quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Tesouros Cinéfilos - Festa de Família (Festen)

De: Thomas Vinterberg. Com Henning Moritzen, Ulrich Thomsen, Thomas Bo Larsen, Paprika Steen e Birthe Neumann. Drama, Dinamarca / Suécia, 1998, 100 minutos.

[ATENÇÃO: ESSE TEXTO TEM SPOILERS]


Uma festa que tem a intenção de celebrar os sessenta anos de Helge (Henning Moritzen), patriarca de uma tradicionalíssima família dinamarquesa é o pano de fundo de Festa de Família (Festen) - esse verdadeiro clássico do movimento Dogma 95, que venceria o Prêmio do Júri no Festival de Cannes. Para o pomposo evento, que ocorre num enorme casarão de campo, estão convidados filhos, noras, netos, cunhados, amigos e outros familiares próximos. O que pode, afinal, dar errado? Como essa fachada quase imaculada poderia ser rompida? Bom, quem conhece a filmografia do diretor Thomas Vinterberg - dos excelentes A Caça (2012) e Druk: Mais Uma Rodada (2020) - sabe que o seu cinema é provocativo, ousado e costuma colocar o dedo na ferida independente do assunto. Aqui, ele aponta a sua câmera para a hipocrisia das famílias tradicionais, conservadoras - normalmente hábeis em se autoproteger do "mundo", mantendo segredos, aparências e virtudes intocadas. E preservando o status quo, é claro.

Bom, até poderia ser assim, não fosse o fato de Christian (Ulrich Thomsen), filho mais velho de Helge, tomar a palavra para revelar, em meio ao jantar e às homenagens ao anfitrião, que ele não apenas o estuprava quando criança, como ainda o fazia com a conivência da própria mãe, Else (Birthe Neumann). E, pior do que isso, o aniversariante também violentava a falecida irmã de Christian - e o fato de ela ter se suicidado pode ter a ver com o trauma gerado pelos crimes. Evidentemente que o discurso de Christian joga um balde de água fria no evento. Só que o mais dolorido é perceber como muitos dos presentes ficam contra ele, como no caso do intempestivo irmão mais novo Michael (Thomas Bo Larsen), que o expulsa da festa. "Roupa suja se lava em casa" chega a comentar outro parente, recriminando-o. A janta, afinal, não pode parar. Há um banquete a servir. Vinho. Farta gastronomia. Se há problemas eles se resolvem em outro contexto. A coragem de Christian é cinicamente convertida em problemas particulares, que decorrem de sua exasperante solidão, de seu comportamento taciturno e de sua predileção por histíorias fantasiosas.


E a meu ver esse é um dos pontos mais assombrosos da obra de Vinterberg, afinal de contas, quantas vezes já não vimos coisa parecida no nosso entorno - em alguns casos na nossa própria família? Joga-se os problemas para baixo do tapete para se investir em uma aparência ilusória de bem estar, quando no íntimo as relações podem estar devastadas. Cochichos, fofocas, preconceitos, falsidades, segredos absurdos prontos a emergir gerando incômodo. Retirando máscaras. Apontando comportamentos moralmente questionáveis dos que estão ali do lado, sentados no sofá. Arrotando algum tipo de superioridade ética enquanto se esforçam por esconder seus podres. Vinterberg acerta em cheio ao apontar a teatralidade como uma espécie de metalinguagem para a própria vida. Como se estivesse apenas filmando a festa, entre os convidados, ele vai desnovelando o que de mais vil há nas entranhas, o que de mais sórdido brota dos escombros. A janta? A festa? Não, esta não pode parar.

Talvez ao lado de Ondas do Destino (1996), de Lars Von Trier, Festa de Família seja um dos pontos altos do Dogma 95 - talvez o último grande movimento cinematográfico que se tem conhecimento. Nele, os cineastas deviam respeitar 10 mandamentos na produção dos filmes que representavam uma espécie de contraponto ao cinema mais comercial feito por Hollywood. O que explica a adoção não apenas de câmera na mão (uma câmera por vezes nervosa, trêmula), a ausência completa de trilha sonora (a exceção do som ambiente), a opção por tomadas em locação, com reduzido uso de itens cenográficos, e a ausência de outros truques de fotografia ou efeitos especiais. O resultado é uma experiência claustrofóbica e urgente, realista e absurdamente naturalista. Se surgisse ali no meio um debate sobre Lula ou Bolsonaro na próxima eleição não surpreenderia você se confundir aqueles com seus próprios parentes. O padrão dificilmente se desvia. Tudo permanece intocado. Para deleite do público.

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