciência, pesando nas costas deles a carga emocional que decorre de suas frustrações.


Na narrativa urgente (e paciente) de Franzen, perceberemos como as vidas de cada um daqueles que acompanhamos nunca aconteceu como de fato sonhavam. No decorrer de quase 40 anos, as idas e vindas darão conta de escolhas mal feitas, mágoas acumuladas e comportamentos ambíguos que preenchem um período histórico e de transformações que se inicia na Era Reagan e culmina nos anos de George W. Bush - com o conservadorismo das "famílias de bem" também sendo um componente dessa intrincada rede de valores mal celebrados e de relativização do termo "liberdade" (quem, afinal de contas, é livre entre todos aqueles que acompanhamos?). Gravitando no entorno de Walter e Patty ainda estará o músico Richard, que parece ter um tipo de paixão mal resolvida com os DOIS, sendo o responsável por ampliar o sentimento generalizado de que a rota nunca está sendo bem traçada e que a grama alheia parece sempre mais verde que a nossa. Que o diga os vizinhos de Walter e Patty, o dolorosamente republicano Blake, sua esposa Carol e sua filha Connie.

Admito que este foi o primeiro romance de Jonathan Franzen que li - e parece que o seu trabalho anterior, As Correções, já dava conta dessa análise de um contexto em que a juventude cheia de sonhos se contrapõe a uma velhice atolada até aqui de arrependimentos. E em que o idealismo do passado é confrontado com a urgência do futuro. Todos precisamos (tentar) nos formar, trabalhar, ganhar um salário honesto. Cuidar da casa, dos filhos. No final das contas, tal qual a música de Belchior, nós meio que "nos transformamos" nos nossos pais conforme percorremos as nossas trajetórias cheias de contradições e complexidades. E que fique claro também o fato de que não devemos julgar demais, afinal de contas: olhando para trás, em nossas vidas, fizemos também nós apenas escolhas acertadas? E a meu ver, é nesse olhar para si mesmo que se estabelece a magia de Franzen: quando nos reconhecemos justamente naqueles que estamos acompanhando. Somos pessoas, afinal, buscando a felicidade. Acertando e errando. E é isso que torna esta narrativas envolvente tão representativa de nossos tempos confusos. Vale demais descobrir.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Cinema - O Homem Invisível (The Invisible Man)

De: Leigh Whanell. Com Elisabeth Moss, Aldis Hodge, Oluver Jackson-Cohen, Harriet Dyer e Storm Reid. Suspense / Terror, EUA, 2020, 126 minutos.

A violência doméstica - física e psicológica - e a dificuldade das mulheres em serem OUVIDAS em episódios como estes, estão no centro do debate de O Homem Invisível (The Invisible Man), um suspense quaaaase bom. E eu não quero ser presunçoso afirmando isso mas a primeira metade do filme estava me ganhando de uma maneira, que estava prontinho pra escrever uma resenha das mais elogiosas, para um estilo que eu seguidamente torço o nariz. A trama inicia da forma mais sensacional (e angustiante) possível: uma mulher que saberemos mais tarde que se chama Cecilia (Elisabeth Moss) está tramando um plano para fugir de seu marido em um casarão em uma bela encosta litorânea. Ela levanta perto das quatro da manhã, faz tudo em silêncio para não chamar a atenção, até conseguir pular o grande muro que envolve a mansão para encontrar sua irmã - e, a princípio, a liberdade. Traumatizada pela dor vivida, ela tem dificuldade de superar e seguir adiante até o dia em que, duas semanas depois, chega a notícia de que seu ex, o abusador violento, morreu. Se suicidou, aparentemente.

Cecília está morando na casa de seu amigo James (Aldis Hodge) e de sua filha Sydney (Storm Reid). O trio convive de forma amistosa nos dias seguintes à chocante notícia da morte de Adrian (Oliver Jackson-Cohen), o ex, mas Cecilia sente como se algo a incomodasse: em meio aos corredores e as frestas da casa do amigo, parece sentir a presença do falecido. Como se fosse um vulto à espreitá-la, impossibilitando-a de seguir a vida normalmente. E confesso a vocês que a execução técnica dessa primeira parte, é não menos do que soberba. Com habilidade, o diretor Leigh Whanell (que fez Sobrenatural: A Origem, que eu não assisti), utiliza os enquadramentos, a profundidade de campo e os travellings como forma de "preencher" o cenário, gerando tensão por aquilo que NÃO vemos, mas, assim como a protagonista, também sentimos. O mesmo vale para o desenho de som, que transforma ruídos cotidianos como o chilrear de uma panela ou o zumbido de uma lâmpada, em elementos que contribuem para a claustrofobia onipresente, que é completada por uma fotografia naturalmente escurecida. Há tensão por todos os poros e uma tensão que a gente não sabe bem dizer por quê: e essa é a melhor parte do filme. Tanto que até os inevitáveis jump scares surgem de forma orgânica, como na parte em que Cecilia chuta sem querer a tigela de comida do cachorro.


Mas aí vem a segunda parte, que nos revela muito cedo qual é a natureza daquele sentimento de perseguição a partir de algo aparentemente invisível para Cecilia. Com dificuldade de fazer com que os demais compreendam aquilo com que está lidando - como acontece quase sempre que uma mulher resolve denunciar um agressor -, será enviada para tratamento psicológico, especialmente após a ocorrência de um crime bárbaro. Pior, sem poder provar aquilo que acredita estar vendo - à sua maneira de ver, claro -, se verá isolada conforme a brutalidade dos acontecimentos se avizinharem a ela. E, aí sim, admito que a inevitável correria do segundo ato, quase me fez perder boa parte do interesse pelo projeto. O filme tem sequências simplesmente deliciosas de "gelar a alma" sem fazer muito esforço - como na parte em que Cecilia descobre, no sótão da casa de James, um inexplicável celular de Adrian. Mas até mesmo a profissão do ex da protagonista acaba por entregar muito rapidamente qual a explicação mais lógica para aquilo que estamos assistindo. E isso em um filme de suspense, que se vale em muitos casos da tensão e das formas de "segurá-la", aprofundando a angústia e o terror do espectador, é algo meio decepcionante. Por mais que, evidentemente, compreenda o impacto social da denúncia do absurdo da violência doméstica como componente narrativo.

E, ainda que aqui e ali a correria tenha a sua dose de tensão, a conversão do suspense em um mero thriller policial na segunda parte, reduz bastante o potencial que poderia ter sido explorado até o final da película, inclusive com outras soluções possíveis para o caso. E, mesmo as reviravoltas, são incapazes de surpreender o cinéfilo mais atento. E, pior: soam quase infantis, assim como as motivações do vilão e daqueles que estão ao seu redor - por mais que, sim, sociopatas sejam violentos sem muito sentido. E, como crítica a este tipo de comportamento, a película também não funciona tão bem assim, já que parece ser um tanto desperdiçada a oportunidade para a ampliação desse debate. E, talvez eu esteja exagerando um pouco em esperar um pouco mais de investigação psicológica ou profundidade em um simples suspense, mas a primeira parte me fez esperar por isso. E me enganou. Restou alguns sustos, muita correria e nenhuma discussão sobre o horror da violência doméstica. Além da boa atuação de Elisabeth Moss, que sempre se entrega de corpo e alma a tudo que abraça. Achei meio pouco.

Nota: 6,5



sexta-feira, 10 de abril de 2020

Foi Um Disco que Passou Em Minha Vida - Teenage Fanclub (Grand Prix)

Não sei como tem sido para vocês mas para mim, especialmente em tempos de quarentena, não é todo o dia que estou disposto para qualquer tipo de música. O pessimismo em relação ao futuro, a impossibilidade de sair de casa, de abraçar os amigos, de beijar aqueles que amamos. A frieza dos dias que são percorridos, muitas vezes, com uma solidão resignada por causa de um vírus que, entre o pior de seus efeitos, nos desaloja o coração. Tudo envolto em uma névoa de indefinições - como se estivéssemos em uma distopia literária sem perspectiva de final feliz. E, então, como suportar? Como tentar enfrentar tudo isso com um sorriso no rosto, enquanto aguardamos por dias melhores? Bom, em muitos casos, no que diz respeito aos discos, tenho recorrido àqueles já familiares, que me trazem algum tipo de conforto, que me fazem sorrir naturalmente. Que me deixam nostálgico e até otimista. E, a meu ver, poucos trabalhos alcançam tão bem esse ideal quanto o ótimo Grand Prix, do Teenage Fanclub.

Esse álbum, pra quem não sabe, foi um dos responsáveis por formatar a minha amizade com o Henrique Oliveira, que escreve o Picanha junto comigo. Há 25 anos atrás, época em que o disco foi lançado, havia uma prática comum, que talvez surpreenda os jovens de hoje em dia: a de trocar discos. Emprestar ao outro. Com prazo especificado de devolução, em um tipo e equação que tornava inversamente proporcional a urgência dessa mesma devolução quanto mais raro fosse o disco. E conseguir uma edição do Grand Prix não era pra todo mundo. Era um álbum importado, que constava em tudo quanto é lista de melhores - como no caso daquelas que apareciam na finada Revista Bizz -, e que custava, mesmo naquela época, a bagatela de uns 80 reais (o que convertendo para hoje em dia seria facilmente uns R$ 400 em um disco). Então vejam só que grande sinal de amizade, quando o Henrique me emprestou este disco e, bom, só posso dizer que foram algumas tardes gastando-o na vitrola, enquanto lia o encarte, com as letras.



Eu tô falando desse disco em um texto meio sem lógica por aqui - como costumam ser os desse quadro -, porque o Grand Prix é aquele tipo de álbum do veraneio. Trata-se de um registro acolhedor, primaveril, cheio de canções e de refrões enérgicos, que consolidada o trio Glasgow como um dos principais expoentes do power pop no mundo. Até este trabalho foram outros três discos - A Catholic Education (1990), Banwagonesque (1991) e Thirteen (1993) - e salvo um ou outro instante de euforia em cada um deles, foram obras muito mais marcadas pelo shoegaze e pelo deboche universitário, que os fazia cantar olhando os próprios pés. Sim, os fãs raiz do Teenage Fanclub talvez citem o Bandwagonesque e sua capinha à moda videogame com uma sacolinha de dinheiro e suas letras sobre usar jeans descompromissadamente como sua principal influência juvenil. Mas aquela melodia sinuosa, quente, com algum toquinho de psicodelia, que juntou The Byrds com Big Star numa coisa só, chacoalhou no liquidificador, e entregou ao mundo um creme saboroso de música adocicada, foi somente no disquinho com o carro de fórmula 1 estampado na capa.

Em uma entrevista, certa feita, o baixista Gerard Love disse, sobre o Grand Prix, que não era "música para quando você está prestes a sair e sim para quando você voltar". Nesse sentido é a música que acalma e aconchega. É aquela em que nos sentimos familiarizados - ainda que mantenha, é preciso que se diga, a verve roqueira. É mais ou menos como na abertura, com About You em que Norman Blake canta a plenos pulmões, amparado por Love e Raymond McGinley, que "sempre soube o caminho até você". É um tipo de bobice tão elementar, que é repetido em gemas como I'll Make It Clear (Eu vou deixar claro / Eu te amo querida), Going Places (Tenho a noção / Que essa chuva não vai durar) e Sparky's Dream (Preciso de uma bola de cristal para enxergá-la de manhã / E olhos mágicos para ler nas entrelinhas), que nos fazem manter o sorriso necessário, especialmente em tempos delicados. O Teenage Fanclub anda meio parado agora. Mas o que ele fez com Grand Prix não se apaga, o que torna um disco quase necessário para tempos tão sombrios.


Novidades em Streaming - The Strokes (Disco)

Vou fazer um pedido a vocês: não deem bola pra crítica musical especializada, que vai estar com os dedinhos coçando essa semana pra redigir aquela resenha bem venenosa, falando mal do novo álbum do The Strokes. Ocorre que The New Abnormal é o melhor registro de Julian Casablancas e companhia em mais de uma década. Aliás, com este trabalho eles definitivamente passam uma borracha nas bobajadas experimentais Angles (2011) e Comedown Machine (2013), para fazer aquilo que eles sabem de verdade: aquele rock enfumaçado, cheio de guitarrinhas bacanas e, agora, com efeitos eletrônicas divertidos. É um disco oxigenado, que olha com carinho para o início da carreira, para entregar músicas perfumadas, cheias de vigor e personalidade como Brooklyn Bridge to Chorus, The Adults Are Talking e At The Door. Nesse sentido, o álbum fica, para os fãs, no limite entre o nostálgico e o inovador, como se promovêssemos um reencontro com aquela banda que, num longínquo 2011, nos ajudou na nossa "formação musical". Se esse é ser o "novo anormal", bem-vindos de volta, gurizada!!



quarta-feira, 8 de abril de 2020

Novidades no Now/VOD - Uma Mulher Alta (Dylda)

De: Kantemir Balagov. Com Viktoria Miroshnichenko, Vasilisa Perelygina e Konstantin Balakirev. Drama, Rússia, 2019, 137 minutos.

A guerra definitivamente não acaba quando termina. Ficam os traumas, as dores não apenas físicas, mas psicológicas. E como se reerguer da pior das devastações, que é a emocional? Uma Mulher Alta (Dylda) - o enviado da Rússia para a categoria Filme em Língua Estrangeira no Oscar desse ano -, trata desse tema, com um tipo de sutileza quase peculiar. A guerra já passou em Leningrado, mas os hospitais estão ocupados por soldados dilacerados, com corpos e mentes destruídos e distantes de qualquer tipo de recuperação. É um contexto cheio de dor e de devastação, que tenta encontrar motivação nas pequenas coisas - como uma visita inesperada ou uma brincadeira envolvendo uma criança. A "mulher alta" do filme trabalha nesse hospital. Seu nome é Iya (Viktoria Miroshnichenko) e ter mais de 1,80 de altura é a menor de suas preocupações, enquanto transita em meio a pacientes feridos, médicos esforçados e doentes de todos os tipos.

A melhor amiga de Iya é Masha (Vasilisa Perelygina), jovem que retornou do front após uma gravidez e será acompanhando a rotina de ambas nos dias que se sucedem ao término do cerco a Leningrado (a história diz que a cidade ficou quase três anos ocupada por nazistas, com mais de dois milhões de pessoas morrendo não apenas de guerra, mas de fome, em uma das mais devastadoras ofensivas da Segunda Guerra Mundial), que compreenderemos como as dores de ambas - aliás, as dores de TODOS -, estão na alma. Começa pela própria Iya, que sofre de uma espécie de paralisia inesperada no corpo, certamente resultado de algum tipo de trauma. Masha, nas aparências, se esforça por parecer mais forte, mas a destruição nas trincheiras lhe mutilou o corpo, que agora está impedido de gerar um filho. Um filho, que talvez represente algum tipo de volta da humanização, da normalidade, do choro misturado com o riso e talvez sem motivo. E que lhe faça fugir daquele universo que deveria ficar no passado, mas insiste em volta ao presente.


Aliás, o absurdo da guerra, suas mortes e violência a rodo, fazem com que Masha nem faça muito caso quando Iya anuncia que seu filho está morto em uma inesperada tragédia, ainda no primeiro terço do filme. O sofrimento, afinal, não parece ter mais medida, e ambas as atrizes entregam interpretações comoventes que nos fazem perceber que, mesmo quando sorriem, prefeririam chorar. Para as mulheres tudo sempre foi mais difícil no mundo e num pós-guerra tudo é ainda pior com a desumanização de tudo. A guerra acabou mas a comunidade ainda está embebida nela. Chafurda no ódio e na violência sem lógica, que atinge e forma inesperada, o que faz com que uma cena prosaica em que dois jovens flertam desajeitadamente com as protagonistas, seja apenas a desculpa para a evidência de feridas, de personalidades embrutecidas, de incapacidade de retomada de uma convivência.

A gente fica falando que vai sair diferente da crise instalada pelo coronavírus, mas será mesmo? Os filmes e séries nos mostram que, em casos de guerra, a batalha nunca chega ao fim na "volta pra casa". Há outras lutas, outros fantasmas a lidar e estaremos nós preparados para eles? Para o que vem pela frente? No filme do jovem diretor Kantemir Balagov - aliás, ele faturou o prêmio no Festival de Cannes -, a aspereza e a aridez saem da pele daqueles que assistimos. De seus olhos, gestos e bocas. Chegam ao desenho de produção magnífico, que nos faz acreditar que aquele de fato é um cenário de guerra, alcança a fotografia granulada e brinca com as cores verde (esperança) e vermelho (paixão) para metaforizar sobre o tipo de amizade agora emulada por Iya e Masha e chega até a trilha sonora econômica e claustrofóbica, com destaque para as notas perturbadoras que escutamos a cada instante em que o corpo de Iya se paralisa. Não é um filme fácil ou palatável. Talvez até não seja tão agradável de assisti-lo em tempos de Covid-19. Mas a realidade crua mostra que a guerra pode ser tão violenta e opressora quanto uma pandemia, que deixa um rastro de mortes mesmo depois que vai embora.

Nota: 9,0


terça-feira, 7 de abril de 2020

Curta Um Curta - Palíndromo

Está aí um curta bastante original. Tomando por base o conceito do palíndromo - frase ou palavra que pode ser lida da esquerda para a direita ou vice-versa -, o diretor Philippe Barcinski (do ótimo Não Por Acaso) realizou um filme que pode ser apreciado (e compreendido) da mesma forma. Irônica e debochada, a obra conta a história de um sujeito que perde tudo que tem: do trabalho, passando pela amante, até chegar aos seus objetos pessoais. Mesmo com tudo acontecendo de trás pra frente a gente percebe que pode ser enganado por um recurso narrativo simples, que embola a ideia de "felicidade" e de "mundo ideal", quando tudo começa a ruir. Palíndromo é tão querido pela crítica especializada que se tornou, no ano passado, o 65º melhor curta metragem nacional da história, em votação promovida pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine), além de ter sido amplamente premiado em festivais, como o de Gramado.

Tesouros Cinéfilos - O Clube (El Club)

De: Pablo Larraín. Com Marcelo Alonso, Antonia Zegers, Francisco Reyes, Alfredo Arturo Castro Gomes e Roberto Farias. Drama, Chile, 2015, 98 minutos.

De clássicos literários como O Nome da Rosa (1980), de Umberto Eco, a filmes recentes como Spotlight: Segredos Revelados (2015), de Tom McCarthy, não foram poucas as produções culturais que abordaram, através dos tempos, a hipocrisia reinante em alguns setores da Igreja Católica. Aliás, existe um livro do jornalista francês Fréderic Martel chamado No Armário do Vaticano, que vai ainda mais a fundo na discussão de temas como abusos sexuais, pedofilia e outros crimes cometidos por cardeais, padres e sacerdotes, que acabam encobertos pela "cultura do sigilo" que costuma esconder os excessos por medo de escândalos e de reações diversas da opinião pública. Bom, eu não li o livro de Martel, mas pelo que diz nas resenhas e resumos, ele parece estabelecer um forte diálogo com as temáticas do perturbador filme O Clube (El Club), obra do chileno Pablo Larraín (No), que faturou o Urso de Prata (Prêmio do Juri), no Festival de Berlim de 2015.

Na trama, quatro sacerdotes vivem em uma pequena casa de um vilarejo litorâneo (La Boca), acompanhados de uma freira. A rotina de atividades prosaicas como o treinamento de cachorros para corridas e passeios pela praia será quebrada com a chegada de um quinto religioso ao local, que rapidamente desencadeará uma série de situações de instabilidade que, aos poucos, revelarão a natureza daquela espécie de hospedagem. Após um crime (e uma morte), um certo padre Garcia (Marcelo Alonso) será destacado para investigar o ocorrido. E será durante esse processo que segredos envolvendo aqueles padres virão à tona: afastados pela Igreja Católica estão ali, em reclusão, por serem pecadores e terem cometido transgressões diversas - de pedofilia, passando por ocultação de crimes durante a Ditadura Militar chilena, até tráfico de crianças.


Bom, não é exagero dizer que, a despeito da temática pesada, a obra é conduzida com elegância, aproveitando-se de sua atmosfera densa, enfumaçada, para ir desnovelando seus detalhes aos poucos. Entrevistados por Garcia, os demais padres apresentarão as suas motivações, o que colocará em cheque uma série de dogmas da Igreja Católica - caso do celibato, da criminalização do homossexualismo e até mesmo do aborto como uma prática possível. Pode não ser muito palatável para pessoas excessivamente religiosas - aliás, fuja do filme, se você não consegue lidar com o questionamento de suas convicções -, mas aqueles que compreenderem o debate proposto, encontrarão em O Clube um verdadeiro documento de nosso tempo. Um tempo, aliás, em que pessoas cruéis, mentirosas e maquiavélicas, se escondem por trás da fachada de um sorriso ameno, de uma atitude plácida e de uma voz calma - quase a personificação do "novo fascista", pronto para produzir um universo de violência, enquanto fala sobre ética, família e bons costumes.

Ainda sobre a parte técnica, interessante observar como fotografia, trilha sonora e enquadramentos são utilizados a favor da narrativa. A fotografia acinzentada, quase pálida, esmaecida, somada aos acordes tristes e urgentes da trilha, compõem um cenário de desolação e melancolia, que é completado pelo clima claustrofóbico que reina nos apertados cômodos da casa (aliás, observe como parece difícil a existência de todos eles juntos em um mesmo cenário). E há ainda a ótima intepretação dos atores, com destaque para Antônia Zegers como a Irmã Mônica - figura cheia de ambiguidades -, e Roberto Farias como Sandokan, um jovem traumatizado por abusos sexuais de um Padre, em sua infância. Aliás, o filme é tão carregado de tensão, que um simples monólogo de Zandokan sobre perversões sexuais diversas, ainda no começo da película, já nos deixa completamente embasbacados. É filme literalmente de gente grande: com tema sério, abordado com inteligência e sutileza, dando o tapa na cara e questionando. E que merece demais ser descoberto.


segunda-feira, 6 de abril de 2020

Cine Baú - Roma, Cidade Aberta (Roma, Città Aperta)

De: Roberto Rossellini. Com Anna Magnani, Francesco Grandjacquet, Marcelo Pagliero e Aldo Fabrizi. Drama / Guerra, Itália, 1945, 101 minutos.

Em uma das mais clássicas sequências de Roma, Cidade Aberta (Roma, Città Aperta) - pungente retrato de Roberto Rosselini sobre a Itália ocupada pelos nazistas -, uma mulher grávida corre, em desespero, atrás de seu marido que está sendo levado pelos militares alemães. É uma cena dura, sem concessões: a mulher termina morta, alvejada por uma saraivada de balas, sem qualquer chance de defesa. O tipo de crueldade que integrava o combo destrutivo da guerra, que era incapaz de enxergar o componente humano de um suposto adversário político. Comunistas? Subversivos? Desertores? Contrários ao regime? Todos que se enquadrassem em qualquer uma dessas categorias corriam risco de vida e a obra-prima de Rosselini, que inaugura o Neorrealismo Italiano, é praticamente um documento duro, agudo, melancólico de seu tempo. Sua câmera flana entre os personagens, como alguém que observa à espreita, sendo incapaz de separar a ficção da realidade.

Nesse sentido, a cena da grávida, uma mulher de nome Pina (a ótima Anna Magnani), ou mesmo a sequência em que o padre católico Don Pietro (Aldo Fabrizi) é torturado e também morto mais adiante, resumem de forma magnífica o nada surpreendente horror daquele contexto. Em uma Itália ocupada, com nazistas a cada esquina, resistir é um ato perigoso, que poderá resultar em perda de vidas. E não é por acaso que quando Giorgio Manfredi (Marcelo Pagliero) é procurado - tem sua casa revistada, invadida -, ainda no começo do filme, seu único ímpeto é fugir a qualquer custo. Após escapar, ele se refugia no apartamento do tipógrafo Francesco (Francesco Grandjacquet), noivo de Pina. Os três e mais o já citado padre tem planos que envolvem uma entrega de dinheiro que pode auxiliar a resistência contra os nazistas. Tudo é feito por baixo dos panos, sem chamar a atenção, respeitando o toque de recolher e todas as outras exigências em um País sitiado. E é ÓBVIO que a gente sabe que, em algum momento, algo sairá errado.


Tomando por base o perigo dos regimes como totalitários como ponto de análise, não deixa de impressionar o fato de a obra se manter tão atual - especialmente em um cenário em que assistimos embasbacados a ascensão de uma extrema direita que parece se orgulhar de sua estupidez. Racismo, preconceito, xenofobia e sentimento de superioridade fazem com que a sociedade atual conviva, estruturalmente, com o mesmo tipo de horror. Ou alguém considera um ato agregador assistir a um presidente declarar a plenos pulmões que pretende fuzilar adversários políticos? Ou de que para "arrumar" um País seriam necessárias 30 mil mortes? Ou que uma pandemia é apenas uma gripezinha? Claro, estamos falando de algo com uma proporção menor, mas jamais devemos esquecer que foi com o mesmo tipo de discurso nacionalista, de temor religioso e de exaltação ao belicismo que Hitler chegou ao poder, retirando do armário a intolerância e legitimando-a.

Com o uso de atores não profissionais, e uma câmera severamente observadora, a película ainda se aproveita de sua bela fotografia em preto e branco para não conceder ao espectador praticamente nenhum momento de respiro. Talvez a exceção possa ser a divertida cena em que o padre muda a lógica de orientação de duas estátuas de santos. Ou do instante, no começo do filme, em que um morador pobre revela uma grande quantidade de pães roubados da padaria. Mas mesmo estas sequências servem para dar conta de uma desorientação meio generalizada que vigora naquele contexto. O mesmo contexto em que ruas aparecem destruídas, com entulhos amontoados e soldados do Reich por toda a parte, espreitando os italianos e prontos para cercearem a sua liberdade. Prestes a completar 75 anos de seu lançamento, a película de Rosselini segue sendo uma das mais assombrosas experiências fílmicas sobre o absurdo da guerra, pavimentando o caminho para outros tantos exemplares que marcariam o Neorrealismo Italiano - casos de Alemanha Ano Zero (1948), do mesmo Rosselini e de Ladrões de Bicicleta (1948), de Vitorio de Sica. Vencedora da Palma de Ouro no Festival de Cannes, a obra ainda costuma figurar em uma série de listas de melhores da história, além de aparecer em livros como o dos 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer. Fundamental.

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Lançamento de Videoclipe - Empress Of (Give Me Another Chance)

Conhecida pelo nome de Empress Of, a cantora Lorely Rodriguez lançou nesta sexta-feira (03/04) o seu terceiro disco. Intitulado I'm Your Empress Of, o registro muito provavelmente será figurinha fácil nas listas de melhores álbuns do final de 2020. Após dois excelentes trabalhos que apresentavam uma sinuosa mistura de eletrônica, pop, latinidade e até música clássica, a artista parece ter chegado à maturidade com um registro super bem produzido e que amplia o diálogo com as pistas de dança - ainda que este caminho seja percorrido por curvas nunca óbvias. O exemplo disso está em um dos primeiros singles, Give Me Another Chance, que recebeu um vigoroso videoclipe em que a cantora se movimenta com fluidez em meio a pista de dança, enquanto uma letra visceral sobre perdão ecoa em meio a sintetizadores noventistas. Vale demais conferir!

Novidades no NOW/VOD - Caixa de Recordações (Retablo)

De: Alvaro Delgado Aparício. Com Junior Bejar, Amiel Cayo e Magaly Solier. Drama, Peru, 2017, 95 minutos.

De acordo com o dicionário, o verbete Retábulo pode ser definido como uma espécie de "construção manual de madeira ou de pedra, em forma de painel, que se coloca na parte posterior de altares, sendo geralmente decorada com temas sacros ou retratos de santos". É, portanto, uma peça de artesanato - um tipo de caixa de decoração que pode ser ainda mais bonita, se mais colorida -, que é desvendada aos poucos, conforme avançamos pelo seu interior. Assim como as pessoas, numa metáfora óbvia, nem sempre percebemos de saída o que aquelas formas, figuras ou cores querem nos dizer. E essa, em muitos casos, pode ser a beleza da arte que nos instiga a juntar seus fragmentos, na tentativa de evidenciar o todo. Nem tudo está claro. Nem tudo estava claro para o jovem Segundo Paucar (Junior Bejar) - protagonista do filme peruano Caixa de Recordações (Retablo) - até que algumas verdades muito bem escondidas começaram a se revelar. As pessoas, afinal, também funcionam como verdadeiros retábulos.

Com apenas 14 anos, Paucar mora em algum lugar dos Andes, onde aprende de seu pai (Amiel Cayo), o ofício de retablista. Em meio à rotina silenciosa de atendimentos de pedidos de vizinhos ou de amigos, uma ou outra ida para a cidade para colher matéria-prima para o trabalho, movimentam o dia. Ou mesmo uma visita a vizinhos, criadores de suínos ou ovelhas. Tudo é eventualmente bucólico, num local de belíssimas paisagens que só são alteradas pelo barulho de caminhonetes escandalosas que vão e vem da cidade. Na relação de pai e filho, um tipo de cumplicidade que começa aos poucos a se quebrar, conforme o menino vai fazendo a transição que lhe levará a vida adulta. A cada festa, a cada bebedeira, a cada celebrado pedido ao artesão, Segundo volta seu olhar aos detalhes - uma palavra dita, um gesto, um olhar cordialmente dirigido -, que faz com que ele perceba que a rotina estabelecida, provavelmente será rompida ali adiante. Quebrada. Ressignificada.


É complicado falar de um filme tão sutil sem resvalar para o spoiler. Inclusive acho recomendável que as pessoas assistam sem saber muito. Com muita habilidade na condução de seus atores - o naturalismo impressiona -, o diretor estreante Alvaro Delgado Aparício, elabora seu filme a partir de uma série de pequenos instantes que, juntos, formarão uma colcha de retalhos. Nela, temas como conservadorismo das pequenas comunidades, machismo, preconceitos diversos, aceitação do outro e fanatismo religioso aparecem aqui e ali para nos mostrar que, independentemente do lugar, o ódio e a intolerância podem surgir com força, sem aviso prévio. Instigado pelo mundo que lhe rodeia a se comportar como um macho - inclusive ao ouvir seus pais transando -, Segundo terá dificuldade em lidar com a aspereza de tudo, enquanto centra sua força na beleza da arte que realiza em parceria com seu genitor, um tipo de atividade delicada, sacra, quase elegíaca.

Tecnicamente, Aparício não se furta de utilizar longos planos sequência que evidenciam a urgência em meio aos momentos de instabilidade, ou que mesmo nos forçam a um olhar mais detalhado para aquele contexto que presenciamos. Novamente, as belas paisagens podem ser apenas isso: o belo que está no exterior, mas o mundo, as pessoas, são mais complexas do que morros e campinas verdes, pedras e outros objetos. Há uma aridez pronta a sair dos cantos, das bordas. E Segundo aprenderá tudo isso num curto período de tempo, enquanto ele mesmo junta os cacos de uma vida que aos poucos se devasta, para tentar reconstruir, com as peças que tem, o seu próprio retábulo. Enviado do Peru à edição do Oscar desse ano, a obra se junta a Contracorrente (2009), para provar que o País andino ainda tem muito a oferecer com seu cinema. Nós, espectadores, agradecemos.