quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

15 Melhores Discos Nacionais de 2020 (+10 Menções Honrosas)

Nossa última listinha desse ano que se encerra é a dos discos nacionais e ela está um pouquinho menor, com os 15 Melhores Discos e mais 10 Menções Honrosas. Pode ter sido apenas uma impressão, mas me parece que a pandemia fez reduzir drasticamente o volume de lançamentos nesse turbulento e pandêmico 2020 - com muitos artistas se valendo da Lei Aldir Blanc como forma de apoio. Ainda assim tivemos muita coisa bacana chegando às plataformas de streaming e sendo divulgada na raça - em lives ou em outros projetos mais caseiros que viraram alternativa inclusive para que músicos, cantores e compositores pudessem se manter em um contexto de falta de shows e de contato direto com o público. As formas que podemos ajudar? Acessando o agregador e dando play nos discos. Por que aquela história de que não se faz mais música boa como antigamente é, isso, apenas história. A produção, ao contrário, nunca esteve tão democrática e fervilhante,como comprova a nossa relação.

Menções honrosas:

25) Daniela Mercury (Perfume)

24) Henrique Oliveira (Era Tudo o Mesmo)

23) Cícero (Cosmo)

22) Joana Queiroz (Tempo Sem Tempo)

21) Flora (A Emocionante Fraqueza dos Fortes)

20) Jonathan Tadeu (Intermitências)

19) Rashid (Tão Real)

18) Tatá Aeroplano (Delírios Líricos)

17) Letrux (Letrux aos Prantos)

16) Andrio Maquenzi (Contracorrente)

15) Silva (Cinco): O ano de 2020 já está na história como um dos piores de todos os tempos, mas alguns artistas fizeram questão de tentar nos dar aquela injeção de ânimo em meio a tanta desgraceira - e foi justamente este o caso do capixaba Silva. Dando continuidade a brasilidade desvairadamente romântica apresentada no ótimo Brasileiro (2018), aqui o compositor apresenta uma nova coleção de canções ensolaradas, cheias de refrões grudentos e de melodias vibrantes. Sutil e carinhoso o trabalho injeta, novamente, personalidade à MPB e a bossa nova, transformando canções como Sorriso de Agogô, Quimera e Quem Disse em verdadeiras homenagens ao estilo econômico que parte da voz e do violão para crescer em emanações envolventes e belas. "A primeira coisa que penso é que preciso cantar algo que me deixe em uma onda boa. A vida já é difícil. Precisamos dar conta de tudo, desde as nossas contas até nossas próprias loucuras", afirmou em entrevista ao site Tenho Mais Discos Que Amigos. Nesse sentido, a obra de Silva funciona como uma verdadeira válvula de escape, o que músicas graciosas e calmas como o hit Não Vai Ter Fim, comprovam já na primeira audição.

14) Vanessa Krongold (Singular): Ainda que seja cheio de personalidade, há um "quê" meio anos 90 no primeiro trabalho da vocalista da Ludov, que faz com que o ouvinte estabeleça um tipo de conexão quase imediata. Como se escutássemos uma mistura de Vange Leonel com Anjos do Hangar, a sensação de nostalgia nunca soa anacrônica ou deslocada de seu tempo - especialmente pelos arranjos modernos, que mesclam novos experimentos com sonoridades familiares. Gestado num período de quase cinco anos, o trabalho conta com nove faixas em que temas cotidianos, se mesclam com o universo das relações humanas, de amores materializados ou não e de sentimentos que nos definem como "seres sociais". "Esse é o tipo de conexão que eu gosto de estabelecer com quem ouve minhas músicas: exercitar sutilezas e estimular poesia no meio da rotina", destacou a artista em entrevista ao site Scream & Yell. Exemplo disso pode ser percebido na delicada e curvilínea Concreto (Insista nessa poesia / O que eu te ofereço / É concreto / Dou meu amor como garantia / E o meu coração /Por completo). Poesia pura.

13) Kikee (Transição): Eu particularmente gosto demais quando podemos colocar um amigo nosso nessa lista, e é esse o caso do nosso grande parceiro Kikee, que lançou seu disco de estreia nesses tempos pandêmicos. Intitulado Transição, o álbum apresenta uma coleção de canções que são resultado de quase dois anos de pesquisas e experimentações da música pop, latina e eletrônica contemporânea. Nesse sentido, o trabalho registra a progressão de uma sonoridade acústica para outra com batidas mais movimentadas, cheias de cor e de energia. "É um disco com canções sobre autoconhecimento, conflitos internos e reflexões sobre as relações e a sociedade", comenta o artista, que também é o responsável por toda a produção do registro e dos videoclipes que acompanham o lançamento. Nas letras, uma jornada de aprendizado e aceitação que estabelecem um diálogo com a vida e com as questões da atualidade, em meio a um coletivo de canções tão atmosféricas quando primaveris. Quem quiser, pode começar por Monóxido, Vampiro Emocional e Jardim. Uma trinca musical matadora que eleva Kikee à categoria dos grandes compositores da atualidade. 
 
12) Baco Exu do Blues (Não Tem Bacanal na Quarentena): "Ó só, ó só, ó só / Trabalhadores na rua / O Papa é pop, quarentena é pop / Cardi B fez mais que o presidente / Porra, amo o hip hop." Poucos discos foram tão representativos dos sentimentos conflitantes que nos invadiram ainda no começo da pandemia quanto este quarto álbum do rapper carioca. Lançado ainda no final de março, ensacaria o hip hop e o trap de letras urgentes e batidas urbanas hipnóticas, amenizando a ansiedade moderna a partir de um caleidoscópio de referências culturais que se mesclaria com os medos sobre algo que ainda era desconhecido. Tendo viralizado ainda no começo da expansão da doença que já matou mais de 200 mil pessoas no País, Cardi B é lembrada na ótima e autoexplicativa Amo Cardi B e Odeio Bozo. Mas tem mais: Preso em Casa Cheio de Tesão brinca com uma das angústias da quarentena ao passo que faz trocadilho perfeito com a "prisão", enquanto Tropa do Babu relembra um de nossos passatempos favoritos, ainda no começo de 2020: torcer pro paizão no BBB. Um álbum furioso, urgente, oxigenado e que segue como um importante documento de nossos dias.

11) Jup do Bairro (Corpo Sem Juízo): "E quê que eu fiz pa' tomar três tiro' no peito? / Preto na rua de noite com certeza era algo errado! / Virei postagem na sua rede social / 'Cê lamentou e escreveu sobre a repressão policial / Sua hashtag foi o ponto final / Dizia Vidas Negras Importam, pra você isso foi diferencial / É que é toda vez a mesma merda / 'Cês matam eu de carne pa' fazer eu de pedra / Movidos pelo tesão por tragédia / Agora morto eu tenho mais voz do que vivo, parece comédia!". É no poder dos versos que evidenciam o corpo como ente político que reside a força do primeiro álbum da artista paulistana Jup do Bairro. Transitando por estilos diversos como o trap, hip hop e rock, a compositora entrega um álbum feroz em que a voz potente funciona como catalisador perfeito para discussões relacionadas ao racismo, a sexualidade e a diversidade. Exemplo disso está no longo trecho que abre esse pequeno texto e que integra a espetacular Luta Por Mim, que tem participação do coletivo Mulambo. Uma cacetada sonora que serve como uma bela porta de entrada para o trabalho da Jup.

10) Mahmundi (Mundo Novo): foi com ares quase proféticos que Marcella Vale, a ótima Mahmundi, deu o título de seu terceiro registro, ainda antes de a pandemia ser uma realidade. Aliás, as "coincidências" se espalham também pelas letras que, mesmo solares, evocam o tempo de espera necessário em um ano tempestuoso como esse - Sem medo / Vem a chuva, vem o vento / Eu quero tempo / Vem a chuva, vem o vento / Eu quero tempo, canta na ótima Sem Medo. Em entrevista ao Correio Braziliense, a artista menciona que esse "mundo novo" parte de reflexões sobre a própria vida. "Então, esse processo começou no ano passado, depois que eu fiz aniversário. Esse é sempre um momento de pensar nas coisas e, a partir dali, eu criei essas narrativas", enfatizou. O resultado é um trabalho curto, com apenas sete faixas, e que mescla o clima eufórico e primaveril do primeiro e homônimo registro (como na faixa No Coração da Escuridão, que tem refrão grudento e ambientação solar), com outros mais introspectivos e que remetem ao imperdível Para Dias Ruins, de 2018 (caso da divertida Nova TV). Os fãs agradecem.

9) Djonga (Histórias da Minha Área): já virou uma espécie de tradição aqui do Picanha: o Djonga lança disco, ele se torna ele figurinha certa na nossa relação de melhores. Com título autoexplicativo, Histórias da Minha Área faz referência já na capa a To Pimp a Butterfly, clássico moderno do rapper americano Kendrick Lamar, ao mesmo tempo em que nos apresenta mais uma coleção de canções verborrágicas, aparentemente desordenadas, que partem de um flow elegante que ampara a crueza e a raiva dos versos. Tradicionais em sua poesia, temas como racismo, caos urbano, violência policial, sexo, cultura da periferia e religião surgem em meio a um turbilhão de referências emendadas de forma magnética, urgente, quase seca. Há uma velocidade de rima que subverte a ordem, gerando uma espécie de "caos da intensidade" que tornam músicas como Oto Patamá e O Cara de Óculos verdadeiros petardos que mesclam hip hop, trap, R&B, jazz e música urbana numa tipo de fusão envolvente. "Compreender que você não precisa se envergonhar de quem é, do seu estilo, do seu cabelo, do lugar de onde veio", disse em entrevista ao site El País, explicando como a música ajuda nesse processo.
 
8) Fernanda Takai (Será Que Você Vai Acreditar?): Se há algo que sempre gostei nos trabalhos do Pato Fu é o fato de, por mais viscerais que fossem as mensagens, elas sempre virem ao mundo meio "escondidas" por trás da voz adocicada, melosa de sua vocalista. O assunto até pode ser relevante, mas a roupagem leve, lúdica, torna a abordagem mais palatável - tenha a canção uma mensagem contra a violência (Perdendo Dentes), seja sobre mitomania (Menti Pra Você Mas Foi Sem Querer) ou a respeito da importância do abastecimento hídrico no Sertão (Água). E, como não poderia deixar de ser, não é diferente na carreira solo de Fernanda Takai, que chega ao seu sexto trabalho solo. Além de côveres que repaginam clássicos como One Day In Your Life (do Michael Jackson), há espaço para reflexões românticas em tempos de negacionismo (na autoexplicativa Terra Plana), para amores literários (O Amor Em Tempos de Cólera) e para o niilismo (Não Creio Em Mais Nada). Quase ninguém percebeu que a Fernanda Takai lançou um discaço, que dialoga perfeitamente com nossos tempos e aqui a gente faz justiça a ela: já veterana, se comparada a outras dessa relação, segue em plena forma.

7) Wado (A Beleza Que Deriva do Mundo, Mas a Ele Escapa): Venha como vier / Cante como puder / Saiba, essa canção doce e solar não foi em vão / Em vão. Como fã declarado do cantor e compositor catarinense, pra mim é uma coisa meio inexplicável que ele não tenha ainda "acontecido" no mundo da música. A qualidade de sua vasta obra - são 11 álbuns na carreira -, a versatilidade com que se apropria de estilos e a facilidade com que ele compõe melodias, arranjos, letras e refrãos prontos para tocar em qualquer rádio mais descolada, tornam essa equação ainda mais estranha, mais torta. Mas estamos no Brasil, afinal. No Brasil do sertanejo universitário que "não se forma". E do hedonismo que surge em versos baratos que ressaltam o individualismo e o egocentrismo como uma suposta virtude. Sobre A Beleza Que Deriva... apenas ouçam. Trata-se de uma coleção infalível da MPB mais harmoniosa lançada nesse ano, cheia de colaborações - Otto, Lucas Santtana, Zeca Baleiro - e capaz de estabelecer diálogo com Clube da Esquina (na sensível Cacos), falar de feminismo (em Nina) e viajar em memórias de infância (Arcos). Que venham os próximos 20 anos de carreira.

6) Carabobina (Carabobina): Confesso que apesar de estar meio cansado dessa onda psicodélica Tame Impala wannabe - que já gestou um em fim de coletivos que flertam com o estilo que soterra os vocais nas guitarras distorcidas -, gostei do resultado apresentado por esse coletivo goiano, que bebe da fonte de coletivos como Supercordas e Bike. Com produção limpa, as experimentações jamais soam exageradamente delirantes ou sem sentido - o que resulta em composições de atmosfera colorida, mas sempre coesas, próximas do ouvinte. Exemplo disso está na hipnótica Deixa de Rodear, com seus efeitos urbanos, urgentes que formam um curioso contraste com suas letras bucólicas  (Acho que tenho a vontade mais fugaz / Desses animais que cantam e voam por aí). Já a lisérgica Em Dezembro tem refrão grudento e percussão eletrônica vibrante, que se soma de forma homogênea ao vocal da venezuelana Alejandra Luciani, que forma a dupla com o compositor Fefel, do próprio Boogarins. Um disco rápido, dde apenas nove faixas e pouco mais de 25 minutos, que convida ao repeat.

5) Mateus Aleluia (Olorum): Ancestralidade, misticismo, folclore, tradições, religiosidade. O terceiro álbum do veterano ex-integrante do grupo Os Tincoãs é um verdadeiro caleidoscópio de africanidade barroca, que da voz aos cantos dos nkises (entidades do povo bantu) e aos dos voduns (divindades de Benim), como explica os materiais de divulgação apresentados pelo compositor baiano de 77 anos. Com uma musicalidade que evoca os terreiros, o candomblé - o que pode ser percebido já nos títulos das canções (Nganga Njila, Samba-Oração) -, o álbum tem como forças as melodias ritualísticas, a percussão e a poética evocativa, que buscam as origens, as crenças e os cantos de adoração. Místico e de grande riqueza instrumental, o registro consegue equilibrar sutileza e potência, melancolia e efervescência em igual medida. "Para nós o ritual, o culto é o que dá origem a cultura. Se não houvesse o culto, não haveria uma cultura tão bem sedimentada como nós temos a cultura africana aqui. E o responsável por isso é o candomblé", revelou em entrevista a Revista Trip, como que resumindo o amálgama que rege a sua arte. 
 
4) Kiko Dinucci (Rastilho): Curtir um disco como Rastilho, do instrumentista integrante do Metá Metá, é viver uma experiências artística completa. Não se trata apenas de música, mas de uma inventiva mistura capaz de juntar artes plásticas, cinema, dança, poesia e outras manifestações em uma miscelânea religiosa, folclórica e regionalista. É quase como se fôssemos jogados numa película de Glauber Rocha resgatando a antropofagia do começo do século passado. Evocativo, o registro utiliza como base o violão nervoso para percorrer uma trilha de rock, samba, ritmos africanos e punk. "Nele, o instrumento sobrepõe tudo, todas as vozes, todas as letras, quem canta é a madeira", comentou o paulista, no material de divulgação. Exemplo dessa versatilidade toda pode ser encontrar em canções que funcionam como verdadeiros mantras musicais, caso da antiga Foi Batendo o Pé na Terra -que, aqui, surge repaginada - e, especialmente, Febre do Rato, que estabelece diálogo com esses tempos pós-apocalípticos e melancólicos que vivemos (E por cima do quengo, um estranho pôs a mão / Um arrepio na espinha, seu corpo tremeu / E uma mancha vermelha na face brotou / Ardeu no corpo febril).

3) Carne Doce (Interior): em seu quarto disco, segue inabalável a capacidade do coletivo goiano de versar sobre dilemas românticos, dramas cotidianos e reflexões contemporâneas de forma elegante, enérgica e classuda. Levemente enfumaçado, o registro mantém a paisagem sonora primaveril e eventualmente introspectiva, como pano de fundo para o convidativo vocal de Salma Jô, que se conecta a cada melodia de forma absolutamente orgânica, fluída. Em entrevistas, o grupo tem destacado o caráter sereno e tranquilo das canções que, homogêneas, olham para as origens dos integrantes - para uma espécie de "íntimo geográfico" - ao passo que os ritmos ganham um pouco mais de suingue. "É um álbum mais solar, generoso e amigável do que os outros, que são mais noturnos, escuros", destacou Salma em entrevista ao Correio Braziliense. Nesse sentido até temas mais atuais, caso do ódio nas redes sociais ganha uma roupagem mais debochada na canção Hater (É o meu covarde predileto/ Meu hater de estimação/ Que me adora pelo inverso/ Me odeia com adoração). Vale cada instante.
 
2) Zé Manoel (Do Meu Coração Nu): É inacreditável a sensação de conforto gerada pelo piano gracioso do artista pernambucano Zé Manoel, que abraça o ouvinte enquanto discorre sobre temas pesados, como, violência, repressão e racismo estrutural. É quase uma espécie de psicologia reversa, que nos faz prestar atenção às nossas tantas mazelas sociais, enquanto saboreamos uma experiência musical bucólica, delicada, sutil. Os próprios arranjos dificilmente são expansivos, sendo a economia sóbria e classuda a marca registrada - o que, como num curioso contraponto, parece tornar ainda mais potente a mensagem de canções como História Antiga (Quando as armas de um estado genocida / Procuravam nossos filhos e roubaram seus futuros, suas vidas / Houve um tempo triste em que os olhos não sabiam enxergar a nossa dor / Mas viam nossa cor). Acenando ainda para as religiões de matriz africana (No Rio das Lembranças), para a resistência (Escuta Beatriz Nascimento) e a para a representatividade dos povos (Adupé Obaluaê), o artista constroi um disco de raro refinamento, agradabilíssimo de se ouvir e com uma notável marca política.
 
1) Luedji Luna (Bom Mesmo É Estar Debaixo D'água): Tudo que Um Corpo no Mundo (2017) tinha de discreto, sutil e introspectivo, o mais recente registro da baiana Luedji Luna tem de expansivo, vigoroso e até dançante. É como se a artista oficialmente dissesse um "cheguei", indicando assim estar ainda mais segura para percorrer os caminhos de sua música envolvente. sinuosa, que dialoga com temas como papel da mulher negra na sociedade, conexão com a natureza, sexualidade e religiosidade. Tudo isso envolto em emanações místicas, ancestrais e irresistivelmente afetivas. "A música me deu a possibilidade de ser ouvida e um lugar no mundo como mulher e preta", afirmou em entrevista à Revista Glamour. "Cantar e escrever essas canções é revisitar as minhas experiências no mundo como ser humano. Isso é muito terapêutico", completou na mesma entrevista. Exemplo desse processo de amadurecimento e de autoconhecimento pode ser percebido em faixas movimentadas como Origami, que mistura melodia primaveril, com letra poderosa (E teu corpo holograma / Se desdobra origami / Sobre o meu, cama feita / Feito rede sutra kama). Um discaço que precisa ser descoberto.

Bom, é lógico que apenas 25 discos jamais serão suficientes pra contemplar a nossa produção nacional, então vocês que nos acompanham podem ficar à vontade para apontar as ausências, criticar e dar sugestões de outros trabalhos fundamentais de artistas brasileiros desse 2020 todo torto. A música, afinal, pode nos ajudar a superar esses tempos tão sombrios.

E se vocês gostam de listas, não deixem de conferir as nossas relações dos anos anteriores, de 2019, 2018, 2017, 2016 e 2015.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Novidades no Now/VOD - O Céu da Meia-Noite (The Midnight Sky)

De: George Clooney. Com George Clooney, Felicity Jones, Kyle Chandler, David Oyelowo e Demián Bichir. Ficção científica / Drama, EUA, 2020, 118 minutos.

Confesso que estava com uma expectativa boa pra conferir esse O Céu da Meia-Noite (The Midnight Sky) mas, não rolou tão legal assim. Eu gosto muito de ficção científica mais existencialista e pra mim faltou um tanto de profundidade nas possíveis reflexões sobre temas como solidão, dores, arrependimentos, passagem do tempo, memória, entre outros. Não acho que o adjetivo "arrastado", como muitas pessoas estão qualificando a obra dirigida e estrelada por George Clooney, seja exatamente um problema. Dá pra ter uma fluidez mais lenta, mais reflexiva ou contemplativa, mas que ela tenha uma lógica de existência dentro da narrativa. Vagarosidade em filmes sobre viagens ao espaço é a metáfora perfeita para o tempo que passa em uma outra escala. Mas aqui não há muito disso que não seja o aborrecimento de um filme que, sim, poderia ter alguns minutos a menos se não se perdesse em tantas tramas paralelas que não nos envolvem.

Baseado no livro de Lily Brooks-Dalton, o filme nos joga para o ano de 2049, quando a terra passou por algum tipo de catástrofe global que impedirá que a vida como a conhecemos continue existindo por aqui. Ao mesmo tempo, os avanços tecnológicos já possibilitaram as expedições espaciais para outros planetas com potencial para serem habitados e é de um deles que, justamente, está retornando para casa um grupo de astronautas que não está sabendo que a Terra entrou em colapso. Ao tentarem contato com as bases daqui - não apenas na Nasa, mas em outros locais do globo -, não tem sucesso. A salvação? Um cientista solitário de nome Augustine (Clooney), que trabalha no Ártico e fará todo o esforço para alertar a tripulação dos perigos de retornar à Terra que está inabitável. Com uma doença terminal ele não se escala para fugir do planeta, permanecendo ali enquanto "curte" seus últimos dias em meio a atividades cotidianas prosaicas.


A situação de Augustine se modifica quando uma garotinha de nome Iris (Caoillinn Springall) surge na base espacial meio que de "surpresa". Tentando alertar as expedições que saíram da Terra para o "erro" cometido ao deixar uma criança para trás, o cientista terá que se virar cuidando da pequena em seus derradeiros momentos, ao passo em que se empenha para encontrar a estação espacial ideal, com um sistema de comunicação em funcionamento, que possibilite o contato com os cientistas que ele pretende ajudar. Ao mesmo tempo, a obra se perde em longos momentos em que a tripulação é mostrada - e, sinceramente, eu nunca vi um desperdício tão grande de elenco POTENCIAL, já que David Oyelowo, Kyle Chandler e Demián Bichir quase não tem razão de existir, cabendo a Felicity Jones, o papel mais relevante - e, sinceramente, há uma grande surpresa envolvendo a sua personagem que, com cinco minutos de filme já é possível de sacar. Não é spoiler porque é MUITO ostensivo.

Bom, se o arco narrativo é basicamente esse - Augustine tentando alertar astronautas para que não voltem à Terra -, há muito pouco sobre o que virou o planeta e quais exatamente as alternativas de sobrevivência possíveis. Também não há grandes reflexões comportamentais sobre o nosso papel na total destruição dos recursos naturais e nos avanços tecnológicos desenfreados que poderiam desencadear o colapso - e admito que um pouco mais desses bastidores poderiam dar mais envergadura ao projeto, algo que os pobres flashbacks dificilmente conseguem. Tecnicamente bem executado, o filme tem na fotografia uma de suas forças - e é realmente maravilhoso quando Sully (Jones) é apresentada no ambiente inóspito ou não de um planeta habitável que fica junto a Saturno. No mais o desenho de produção é econômico e a trilha sonora é convencional (pra não dizer irritante mesmo). É lento, mas sem a profundidade que tornam projetos como Interestellar (2014), Ad Astra (2019) ou A Chegada (2016) inesquecíveis.

Nota: 6,0

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

15 Melhores Leituras de 2020 (+10 Menções Honrosas)

Se teve uma coisa que a pandemia nos possibilitou foi a "oportunidade" de ficar mais tempo em casa. E, estando mais tempo em casa pude exercitar um dos meus passatempos preferidos: a leitura. 2020 foi o ano de ver a pilha de livros ainda não lidos da estante diminuir drasticamente. O que proporcionou o encontro com clássicos, a descoberta de novos autores e atualização dos calhamaços que seguiam pendentes desde o começo do milênio. Tanto que esta é a primeira vez em seis anos de Picanha Cultural que resolvemos incluir em nossas listas de final de ano uma relação com as 15 Melhores Leituras de 2020 com mais dez menções honrosas. Vale destacar que não se tratam de livros lançados exclusivamente neste ano. Entre nacionais e estrangeiros, eis algumas obras que valem ser conferidas - até mesmo porque a pandemia segue longe de acabar e o sofazão de casa segue sendo o local preferido pra quem deseja ficar distante da Covid-19 enquanto a vacina não chega.

Menções Honrosas

25) A Desumanização (Valter Hugo Mãe)

24) Pai, Pai (José Silvério Trevisan)

23) A Cabeça do Santo (Socorro Accioli)

22) Redemoinho em Dia Quente (Jarid Arraes)

21) A Arte de Produzir Efeito Sem Causa (Lourenço Mutarelli)

20) O Vendido (Paul Beatty)

19) Não Verás País Nenhum (Ignácio de Loyola Brandão)

18) As Reputações (Juan Gabriel Vásquez)

17) Plataforma (Michel Houellebecq)

16) A Morte de Ivan Ilitch (Lev Tolstoi)

15) Fahrenheit 451 (Ray Bradbury): foi no pós-guerra que Ray Bradbury concebeu aquele que talvez seja o seu mais famoso livro até hoje. Na obra, acompanhamos o trabalho de uma Brigada que é destacada para exterminar os livros. Sim, que nem faziam os nazistas para combater a "subversão". Ou como queria o governo de Rondônia no começo desse obscuro ano. Considerados uma ameaça ao sistema vigente, os exemplares devem ser queimados pela manutenção da ordem, que "impedirá que o conhecimento se dissemine como uma praga". Sabe aquela história de precarização da educação, de ataque sistemático ao conhecimento e de apologia ao emburrecimento da população, que estamos assistindo no governo Bolsonaro? Pois é, Bradbury escreveu Fahrenheit 451 justamente como uma crítica aos sistemas totalitários e a repressão política, que se utilizam do medo e da paranoia como uma forma de controle. Trata-se ao cabo de uma obra questionadora, provocativa e amplamente iconoclasta. Leia a resenha completa.

14) Flores Para Algernon (Daniel Keyes): pensa num livro brilhante, melancólico, desolador, emocionante, agoniante, esplêndido - e mais uma série de adjetivos atribuídos pela crítica ao livro lançado por Daniel Keyes num agora longínquo ano de 1959. Com ares de ficção científica, a obra nos apresenta a Charlie Gordon, um homem com severa deficiência intelectual, que é selecionado para participar de um experimento científico revolucionário, que promete aumentar o seu QI. Só que quando ele passa pelo procedimento, a sua inteligência aumenta tanto que a capacidade de perceber o mundo de forma mais consciente, acaba por fazer com que a sua dor também aumente. A dor de saber. De conhecer. De se dar conta do contexto de preconceitos generalizados ao qual, até ali, ele estava conectado. "A ignorância é uma benção" diz um dos mais clássicos chavões. No caso de Charlie, ao deixar para trás a ingenuidade juvenil dos anos de escuridão há o confronto com uma realidade bastante difícil de lidar. Um livraço!

13) Engole Esse Choro (Laura Peixoto): "Ninguém pode ser o que é nessa cidade". Essa frase que está lá na página 117, dita pela personagem Belinha - avó da protagonista Eleonora -, parece de alguma forma resumir tudo aquilo que se lê nessa imperdível obra da gaúcha Laura Peixoto, que mistura novela familiar, com romance de formação de narrativa ficcional que carrega nas tintas de realidade. Mas é, especialmente, uma obra que desnovela a hipocrisia que insiste em escapulir pelas frestas de uma sociedade pródiga em apontar dedos, mas incapaz de olhar para si própria com com o mesmo espírito crítico. Arremessados que somos para o suarento ano de 1974, na provinciana Lacônia do Sul, vemos ecoar nessa pequena e fictícia cidade a opressão da Ditadura Militar que se avizinha, em um contexto de grande tensão político social. Ao mesmo tempo, alheios a tudo, os laconienses vivem seu idílio particular em meio a festas, corridas, jogos no clube e escolhas da Rainha da Paróquia, se mantendo ocupados também em atividades comezinhas, seja o tricô, o jantar e as roupas que as crianças usarão no desfile. Leia a resenha completa.

12) Todos os Belos Cavalos (Cormac McCarthy): Capítulo inaugural da Trilogia da Fronteira esta é uma obra sobre rupturas. Sobre amadurecimento. Sobre deixar o passado para trás ou, até mesmo, mergulhar nesse mesmo passado, antes que aquilo que vemos no horizonte oficialmente chegue. É livro de contrastes que coloca frente a frente tradição e modernidade, juventude e experiência, lançando um olhar tão bruto quanto carinhoso a seus personagens que, apegados de forma umbilical a algumas convenções, parecem presos a um estilo de vida alterado por aquilo que se conhece por "civilização". O protagonista é um jovem de nome John Grady Cole, um adolescente de 16 anos que acaba de perder o pai, e que se vê privado da vida de fazendeiro texano que teria quando a mãe, uma respeitada artista de teatro, anuncia que pretende vender a propriedade que já está há várias gerações com a família. Contrariado, Grady pega seu cavalo, monta nele, chama seu amigo Lacey Rawlings para lhe acompanhar e resolve empreender uma jornada meio sem rumo, sem destino definido, em direção ao México. Um livro em que a aridez e a selvageria saltam das páginas, servindo de metáfora perfeita para a sensação solidão e de não pertencimento típicos da juventude. Leia a resenha completa.

11) Enclausurado (Ian McEwan): acho que só a temática e a abordagem inusitada já fazem valer a pena a leitura dessa saborosa aventura de suspense. Narrada por um feto "preso" a barriga da mãe que escuta os planos da progenitora para, em conluio com seu amante - que é também tio do bebê -, assassinar o marido para ficar com uma herança, a obra tem um inadvertido senso de humor, capaz de evocar as melhores tragédias de Shakespeare. Debochado, provocador e idiossincrático, o livro funciona como um grande fluxo de consciência em que acompanhamos esse curioso protagonista tecendo comentários sobre variedades de uvas preferidas para vinhos, política estrangeira e sobre ter o "pênis do amante da mãe a apenas alguns centímetros do seu nariz" enquanto se empenha em bolar algum estratagema que impeça o crime. Uma leitura rápida e direta que não deixa de, a seu modo, ser reflexiva - especialmente no que diz respeito aos limites para a criação literária.

10) Dias de Abandono (Elena Ferrante): Dias de Abandono foi o meu primeiro contato com um livro da Elena Ferrante - a misteriosa escritora que pouco se sabe - e eu fiquei simplesmente impactado pela sua sinuosa escrita. Trata-se de uma obra de temática bastante simples: mulher é inesperadamente deixada pelo marido e precisa lidar com os dias (e meses) seguintes, passando por todas as etapas que envolvem o luto por uma separação - da negação inicial, passando pela raiva, até chegar num processo de aceitação. Só o que torna essa obra bastante diferente das demais é a franqueza com que Olga, a protagonista, encara a mesquinharia do entorno, o vazio dos dias e a depressão que lhe invade. Com uma sinceridade (quase) alarmante ela não hesita em verbalizar o quanto está de saco cheio dos seus filhos - de seus choros e ranços - naqueles dias seguintes, ao passo em que tenta reencontrar sentido em uma rotina que, agora, parece ausente de motivação: para o trabalho, para encontros com os amigos, para qualquer distração. Há apenas uma nuvem carregada. E Olga, tal qual o personagem de Jim Carrey em O Show de Truman, está posicionada abaixo dela. Leia a resenha completa.

9) O Olho Mais Azul (Toni Morrison): Toni Morrison escreveu O Olho Mais Azul entre 1962 e 1965 - na década em que eclodiriam, portanto, os movimentos pelos direitos civis nos Estados Unidos. E é uma obra que, por trás do véu da discussão dos padrões de beleza na sociedade, permanece mais do que atual em seu debate sobre preconceito, ódio e intolerância. A trama centra sua história na jovem Pecola Breedlove, menina negra (e tida como feia) do Estado de Ohio que sonha em ter os olhos azuis como forma de amenizar o racismo que a rodeia - vindo de casa, da escola, da vizinhança - e que, por comparação, também poderia servir para "ver o mundo" de outras formas. Marcada pela violência, Pecola integra uma família bastante disfuncional, com um pai abusador e alcoólatra e uma mãe completamente negligente. Após um incidente familiar, o serviço social da cidade de Lorain, onde se passa a ação, instala Pecola temporariamente na residência da família MacTeer. É um livro poderoso em suas sutlezas, que coloca a questão racial como um ponto central da narrativa. Leia a resenha completa.

8) Eu Receberia as Piores Notícias de Seus Lindos Lábios (Marçal Aquino): No momento em que começa a narrar os fatos inscritos nesse clássico moderno da literatura nacional, o fotógrafo Cauby está convalescendo de um trauma numa pensão barata, numa cidade do Pará prestes a ser palco de uma nova corrida do ouro. Sua voz é impregnada da experiência de quem aprendeu todas as regras de sobrevivência no submundo - mas não é do ambiente hostil ao seu redor que ele está falando. O motivo de sua descida ao inferno é Lavínia, a misteriosa e sedutora mulher de Ernani, um pastor evangélico. A trajetória do fotógrafo, dado a premonições e a um humor desencantado, vai sendo explicada por meio de pistas: a história de Chang, fotógrafo morto num escândalo de pedofilia; o mistério de Viktor Laurence, jornalista local que prepara uma vingança silenciosa; a vida de Ernani, que tirou Lavínia das ruas e das drogas no passado. Mesmo diante de todos os riscos, Cauby decide cumprir seu destino com o fatalismo dos personagens trágicos. "Nunca acreditei no diabo", diz ele. "Apenas em pessoas seduzidas pelo mal". Um livro envolvente, sedutor, recheado de ambiguidades e que nos prende de forma inescapável.

7) Pornopopeia (Reinaldo Moraes): talvez esse seja o livro mais engraçado que eu tenha lido na vida - a ponto de suas mais de 650 páginas passarem voando. Aliás, em tempos de pandemia - e, consequentemente, de ansiedades múltiplas e de medos aleatórios - a obra, com sua verborragia direta, suja e hedonista, foi a companhia ideal. Na trama somos apresentados a Zeca, um ex-cineasta marginal que precisa levantar uma grana rodando um vídeo institucional para uma empresa de embutidos de frango. Sem muita inspiração, ele acaba entrando numa espiral de sexo, bebidas, drogas e outros excessos, em que o leitor é o interlocutor improvisado para toda a sorte de acontecimentos divertidamente inesperados. Produto de nosso tempo, Zeca, com seu individualismo atroz e seu inadvertido niilismo busca apenas o prazer imediato em meio a inferninhos, casas de prostituição e muquifos que integram a paisagem do submundo. Sua ambição, afinal de contas, não é grande. Mas seu apetite beira a voracidade, que  resultará numa jornada tão desregrada quanto epica.

6) Como Se Estivéssemos em Palimpsesto de Putas (Elvira Vigna): É muito provável que poucos autores consigam dissecar a essência da escrotidão do macho hétero topzera como a Elvira Vigna, nessa verdadeira joia da literatura moderna. Emprestado do dicionário, o curioso vocábulo "palimpsesto" evoca a relação que duas pessoas completamente estranhas passam a ter, quando uma delas começa a fazer a outra uma série de relatos sobre encontros frequentes com prostitutas. Como num palimpsesto, as histórias e seus detalhes se sobreporão, formando um pequeno painel sobre a falência completa dos relacionamentos, bem como suas mentiras e jogos de poder. Quem narra a história é uma designer de que não sabemos o nome. Contratada pra tentar dar um upgrade em uma editora que se encaminha para o processo de falência, conhece João nas tardes em que ele trabalha para informatizar o local. Em cada história ouvida pela nossa interlocutora - saídas diretamente de inferninhos, de prostíbulos de quinta categoria e de hotéis decadentes - os detalhes narrados com uma autoestima constrangedora, ainda que as pontas soltas deem conta de desmantelar o suposto ar superior com que João desnovela seus relatos, numa narrativa que aborda os jogos de poder entre os sexos com naturalidade estonteante. Leia a resenha completa.

5) Liberdade (Jonathan Franzen): Ao lado de Jonathan Franzen, não foram poucos os autores que se aventuraram em dissecar as vísceras do american way of life e, consequentemente, a completa derrocada do sonho americano. De O Som e A Fúria de William Faulkner até Pastoral Americana de Philip Roth foram muitos os escritores que tentaram traduzir o sentimento de uma época, um tipo de zeitgeist de seu tempo, na literatura dos Estados Unidos. E não é diferente com este Liberdade, que completou dez anos de seu lançamento em 2020, mantendo a sua exegese intacta. No decorrer de suas mais de 600 páginas assistimos, embasbacados, como funciona o microcosmo dos Berglund, uma família de classe média tipicamente americana, cheia de contradições e de frustrações, de sonhos nunca concretizados, de arrependimentos materializados em escolhas erradas, ainda que bem intencionadas, em um contexto social que suga de suas figuras qualquer fiapo de esperança. Em uma narrativa descomplicada, Franzen evidenciará que somos figuras complexas e de escolhas igualmente complexas. Leia a resenha completa.

4) A Vida Invisível de Eurídice Gusmão (Martha Batalha): Existe uma frase que está no prólogo da arrebatadora estreia de Martha Batalha, que resume bem o espírito de sua obra: "[...] o mais real deste livro está na vida das suas protagonistas, Eurídice e Guida. Elas ainda podem ser vistas por aí. Aparecem nas festas de Natal, onde passam a maior parte do tempo sentadas, com o guardanapinho nas mãos. São as primeiras a chegar e as primeiras a ir embora. Comentam sobre os temperos do bacalhau, sobre os calores ou chuvas do dia ou sobre se o marido vai bem e se a sobrinha-neta já tem namorado. Eurídice e Guida foram baseadas na vida das minhas, e das suas avós". Bom, é o condensado de uma vidinha simplória que resultará em uma terceira idade de frustrações, de sonhos jamais alcançados e de anseios engavetados. São mães, tias e avós que se tornaram invisíveis em uma sociedade patriarcal e altamente machista, com a obra tentando lançar um olhar de ternura para estas mulheres - num contexto que deveria ter ficado no passado, mas insiste em permanecer. Num texto de grande fluidez narrativa as "não vidas" das mulheres surgem como única opção de existência possível.

3) O Tribunal da Quinta-Feira (Michel Laub): elogiadíssimo pelo recém-lançado Solução de Dois Estados, o gaúcho Michel Laub constroi, com seu livro anterior, uma fábula virtuosamente escrita, que ainda conta com uma temática moderna e envolvente. Na trama, o protagonista é um publicitário de 43 anos de nome José Victor que está no quinto relacionamento (!) e tem um melhor amigo chamado Walter - uma amizade de 25 anos, que iniciou nas salas de aula de faculdade, permanecendo pela vida. Walter é hoje aquela pessoa com quem Victor troca confidências em mensagens íntimas, cheias de particularidades e idiossincrasias relativas à amizade dos dois. Mas o que aconteceria se algumas dessas mensagens, tão particulares, tão subjetivas, tão identificáveis apenas com aquele universo de duas pessoas - recheadas de gírias, apelidos, deboches -, viesse ao mundo no formato de postagens em fóruns ou redes sociais? No livro, uma das ex-mulheres de Victor, a arquiteta Teca, descobre uma senha de e-mail perdida quase uma década atrás, que revelará o conteúdo arrebatador da troca de mensagens entre o agora ex-marido e o seu amigo, numa narrativa que burla os limites entre público e privado. Leia a resenha completa.

2) Ruído Branco (Don Delillo): Em tempos de internet, de pós-verdade e de mudanças climáticas não deixa de ser impressionante o quanto este livro lançado em 1985 se mantém atual. Trata-se de uma distopia literária que equilibra fluência textual com a sofisticação de seus temas, que podem saltar da paranoia governamental e da participação da mídia na vida em sociedade até chegar ao medo da morte. Aliás, o medo do fim é peça central da narrativa, tanto que Jack e sua esposa Babette, que vivem em uma cidade chamada Blacksmith com os filhos, costumam fazer uma brincadeira sobre quem deve morrer primeiro entre os dois. A situação se torna realmente tensa quando nos arredores da cidade ocorre um vazamento químico que forma uma nuvem tóxica, obrigando todas as famílias da região a deixarem suas casas, migrando para uma espécie de acampamento improvisado. Mas aqui, no caso, o sofrimento não vem do ocorrido em si, mas das consequências dele, com Delillo construindo a obra a partir de uma série de questões que colocam realidade e imaginação divididos por uma linha muito tênue. Leia a resenha completa.

1) Torto Arado (Itamar Vieira Júnior): Vencedora do Prêmio Oceanos 2020 essa imperdível obra lança um olhar para o Brasil agrário, esquecido, abandonado. Um País em que senhores oligarquicamente engravatados decidem rumos a portas fechadas, exaurindo seus povos, enquanto aumentam suas riquezas as custas das dores, do suor e do sangue de muitos. É nesse universo que o escritor mergulha com sua literatura direta e cheia de virtudes, grandiosa sem ser empolada. Há uma densidade naquele contexto árido do sertão baiano que é tão palpável quanto as dores sentidas pelas irmãs Bibiana e Belonísia, que abrem o livro como crianças curiosas que descobrem uma velha e misteriosa faca em uma mala guardada embaixo da cama da avó. E que resultará em um acidente que modificará a vida delas - ambas filhas de humildes trabalhadores rurais descendentes de escravos - para sempre. Cheio de simbolismos, o livro coloca frente a frente o urbano e o rural, o místico e o terreno, numa obra de contradições que evocam vozes, gerações, tradições e outros temas. Leia a resenha completa.

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Curta Um Curta - Se Algo Acontecer... Te Amo (If Anything Happens I Love You)

Se em tempos de pandemia já anda difícil especular sobre quais os filmes que estarão na próxima edição do Oscar, o que dizer então das categorias de curta-metragem? Naturalmente envoltas em certo mistério, muitas vezes só temos mais informações a respeito dessas obras alguns dias ou semanas antes da revelação dos indicados. Mas mesmo nesse universo de incertezas, a Netflix tem trabalhado forte na ideia de conseguir obter nominações também nos curtas - e a aquisição do belo e sensível Se Algo Acontecer... Te Amo (If Anything Happens I Love You) é parte disso. De traço simples, a história dirigida por Will McCormack e Michael Govier nos apresenta a um casal que enfrenta o luto e tenta se reerguer depois de perder a filha em circunstâncias trágicas. É uma obra tocante que, com apenas 12 minutos, nos faz refletir sobre a atual situação em que nos encontramos no mundo, ao passo em que aposta em uma série de imagens simbólicas que nos fazem pensar sobre memória, violência, dor e superação. Sem uma caixa de lenços de papel talvez não seja fácil. Não custa lembrar.

Grandes Cenas do Cinema - Esqueceram de Mim (Home Alone)

De: Chris Columbus. Com Macaulay Culkin, Joe Pesci, Daniel Stern, John Candy e Catherine O'Hara. Comédia, EUA, 1990, 101 minutos.

Eu tinha nove anos de idade quando Esqueceram de Mim (Home Alone) foi lançado. Foi um filme que fez parte da minha infância e que segue sendo absolutamente divertido - ainda que, hoje em dia, seja muito mais evidente e inegável a disfuncionalidade da família de Kevin (Macaulay Culkin), que simplesmente o esquece em casa quando resolve passar o Natal em Paris. É, a meu ver, o filme de Natal por excelência, cheio de sequências icônicas e de frases marcantes, que foram repetidas à exaustão pelos pré-adolescentes que cresceram naqueles inacreditáveis anos 90. Eu lembro até hoje das reuniões natalinas, com a primaiada agitando na casa da falecida vó Lucila, ocasião em que qualquer coisa era motivo para que replicássemos algum "fique com o troco, seu animal", em meio a árvores recheadas por pisca-piscas e presépios cuidadosamente montados (que, por um milagre, não destruíamos). O cinema, assim, nos dava os sinais de uma paixão que, mais tarde, amadureceria. E, no meu caso, faria um jornalista que também escreve sobre filmes.

E é por isso que revisitar o filme na última semana para o mais recente episódio do podcast - pode rolar a página que ele se encontra aqui embaixo - mexeu com a minha memória afetiva. Em tempos de pandemia fui invadido pelo sentimento nostálgico da época em que acreditávamos não apenas em Papai Noel, mas também no mundo. Foi bacana demais rever as peripécias de Kevin que, assim que sua família o deixa a deriva, se vê acossado por dois bandidos que pretendem assaltar a residência de sua família. A alternativa que ele encontra para se "defender"? Preparar uma série de armadilhas improváveis que possam dar cabo - ou ao menos afastar temporariamente -, os terríveis Harry (o sempre ótimo Joe Pesci) e Marv (Daniel Stern). E tome tombos, pancadas de todos os tipos, queimaduras diversas, furos, cortes e toda a sorte de ataques que mais parecem saídos de algum desenho do Papa Léguas e sua incansável fuga do coiote. É muito engraçado. É cartunesco. É pastelão. E certamente é inesquecível.

Vocês que regulam a idade com este jornalista que aqui escreve - tenho 39 anos -, certamente estão lembrando não apenas destes, mas de outros momentos icônicos da obra do diretor Chris Columbus, que mais tarde dirigiria a ótima sequência da película e também outros clássicos juvenis como Uma Babá Quase Perfeita (1993), além de filmes da série Harry Potter. Entre estas sequências há aquela em que Kevin organiza uma "festa improvisada" para despistar os meliantes, além da inesquecível cena em que o garoto recebe uma pizza e "testa o áudio" do filme que está assistindo e que, mais tarde, também servirá de estratagema no enfrentamento aos bandidos. É tudo leve, coeso, dinâmico e talvez não seja por acaso que a obra tenha sido acarinhada no Oscar de 1991, com indicações nas categorias Trilha Sonora e Canção Original. Isso sem contar as indicações ao Globo de Ouro - inclusive para Melhor Filme Comédia ou Musical.

Com uma mensagem bem à moda dos filmes dos anos 90 - de valorização da família e, especialmente, do perdão àqueles que amamos -, Esqueceram de Mim segue como uma graciosa comédia de costumes, que confronta o american dream sem ignorar o sentimento de conforto proporcionado por ele. Do caos inicial em que a casa dos McCallister se encontra ao singelo instante final há um turbilhão de acontecimentos que renovam as nossas esperanças para dias melhores de forma inadiavelmente acolhedora. E, confesso que reassistir à obra nesse dolorido 2020 de pandemia e de afastamento quase obrigatório de amigos e familiares como uma espécie de curioso gesto de amor, me fez bem demais. Assim, recomendamos que vocês façam o mesmo: retirem os VHS da gaveta (estamos brincando!), juntem a família na sala, respeitem o distanciamento e se divirtam com esse clássico atemporal. Mal não vai fazer. E talvez torne o Natal, como sempre o tornou, mais leve.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Novidades no Now/VOD - A Voz Suprema do Blues (Ma Rayney's Black Bottom)

De: George C. Wolfe. Com Chadwick Boseman, Viola Davis e Michael Potts. Biografia / Drama, EUA, 2020, 94 minutos.

É simplesmente impossível assistir a uma obra como A Voz Suprema do Blues (Ma Raney's Black Bottom) e não ficar ainda mais compadecido pela morte precoce de Chadwick Boseman que, aqui, encarna o seu derradeiro papel. E admito a vocês que o trailer me enganou um tanto, já que esperava um tempo maior de tela da Viola Davis - a Ma Rayney do título, uma das primeiras cantoras de blues de que se tem conhecimento -, sendo que o astro de Pantera Negra é quem tem, na verdade, o melhor arco narrativo, sendo tão protagonista quanto a estrela de How to Get Away With Murder. E, sinceramente, pode separar a estatueta dourada: em um filme baseado em uma peça de teatro e em que as interpretações são tão importantes, acho difícil que Boseman, com sua entrega habitualmente qualificada, tão enérgica quanto contida, não leve o Oscar póstumo. O que provavelmente se consolidará como um dos grandes momentos da cerimônia marcada para abril do ano que vem.

Nesse sentido, quem esperava uma discussão um pouco maior sobre os efeitos causados por uma mulher negra no mundo da música há cerca de um século atrás, poderá sair um pouco decepcionado. E confesso que, em partes, vi a experiência um tanto comprometida, já que Ma Rayney surge em tela como uma artista já empoderada, autossuficiente e consciente de seu "papel" na sociedade norte-americana dos anos 20. A ponto de brigar com os seus empresários por contratos mais justos no que diz respeito aos direitos sobre suas canções e de jamais se censurar diante das eventuais pressões da gravadora que pretende produzir seu primeiro disco - e penso ter havido uma clara romantização da personagem, especialmente em um País tão racista como os Estados Unidos. E não é que a discussão sobre preconceito não esteja lá: ela apenas ficou algumas "camadas" um pouco mais abaixo no combo geral, com outros dramas e narrativas paralelas ocupando mais espaço em tela.

E é justamente esse o caso do arco dramático do personagem de Chadwick Boseman. Quando chegam ao estúdio para a gravação do álbum de Ma Rayney, os músicos expressam seus medos, seus anseios, suas ambições. No caso do trompetista Levee (Boseman) a ideia mais para a frente será a de se "desgarrar" do papel de mero músico de apoio para produzir suas próprias músicas. Mais do que isso: ao repaginar canções antigas da grande estrela do blues para uma roupagem mais moderna - com arranjos mais floreados, mais coloridos -, Levee entra em conflito com os produtores e com a própria Rayney. Aos poucos as motivações de cada um bem como suas histórias de vida se descortinarão, com o roteiro valorizando muito mais os diálogos e as interpretações (cheias de closes e de planos fechados) do que qualquer outro movimento mais expansivo. Assim são raras as externas, com a câmera centrando "fogo" nos ambientes claustrofobicamente fechados, com os músicos debatendo o contexto social, cultural e até político da época em discursos potentes e que seguem relevantes até hoje.

Assim, trata-se ao cabo de uma obra de sutilezas, muito bem montada e que tem no poder da arte - e na música em si - uma de suas fortalezas. Não por acaso, em meio ao truncado processo de gravação, nos deparamos com frases contemplativas como "quanto mais música existe no mundo mais completo ele é". Há nesse sentido uma verdadeira ode aos artistas que quebram paradigmas com seus esforços e anaturalização de Rayney como uma potência virtuosística de sua época é parte disso - o que é complementado pelo charme meio errático de seu comportamento tão ambicioso quanto temperamental. O que também rende sequências engraçadas como aquela em que a estrela "briga" pela oportunidade de poder desfrutar de uma Coca Cola. É um filme que cumpre seu papel e que ainda dá um tapa na cara do espectador com sua sequência final, que mostra que, nesse universo, a música pode ser apenas mais um comércio como qualquer outro - sensação que seria ampliada mais adiante, com apropriações culturais indevidas e mal utilizadas em prol do capital.

Nota: 7,5

sábado, 19 de dezembro de 2020

Podcast do Picanha Cultural #32 - Oito Filmes Para o Natal

Jingou bel, jingou bel acabou o papel / Não faz mal, não faz mal limpa com jornal. É, pessoal, eis que esse 2020 escrotíssimo está chegando ao fim e, a despeito da pandemia, do Bolsonaro e todos os outros problemas do mundo, estamos aqui pra injetar aquela dose de clima natalino à moda Picanha Cultural em todos vocês. Sim, todos nós temos aquelas obras preferidas do coração que celebram uma das mais importantes datas católicas do ano. E foi pensando nisso que no episódio dessa semana elaboramos uma listinha com oito filmes de Natal! De clássicos como A Felicidade Não Se Compra (1946) a recentes como o nacional Tudo Bem no Natal que Vem (2020) tem para todos os gostos. Então, bora embarcar com a gente em mais essa viagem nostálgica e divertida. E não esqueça de separar a sua meia para colocar junto à lareira (sim, no calor de 50 graus) para aguardar o bom velhinho com pipoca no colo, família reunida e filme bacana. Boas festas!


quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Picanha em Série - O Gambito da Rainha (The Queen's Gambit)

De: Scott Frank. Com Anya Taylor-Joy, Harry Melling, Thomas Brodie-Sangster e Marielle Heller. Drama, EUA, 2020, 393 minutos.

Depois de muita resistência, em parte pelo ranço causado pelo hype insistente nas redes sociais (motivo pelo qual ainda não assisti produções renomadas como Game of Thrones e The Crown, por exemplo), em parte pelo total desinteresse por uma obra que retrate jogos de xadrez, decidi assistir à minissérie protagonizada pela maravilhosa Anya Taylor-Joy, (Fragmentado, Emma) na qual interpreta uma jovem enxadrista, órfã, atormentada pelo alcoolismo e por seu vício em calmantes. É preciso admitir que esta produção da Netflix consegue, em apenas oito episódios, entregar o que seja, talvez, o melhor drama de 2020.

Baseado no romance homônimo de Walter Tevis, publicado em 1983, O Gambito da Rainha (The Queen's Gambit) narra a história de Elizabeth Harmon, partindo desde a perda da mãe, o que a leva para um rígido orfanato, até a sua juventude, enquanto caminha para se tornar uma das maiores jogadoras de xadrez do mundo. O enredo, apesar de bastante simples, consegue transmitir ao público todo o glamour e complexidade dos anos 60 nos Estados Unidos. O visual da produção é encantador ao retratar a estética norte-americana da época, a moda, os carros, as decorações dos lares suburbanos, os uniformes colegiais e toda a ambientação de um povo que parecia não conseguir viver sem a possibilidade de um drink e um cigarro. Contudo, o maior valor da produção não reside em questões técnicas ou externas, mas na sensibilidade da protagonista e nas relações que são construídas ao seu redor. 



Beth Harmon passou boa parte da sua infância acostumada a passar suas noites em um quarto coletivo, com outras inúmeras órfãs, precisando agir e vestir-se da forma como todas eram ensinadas, afinal, alguém só iria adotá-la se seguisse um determinado padrão de boas notas e bom comportamento. O primeiro choque de realidade se dá quando Beth percebe que todas as jovens dali, sem exceção, deveriam tomar dois comprimidos, uma vitamina e um calmante. Dessa forma, o instituto exercia um poder de controle sobre as moças que ali estavam. Este também é o motivo pelo qual Jolene (Moses Ingram) se aproxima de Beth e, juntas, começam a criar um bonito laço de amizade. A jovem amiga de Beth, única negra no orfanato e, portanto, com menores chances de encontrar um lar, é uma óbvia referência ao racismo estrutural. É neste cenário, entre uma aula de canto e um um vídeo sobre boas maneiras, que Beth vai ao porão e vê o zelador Mr. Shaibel (Bill Camp), homem silencioso e solitário, jogando uma partida de xadrez. Aquele tabuleiro quadriculado e aquelas peças seguindo movimentos rígidos encantam a menina que, pela primeira vez na vida, consegue ver algum tipo de ordem, uma possibilidade de controlar algo no mundo.

Fora do orfanato depois de ser adotada por um casal americano em crise, Beth vê uma janela para poder seguir uma carreira no xadrez, mas é constantemente confrontada por um ambiente totalmente masculino e descrédulo, que não admitiria ter uma mulher como a melhor em um jogo amplamente dominado por homens. É em meio às várias disputas que a produção prende o espectador com cenas por vezes angustiantes, mas que transmitem toda a complexidade e, quem diria, emoção de um esporte que parece ser frio e calculista, apenas. A cada olhar penetrante dos jogadores, a cada nova estratégia utilizada pelo oponente, a cada movimento de peças somos levados a um universo peculiar e desconhecido, que gera hoje, no mundo, um crescimento exponencial na busca de filmes, livros e acesso aos sites de jogos de xadrez. As sequências nos torneios nos deixam apreensivos e preocupados com o rumo de partidas que, convenhamos, ninguém está entendendo.

Infelizmente Beth Harmon é apenas uma personagem. Porém, todo o processo de amadurecimento e conquista de perspectiva sobre o que realmente importa na vida é assustadoramente real. A personagem é daquelas que nos fazem lamentar a sua não existência em “carne e osso”, aqui, no nosso mundo. Apesar de todas as dificuldades enfrentadas para construir a sua brilhante carreira, Beth sofre, sobretudo, com os relacionamentos, seja com sua nova família (que nos presenteia com uma atuação brilhante e muito sensível da sua mãe adotiva), seja com seus colegas e oponentes enxadristas. A menina que aprendeu a se virar sozinha na infância precisa conviver com seus pares, aprender as nuances de cada personalidade e entender o que é preciso para ser realmente feliz: estar aberta aos outros, rir, chorar, beber e construir uma família, ainda que não seja somente de sangue. Isso ocorre de forma genial ao longo da minissérie, concluindo a narrativa com uma das cenas mais tocantes de 2020, sem sombra de dúvidas.

Ao unir fantasia, vícios, amores e uma realidade brutal, “O Gambito da Rainha” atinge o seu objetivo de forma plena e tocante. Não vou me abster do óbvio clichê: a obra é certeira, um verdadeiro xeque-mate. 


 


terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Novidades no Now/VOD - A Festa de Formatura (The Prom)

De: Ryan Murphy. Com Jo Ellen Pellman, Meryl Streeo, James Corden, Nicole Kidman, Kerry Washington e Andrew Rannels. Comédia / Musical, EUA, 2020, 131 minutos.

Acho que esse 2020 tenebroso me tornou mais tolerante aos feel good movies musicais, caso desse A Festa de Formatura (The Prom) - que, nas entrelinhas, parece apenas uma obra bobinha, mas que tem uma poderosa mensagem sobre aceitação e respeito as diferenças. Sobretudo, trata-se de um filme bem humorado e que nos arranca sorrisos fáceis em meio a apresentações musicais bem coreografadas e absurdamente divertidas - algumas letras são um achado! Sim, é eventualmente brega, talvez excessivamente caricato ou feito apenas para agradar o público. Mas, ok, não podemos esquecer que trata-se de uma adaptação de um musical da Broadway que, aparentemente, não se deseja levar tão a sério. A trama é um fiapo: após uma jovem lésbica (Jo Ellen Pellman) ser proibida de levar a sua namorada ao baile de formatura da escola - aliás, o baile é cancelado -, um grupo de celebridades decadentes abraça a causa, com o objetivo de confrontar o conservadorismo e chamar a atenção da mídia de alguma forma.

No grupo de celebridades decadentes está - vejam só a ironia - a Meryl Streep, que encarna a veterana Dee Dee Allen. Respeitada em outrora, com dois Tonys na bagagem, Dee Dee tem de conviver atualmente com uma carreira em declínio, que culmina com a péssima recepção por parte da crítica especializada de sua mais recente peça de teatro. No elenco da mesma peça também está Barry Glickman (James Corden, que parece ter alguma dificuldade em não soar artificial), com a dupla encarnando Franklin e Eleanor Roosevelt no mais recente trabalho. Será afogando as mágoas, após a desastrosa noite de estreia, entre uma bebida e outra, que eles resolverão repaginar as suas imagens entrando de cabeça no ativismo. À dupla se juntarão ainda Angie Dickinson (Nicole Kidman) - outra estrela que anda pouco requisitada -, e o garçom e ex-integrante de uma sitcom de sucesso Trent Oliver (o ótimo Andrew Rannels). Rumo à Indiana, o quarteto se envolverá nas maiores confusões, enquanto adere a causa das adolescentes lésbicas.

E, aqui, não posso deixar de identificar certa irregularidade da narrativa que, vamos combinar, com suas mais de duas horas, se estende demais. O primeiro terço é absurdamente divertido, engraçado, dinâmico, cheio de piadas envolvendo o universo das celebridades, com citações culturais variadas e um certo grau de metalinguagem que procura colocar o dedo na ferida nessa opulenta máquina recicladora de artistas, que parece estar o tempo todo pronta para "fritar" seus astros. Outro componente que gera boas piadas, como não poderia deixar de ser, é conservadorismo dos moradores locais quando confrontado com o progressismo arrogante de Dee Dee, Angie e os demais - e a cena em que Dee Dee tenta dar um carteiraço em um gerente de um pequeno hotel do interior, mostrando seus prêmios, com o objetivo de conseguir uma suíte ou um quarto próximo do spa, é hilária. O mesmo valendo para a canção It's Not About Me entoada por Dee Dee já na chegada do grupo à Indiana (E a menos que esteja no elenco de O Milagre de Anne Sullivan / Não vou fazer papel de cega, surda e burra).

Só que a partir do segundo terço, a película amplia o componente melodramático e o filme se torna arrastado - e até as músicas mais chatas, com algumas raras exceções, caso da ótima Love Thy Neighbor. Consequentemente, a mensagem pretendida também se torna esvaziada e repetitiva: ok, já compreendemos que precisamos respeitar as diferenças, mas, podemos ir para os finalmentes? Ao invés disso, a obra do diretor Ryan Murphy se ocupa com tramas paralelas nem sempre bem costuradas - caso da história da mãe de Barry, por exemplo -, e até meio rasas (qual a função, exatamente, da Nicole Kidman no filme?). Fora personagens como a mãe conservadora vivida por Kerry Washington, que faz uma curva meio difícil de ser compreendida - e até meio direta demais. Ainda assim, não podemos esquecer: como comédia musical que quer passar uma mensagem sobre aceitação, o filme funciona direitinho e ainda brinca com o absurdo de haver pessoas preconceituosas e intolerantes em pleno 2020. Sim, às vezes é preciso esfregar o "óbvio" meio na cara - e isso a narrativa faz com maestria.

Nota: 7,5

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Novidades no Now/VOD - O Som do Silêncio (Sound Of Metal)

De: Darius Marder. Com Riz Ahmed, Paul Rici, Olivia Cooke e Mathieu Amalric. Drama, EUA, 2019, 121 minutos.

O Som do Silêncio (Sound Of Metal) já passa um pouco mais da metade quando o protagonista Ruben (Riz Ahmed) - um baterista de uma banda de death metal que precisa conviver com a perda irreversível de audição - se junta a um menino surdo de cerca de oito anos em uma sequência em uma pracinha. Sentada em um escorregador, a dupla utiliza a estrutura metálica do brinquedo para batucar. Para brincar com os sons. Para se conectar de alguma forma, em seu universo de silêncios e de barulhos muito mais abafados do que claros. É um tipo de epifania que estabelece, de alguma forma, a nova condição de Ruben: dali para frente as suas formas de comunicação muito provavelmente serão outras. Língua de sinais, gestos, leituras de lábios. Mas, ali, naquele momento, ele ainda força uma espécie de vínculo com a sua antiga realidade. Utiliza a música para comunicar. Parece apenas um instante aleatório, mas se torna uma poderosa sequência sobre autoaceitação, que é cheia de leveza e de riqueza em seu simbolismo.

A grande realidade é que o filme de estreia do diretor Darius Marder se apropria de sua rara temática, para estabelecê-la como um belo exercício de superação, em que o sinuoso roteiro nos faz pensar o tempo todo, de forma meio paradoxal até, no caos cotidiano que vivemos. Excessivamente barulhento, quase ensurdecedor. Atualmente parece que o mundo está aos gritos, restando pouco espaço para a conexão com o íntimo, ou com aquilo que tenha sentido em um universo de urgências. Como integrante de uma banda de metal, o filme já começa propositalmente incômodo, com a música surgindo desordenada, entrópica, confusa. É uma sensação ruim a que nos dá enquanto as baquetas são empunhadas, as canções são despejadas sofregamente em meio a uma apresentação ao vivo. Não demora para que o zumbido crônico no ouvido de Ruben se mostre como uma severa condição clínica. O que alterará tudo aquilo que ele havia projetado em sua rotina de músico - de lançamento de álbuns a turnês pelo País.

Meio a contragosto, ele descobre a existência de uma comunidade de deficientes auditivos que, não apenas aceita com naturalidade a sua condição, como não considera a surdez uma privação. No local, estimulados pelo seu carismático líder Joe (Paul Rici) todos têm pequenas tarefas, sendo o objetivo central a superação das barreiras estabelecidas pela impossibilidade de ouvir o mundo. Mas como aceitar tudo isso simplesmente? Deixado para trás por sua namorada e companheira de banda Lou (Olivia Cooke), Ruben participará de aulas de libras, de jogos lúdicos e escreverá. Muito. Como forma de passar o tempo e tentar buscar de volta o sentimento de adequação. Mas aquela vida será suficiente? A possibilidade de uma cirurgia para a retomada da audição virará uma espécie de obsessão, que fará com que ele abandone tudo. Mas será a escolha certa? Sem julgamentos, a obra nos joga de um lado para o outro, conectando sons e silêncios, metálicos ou não, num exercício soberbo de técnica - e pode anotar o filme como uma grande certeza na categoria Som do próximo Oscar.

[ALERTA DE SPOILER] Porque o trabalho feito em matéria e mixagem e de edição sonoras é simplesmente magistral - e é uma pena não ter podido conferir no cinema uma obra com esse tipo de característica. Da angústia gerada pelo sentimento de perda da capacidade de ouvir, ao resgate auditivo todo torto promovido pelo caríssimo equipamento implantado é impressionante como nos sentimos imersos à dor do protagonista (e, aqui, palmas para Ahmed que consegue transmitir, em muitos casos, o sentimento de perturbação de sua personagem apenas com um olhar ou com um gesto mais expansivo ou não). O sentimento de exclusão diante de seus novos colegas conversando em língua de sinais, rindo e se divertindo, sem nenhum tipo de tradução para nós, também fortalece a ideia de inferioridade - o que só poderá ser superado por vontade própria. Não é necessariamente autoajuda, mas funciona também como drama de adequação - que sai da negação, passando pelo aceitação, até chegar a superação, com a sequência final sendo uma das mais belas do cinema nesse ano.

Nota: 8,0

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Novidades em Streaming - Taylor Swift (Disco)

E não é que esse ano terrível de vez em quando nos reserva algumas pequenas boas surpresas? Acho que podemos considerar assim o lançamento completamente inesperado de Evermore, nono trabalho de estúdio da cantora Taylor Swift. Como se fosse uma espécie de "irmão gêmeo" de Folklore - nosso terceiro álbum do ano na lista de melhores de 2020 -, o novo trabalho é muito menos um lado B com sobras e muito mais um complemento cheio de personalidade e repleto de grandes canções. "Eu não faço ideia do que vem a seguir. Eu não faço ideia sobre muitas coisas nesses dias e por isso me agarrei a uma que me mantém conectada a vocês. Essa coisa sempre foi e sempre será música. E que continue assim, sempre", anunciou a artista nas redes sociais, enquanto revelava que o disco pode ser uma companhia bastante pessoal em tempos de isolamento. Contando novamente com Aaron Dessner (The National) e Jack Antonoff na produção, Swift tem parcerias com as meninas do Haim (na ótima No Body, No Crime) e com o Bon Iver na faixa título, além do próprio The National (em Coney Island). Belas credenciais para um registro que consolida a compositora como uma das melhores de sua geração.