Se teve uma coisa que a pandemia nos possibilitou foi a "oportunidade" de ficar mais tempo em casa. E, estando mais tempo em casa pude exercitar um dos meus passatempos preferidos: a leitura. 2020 foi o ano de ver a pilha de livros ainda não lidos da estante diminuir drasticamente. O que proporcionou o encontro com clássicos, a descoberta de novos autores e atualização dos calhamaços que seguiam pendentes desde o começo do milênio. Tanto que esta é a primeira vez em seis anos de Picanha Cultural que resolvemos incluir em nossas listas de final de ano uma relação com as 15 Melhores Leituras de 2020 com mais dez menções honrosas. Vale destacar que não se tratam de livros lançados exclusivamente neste ano. Entre nacionais e estrangeiros, eis algumas obras que valem ser conferidas - até mesmo porque a pandemia segue longe de acabar e o sofazão de casa segue sendo o local preferido pra quem deseja ficar distante da Covid-19 enquanto a vacina não chega.
Menções Honrosas
25) A Desumanização (Valter Hugo Mãe)
24) Pai, Pai (José Silvério Trevisan)
23) A Cabeça do Santo (Socorro Accioli)
22) Redemoinho em Dia Quente (Jarid Arraes)
21) A Arte de Produzir Efeito Sem Causa (Lourenço Mutarelli)
20) O Vendido (Paul Beatty)
19) Não Verás País Nenhum (Ignácio de Loyola Brandão)
18) As Reputações (Juan Gabriel Vásquez)
17) Plataforma (Michel Houellebecq)
16) A Morte de Ivan Ilitch (Lev Tolstoi)
15) Fahrenheit 451 (Ray Bradbury): foi no pós-guerra que Ray Bradbury concebeu aquele que talvez seja o seu mais famoso livro até hoje. Na obra, acompanhamos o trabalho de uma Brigada que é destacada para exterminar os livros. Sim, que nem faziam os nazistas para combater a "subversão". Ou como queria o governo de Rondônia
no começo desse obscuro ano. Considerados uma ameaça ao sistema vigente, os exemplares devem ser queimados pela manutenção da ordem, que "
impedirá que o conhecimento se dissemine como uma praga". Sabe aquela história de precarização da educação, de ataque sistemático ao conhecimento e de apologia ao emburrecimento da população, que estamos assistindo no governo Bolsonaro? Pois é, Bradbury escreveu
Fahrenheit 451 justamente como uma crítica aos sistemas totalitários e a repressão política, que se utilizam do medo e da paranoia como uma forma de controle. Trata-se ao cabo de uma obra questionadora, provocativa e amplamente iconoclasta.
Leia a resenha completa.
14) Flores Para Algernon (Daniel Keyes): pensa num livro brilhante, melancólico, desolador, emocionante, agoniante, esplêndido - e mais uma série de adjetivos atribuídos pela crítica ao livro lançado por Daniel Keyes num agora longínquo ano de 1959. Com ares de ficção científica, a obra nos apresenta a Charlie Gordon, um homem com severa deficiência intelectual, que é selecionado para participar de um experimento científico revolucionário, que promete aumentar o seu QI. Só que quando ele passa pelo procedimento, a sua inteligência aumenta tanto que a capacidade de perceber o mundo de forma mais consciente, acaba por fazer com que a sua dor também aumente. A dor de saber. De conhecer. De se dar conta do contexto de preconceitos generalizados ao qual, até ali, ele estava conectado. "A ignorância é uma benção" diz um dos mais clássicos chavões. No caso de Charlie, ao deixar para trás a ingenuidade juvenil dos anos de escuridão há o confronto com uma realidade bastante difícil de lidar. Um livraço!
13) Engole Esse Choro (Laura Peixoto): "
Ninguém pode ser o que é nessa cidade". Essa frase que está lá na página 117, dita pela personagem Belinha - avó da protagonista Eleonora -, parece de alguma forma resumir tudo aquilo que se lê nessa imperdível obra da gaúcha Laura Peixoto, que mistura novela familiar, com romance de formação de narrativa ficcional que carrega nas tintas de realidade. Mas é, especialmente, uma obra que desnovela a hipocrisia que insiste em escapulir pelas frestas de uma sociedade pródiga em apontar dedos, mas incapaz de olhar para si própria com com o mesmo espírito crítico. Arremessados que somos para o suarento ano de 1974, na provinciana Lacônia do Sul, vemos ecoar nessa pequena e fictícia cidade a opressão da Ditadura Militar que se avizinha, em um contexto de grande tensão político social. Ao mesmo tempo, alheios a tudo, os laconienses vivem seu idílio particular em meio a festas, corridas, jogos no clube e escolhas da Rainha da Paróquia, se mantendo ocupados também em atividades comezinhas, seja o tricô, o jantar e as roupas que as crianças usarão no desfile.
Leia a resenha completa.
12) Todos os Belos Cavalos (Cormac McCarthy): Capítulo inaugural da Trilogia da Fronteira esta é uma obra sobre rupturas. Sobre amadurecimento. Sobre deixar o passado para trás ou, até mesmo, mergulhar nesse mesmo passado, antes que aquilo que vemos no horizonte oficialmente chegue. É livro de contrastes que coloca frente a frente tradição e modernidade, juventude e experiência, lançando um olhar tão bruto quanto carinhoso a seus personagens que, apegados de forma umbilical a algumas convenções, parecem presos a um estilo de vida alterado por aquilo que se conhece por "civilização". O protagonista é um jovem de nome John Grady Cole, um adolescente de 16 anos que acaba de perder o pai, e que se vê privado da vida de fazendeiro texano que teria quando a mãe, uma respeitada artista de teatro, anuncia que pretende vender a propriedade que já está há várias gerações com a família. Contrariado, Grady pega seu cavalo, monta nele, chama seu amigo Lacey Rawlings para lhe acompanhar e resolve empreender uma jornada meio sem rumo, sem destino definido, em direção ao México. Um livro em que a aridez e a selvageria saltam das páginas, servindo de metáfora perfeita para a sensação solidão e de não pertencimento típicos da juventude.
Leia a resenha completa.
11) Enclausurado (Ian McEwan): acho que só a temática e a abordagem inusitada já fazem valer a pena a leitura dessa saborosa aventura de suspense. Narrada por um feto "preso" a barriga da mãe que escuta os planos da progenitora para, em conluio com seu amante - que é também tio do bebê -, assassinar o marido para ficar com uma herança, a obra tem um inadvertido senso de humor, capaz de evocar as melhores tragédias de Shakespeare. Debochado, provocador e idiossincrático, o livro funciona como um grande fluxo de consciência em que acompanhamos esse curioso protagonista tecendo comentários sobre variedades de uvas preferidas para vinhos, política estrangeira e sobre ter o "
pênis do amante da mãe a apenas alguns centímetros do seu nariz" enquanto se empenha em bolar algum estratagema que impeça o crime. Uma leitura rápida e direta que não deixa de, a seu modo, ser reflexiva - especialmente no que diz respeito aos limites para a criação literária.
10) Dias de Abandono (Elena Ferrante): Dias de Abandono foi o meu primeiro contato com um livro da Elena Ferrante - a misteriosa escritora que pouco se sabe - e eu fiquei simplesmente impactado pela sua sinuosa escrita. Trata-se de uma obra de temática bastante simples: mulher é inesperadamente deixada pelo marido e precisa lidar com os dias (e meses) seguintes, passando por todas as etapas que envolvem o luto por uma separação - da negação inicial, passando pela raiva, até chegar num processo de aceitação. Só o que torna essa obra bastante diferente das demais é a franqueza com que Olga, a protagonista, encara a mesquinharia do entorno, o vazio dos dias e a depressão que lhe invade. Com uma sinceridade (quase) alarmante ela não hesita em verbalizar o quanto está de saco cheio dos seus filhos - de seus choros e ranços - naqueles dias seguintes, ao passo em que tenta reencontrar sentido em uma rotina que, agora, parece ausente de motivação: para o trabalho, para encontros com os amigos, para qualquer distração. Há apenas uma nuvem carregada. E Olga, tal qual o personagem de Jim Carrey em
O Show de Truman, está posicionada abaixo dela.
Leia a resenha completa.
9) O Olho Mais Azul (Toni Morrison): Toni Morrison escreveu
O Olho Mais Azul entre 1962 e 1965 - na década em que eclodiriam, portanto, os movimentos pelos direitos civis nos Estados Unidos. E é uma obra que, por trás do véu da discussão dos padrões de beleza na sociedade, permanece mais do que atual em seu debate sobre preconceito, ódio e intolerância. A trama centra sua história na jovem Pecola Breedlove, menina negra (e tida como feia) do Estado de Ohio que sonha em ter os olhos azuis como forma de amenizar o racismo que a rodeia - vindo de casa, da escola, da vizinhança - e que, por comparação, também poderia servir para "ver o mundo" de outras formas. Marcada pela violência, Pecola integra uma família bastante disfuncional, com um pai abusador e alcoólatra e uma mãe completamente negligente. Após um incidente familiar, o serviço social da cidade de Lorain, onde se passa a ação, instala Pecola temporariamente na residência da família MacTeer. É um livro poderoso em suas sutlezas, que coloca a questão racial como um ponto central da narrativa.
Leia a resenha completa.
8) Eu Receberia as Piores Notícias de Seus Lindos Lábios (Marçal Aquino): No momento em que começa a narrar os fatos inscritos nesse clássico moderno da literatura nacional, o fotógrafo Cauby está convalescendo de um trauma numa pensão barata, numa cidade do Pará prestes a ser palco de uma nova corrida do ouro. Sua voz é impregnada da experiência de quem aprendeu todas as regras de sobrevivência no submundo - mas não é do ambiente hostil ao seu redor que ele está falando. O motivo de sua descida ao inferno é Lavínia, a misteriosa e sedutora mulher de Ernani, um pastor evangélico. A trajetória do fotógrafo, dado a premonições e a um humor desencantado, vai sendo explicada por meio de pistas: a história de Chang, fotógrafo morto num escândalo de pedofilia; o mistério de Viktor Laurence, jornalista local que prepara uma vingança silenciosa; a vida de Ernani, que tirou Lavínia das ruas e das drogas no passado. Mesmo diante de todos os riscos, Cauby decide cumprir seu destino com o fatalismo dos personagens trágicos. "
Nunca acreditei no diabo", diz ele. "
Apenas em pessoas seduzidas pelo mal". Um livro envolvente, sedutor, recheado de ambiguidades e que nos prende de forma inescapável.
7) Pornopopeia (Reinaldo Moraes): talvez esse seja o livro mais engraçado que eu tenha lido na vida - a ponto de suas mais de 650 páginas passarem voando. Aliás, em tempos de pandemia - e, consequentemente, de ansiedades múltiplas e de medos aleatórios - a obra, com sua verborragia direta, suja e hedonista, foi a companhia ideal. Na trama somos apresentados a Zeca, um ex-cineasta marginal que precisa levantar uma grana rodando um vídeo institucional para uma empresa de embutidos de frango. Sem muita inspiração, ele acaba entrando numa espiral de sexo, bebidas, drogas e outros excessos, em que o leitor é o interlocutor improvisado para toda a sorte de acontecimentos divertidamente inesperados. Produto de nosso tempo, Zeca, com seu individualismo atroz e seu inadvertido niilismo busca apenas o prazer imediato em meio a inferninhos, casas de prostituição e muquifos que integram a paisagem do submundo. Sua ambição, afinal de contas, não é grande. Mas seu apetite beira a voracidade, que resultará numa jornada tão desregrada quanto epica.
6) Como Se Estivéssemos em Palimpsesto de Putas (Elvira Vigna): É muito provável que poucos autores consigam dissecar a essência da escrotidão do macho hétero topzera como a Elvira Vigna, nessa verdadeira joia da literatura moderna. Emprestado do dicionário, o curioso vocábulo "palimpsesto" evoca a relação que duas pessoas completamente estranhas passam a ter, quando uma delas começa a fazer a outra uma série de relatos sobre encontros frequentes com prostitutas. Como num palimpsesto, as histórias e seus detalhes se sobreporão, formando um pequeno painel sobre a falência completa dos relacionamentos, bem como suas mentiras e jogos de poder. Quem narra a história é uma designer de que não sabemos o nome. Contratada pra tentar dar um upgrade em uma editora que se encaminha para o processo de falência, conhece João nas tardes em que ele trabalha para informatizar o local. Em cada história ouvida pela nossa interlocutora - saídas diretamente de inferninhos, de prostíbulos de quinta categoria e de hotéis decadentes - os detalhes narrados com uma autoestima constrangedora, ainda que as pontas soltas deem conta de desmantelar o suposto ar superior com que João desnovela seus relatos, numa narrativa que aborda os jogos de poder entre os sexos com naturalidade estonteante.
Leia a resenha completa.
5) Liberdade (Jonathan Franzen): Ao lado de Jonathan Franzen, não foram poucos os autores que se aventuraram em dissecar as vísceras do
american way of life e, consequentemente, a completa derrocada do sonho americano. De
O Som e A Fúria de William Faulkner até
Pastoral Americana de Philip Roth foram muitos os escritores que tentaram traduzir o sentimento de uma época, um tipo de zeitgeist de seu tempo, na literatura dos Estados Unidos. E não é diferente com este Liberdade, que completou dez anos de seu lançamento em 2020, mantendo a sua exegese intacta. No decorrer de suas mais de 600 páginas assistimos, embasbacados, como funciona o microcosmo dos Berglund, uma família de classe média tipicamente americana, cheia de contradições e de frustrações, de sonhos nunca concretizados, de arrependimentos materializados em escolhas erradas, ainda que bem intencionadas, em um contexto social que suga de suas figuras qualquer fiapo de esperança. Em uma narrativa descomplicada, Franzen evidenciará que somos figuras complexas e de escolhas igualmente complexas.
Leia a resenha completa.
4) A Vida Invisível de Eurídice Gusmão (Martha Batalha): Existe uma frase que está no prólogo da arrebatadora estreia de Martha Batalha, que resume bem o espírito de sua obra: "[...]
o mais real deste livro está na vida das suas protagonistas, Eurídice e Guida. Elas ainda podem ser vistas por aí. Aparecem nas festas de Natal, onde passam a maior parte do tempo sentadas, com o guardanapinho nas mãos. São as primeiras a chegar e as primeiras a ir embora. Comentam sobre os temperos do bacalhau, sobre os calores ou chuvas do dia ou sobre se o marido vai bem e se a sobrinha-neta já tem namorado. Eurídice e Guida foram baseadas na vida das minhas, e das suas avós". Bom, é o condensado de uma vidinha simplória que resultará em uma terceira idade de frustrações, de sonhos jamais alcançados e de anseios engavetados. São mães, tias e avós que se tornaram invisíveis em uma sociedade patriarcal e altamente machista, com a obra tentando lançar um olhar de ternura para estas mulheres - num contexto que deveria ter ficado no passado, mas insiste em permanecer. Num texto de grande fluidez narrativa as "não vidas" das mulheres surgem como única opção de existência possível.
3) O Tribunal da Quinta-Feira (Michel Laub): elogiadíssimo pelo recém-lançado
Solução de Dois Estados, o gaúcho Michel Laub constroi, com seu livro anterior, uma fábula virtuosamente escrita, que ainda conta com uma temática moderna e envolvente. Na trama, o protagonista é um publicitário de 43 anos de nome José Victor que está no quinto relacionamento (!) e tem um melhor amigo chamado Walter - uma amizade de 25 anos, que iniciou nas salas de aula de faculdade, permanecendo pela vida. Walter é hoje aquela pessoa com quem Victor troca confidências em mensagens íntimas, cheias de particularidades e idiossincrasias relativas à amizade dos dois. Mas o que aconteceria se algumas dessas mensagens, tão particulares, tão subjetivas, tão identificáveis apenas com aquele universo de duas pessoas - recheadas de gírias, apelidos, deboches -, viesse ao mundo no formato de postagens em fóruns ou redes sociais? No livro, uma das ex-mulheres de Victor, a arquiteta Teca, descobre uma senha de e-mail perdida quase uma década atrás, que revelará o conteúdo arrebatador da troca de mensagens entre o agora ex-marido e o seu amigo, numa narrativa que burla os limites entre público e privado.
Leia a resenha completa.
2) Ruído Branco (Don Delillo): Em tempos de internet, de pós-verdade e de mudanças climáticas não deixa de ser impressionante o quanto este livro lançado em 1985 se mantém atual. Trata-se de uma distopia literária que equilibra fluência textual com a sofisticação de seus temas, que podem saltar da paranoia governamental e da participação da mídia na vida em sociedade até chegar ao medo da morte. Aliás, o medo do fim é peça central da narrativa, tanto que Jack e sua esposa Babette, que vivem em uma cidade chamada Blacksmith com os filhos, costumam fazer uma brincadeira sobre quem deve morrer primeiro entre os dois. A situação se torna realmente tensa quando nos arredores da cidade ocorre um vazamento químico que forma uma nuvem tóxica, obrigando todas as famílias da região a deixarem suas casas, migrando para uma espécie de acampamento improvisado. Mas aqui, no caso, o sofrimento não vem do ocorrido em si, mas das consequências dele, com Delillo construindo a obra a partir de uma série de questões que colocam realidade e imaginação divididos por uma linha muito tênue.
Leia a resenha completa.
1) Torto Arado (Itamar Vieira Júnior): Vencedora do Prêmio Oceanos 2020 essa imperdível obra lança um olhar para o Brasil agrário, esquecido, abandonado. Um País em que senhores oligarquicamente engravatados decidem rumos a portas fechadas, exaurindo seus povos, enquanto aumentam suas riquezas as custas das dores, do suor e do sangue de muitos. É nesse universo que o escritor mergulha com sua literatura direta e cheia de virtudes, grandiosa sem ser empolada. Há uma densidade naquele contexto árido do sertão baiano que é tão palpável quanto as dores sentidas pelas irmãs Bibiana e Belonísia, que abrem o livro como crianças curiosas que descobrem uma velha e misteriosa faca em uma mala guardada embaixo da cama da avó. E que resultará em um acidente que modificará a vida delas - ambas filhas de humildes trabalhadores rurais descendentes de escravos - para sempre. Cheio de simbolismos, o livro coloca frente a frente o urbano e o rural, o místico e o terreno, numa obra de contradições que evocam vozes, gerações, tradições e outros temas.
Leia a resenha completa.