quinta-feira, 30 de maio de 2019

Foi Um Disco que Passou em Minha Vida - Soundgarden (Superunknown)

Existem discos que te "formam" enquanto ouvinte. Que, a seu tempo, alteram a sua percepção enquanto consumidor de música, definindo as bases daquilo que se vai gostar ou não, no futuro. A gente muda, amadurece, cresce. Mas aquilo que nos acompanhou na juventude - especialmente do ponto de vista das artes - muitas vezes permanece. Eu tinha treze anos, quando o Soundgarden lançou o Superunknown, mas fui um consumidor tardio desse registro. Em 1994 o jogo de futebol com a vizinhança no final da tarde ou o Mega Drive barulhento da noite, ocupavam o tempo do recém-adolescente. Mas em algum momento entre 1996 e 1997 eu fui assistir, despretensiosamente, o clipe de Black Hole Sun, que era lançada como single. Não sei explicar o sentimento. Os olhos brilharam, os ouvidos se apuraram, a camisa de flanela saiu do armário. Era um videoclipe diferente, colorido - a despeito do clima chuva cinza de fim de tarde do grunge -, a voz gutural do Chris Cornell alternando estrofes adocicadas, com o peso imprevisível do refrão...

Eu sei que eu PRECISAVA daquele álbum. Naquela época se comprava álbuns. Se ia em lojas - no caso daqui de Lajeado, nas extintas Planet Laser e CD e Cia - para adquirir discos, por preços inacreditáveis e que, em alguns casos, chegavam a um décimo do salário mínimo. Hoje alguns registros custam um décimo do salário mínimo. Aqueles mais raros, difíceis de encontrar ou que sejam material de colecionador. Mas o causo é que o Superunknown era impossível de se achar. Até o OK Computer do Radiohead eu comprei por aqui. Mas não esse do Soundgarden, que acabou se tornando objeto de desejo. Havia um colega meu do terceiro ano, o grande amigo Guilherme Priebe, que possuía o registro. E ele foi absurdamente ouvido na viagem do TERCEIRÃO para Santa Catarina. Aliás, foi lá, no Estado vizinho, que fui encontrar o álbum, em uma despretensiosa loja de um shopping qualquer, que eu nem lembro o nome. Aos 16 anos, a aquisição da vida.


Quem já ouviu o Superunknown - aliás, se você não escutou, faz a um favor a si mesmo e abre o Deezer ou o Spotify e dá o play - sabe: trata-se de uma explosiva experiência sonora de 73 minutos e 16 músicas. Hoje em dia nem se faz mais disco de 73 minutos. Fora o Kamasi Washington, talvez. O Vampire Weekend lançou um álbum de 59 minutos e tá sendo chamado de disco "duplo". Enfim, desvendar aquele trabalho era reconhecer, talvez pela primeira vez na vida, quais eram os reais limites entre o rock mais pesado e a música comercial. Na juventude, uma novidade que abriria portas para a descobertas de outras bandas. Hits como Feel On Black Days, Spoonman, The Day I Tried To Live e, especialmente, My Wave - essa última com a sua guitarra flamejante, barulhenta e inesquecível -, tocaram a exaustão na MTV. E provaram que era possível bater cabeça de All Star surrado, mas também cantar o refrão de forma desavergonhada.

Premiado no Grammy, o registro alcançou grande popularidade, deixando para trás o hermetismo de Badmotorfinger (1991), o pesado trabalho anterior, que ficaria mais famoso pela suposta blasfêmia do videoclipe de Jesus Christ Pose do que qualquer outra coisa. Com uma estética mais limpa, o Soundgarden abraçava a incerteza do mundo no meio dos anos 90, fazendo um dos álbuns mais "anos 90" daquela década. Nas letras o pessimismo ruidoso, que pedia a audição solitária do quarto juvenil, ainda que fosse irresistível gritar junto um "alive in the superunknown". A subversão do 4 de julho e, consequentemente, do sonho americano (4th Of July), viagens depressivas e violentas (The Day I Tried To Live), o passado turbulento que insiste em aparecer (Let Me Drown) ou simplesmente o homem que insiste em fazer música com uma colher (Spoonman). Uma mistura nervosa, roqueira, pessimista, de uma das mentes mais criativas que surgiram nas últimas décadas e que, lamentavelmente, nos deixou tão cedo.



quarta-feira, 29 de maio de 2019

Pérolas da Netflix - My Happy Family (Chemi Bednieri Ojakhi)

De: Nana Ekvtimishvili, Simon Groß. Com Ia Shugliashvili, Merab Ninidze, Berta Khapava e Dmitri Oragvelidze. Drama, Geórgia, 2017, 118 minutos.

Quando o espetacular My Happy Family (Chemi Bednieri Ojakhi) começa, a protagonista Manana (Ia Shugliashvili) está de aniversário - completa 52 anos. De presente? Uma casa apertada, caótica, atrolhada de gente. Gritos para todos os lados, reclamações, mal estar. Não há diálogo. Dois filhos - um deles desempregado, fica o dia inteiro no computador. O pai doente e a mãe preocupada com uma janta para convidados, que Manana não deseja. Um buquê de flores protocolar do marido Soso (Merab Ninidze). Mais um dia de trabalho. De vida vazia. De solidão em meio a multidão. "O que aconteceu? Até parece que morreu alguém", pergunta o marido lá pelas tantas, enquanto uma cantoria melancólica é a trilha sonora para uma festa de aniversário desajeitada. Manana não responde. Ninguém morreu fisicamente, claro. Quem está morta é a própria, naquele microcosmo que só existe por causa das convenções sociais. Ainda mais em uma sociedade patriarcal como a da Geórgia.

Mas Manana está disposta a quebrar a lógica dessas convenções e resolve, simplesmente, sair de casa. Ela é professora de literatura, gosta de artes, deseja um pouco de paz agora que os filhos já são adultos e podem se virar. Um casamento infeliz? Pra que continuar. Em sua nova casa - um simpático apartamento que dá de frente para um arvoredo bucólico, revigorante - organiza as coisas. Arruma tudo. Senta com um pedaço de bolo, enquanto uma sonata de Mozart toca ao fundo. O livro em cima da mesa aguarda para ser lido. A ventania iluminada da rua é a metáfora perfeita para uma vida que reinicia. Ou que ao menos tenta reiniciar, já que nenhum de seus parentes entende a decisão tomada por Manana. A sua mãe Lamara (a ótima Berta Khapava), fala na vergonha que a situação gerará para todos. O irmão Rezo (Dmitri Oragvelidze) está preocupado com o futuro da irmã recém separada. Mas ninguém parece preocupado (ou pergunta, que seja), o que Manana está sentindo. Sim, é difícil, mas ela vai superar, com certeza.


A comoção causada pela ruptura de um elo familiar desgastante, histriônico, com seis, sete pessoas convivendo as turras debaixo do mesmo teto, gerará uma série de constrangimentos futuros para Manana. Qualquer motivo besta será ocasião para um reencontro desnecessário, com tios, pais e outros passando por verdadeiros papelões dramáticos, na intenção de fazer a protagonista retornar ao tal "lar feliz" do título. Manana saiu de casa mas não se mudou. Ela apenas não quer mais aquela vida. Não precisa ser vilã - ainda que muitos tentem lega-la a esse papel. E acaba vendo na sua jovem filha Nino (Tsisia Qumsisvili) um espelho dela própria. Nino deseja casar, ter filhos e seguir o papel destinado as mulheres de sua sociedade. Aliás, se angustia com a gravidez que não chega, enquanto Manana tenta alertá-la para as outras possibilidades existentes na vida, para além de simplesmente ser dona de casa e ter um filho: estudar, trabalhar, viajar, ter independência. Pequenas conquistas que, agora desamarrada, 35 anos após, a protagonista está também alcançando.

Quem defende a família acima de todas as coisas talvez se incomode com a naturalidade com que o roteiro da dupla de diretores se ocupa de desnovelar o sonho da realização familiar que nem sempre chega. "Não há famílias sem problemas no mundo", argumenta um dos personagens em meio a uma discussão que tenta demover Manana de sua decisão, ao que ela responde divertida "não sabia que meu marido tinha tantos fãs, de uma hora pra outra, na família". É uma obra pequena, mas conduzida com inteligência, desenvoltura. Os longos planos sequência transformam o espectador em uma figura íntima daqueles que assistimos - e, diga-se, bastam apenas três minutos de filme para desejarmos fazer o mesmo que Manana faz. As cores inicialmente empalidecidas, melancolicamente amareladas da vida da mulher, vão aos poucos dando lugar a tons mais quentes, a vestidos mais bonitos, coloridos. É uma frase antiga aquela de que nunca é tarde para ser feliz. Mas se fosse resumir o filme a uma sentença, seria essa. Não significa abandonar ninguém, ser vilão e sim apenas revisar algumas tomadas de decisão. E procurar fazer melhor dali pra frente. Vale o mesmo para o marido, como atesta a ambígua cena final.

segunda-feira, 27 de maio de 2019

Tesouros Cinéfilos - O Filho (Le Fils)

De: Jean-Pierre e Luc Dardenne. Com Olivier Gourmet, Morgan Marinne e Isabella Soupart. Drama, Bélgica / França, 2001, 103 minutos.

Assim como ocorre com a descriminalização do aborto e com a discussão sobre a possibilidade de liberação da maconha para usos medicinais, o tema da ressocialização de indivíduos que cometeram crimes - especialmente os mais jovens -, sempre suscita um amplo debate. Por um lado, enquanto correntes mais progressistas acreditam no potencial transformador da reintegração de presos recém libertos e do retorno ao convívio social a partir de políticas públicas humanísticas, a turma reacionária, que acredita que "bandido bom é bandido morto", prefere sinalizar para a aprovação da pena de morte como medida punitiva, para a redução da maioridade penal e para liberdade policial para matar, se assim os agentes responsáveis pela manutenção da segurança da sociedade, acharem necessário. Sim, é um tema difícil, com opiniões inflamadas de cada um dos lados.

Na trama do excelente O Filho (Le Fils), mais uma daquelas obras-primas dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, esta temática surge de maneira central dentro da narrativa. O filme mostra o dia a dia do carpinteiro Olivier (Olivier Gourmet, premiado em Cannes por sua caracterização) que coordena um grupo de jovens aprendizes de seu ofício. Ali pelas tantas, um rapaz de nome Francis (Morgan Marinne), chamará a atenção de Olivier, que lhe contratará. Após uma discussão envolvendo a ex-esposa de Olivier, Magali (Isabella Soupart), descobriremos que Francis é o assassino do filho do casal, em um incidente pouco claro, ocorrido cinco anos atrás. Após uma temporada no reformatório (foi preso quando tinha apenas onze anos), o jovem está em busca da reintegração na sociedade. Detalhe: sem saber que está trabalhando com o pai de sua vítima do passado.


Como quase sempre ocorre na filmografia dos irmãos Dardenne, é um filme áspero, nem sempre fácil, em que os silêncios e os olhares prevalecem - ainda que eles comuniquem muito. Desde o começo da película, Olivier espia Francis pelas frestas das portas e janelas da carpintaria, enquanto barulhos de equipamentos em operação, de pregos sendo martelados e de madeiras sendo trabalhadas ecoam pelo ambiente - formando um contexto sonoro esquizofrênico, que contribui para o clima de tensão que se estabelece desde os primeiros minutos de filme. A cada instante em que o pai enlutado está diante de seu algoz, paira uma dúvida no ar a respeito do destino de ambos: Olivier seria capaz de perdoar e seguir adiante? Ou em meio ao olhar oblíquo de seus óculos fundo de garrafa e de seus modos taciturnos estaria sendo perpetrado algum tipo de vingança posterior?

Perfeitos na construção da encenação, os diretores praticamente grudam a câmera em Olivier, adotando o estilo documental de forma fluída, orgânica - o que joga o espectador para "dentro" do filme, sem concessões. Este sentimento é reforçado pela adoção de longos planos sequência, o que reduz o efeito mais "duro" dos cortes, na montagem, reforçando o clima de suspense, levando o espectador quase ao limite. E mesmo cenas prosaicas, como a do grupo de jovens levando toras de madeira para cima de uma escada, se transformam em instantes de puro estranhamento (e tensão), em que se tem a impressão de que algo mais grave vá ocorrer a qualquer momento. É cinema gigante, mas sendo econômico, deixando as explicações para as entrelinhas, sem nenhuma obviedade ou solução fácil.



[ALERTA DE SPOILER] Funcionando como uma sequência perturbadora de encontros e desencontros entre Olivier e Francis - que culminarão em uma cena decisiva dentro da oficina do primeiro - a película ainda reservará para o terço final a maior de suas surpresas (e que deverá irritar os adeptos do "olho por olho, dente por dente"). Incapaz de se vingar de seu aprendiz, Olivier destinará a ele um curioso "novo papel", após o jovem lhe perguntar se ele se importaria de ser seu tutor. Uma conclusão nada óbvia, que foge do padrão hollywoodiano de vingança, e que simboliza uma vitória da esperança e do perdão, afinal de contas, Francis também é resultado de uma sociedade que não lhe assiste da melhor maneira - há um pai que morreu e uma mãe ausente. Assim, fechar as portas para ele, seria perpetuar a injustiça social. O que, no fim, Olivier parece se recusar a fazer.

sexta-feira, 24 de maio de 2019

Novidades em DVD - Vidro (Glass)

De: M. Night Shyamalan. Com Bruce Willis, James McAvoy, Samuel L. Jackson e Sarah Paulson. Drama / Ficção Científica, EUA, 2019, 129 minutos.

Vamos combinar, né: não deu certo a tentativa de M. Night Shyamalan de ligar os universos de Corpo Fechado (2000) e Fragmentado (2016). E não é porque a trama não faça sentido - a narrativa é até bem organizada e reserva algumas razoáveis surpresas pra reta final. Mas o problema mesmo é que Vidro (Glass) é chato pra cacete! É um filme longo, arrastado, com diálogos que beiram o risível, um roteiro que apresenta poucas inovações e que transforma a ideia da eterna homenagem às HQs em algo pouco inspirado e bastante redundante. Sim, com Corpo Fechado Shyamalan já fez o filme que presta tributo aos quadrinhos. E o fez com criatividade, adicionando sinuosidade a trama que ainda reservava um elemento surpresa no final, que deixaria os cinéfilos rindo à toa. Mas ao ligar os personagens daquele filme ao daquele estrelado por James McAvoy, tudo que o diretor conseguiu foi arrancar bocejos.

Ok, a intenção talvez não tenha sido das piores. São universos possíveis de estarem interligados. Ao final de Corpo Fechado, David Dunn (Bruce Willis) descobriria que era uma espécie de super-herói e que Elijah Price (Samuel L. Jackson) seria o seu antagonista - sendo o responsável pelas milhares de mortes no acidente de trem que assistimos. Já em Fragmentado, o sequestrador Kevin (James McAvoy) era o personagem que sofria de Transtorno Dissociativo de Personalidade, distúrbio que fazia o raptor dar lugar a uma criança de nove anos, a um professor de história ou a uma simpática dona de casa em questão de segundos. É quando Dunn, atuando como um misterioso vigilante, descobre quatro adolescentes mantidas como reféns em uma fábrica abandonada, que os universos deste e de Kevin se encontrarão. E, após uma violenta briga entre ambos, eles serão mandados para um hospital psiquiátrico para iniciaram um tratamento daquilo que os médicos acreditam ser apenas um problema mental.


E confesso que essa ideia até achei boa. A da existência de pessoas que acreditam que sofrem de alguma Síndrome do Super-Heroi (ou algo do tipo), com os seus supostos superpoderes podendo ser perfeitamente explicados pela ciência. É como naqueles filmes sobre exorcismo, que poderiam dar conta da possessão demoníaca a partir de uma lógica racional. Assim, a Fera (uma das personalidades de Kevin) seria realmente forte e capaz de escalar paredes? Já David, seria realmente imortal? E qual seria o superpoder de Elijah? A sua mente brilhante? Todos esses aspectos são conduzidos de forma coerente, a partir do trabalho da doutora Ellie (Sarah Paulson), que acredita que tudo aquilo que relatam os seus pacientes, é mera ilusão. Nesse sentido o filme se torna muito menos uma disputa do bem contra o mal e de mocinhos e bandidos e muito mais sobre um grupo de pessoas doentes que lutam contra um sistema médico que os oprime.

Essa é a parte legal da coisa. Mas na tentativa de homenagear novamente e de todas as formas às HQs, Shyamalan exagera na construção da história que é toda explicadinha o tempo todo por Elijah (vem cá, o espectador é tão burro assim que não consegue entender o que está rolando?). Por exemplo, lá pelas tantas, o personagem de Samuel L. Jackson sugere que a "batalha final" entre os protagonistas deveria se dar no topo e um prédio que será inaugurado naquele dia. E ele bate nessa tecla mais de uma vez! Não dava pra gente supor e chegar a uma conclusão do tipo "claaaaro, nos gibis é sempre assim, com a luta final ocorrendo em algum espaço monumental". Nesse sentido, os excessos expositivos também transformam Vidro em uma caricatura em que diálogos como "você está lutando pelos desajustados, você encontrou seu propósito", são ditos sem nenhuma vergonha. Só que é vergonhoso.


E ainda que McAvoy se esforce na composição das múltiplas personalidades daquilo que é chamado de "horda", as demais figuras do elenco parecem operar desde o primeiro segundo no piloto automático (bom, Willis não muda a expressão em momento nenhum, sendo que a gente nunca sabe o que ele realmente está pensando pois ele está sempre com a mesma fisionomia). Jackson tem algumas nuances interessantes, mas o roteiro insuficiente lhe lega um papel apenas secundário no desenrolar da trama - e confesso que desejei muito que houvesse uma história realmente legal a ser contada, unindo esses dois universos. Só que não foi dessa vez, Shyamalan. É novamente um filme que fica no quase e que faz com que a gente tenha, inclusive, um sentimento de deja vu durante as mais de duas horas da película. Que, pra piorar, ainda passam vagarosamente.

Nota: 4,5

quarta-feira, 22 de maio de 2019

Tesouros Cinéfilos - O Corte (Le Couperet)

De: Costa-Gavras. Com José Garcia, Karin Viard e Ulrich Tukur. Comédia / Drama, Bélgica / França / Espanha, 2005, 117 minutos.

Quem acompanha a carreira do grego Costa-Gavras já sabe que o cinema político é o seu forte - como atestam obras fundamentais como Z (1969) e Estado de Sítio (1972). Com O Corte (Le Couperet) o diretor realizou uma debochada comédia, que leva ao limite o conceito de capitalismo selvagem, que faz com que as pessoas briguem o tempo todo pelos melhores postos de trabalho. A ideia de "eliminar adversários" na busca por uma vaga de emprego adquire, nesta ótima película, um tom literal quando o protagonista Bruno Davert (José Garcia) resolve que a solução para voltar ao mercado é assassinar os potenciais concorrentes para o mesmo cargo. Sim, é bastante nonsense, com a película flertando com o absurdo a todo momento. Mas a intenção é a de, metaforicamente, fazer a crítica a um sistema que se apresenta extremamente competitivo, fazendo com que as pessoas tomem medidas desesperadas na busca por um novo posto de trabalho.

Quem já esteve desempregado - alguém não esteve? - já sabe o quão desgastante é essa situação. Bruno, um executivo da área de produção de papel, está sem trabalho há mais de dois anos. E quanto mais o tempo passa sem algum retorno positivo das entrevistas que participa, mais o sujeito vai ficando amargo, desgostoso, ranzinza - a despeito do apoio incondicional que recebe da família, simbolizado pela esposa Marlene (Karin Viard). Quando a oportunidade real aparece, Bruno descobre uma brecha no sistema dos correios para desviar os currículos de outros candidatos à mesma vaga para a sua casa. Após analisar os documentos, ele percebe que concorre de forma real com outras cinco pessoas, que possuem capacitação parecida. É a partir disso que ele elabora o seu maquiavélico plano, que dará cabo de cada um de seus "adversários".


Em suas andanças, o protagonista perceberá que o mercado não anda fácil pra ninguém - e desde o começo dos anos 2000 não são poucas as notícias sobre o desemprego na Europa e que, na França, ultrapassa os 10% da população ativa. Um dos concorrentes de Bruno está trabalhando de garçom. Outros seguem buscando. E, aqui, Costa-Gavras também faz a crítica a uma classe média letárgica, que acredita que só pode trabalhar naquilo em que é hiperespecializado (e repare como Marlene se vira em diversos subempregos para tentar dar o mínimo de sustento para a casa e para os dois filhos). Bruno zanza pela cidade se transformando em um improvável assassino em série - com direito as surreais cenas em que testa armas que utilizará mais adiante -, mas não baixa a guarda para admitir que, bom, talvez seja necessário recomeçar um pouco mais de baixo em um cargo de menor expressão.

Divertido na sua abordagem do consumismo - observe os ostensivos cartazes e outdoors que insistem em reaparecer, sugerindo objetos caros e de apelo quase "pornográfico" -, o filme ainda diverte ao apostar na casualidade, como forma de Bruno se livrar de seus crimes. O que não ocorre com o seu filho, por exemplo, que vai parar no xadrez após alguns episódios de roubo de materiais de informática. Os fins, afinal, justificam os meios? A pergunta que rege toda a película, serve apenas para nos mostrar que estamos em um círculo vicioso: quem tem emprego sempre se empenhará para mantê-lo, num universo em que as pessoas parecem sempre prontas a puxar o tapete umas das outras (o que não deixa de ser algo a se lamentar). Alegórico, quase à moda de um Tarantino francês, Costa-Gavras faz a crítica necessária a tempos tão competitivos - isso que naquela época não ouvíamos falar em empreendedorismo de palco, em coach, em coworking, em startups e em outros termos da área -, extrapolando qualquer limite de lógica, de coerência e de ética. Vale conferir.


terça-feira, 21 de maio de 2019

Novidades em Streaming - The National (I Am Easy To Find)

A impressão que dá nas primeiras audições de I Am Easy To Find, oitavo disco do estúdio dos americanos do The National é a de que eles estão promovendo um retorno àquilo que eles sabem fazer como ninguém: um rock soturno, eventualmente minimalista e repleto de divagações do homem moderno em seu contexto político/social/urbano. Se o trabalho anterior, Sleep Well Beast, era levemente mais barulhento, invocando elementos mais eletrônicos em meio as guitarras raivosas e o vocal "final de tarde chuvoso" de Matt Berninger, agora há um pouco menos de expansão, um aceno para o recolhimento e para as melodias que fazem lembrar o melhor disco do coletivo, até hoje: o incensado Boxer. Aqui no Picanha somos suspeitos em falar: a banda é uma das preferidas da casa e o disco, que parecia meio exaustivo com seus longos 63 minutos de duração (e 16 faixas), tem descido redondinho. Ficou na dúvida? Comece por Quiet Light e Rylan. Se gostar do que escutou bota o fone de ouvido e curte o resto. Certamente não haverá arrependimentos.



Tesouros Cinéfilos - Um Sonho de Liberdade (The Shawshank Redemption)

De: Frank Darabont. Com Morgan Freeman, Tim Robbins, Bob Gunton e Clancy Brown. Drama, EUA, 1994, 142 minutos.

Talvez não seja exagero afirmar que Um Sonho de Liberdade (The Shawshank Redemption) se consiste em uma das maiores fábulas sobre o poder da amizade, no cinema moderno. E também sobre manter a esperança, mesmo diante de adversidades que parecem intransponíveis. E, vamos combinar, é incrível como essa obra - era a estreia de Frank Darabont adaptando Stephen King - envelhece bem. O roteiro sinuoso que faz com que vivenciemos a experiência de torcer por presos que, na verdade, são os mocinhos (especialmente em um sistema prisional abusivo), somado a interpretações grandiosas e repletas de sutilezas formam o combo para uma obra que faz a crítica à modelos opressores, mas sem por isso soar pesada, desgastante, aflitiva. Há uma mistura de gêneros que flui de forma natural, assim como é natural a inesquecível narração em off de Red (Morgan Freeman).

Red funciona como um guia para a história que inicia no ano de 1946. É ele que fala sobre a chegada de Andy Dufresne (Tim Robbins) à prisão de Shawshank, um jovem e bem sucedido banqueiro que tem a sua vida modificada quando é sentenciado à prisão perpétua por, supostamente, ter matado a sua esposa e o amante. O silêncio inicial de Andy revela um certo mistério à respeito de seus hábitos que, somente mais tarde, quando este se aproximar de Red, perceberemos que são bastante meticulosos. Tão meticulosos que Red gargalhará quando Andy pedir a ele - ele é o sujeito que consegue objetos no "mercado alternativo" da prisão - um pequeno martelinho de pouco mais do que 20 centímetros. E um cartaz em tamanho grande da Rita Hayworth. E pedras, para a produção de peças de xadrez - quase uma metáfora para o tipo de jogo que veremos ser jogado na tela.


A narrativa se desenvolverá sem pressa e quase não a veremos passar. Há uma alternância de pequenas e comoventes sequências - como aquela em que um grupo de detentos faz uma parada para tomar cerveja (pequeno prazer obtido a partir de uma troca de favores em meio à uma obra) -, com outras mais impactantes, como no momento em que um jovem preso é assassinado por policiais, como forma de apagar evidências que poderiam significar a inocência do protagonista. É uma película, afinal, sobre persistência e força de vontade, que coloca de um lado a perversidade dos oficiais do Estado e de outro um grupo de pessoas que está tentando se reenquadrar em uma sociedade que, dificilmente, lhes aceita. E talvez seja por isso que tenhamos tanta GANA dos guardas do sistema prisional, com sua óbvia mistura de bala e bíblia, o que contribui para que torçamos com todas as nossas forças para que os planos de Red e Andy deem certo.

No inesquecível terço final, Andy, com toda a paciência do mundo, já ganhou a confiança de seus algozes, sendo o responsável por organizar a documentação da prisão, aumentando o aporte de recursos a partir da lavagem de dinheiro e com a adoção de um sistema de subcotas em formato de suborno - ele era um banqueiro, afinal. E as tragédias vistas dentro do sistema falido da prisão serão o combustível para que Andy avance com seu plano, enquanto nos deleitamos com a narração dos acontecimentos, feita por Red. A respeito disso, é preciso que se diga: a obra possui uma vasta coleção de reflexões filosóficas, de grande valor humano e que funcionam, ainda que sejam ambíguas, do ponto de vista moral. "Esperança é uma coisa boa, talvez a melhor de todas e, nada do que é bom, deve morrer", divaga Andy a certa altura, como se resumisse o espírito dessa obra tão monumental, que ficou com a 72ª posição em lista do American Film Institute (AFI) com os 100 Melhores Filmes de Todos os Tempos. Inesquecível.

segunda-feira, 20 de maio de 2019

Grandes Filmes Nacionais - Tatuagem

De: Hilton Lacerda. Com Irandhir Santos, Jesuíta Barbosa, Rodrigo Garcia e Ariclenes Barroso. Drama / Comédia, Brasil, 2013, 110 minutos.

Verdadeiro caldeirão artístico em que o teatro se mistura com música, a dança se funde com a literatura, resultando em uma manifestação cultural absolutamente simbólica, de grande riqueza poética e amplamente profunda em sua abordagem: dessa forma seria possível resumir, ao menos em partes, a importância de Tatuagem, do diretor Hilton Lacerda - certamente um dos mais valiosos filmes nacionais desse milênio. A impressão durante a apreciação do longa é a de estarmos mergulhados em um universo frequentemente festivo, anárquico, colorido, em que o vaudeville francês se mistura com o kitsch regionalista. Não há limites para a abordagem das artes na obra, que vai no limite do corpo e do sexo como representação política, para formar um panorama de resistência ante a uma ditadura que se avizinha de forma irreversível. Sim, é aquele filme que fará as "famílias de bem" regurgitarem, certamente.

A trama se passa em 1978, no Recife. De um lado, a trupe teatral Chão de Estrelas, coordenada por Clécio (Irandhir Santos), prepara um novo espetáculo em que o deboche e as cenas de nudez são utilizados com a intenção de incomodar, de quebrar paradigmas e de fugir do lugar comum. De outro lado, o jovem Fininha (Jesuíta Barbosa) está no exército, em um período em que a opressão dos militares era o padrão - estávamos nos Anos de Chumbo do Governo Geisel. Fininha é o cunhado da expansiva Paulete (Rodrigo Garcia), uma das estrelas do coletivo e acaba conhecendo este universo, no dia em que vai visitar a irmã da namorada para lhe entregar uma encomenda. Fininha é gay e a convivência com um grupo livre de preconceitos fará com ele se permita mais, iniciando um relacionamento com o próprio Clécio. Mas e como fica o dia a dia no exército? Como lidar com aquilo que está sentindo e, consequentemente, com o bullying (e a hipocrisia) dos colegas?


A gente sabe que, em algum momento, estes universos tão antagônicos poderão entrar em ebulição. Mas a riqueza de Tatuagem não está exatamente nesse arco dramático até certo ponto previsível - e que, não surpreende, dialoga com o nosso contexto político/social/cultural atual -, e, sim, em outros aspectos, como é o caso da abordagem do amor sem falso moralismo, de forma verdadeira e com grande respeito. Assistir as interações dos integrantes do Chão de Estrelas é estar diante de uma espécie de apresentação permanente de teatro em que a ficção sai da tela dando lugar a uma realidade festiva, tropicalista, humana. De pessoas que se querem bem independente de cor, de sexo, de altura ou de conta bancária. Não é que não haja problemas. Mas são problemas reais e maiores do que homens se relacionando com homens: há o medo da censura, o dinheiro que está minguado, as paixões que geram ciúmes, as preocupações com o futuro dos filhos. É o Brasil real, mas o Brasil que se diverte, que debocha das instituições, que é iconoclasta e livre para se expressar.

E há um grupo de atores claramente dedicado a entregar o melhor desse universo que, em alguns instantes chega quase a beira o delírio onírico - como quando das apresentações da infatigável Polca do Cu. Se por um lado, Barbosa aposta na sutileza como matéria-prima para trafegar em universos bastantes distintos (repare o quanto comunica o seu olhar, quando ele está pela primeira vez no Chão de Estrelas), por outro, Garcia chega a beirar o histrionismo, transformando Paulete na personagem de Almodóvar, que veio parar em um filme brasileiro. Irandhir equilibra tudo, sem afetação, sem caricatura, imprimindo grande profundidade a um personagem que, no fim das contas, precisa manter o foco para que nada desabe. As vezes pode parecer até meio bobo, ainda que nunca infantil: mas uma provocação dessa envergadura, que ainda coloca em cheque o comportamento truculento de regimes totalitários (que muitas vezes escondem jovens perturbados e que tem dificuldades em lidar com a própria sexualidade), não é pouco. O filme foi o 73º da história em uma votação feita recentemente pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Não é pouco.


quinta-feira, 16 de maio de 2019

Na Espera - Divino Amor (Filme)

Desde que foi liberado o teaser de Divino Amor ele se tornou, para nós aqui do Picanha, o filme mais aguardado de 2019! Aliás, esqueça só por um momento o Tarantino ou o Scorsese - que geram expectativa com O Irlandês e Era Uma Vez Em... Hollywood - e preste atenção em Gabriel Mascaro que, com o ótimo Boi Neon, já tinha realizado uma das melhores películas nacionais desse milênio. Em seu novo filme, assistimos uma realidade distópica em um Brasil do ano de 2027. Um Brasil em que não mais existe o carnaval, entrando em seu lugar a "Festa do Amor Supremo" em que se espera a volta do Messias. E em que claramente o fanatismo religioso, o preconceito e a intolerância funcionarão como um verdadeiro espelho da nossa sociedade atual ficando a inevitável pergunta sobre o que queremos, de fato, para o futuro.


A trama, de acordo com o que foi divulgado, envolve uma devota religiosa que, no cartório, se trabalha para dificultar os divórcios, enquanto espera algum tipo de sinal divino de reconhecimento aos seus esforços. Só que o seu casamento entrará em crise e como fica esse contexto perante Deus? Só que o trailer, num estilo kitsch-modernoso, nos dá conta de algo muito maior, mais iconoclasta, mais contestador e com uma nada velada crítica aos absurdos vividos no governo Bolsonaro - ou em governos conservadores como um todo. Mascaro parece tentar adivinhar o futuro, olhando para aquilo que acontece agora. E o resultado, sinceramente, é de arrepiar. Não sou de fazer isso nos posts aqui do Na Espera, mas, chega logo 15 de agosto. Precisamos assistir a esse filme!

Cinema - O Mau Exemplo de Cameron Post (The Miseducation Of cameron Post)

Com Chloë Grace Moretz, Emily Skeggs, Forrest Goodluck, Jennifer Ehle e John Gallagher Jr. Drama / Romance, EUA, 2018, 90 minutos.

Pela temática bastante parecida, O Mau Exemplo de Cameron Post (The Miseducation Of Cameron Post) poderia muito bem ser exibido como uma sessão complementar de Boy Erased: Uma Verdade Anulada. E, numa boa: em um mundo com tantos retrocessos - com um avanço universal e inexplicável de uma extrema-direita odiosa, que tem dificuldade de conviver com aquilo que é diferente ou que foge do padrão -, mais serão bem-vindas obras que façam pensar, refletir, mesmo que com assuntos semelhantes. Pra falar a verdade, os temas nunca se esgotam sendo importante reforçá-los, afinal de contas, sempre haverá outras nuances e outras possibilidades de abordagens. Os filmes podem até não ser inesquecíveis ou grandiosos. Mas muitas vezes serão reflexo de seu tempo. É é justamente o caso dessa pequena e sensível película, que foi exibida no último Festival de Sundance.

Na trama, que se passa em 1993, a Cameron Post (Chloë Grace Moretz) do título original é uma jovem gay, que é flagrada pelo candidato a namorado, transando com a melhor amiga dentro de um carro de um estacionamento, em plena noite de formatura. Cameron perdeu os pais quando era mais nova, mas ainda assim é enviada pela devota tia a uma espécie de centro religioso que promete restaurá-la sexualmente - sim, as famosas clínicas para a cura gay que, pasmem, ainda existem nos Estados Unidos. No local ela terá contato com todos os clichês metodológicos que prometem uma vida próxima de Deus, longe do pecado e adequada as famílias de bem. Em meio a jogos lúdicos e canções sacras, a busca por compreender a si própria, tentando entender onde ocorreu o "desvio" que lhe fez preferir mulheres ao invés de homens. Corridas? Uma excessiva aproximação com o pai? A metáfora do iceberg - que esconde muito mais por baixo das águas - será o guia para aquilo que, já sabemos, não dará certo.


Só que diferentemente do que ocorre com Boy Erased, Cameron realmente tem dúvidas a respeito de sua condição. Se sente inadequada - "com nojo de si mesma", com ela diz. Por mais que em uma escapadela ela transe com uma colega de reformatório e se aproxime dos amigos Erin (Emily Skeggs) e Adam (Forest Goodluck) - com quem fuma maconha escondida e pratica outras "subversões", como ouvir músicas de bandas como 4 Non Blondes e The Breeders -, a jovem convive em um universo de incertezas. Ela poderia efetivamente se curar, assim como ocorreu com o reverendo Rick (John Gallagher Jr.)? Será nessas idas e vindas, sem o apoio dos pais - que aparentemente teriam um pensamento mais progressista - que Cameron procurará lidar com seus próprios medos, anseios e dúvidas. A juventude já não é um período fácil. Pra quem acha que está doente por amar/gostar/ter desejo por pessoas do mesmo sexo, certamente será pior.

Nesse sentido, a obra funciona como uma grande coleção de pequenos recortes, feitos com alguns silêncios e um clima "pastoril" em que momentos mais leves se alternam com outros mais pesados. A luta contra o pecado ou contra a "confusão de gêneros" se apoia em comparativos curiosos, com o no momento em que a doutora Lydia (Jennifer Ehle) pergunta aos alunos se eles permitiram uma passeata de drogados. Todos parecem empenhados em trazer o assunto à tona, mas sem ofender, sem aprofundar o debate o que, inevitavelmente, Boy Erased faz com mais qualidade. Dá pra soar mais panfletário sem pesar a mão ou sem ser excessivamente maniqueísta e, nesse sentido, parece faltar ainda um pouquinho de engajamento à essa película. Ainda assim o propósito é válido e quanto mais filmes sobre assuntos que confrontam, que tiram do lugar comum e quebram a hegemonia do status quo, melhor.

Nota: 7,5




terça-feira, 14 de maio de 2019

Disco da Semana - Tiago Iorc (Reconstrução)

Pessoal, vamos deixar uma coisa combinada quando o assunto foi o Tiago Iorc: nem oito nem oitenta. Nem tanto ao céu nem tanto ao inferno. Nem o "novo Belchior" como chegou a ser sugerido - muito mais por conta de seu sumiço antes de ressurgir com um novo álbum, do que pelos seus dotes artísticos -, nem um compositor meia boca que não lança nada que presta. Acho que é possível um meio termo. Mas um meio termo que olhe com carinho para o artista que, com Reconstrução lança, disparadamente, o seu melhor trabalho. Trata-se de um registro maduro, mas nem por isso quadrado. Que flerta com os mais variados estilos - indo da eletrônica, ao indie, passando pelo samba com escala na MPB - mas de uma forma dinâmica, coesa, heterogênea. A cada canção que se descortina uma nova possibilidade para o ouvinte, um caminho diferente em um álbum que, vamos combinar, cresce a cada audição.

O mistério sobre o lançamento bom, esse pelo visto continuará sendo um mistério. Fora os sites de fofocas que falam sobre mensagens enviadas por Bruna Marquezine ao cantor na noite de lançamento do registro, poucas informações. O ano sabático, de acordo com matéria do Globo teria começado ainda lá em janeiro de 2018. Uma troca de gravadora, a saída das redes sociais, uma ou outra aparição pública tornaram Iorc uma figura quase excêntrica, aumentando o culto dos fãs que, desde sucessos como Amei Te Ver e Coisa Linda, o perseguiam como se este fosse algum tipo de divindade religiosa. Só que trabalhando assim, meio mocozeado - como se diz aqui nos pampas - o artista pôde entregar um trabalho totalmente novo, todo de uma vez, com videoclipes para todas as canções. Se a estratégia de marketing funcionou? Bom, as treze canções do disco entraram TODAS DE UMA VEZ, no Top 50 do Spotify Brasil. Não é pouco.



Aliás, uma audição do trabalho permite perceber que este é, literalmente, um álbum de reconstrução. De ruptura. De algo que fica para trás e que representa, a partir de agora, um recomeço. E isso fica ainda mais claro quase no final do disco, quando na 12ª canção - a inacreditavelmente linda Bilhetes - o astro canta repetidamente, como se fosse um mantra "tudo vai recomeçar" - não sem antes falar, metaforicamente, em chuvas que passam e erros que servem de aprendizado. O expediente da renovação surge em outras músicas como em Laços (Gota de lágrima, trovão que vem do mar / Revolução e a chance pra recomeçar / Quero a sorte / De reaprender / Essa vida) ou na sinuosa A Vida Nunca Cansa (Quero viver, quero mudar, motivo não há / E lá fora o mundo volta a girar / Se é só o tempo, então releva / Já não há nada que possa evitar).

Livre das amarras de gravadoras ou de outros produtores, Iorc pôde também experimentar no que diz respeito à sonoridade. Se Faz, com sua letra sexy, mais parece um encontro do Muse com o St. Vincent, Nessa Paz Eu Vou é a música que o Armandinho adoraria ter feito na última década. A candidata a hit Hoje Lembrei do Teu Amor tem refrão tão grudento e pop, que mais parece uma canção do Troco Likes perdida nesse trabalho. Já Fuzuê é o artista tentando fazer uma espécie de samba rock com letrinha sapeca, batida rápida, urbana, urgente. Há ainda outros momentos sublimes, em que os temas preferidos do compositor - romances urbanos, existencialismo em meio ao caos da modernidade e reflexões cotidianas sobre paixão e sexo - reaparecem com força, equilibrando caos e lucidez, desordem e clareza em igual medida, é o caso de Tangerina e Tua Caramassa. É um disco muito legal. Acima da média. E que reposiciona Iorc como um dos grandes nomes de sua geração.

Nota: 8,0


segunda-feira, 13 de maio de 2019

Pérolas da Netflix - Sete Minutos Depois da Meia-Noite (A Monster Calls)

De: J.A. Bayona. Com Lewis MacDougall, Felicity Jones, Sigourney Weaver, Liam Neeson e Geraldine Chaplin. Drama / Fantasia, EUA / Espanha / Reino Unido, 2016, 108 minutos.

Que agradável surpresa esse Sete Minutos Depois da Meia-Noite (A Monster Calls). Aquele tipo de filme "pequeno", que a gente não dá muito, mas que se revela uma experiência cinematográfica revigorante que, de quebra, ainda conta com uma série de mensagens edificantes, apresentadas sem um pingo de pieguice. Na trama, o jovem Conor (Lewis MacDougall) precisa lidar com um terrível fato: a sua jovem mãe sofre de um câncer terminal. E como desgraça pouca é bobagem, ainda há um pai ausente, uma avó um tanto linha dura e os colegas de aula que lhe incomodam. Impactado por uma vida real que é um saco, Conor tem o mesmo sonho todas as noites. Nele, aparece uma árvore gigante disposta a lhe contar histórias se, em troca, o garoto lhe contar a sua história. Na curiosa interação poderá estar a chave para solucionar o recorrente pesadelo que o menino tem: o de ver a sua mãe morrendo, em meio a uma fantasiosa tempestade.

Bom, não será preciso ser nenhum gênio para compreender que os sonhos de Conor nada mais serão do que a manifestação do seu inconsciente em um processo de readaptação da vida real - o que inclui aí as histórias contadas pela árvore (que tem a voz do Liam Neeson). Em cada narrativa, uma reviravolta, uma surpresa. E a descoberta de que nem tudo é o que parece, o tempo todo. E que os sentimentos que temos por aqueles que amamos, podem se alterar de acordo com as variáveis. Ver um parente sofrendo por causa de uma grave enfermidade, se preparar para o inevitável processo de luto, superar a tristeza que parece ser o fundo do poço... em cada uma das histórias da árvore, com reis, rainhas, exércitos que derramam sangue, bispos e feiticeiros, as metáforas inadiáveis para tudo aquilo que Conor precisará passar. E que o fortalecerá, ao final.


E, nesse sentido, um filme que fala de morte, de dor e de luto de uma forma tão adulta e inteligente merece todos os elogios do mundo. Ainda que o protagonista seja um menino de 12 anos, não há nada de infantiloide na abordagem e mesmo os desenhos que representam os coloridos contos da árvore - completamente sinuosos, eventualmente surrealistas, com traços e cores fortes, amparados por uma trilha sonora evocativa - são trazidos de forma orgânica, guarnecidos pela voz de barítono de Neeson. É tudo muito bonito. Eventualmente lúdico. Mas cheio de significados, em meio a simplicidade e a completa ausência de maniqueísmo. O que faz com que a gente compreenda as motivações de praticamente todas as pessoas que vemos na tela - bem como seus anseios, angústias e tristezas.

Com um elenco que ainda conta com Sigourney Weaver, como a avó que mostra os lados megera e carinhosa em igual medida, e Felicity Jones, como a mãe, J. A. Bayona mantém a boa média - depois de bons filmes como O Orfanato (2007) e O Impossível (2012). Aliás, após um suspense e um filme-catástrofe, a aposta na fantasia é um verdadeiro atestado da versatilidade do espanhol, que não se furta em utilizar uma série de rimas visuais como forma de evidenciar os seus propósitos - como é o caso, por exemplo, da sequência em que Conor "destroi" parte da casa de sua avó (o que inclui um relógio), como a representação de um ponto de ruptura, de quebra, para a necessidade de se deixar algo para trás, aceitando o que está por vir. É cinema de "gente grande" travestido de obra que brilha na Sessão da Tarde. Os cinéfilos agradecem.

sexta-feira, 10 de maio de 2019

Grandes Cenas do Cinema - Alien: O Oitavo Passageiro (Alien)

Cena: adivinhe quem vem para jantar...

Um dos grandes filmes de ficção científica / suspense da história, Alien: O Oitavo Passageiro (Alien) possui, a meu ver, a mais surpreendentemente aterradora sequência de todos os tempos no cinema. Sem exagero! Esqueça baboseiras como Atividade Paranormal e outros derivados que apostam em sustinhos jumpscares - aquela cena da bigorna caindo ou do gato que surge do nada. Aqui temos a construção de uma atmosfera que envolve todo o filme e que culminará na famosa cena do jantar em que, com quase uma hora de filme, a tripulação da Nostromo passa a ter uma ideia REAL do perigo que estão passando. A sequência é primorosa por subverter completamente a lógica e apostar no inesperado como matéria-prima. Ao menos foi assim que me senti a primeira vez que assisti a essa obra-prima do Ridley Scott - em seu segundo filme - sem saber o que iria ocorrer!

Para quem não lembra da cena, a equipe da Nostromo está retornando para casa após uma missão de coleta de material especial, quando recebe algum tipo de comunicação vinda pelo receptor da nave. Após um pouso meio arriscado no planeta de onde parte o sinal, parte da equipe é surpreendida com a existência de um ninho com ovos de que parece ser de uma espécie alienígena. É neste momento que Kane (John Hurt) é atacado no rosto por uma espécie alienígena que se gruda nele. Em coma após o ataque e, ainda com o "bichano" no rosto, Kane é levado de volta para a nave. Após algum tempo o ser se desgruda, morre e Kane volta a vida, com muita sede e com muita fome. Todos estão animados no jantar, rindo e fazendo projeções para o futuro - e acho que para mim é isso que pega nessa sequência em que Kane passará mal, revelando o fato de que, na verdade, estava gestando em seu corpo um ser de outro planeta.



A sequência é absurdamente sangrenta, dolorida, comovente. Sem reação, os companheiros assistem Kane definhar com o ser que salta de seu peito, praticamente estraçalhando seu corpo já fragilizado. O alienígena foge para o seu canto e, bom, todos sabem o quão tensa será aquela hora final, em que Ripley (Sigourney Weaver) e companhia precisam lidar com esse "probleminha". Bom, é preciso que se diga aqui o óbvio: o filme não se resume somente a essa cena. E se ela funciona tão bem é porque há toda uma construção de clima por trás. O desenho de produção, por exemplo, é arrebatador, tornando a nave um espaço claustrofóbico em que a textura de suas engenhocas chega a se misturar com a própria figura do vilão. Já a edição de som, com o uso do som diegético, com correntes, água que pinga e outros barulhos, também contribui para a formação de uma atmosfera de tensão permanente. Enfim, a gente sabe que algo de ruim está para acontecer a qualquer momento. Valendo o mesmo para a cena do jantar em que todos alegres, confiantes no retorno para casa, percebem que a viagem será (ainda) mais longa do que imaginavam. De arrepiar!


quinta-feira, 9 de maio de 2019

Disco da Semana - O Terno (atrás/além)

Tenho de confessar uma coisa a vocês: não pude esconder uma certa surpresa nas primeiras audições do novo disco d'O Terno, afinal, onde estava aquela banda descaradamente juvenil dos trabalhos anteriores? Onde teria ido parar aquele coletivo que desavergonhadamente misturava Jovem Guarda, eletrônica, samba e música alternativa nos mesmos registros? Sim, tive dificuldade em aceitar que, em seu quarto trabalho, Tim Bernardes, Gabriel Basile (bateria) e Guilherme d'Almeida (baixo) amadureceram. Cresceram. Já não são mais aqueles guris que pareciam debochar do MUNDO em digressões divertidas como Zé, Assassino Compulsivo, Bote Ao Contrário ou até Culpa - pra citar canções que se espalham pelos três discos anteriores. E quando finalmente eu entendi isso, bom, eu consegui apreciar com um pouco mais de calma esse novo (atrás/além), percebendo que é um disco tão (ou até mais) relevante, que os anteriores.

A verdade é que, vamos combinar, não tá tendo muita graça o tal do Brasil. Tá meio difícil até de se divertir descompromissadamente ou de rir de qualquer situação que não seja de nós mesmos e da nossa existência patética nesses anos de Bolsonaro, de cortes em todas as áreas e de predileção pelo ódio, pelo preconceito e pela intolerância. E, nesse cenário, é muito provável que O Terno não visse mais sentido em fazer música mais engraçadinha - ainda que, paradoxalmente, esse tipo de material possa servir para que nos sejam amenizadas as dores da vida. Do mundo. "É a conclusão de um grande ciclo, o fim de uma juventude", relatou Bernardes, em entrevista ao jornal O Globo. A saída da casa dos pais, o fim de um relacionamento, as responsabilidades da vida adulta, também parecem ter pesado nesse processo. "É um disco de desapego do que passou e de um salto para o que pode vir", salientou em outra entrevista, esta para o Correio Braziliense.



E junto com este amadurecimento - que claramente tem início no trabalho solo de Bernardes, o delicado Recomeçar (2017) - há também a proposta de trabalhar o álbum com um conceito bem definido, de idas e vindas, de folhas a serem preenchidas e de ideias que devem ser maturadas e que flanam de forma natural, quase orgânica, em cada melodia minuciosamente arranjada pelo coletivo. Há uma riqueza de detalhes que parece flutuar em meio a justaposição dos versos claramente existencialistas e na disposição instrumental limpa e sutil, que nos fazem compreender esse outro (e novo) momento, absorvendo-o com mais calma - como se o disco clamasse por um pouco menos de pressa, ou de urgência. "(O álbum) é sobre essas vontades contrastantes do jovem que hoje quer tudo e que, de alguma forma pode tudo, mas está meio saturado. Sabe aquele cardápio da Netflix que você fica duas horas para escolher alguma coisa, mas não quer começar um filme de uma hora e meia porque é muito longo? É isso. A música é sobre esse cabo de guerra interno", compara Bernardes na mesma entrevista a O Globo.

Talvez não seja por acaso que já na abertura, com Tudo Que Eu Não Fiz, o compositor lembre a todos de que "Eu não sou mais criança, eu não sou mais adolescente / Eu quero me sentir exatamente onde eu estou". O expediente do ponto de "ruptura" que celebra um fim e um reinício repete-se em outras canções, como no caso do grudento single Pegando Leve: Acabado, esgotado / Eu já cheguei no fim / Recomecei e aqui estou eu / No fim de novo, eu / Quero me encontrar, mas quero deixar fugir. Todo esse clima de nostalgia do que não foi, da imaturidade em contraposição a vida adulta, de descansar, mas sair, de trabalhar e se divertir, surgem como minuciosos antagonismos que reforçam as ideias espalhadas pelo registro. No meio do caminho, músicas que exalam otimismo (Eu Vou), saudade (Atrás/Além), amor idealizado (Pra Sempre Será) e aflições do mundo moderno (a ótima Volta E Meia, em parceria com Devendra Banhart e Shintaro Sakamoto). Minucioso e agridoce do primeiro ao último instante, o registro percorre cada uma de suas esquinas sem medo de encarar a vida adulta, de fazer a crítica à geração millenial e de simplesmente se modernizar em relação ao material anteriormente apresentado. Um dos discos do ano.

Nota: 8,5



terça-feira, 7 de maio de 2019

Curta Um Curta - O Duplo

Diretora dos ótimos Trabalhar Cansa (2011) e As Boas Maneiras (2017) - ambos em parceria com Marco Dutra -, Juliana Rojas realiza, com o curta-metragem O Duplo (2012), um dos melhores filmes de sua carreira. A obra toma emprestada a lenda alemã do Doppelgänger, que seria um monstro ou ser fantástico que tem a capacidade de se tornar idêntico a alguém que ele passa a acompanhar. Mas esse idêntico é como se fosse um negativo, capaz de fazer coisas cruéis que as pessoas copiadas não fariam naturalmente. A trama se passa em 1845 e envolve uma professora que acredita ter enxergado o seu duplo, o que envolverá seríssimas consequências. O clima é absurdamente sinistro e os sustos são dignos dos melhores filmes de suspense - com direito a final chocante! A obra, premiadíssima no exterior, é o 37º melhor curta-metragem nacional da história, de acordo com eleição feita pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) e vale cada segundo!

Picanha.doc - Cabra Marcado Para Morrer

De: Eduardo Coutinho. Documentário / Drama, Brasil, 1984, 119 minutos.

Em certa altura de Cabra Marcado Para Morrer uma notícia de jornal dá conta da apreensão, por parte do exército brasileiro, de latas de filme, tripés, refletores e megafone que estavam sendo utilizados na filmagem de um documentário. "Foi talvez na Galileia (no interior do Pernambuco) que foram recolhidos materiais valiosos do maior foco de subversão comunista" garantia a chamada da matéria. "O maior foco de subversão comunista" em questão era na verdade o documentarista Eduardo Coutinho, seu cinegrafista e um fotógrafo que estavam no Nordeste para gravar um filme sobre a vida de João Pedro Teixeira, um líder camponês da Paraíba que foi assassinado em 1962 por ter cometido a maior das insubordinações: ser um dos fundadores da Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco. Conhecida por "Liga", a entidade funcionava como uma espécie de Sindicato que reivindicava melhores condições de trabalho para os camponeses que trabalhavam em engenhos, combatendo ainda os abusos dos administradores dos latifúndios da região.

Era, portanto, uma figura que lutava por direitos. E que, consequentemente, era mal vista pelos militares que, à época, articulavam o Golpe Militar que eclodiria em 1º de abril de 1964. Coutinho pretendia "recriar" a história de Teixeira usando um outro ator em seu lugar e contando com a participação da verdadeira família do falecido líder - estando entre eles a viúva Elizabeth Teixeira -, além de amigos, vizinhos e outros conhecidos. Só que o documentarista conseguiu filmar apenas 40% da obra, que foi fortemente censurada nos conhecidos Anos de Chumbo. Manifestações artísticas ou culturais ou mesmo que valorizem algum outro tipo de educação - no caso, mais libertadora, pra citar Paulo Freire - normalmente não são bem vistas por um coletivo de reacionários toscos que iniciaria um intenso combate a uma "ameaça comunista imaginária" durante o Regime. Por lutar por direitos dos trabalhadores, aconteceu o óbvio: Teixeira foi acusado de comunista, de ter ligações com Cuba e com guerrilhas sulamericanas, tendo sido morto por milicianos comandados pelos senhores das terras.



Tudo isso está lá no documentário que, para falar a verdade, é construído de uma forma soberba, o que o transforma no melhor filme do estilo na história - de acordo com votação realizada pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Com inacreditável perseverança, Coutinho retorna em 1981, após o começo da abertura política, a cidade de Sapé na Paraíba (onde iniciam as primeiras atividades das Ligas) e também ao Engenho da Galileia para retomar o filme de onde parou. No reencontro com os moradores, a mágica ocorre: ao se verem na tela dezessete anos atrás, aqueles atores "improvisados" se comovem, sorriem e se emocionam em um exercício metalinguístico que transforma Cabra Marcado Para Morrer não apenas em um documentário de "denúncia social", mas também em uma obra absurdamente comovente a respeito do poder transformador da arte e das múltiplas possibilidades alcançadas pelo cinema.

O diretor vai atrás das locações, de moradores que participaram das filmagens anos atrás e descobre que alguns já estão mortos e que mesmo o cenário pode ter se modificado com o tempo. Desaparecida por ter sido perseguida durante a Ditadura, Elizabeth agora está "exilada" no Rio Grande do Norte e pouco sabe do paradeiro dos mais de oito filhos que deixou para trás, com o objetivo de tentar sobreviver. Será na busca por cada uma dessas figuras, na escuta paciente, amparada por uma câmera semidocumental, que Coutinho irá no limite do "filme-reportagem", resgatando ele também a sua própria história, suas memórias, seus arquivos e a lembrança de anos que desejaríamos nunca mais precisar reencontrar.


A obra é uma joia que equilibra momentos mais melancólicos - como no terço final em que cada um dos filhos é reencontrado por Coutinho, com as memórias do passado evocando as mais variadas emoções - com outros de um inacreditável humor involuntário (como na sequência em que uma figura próxima de Teixeira relata ter sido questionado sobre a existência de "20 mil fuzis cubanos" nas matas nordestinas, em meio à Ditadura). É o filme raiz, seco, árido, nem sempre fácil, mas invariavelmente atual. E, mais incrível: também capaz de mostrar a força da articulação juvenil já que o filme foi patrocinado, inicialmente, pelo Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (UNE). Hoje em dia sabemos: a Ditadura perseguiu, torturou e matou centenas de pessoas naqueles anos. Teixeira foi um deles, assim como outros de sua época (como mostra o filme). Tudo o que queriam? Mais justiça social e um melhor olhar para pessoas à margem da sociedade ou em vulnerabilidade social. Que isso suscite tanto ódio, tanta repulsa, tanta ojeriza, é algo que, para este blogueiro e jornalista, segue sendo um mistério. E que dificilmente será solucionado tão logo.

segunda-feira, 6 de maio de 2019

Cinema - Tudo O Que Tivemos (What They Had)

De: Elizabeth Chomko. Com Hillary Swank, Michael Shannon, Blythe Danner e Robert Forster. Drama, EUA, 2018, 101 minutos.

Lidar com familiares que convivem com transtornos degenerativos como o Mal de Alzheimer não é tarefa fácil e o cinema já tratou do tema por meio de obras igualmente sensíveis e dilacerantes como Longe Dela (2006) e Para Sempre Alice (2014), entre outras. O assunto volta à tona neste razoável Tudo O Que Tivemos (What They Had), da diretora Elizabeth Chomko. O filme começa com a idosa Ruth (Blythe Danner) acordando e saindo para caminhar em meio a madrugada, durante uma tempestade de neve - mais adiante saberemos que a sua intenção era pegar o trem para visitar a sua "mãe". A apreensão pelo resgate de Ruth mobiliza toda a família: do marido ranzinza (e amoroso) Burt (Robert Forster), aos filhos Bitty (Hillary Swank) e Nicky (Michael Shannon). Uma vez encontrada, um novo impasse: qual deveria ser o destino de Ruth? Continuar em casa? Ir para um lar de idosos onde possa receber um melhor tratamento ou mais atenção?

A obra gira em torno da diferença de pensamento entre os familiares que rodeiam Ruth. Burt, que conviveu com a esposa por décadas não admite simplesmente "largá-la" em uma casa geriátrica, por mais que ela esteja, aos poucos, esquecendo tudo. "É a minha garota", argumenta. O mau humorado Nicky acredita que o melhor caminho é investir na realocação da mãe - e claramente ele teme que episódios como o sumiço em meio a uma tempestade de neve possam voltar a acontecer. Entre seus argumentos, o fato de que sequer lhes reconhece - "ela me cantou, enquanto estávamos no carro", explica ao pai. Já Bridget, que não mora na mesma cidade dos demais familiares fica no meio de todos. Além de ter de lidar com a difícil filha Emma (Taissa Farmiga), que lhe acompanha na viagem, ainda tenta aconselhar os demais sobre o que fazer com suas vidas - ainda que a sua própria seja pura desorganização.



Em meio a todos Ruth é pura doçura e deboche, como se fosse uma jovem em corpo de velho (e provavelmente ela se reconhece assim). Ironicamente tem consciência de seu estado - como no caso do comovente instante em que confunde um grampeador com o telefone - se esforçando a todo momento para estar presente, a sua maneira. Só que, metaforicamente, quem parece perdido são os demais. Como organizar o futuro de um ente querido se a gente mal sabe o que será da nossa vida? Bitty está insatisfeita com o seu relacionamento, sem saber se "caga ou desocupa a moita", fora a completa inexistência de diálogo com a filha. Nicky está perto dos 50 anos e dorme no depósito de bar que ele mantém a muito custo, com dificuldade de lidar com impostos, aluguel e outras exigências. Ambos precisam - ou ao menos acham que precisam - tomar decisões sobre a vida dos pais. Mas e as suas? Em meio a isso tudo há um pai autoritário e religioso que não admite essas drásticas mudanças que os filhos pretendem.

Filmes assim mais intimistas geralmente tem a sua força no roteiro, nos diálogos e, especialmente, na composição dos personagens, com suas personalidades e comportamentos. Mas infelizmente é nessa parte que a obra peca. Há pouca profundidade no desenho de cada uma das figuras que vemos em tela, o que torna até difícil para o espectador torcer por este ou aquele desfecho. Burt decididamente quer a companheira a seu lado, mas eles eram felizes no casamento? O velho claramente é uma figura conservadora, daqueles que preza a família, mas lá pelas tantas alguém revela que Ruth era, vejam só... uma feminista? Mas se eles eram tão diferentes, como o casamento teria dado certo por tantos anos? Só pelo compromisso? Além disso, o clima bélico entre os irmãos nunca tem a sua motivação evidentemente esclarecida - ainda que as farpas que ambos trocam, repletas de um trocismo gostoso, debochado, seja um dos valores da película.


No fim das contas é um filme correto, que mescla humor, ternura e drama em igual medida, mas que dificilmente será inesquecível. O elenco abraça a "causa" com ternura, especialmente Forster, que poderia tornar o seu Burt uma figura intragável se pesasse demais a mão. E há ainda um arco dramático em que não há certo e errado: haveria motivações de ambos os lados e todas corretas sobre a decisão de manter Ruth em casa, ou conduzi-la a um espaço para um melhor tratamento. Mas isso no fim é o de menos: muitas vezes o que os parentes precisam é de uma boa sessão de lavação de roupa suja para que os seus demônios sejam definitivamente extirpados. E para que suas confusões interiores possam ser definitivamente confrontadas. Ruth não pode lutar contra a severidade de uma doença tão agressiva. Os demais ainda terão tempo. E é essa a lição.

Nota: 7,0

quinta-feira, 2 de maio de 2019

Cine Baú - Laura (Laura)

De: Otto Preminger. Com Gene Tierney, Dana Andrews, Vincent Price e Clifton Webb. Suspense / Romance, EUA, 1944, 88 minutos.

Melodrama noir ou suspense romântico, Laura (Laura), do diretor Otto Preminger, é um dos mais surpreendentes filmes de investigação policial da história. Cheio de reviravoltas, de diálogos irônicos e de personagens de caráter duvidoso, a obra lançada 75 anos atrás ainda exala algum frescor - por mais batida que essa fórmula seja, hoje em dia - ao deixar o espectador com a pulga atrás da orelha a respeito do que terá de fato acontecido, na noite em que a protagonista é assassinada. Na trama acompanhamos todos os passos do detetive Mark McPherson (Dana Andrews), que interroga suspeitos, como o colunista de jornal Waldo Lydecker (Clifton Webb), que utilizou a sua influência nos meios de comunicação para funcionar como uma espécie de padrinho/mentor da publicitária Laura Hunt (vivida com graça e vivacidade por Gene Tierney).

Mas Waldo não é o único suspeito. Outras figuras, como o noivo de Laura, Shelby Carpenter (Vincent Price) - espécie de gigolô, que vide de rendas -, além da tia de Laura, Ann (Judith Anderson), mulher de muitas posses que está apaixonada por Carpenter, estão na mira do detetive. Mark vai de casa em casa, alternando hipóteses, fazendo conjecturas e tentando tirar a limpo a história que resultou na cruel morte de Laura, com um tiro no rosto. O tempo todo este ou aquele suspeito ganham força, o que é um dos charmes (e uma das diversões) da película. A gente pode até tentar adivinhar, mas a única certeza que temos é que o assassino parece ter sido motivado pela passionalidade. "O amor é mais forte que a vida. E vai além das escuras sombras da morte. As lágrimas e os risos não são duradouros. Tampouco o amor, o desejo e o ódio" divaga Waldo, a certa altura.


Aliás, Waldo, com suas tiradas irresistíveis e senso de humor meio "truncado" é um dos destaques da trama. Ele parece sempre pronto a provocar, a dizer alguma gracinha ou mudar o rumo da história, com algum comentário cheio de ambiguidades ou com algum sentido metafórico. Mas ele mesmo admite, já no começo do filme: era ele quem conhecia Laura melhor. "Se você sabe algo sobre rostos, olhe para o meu. Não pareço singularmente inocente nesta manhã?" provoca, em uma das primeiras conservas com Mark. Waldo no fim das contas é o responsável direto por tornar Laura famosa e reconhecida na área de design. Mas aos poucos transforma a vida da jovem em um inferno, já que se considera como se fosse "proprietário" dela. Especialmente no que diz respeito a eventuais futuros pretendes, sendo muitos deles descartados pelo caminho, com seus textos ferinos servindo de matéria-prima para a destruição de reputações.

Com fotografia espetacular - Joseph LaShelle recebeu o Oscar pelo trabalho -, o filme ainda utiliza o contraste entre o preto e o branco, o jogo de sombras, os reflexos nos espelhos e outras trucagens com o intuito de aumentar a sensação de sufocamento, quase de vertigem. Nesse sentido, vale observar o brilho no quadro em que Laura aparece, como se fosse uma espécie de emanação a observar a todos. Ou mesmo a persistência de Mark em utilizar um brinquedo que emula uma bola de beisebol sendo rebatida com precisão. A obra é cheia desses detalhes e ainda se vale do ótimo elenco para transformar essa história de amor - no fim das contas até Mark parece se apaixonar pelo "fantasma" da falecida, conforme avançam as investigações -, em uma das grandes obras do cinema noir dos anos 40. Lançado no mesmo ano de Pacto de Sangue - outro clássico do cinema noir - essa obra pequena pavimentou o caminho para um ainda estreante Otto Preminger que, mais tarde, brindaria o público com outras obras-primas, como, Alma em Pânico (1952) e Anatomia de Um Crime (1959).