Mostrando postagens com marcador Pérolas da Netflix. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Pérolas da Netflix. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Pérolas da Netflix - Wallace & Gromit: Avengança (Wallace & Gromit: Vengeance Most Fowl)

De: Nick Park e Merlin Crossingham. Com Ben Whitehead, Reece Shearsmith, Peter Kay e Lauren Patel. Animação / Comédia, Reino Unido, 2024, 80 minutos.

Antes de qualquer coisa, verdade seja dita: parabéns para quem nomeou o novo filme de Wallace & Gromit para o português, porque esse trocadilho (tosco) mesclando as palavras "ave" e "vingança" (Avengança) ficou muito engraçado. E tudo fica ainda melhor porque o vilão em si é um pinguim silencioso e extremamente metódico, o Feathers McGraw, que mete medo sem nem se mexer! Bom, quem acompanha a icônica dupla britânica sabe do carinho geral que o público costuma ter por eles e como já fazia vinte anos desde o último longa-metragem - o divertidíssimo Wallace & Gromit: A Batalha dos Vegetais (2005) - era mais do que natural certa expectativa. Que foi ampliada com uma meio que inesperada, mas justíssima, indicação ao Oscar na categoria Animação. Sim, o filme não vai ganhar, mas terá visibilidade a mais, reforçada pela exibição na Netflix.

Na trama, o carismático e excêntrico inventor Wallace (Ben Whitehead) está bastante animado com a sua mais nova engenhoca: uma espécie de pequeno gnomo de jardim em formato de robô - seu nome é Norbot (Reece Shearsmith) -, capaz de fazer uma série de tarefas (podar, plantar, cortar gramas, colher) com uma velocidade única. Bastante obediente, Norbot acaba por irritar, em alguma medida, o fiel Gromit, que começa a ficar desgostoso com a dependência deles em relação à tecnologia (com absolutamente TODAS as atividades domésticas sendo conduzidas por algum equipamento eletrônico). Só que a vida deles parece tranquila apenas nas aparências, já que no começo da história dá pra perceber que Wallace e Gromit tiveram papel decisivo na prisão de Feathers que, acusado de tentar furtar um caríssimo diamante, vai parar em um um zoológico para "prestar serviços comunitários" (sim, mais uma das ótimas gracinhas).

 


 

Só que com a repercussão de Norbot, Wallace se torna famoso entre os vizinhos, o que atrai o interesse da imprensa. E é justamente uma entrevista concedida a TV e veiculada na prisão em que Feathers se encontra, que faz com que o maléfico pinguim bole o seu plano de vingança. Que envolve invadir um computador local, enquanto o guarda de plantão dorme, para mexer no código fonte dos gnomos. A ideia? Replicar o robô em massa, alterando o seu padrão de atendimento aos desejos humanos (saindo de amistoso para maligno). Claro que essa é a deixa para que uma série de confusões envolvendo ainda um atrapalhado delegado local (Peter Kay) e sua corajosa ajudante (Lauren Patel) - que se esforçam para solucionar o caso - ocorram. Especialmente quando os robôs malignos passarem a se comportar de forma totalmente imprevisível.

Divertida, tocante e caótica, a animação tem como mensagem óbvia a importância de não abandonarmos a simplicidade e os vínculos, em detrimento do uso da tecnologia. Claro, não é que ela não seja importante, mas alguma coisa substitui a delícia de passar um café de uma forma mais "raiz" em um bule ou em uma térmica? E o que dizer do afago no cachorro - e não é à toa que Gromit fica exasperado com a engenhoca responsável por lhe fazer o carinho (uma mão mecânica com uma luva). Feita em stop motion - e só essa técnica em si já coloca a obra em um outro patamar -, a produção, além de agradar as crianças (já que é muito viva e usa a expressão dos personagens de forma cômica), ainda dá várias piscadelas aos adultos, com piadocas que, em muitos casos, só eles serão capazes de compreender (e nesse sentido, vale prestar atenção às "obras literárias" que o engajado Gromit lê, no transcorrer do filme). Simples e direto, esses são oitenta minutinhos que passam voando. Tadá!

 

quarta-feira, 24 de julho de 2024

Pérolas da Netflix - Matar Jesus (Matar a Jesús)

De: Laura Mora Ortega. Com  Natasha Jaramilo, Giovanny Rodriguez e Juan Pablo Trujillo. Drama / Suspense, Colômbia / Argentina, 2017, 95 minutos.

Assistir ao ótimo Matar Jesus (Matar a Jesús), me fez lembrar de uma outra obra - no caso, o tenso O Filho (2001). E ainda que sejam filmes completamente diferentes entre si, há algo que une ambas as experiências, especialmente no que diz respeito ao exame dos ciclos de violência social, o medo como parte da rotina e quais os fatores que desencadeiam esses sentimentos - muitos deles ligados a traumas do passado e dores que apenas se reproduzem, sem muita explicação. Na produção dos Irmãos Dardenne, acompanhamos um carpinteiro enlutado pela perda do filho em um assassinato mal explicado, que contrata um jovem aprendiz que, mais tarde, descobriremos ser justamente o criminoso do passado. Já na obra dirigida pela colombiana Laura Mora Ortega, e que é baseada em fatos reais ocorridos na sua adolescência, uma jovem se aproxima perigosamente do sujeito que matou seu pai, meio que do nada.

Claro, como eu já disse, são experiências distintas - uma sul-americana, com todos os seus signos e códigos urbanos, de motos e asfaltos com seus barulhos urgentes; outra europeia, com elementos mais contemplativos, num cinema de espaços mais apertados e claustrofóbicos. No cerne esse aspecto de alguém que tem uma informação sobre o passado - e que poderá usá-la como uma forma de obter vantagem. Vingança? Talvez. Mas o caso é que as coisas podem ser mais complexas do que supõe a mera lógica do "bandido bom é bandido morto". No caso de Paula (Natasha Jaramilo), a protagonista de Matar Jesus, ela simplesmente assiste à morte do próprio pai, o carismático professor universitário de Ciências Políticas de Medellín, José Maria (Camilo Escobar), após um ataque perpetrado por uma dupla de sicários em uma moto. Sem uma resposta efetiva da polícia - não há sequer um suspeito, muito menos uma motivação -, Paula fica desalentada ao saber que o caso será arquivado.


 

Isso até uma noite em que Paula vai à boate com amigos. E esbarra justamente com Jesus (Giovanny Rodriguez), o jovem que, de acordo com as suas lembranças (ela pôde ver seu rosto de relance), foi o responsável pelo ato cruel. De forma discreta, ela tenta elaborar um plano para dar cabo do bandido. O que envolve uma aproximação, que avança para um estranho flerte - com um convite para a visita a um ponto mais ermo da cidade. Mas, se você não é um assassino, como você procede? Paula esconde em sua mochila, junto de seus equipamentos de fotografia - prática da qual ela é uma entusiasta -, uma garrafa quebrada. A tática pode dar cabo do rapaz? Sem muita certeza, ela mantém contato com um traficante das redondezas, um tal de Gato (Juan Camilo Cárdenas), que pode lhe ajudar a conseguir um revólver. Mas será que essa proximidade com esse outro espectro da criminalidade lhe fará bem? Até que ponto ela vai, tendo ainda o risco de ser descoberta?

Em meio a policiais corruptos, familiares preocupados e uma violência que parece se avizinhar a todo momento, em cada esquina da turbulenta cidade colombiana, a protagonista tenta juntar a coragem necessária para executar seu objetivo. Mas qual o sentido de continuar esse ciclo sem que tudo piore ainda mais? O delegado local, sugere que ela saia dali. Esqueça tudo o que aconteceu. Mas isso também é viável? Contrastando os figurinos coloridos, as luzes brilhantes da cidade ao anoitecer e as músicas hipnóticas e sensuais, com o cinza dos prédios e a crueza dos cenários de periferia, Laura Mora Ortega esmiuça o tecido social sem apelar para o maniqueísmo barato. Na realidade não há mocinhos e bandidos quando o sistema como um todo está um tanto falido. Quando um lado da cidade sofre de forma chocante com a realidade. Alguém precisará baixar a arma. Dar o primeiro passo. Pensar em algum tipo de redenção. E certamente não será um processo fácil.


terça-feira, 9 de abril de 2024

Novidades em Streaming - Descanse em Paz (Descansar en Paz)

De: Sebastián Borensztein. Com Joaquin Furríel, Griselda Siciliani, Gabriel Goity, Lali Gonzalez e Luciano Borges. Drama / Suspense, Argentina, 2023, 105 minutos.

[ATENÇÃO: ESSE TEXTO TEM SPOILERS]

Quem acompanha a carreira do diretor argentino Sebastián Borensztein sabe que a parte mais famosa de sua filmografia envolve produções de comédia, com aquele senso de humor meio nonsense em que a gente ri agora, pra chorar em seguida - como fica evidente nos ótimos Um Conto Chinês (2011) e, mais recentemente, em A Odisseia dos Tontos (2019). Com Descanse em Paz (Descansar en Paz), ele faz uma incursão por um cinema mais sério, enveredando pelo drama familiar com pitadas de thriller policial. E o resultado da obra, que está disponível na Netflix, é bastante satisfatório. Aqui, ao cabo, temos a experiência de entretenimento de fórmula, com boas reviravoltas e um senso de tensão permanente, que deixa a coisa toda meio imprevisível. É, em alguma medida, o filme bom de ver. Aquele que muitas vezes você precisa para relaxar, depois de um dia de trabalho.

Na trama, Sergio Dayan (o ótimo Joaquin Furríel) é um empresário que já foi bem sucedido, mas está afundado em dívidas - o que não o impede de manter certos luxos. No começo do filme o vemos investindo em presentes caros e numa festa voluptuosa de aniversário para a sua filha adolescente. Só que isso não pega nada bem não apenas para os empregados de sua pequena fábrica, que cobram os salários atrasados e ameaçam paralisar as atividades, mas também para os agiotas que andam rondando o bairro - um pessoal meio barra pesada, que tem na figura de Hugo Brenner (Gabriel Goity) o seu principal representante. Hugo lhe dá uma semana para quitar a dívida, sob pena de ele sofrer severas consequências - o que o faz temer pela vida da família, especialmente da esposa Estela (Griselda Siciliani) e dos filhos. Pra ganhar tempo, o protagonista consegue vender uma casa de campo, o que lhe permitirá saldar parte do que deve.

 


Só que, por uma daquelas coincidências do destino, Sergio acaba sendo uma das vítimas de uma explosão, que ocorre próximo ao local em que ele pretendia entregar o dinheiro. Dado como morto pelas autoridades policiais locais, o homem vê aí a oportunidade perfeita para simplesmente desaparecer do mapa - desviando sua rota para o Paraguai onde, com nova identidade e um passado que ninguém conhece, reiniciará sua vida. O abandono à família se dá em partes: como um cadáver nunca encontrado, ele possibilitará à Estela acessar um volumoso seguro de vida, que permitirá à ela e aos filhos recomeçar a vida. Pagar as pendências. E também se ver livre dos perigos da agiotagem. Tudo parece mais ou menos bem até que, bom, a vida dará as suas voltas e as pendências do passado poderão ressurgir quando Sergio menos esperar. E mais: como um sujeito sozinho no Paraguai, por quanto tempo ele aguentará? Qual o preço desse isolamento forçado?

Ao cabo esse não é um filme que busca muitas respostas, nem se pretende ser excessivamente filosófico na análise das relações familiares - por mais que as falhas do capitalismo inevitavelmente apareçam no centro da narrativa (as crises argentinas que vêm e vão costumam ser matéria-prima das produções de Borensztein, como é o caso do já citado A Odisseia dos Tontos). Aqui a gente se apega muito mais a tensão da coisa toda, que é reforçada pelos closes no rosto do protagonista, que parece envelhecer uns trinta anos quando ocorre um salto temporal (méritos para a maquiagem e para a interpretação cheia de sutilezas e de silêncios de Furríel). Em alguns fóruns muitas pessoas se queixaram do final excessivamente dramático e violento. Mas não deixa de ser o desfecho perfeito para uma história de amor acima de tudo - e a sequência que envolve um singelo colar no pescoço de uma das personagens, é daqueles que nos comove sem precisar muito.

Nota: 7,5


segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Pérolas da Netflix - Nimona

De: Nick Bruno e Troy Quane. Com Chloë Grace Moretz, Riz Ahmed e Eugene Lee Yang. Aventura / Comédia, EUA, 2023, 142 minutos.

Vamos combinar que animações que abordem temas atuais, sejam eles respeito às diferenças, igualdade entre gêneros, racismo, mudanças sociais e quebra do status quo, existem aos montes. Aliás, são justamente estas produções que aquele tiozão de extrema direita costuma chamar pejorativamente de "lacração". "Sim, porque não se fazem mais desenhos como antigamente", dirá o barbado de 38 anos, enquanto a sua mãe leva até o seu quarto o lanchinho da tarde - muito provavelmente composto de Toddy e Doritos. Só que, nesse cenário, o indicado ao Oscar Nimona parece dar um passo além. Porque confesso a vocês que poucas vezes vi um roteiro tão bem costurado, com tantos diálogos riquíssimos, que apresentasse seus argumentos de forma tão inteligente, respeitando não apenas os adultos, mas também os adolescentes que o assistem. Em resumo, é um filmaço, pelo qual desde já tenho profunda admiração. E que ficarei feliz se vencer a maior premiação do cinema em sua categoria.

Baseada em uma graphic novel de ficção científica do cartunista americano ND Stevenson - que não li -, a trama nos joga para uma espécie de reino que, há mil anos, é protegido por uma linhagem de cavaleiros nobres, que descendem da rainha Gloreth. Esta, teria derrotado uma ameaça conhecida como o Grande Monstro Negro, o que a fez construir um muro altíssimo nas cercanias do Império. Só que muito tempo se passou e hoje o reino é uma espécie de cidade futurista, que segue sendo defendida por estes cavaleiros de elite. Com a modernidade e o possível rompimento desse ideal mais antiquado, surge um certo Ballister Boldheart (Riz Ahmed), que está prestes a se tornar o primeiro plebeu da história a se tornar um cavaleiro. Só que tudo sai errado quando, na noite de coroação, Ballister acidentalmente assassina a própria rainha Valerin (Lorraine Toussaint). O que faz com que o sujeito se torne um pária, um fugitivo que passa a ser perseguido pela Instituição.

Vivendo no submundo e tentando reconstruir a sua vida, Ballister receberá a inesperada visita da Nimona do título (Chloë Grace Moretz), um ser metamorfo (capaz de se transformar em absolutamente qualquer ser vivo) e que tem um pendor para a vilania. Ela acredita que o protagonista tenha executado a rainha por gosto e que, assim, possa ser a companhia ideal para seus pequenos delitos. Só que o que interessa para Ballister é limpar a sua barra. E Nimona aceita ajudá-lo sob a desculpa de que este, mais adiante, a converta em uma espécie de braço direito. E eu admito que esse cenário inicial pode não parecer tão atrativo, mas não deixa de impressionar como a obra de Nick Bruno e Troy Quane vai ganhando força conforme avança. Em meio a discussões sobre diferenças de classes, sistemas totalitários, opinião pública e até lavagem cerebral, descobriremos mais sobre o passado de Nimona e de como ela se converte em alguém que precisa viver às sombras na sociedade. Simplesmente por ser uma jovem diferente do padrão que se espera.

De forma inteligente, as mensagens vão sendo entregues sem forçação de barra, sendo simplesmente impossível não se emocionar no terço final quando, evidentemente, todos perceberão que não é a aparência ou o estrato social que moldará o caráter dos sujeitos. [SPOILERZINHO] Especialmente depois que Ballister e Nimona descobrem uma grave traição que parte de dentro do próprio reino - uma sabotagem que resulta na já citada morte da monarca Valerin (alguém com uma mente mais aberta ou menos conservadora que seus antecessores). Divertido, alegórico, cheio de piadas espertas e com uma presença de espírito acachapante - observe como Nimoma adota a personalidade dos animais em que ela se metamorfoseia (ela roubando um pedaço velho de pizza na condição de ratinho de esgoto me derrubou!) -, a obra é um daqueles achados da Netflix, que talvez ficasse mais escondida se não fosse o fato de ter sido lembrada no Oscar. Alguém poderá dizer que não há grandes novidades aqui. Mas não podemos esquecer que esse é um projeto voltado à adolescentes de 12 anos. E nada melhor do que um conto de fadas as avessas pra nos fazer refletir sobre as transformações do mundo.


quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Pérolas da Netflix - Leonera

De: Pablo Trapero. Com Martina Gusman, Laura Garcia, Elli Medeiros e Rodrigo Santoro. Drama, Argentina, 2008, 113 minutos.

Vamos combinar que é um tema bastante complexo aquele que assistimos no ótimo Leonera - filme do habitualmente competente diretor argentino Pablo Trapero (de Elefante Branco, 2012). No centro da narrativa, uma pergunta nada simples: como agir quando o assunto é a maternidade em uma prisão feminina? Uma mulher grávida que cumpre pena por algum crime eventualmente bárbaro - como é o caso de um assassinato - deve ter o direito de permanecer com o seu filho, assim que ele nasce? Se sim, por quanto tempo? E mais: essa criança inocente deve permanecer confinada sob a desculpa de necessariamente estar ao lado de sua genitora? O que talvez envolva crescer em um ambiente disfuncional, sujo e, em muitos casos, até violento? Não me parece ser muito fácil fornecer essas respostas de bate pronto, ainda mais que nessa equação está também o tratamento dado pelo sistema carcerário a esta mãe. O que deve, evidentemente, respeitar os direitos humanos, acima de tudo.

Admito que até pra pesquisar sobre o tema no Google tive um pouco de dificuldade. Não é um assunto que faz parte da nossa rotina. E num País que perdeu a vergonha de verbalizar que "bandido bom é bandido morto" - especialmente se este for preto, pobre, periférico, enfim, vulnerável -, não parece ser algo que vá ser discutido com muita tranquilidade no almoço dominical. Mas o que Trapero faz, antes de qualquer coisa, é jogar luz sobre essa temática (o que é sempre um mérito no que diz respeito à arte). No Brasil, o último levantamento parece apontar haver 622 mulheres presas que são ou gestantes ou lactantes. Que têm o direito de permanecer com seus filhos por um prazo máximo de seis meses - após esse período eles são destinados a um familiar, normalmente a avó. Ou um abrigo, se não houver alternativa. Nunca a solução parecerá das melhores, enfim.

No caso de Leonera, a protagonista Julia (Martina Gusman) é presa em circunstâncias um tanto quanto confusas - o que envolve a inesperada morte de seu ex-namorado, após uma noitada em que ela não parece lembrar de muita coisa. Há apenas a trilha de sangue, uma série de objetos espalhados - garrafas, bitucas de cigarro, aquele cenário meio caótico -, e uma terceira pessoa que sobrevive: no caso um suposto amante do morto, de nome Ramiro (Rodrigo Santoro). O que aconteceu de verdade a gente nunca consegue ter certeza. Fica o dito pelo não dito, mas tanto Julia quanto Ramiro acabam tendo suas prisões preventivas decretadas - enquanto advogados de parte a parte se empenharão para colocá-los em liberdade. Por estar grávida do ex, a situação de Julia é mais complexa: ela é enviada a uma ala destinada a gestantes, onde conseguirá ter o mínimo de condições (mas mínimo mesmo) para uma gravidez mais "tranquila", ao lado de outras mulheres em condições parecidas.

Em meio a crianças que choram o tempo todo, discussões por motivos inesperados e incerteza quanto ao seu futuro, Julia se ambientará aos poucos - especialmente após fazer amizade com Marta (Laura Garcia), sua solidária vizinha de cela, que também cria um filho pequeno. Na Lei local, mães como Julia podem permanecer com seus filhos por quatro anos. O que não deixará de ter um certo requinte de crueldade, ao pensarmos na possibilidade de o pequeno ser simplesmente retirado de suas mãos, após esse tempo ser expirado. Com tudo piorando quando entra em cena a mãe de Julia, Sofia (Elli Medeiros), que parece disposta a fazer por onde para que a criança seja criada do lado de fora da prisão. Em liberdade. Em contato com outras crianças e com o mundo. Sim, eu disse que era difícil. E o filme não facilita ao converter a prisão em um espaço de confinamento pouco convidativo e claustrofóbico. A gente só consegue torcer pra que Julia mostre as garras e se livre de uma vez daquele ambiente. Talvez o tipo de empatia que devêssemos ter mais vezes quando o assunto é o sistema prisional.


sexta-feira, 14 de abril de 2023

Pérolas da Netflix - Olhar Invisível (La Mirada Invisible)

De: Diego Lerman. Com Julieta Zylberberg e Osmar Nuñez. Drama, Argentina / Espanha / França, 2010, 96 minutos.

Já dizia o escritor Alberto Morávia que "a ditadura é um estado em que todos temem alguém". E, de alguma maneira, é possível dizer que é esse o sentimento que espreita pelas frestas do educandário que serve como cenário para o claustrofóbico Olhar Invisível (La Mirada Invisible) - obra argentina dirigida por Diego Lerman e que está lá, em algum cantinho da Netflix. A trama se passa quase ao final da Ditadura Militar dos nossos hermanos - o ano é 1982. Preocupadíssimo com o avanço dos possíveis atos de subversão, o inspetor da escola Biasutto (Osmar Nuñez) - sujeito de modos rudes, daquele tipo que costuma cair de amores pela extrema direita - encarrega a jovem professora Marita (Julieta Zylberberg) de ser uma espécie de general improvisada, que deve vigiar os alunos com rigor irrestrito. Assim, qualquer atitude que quebre esse senso de ordem, que soe como algum tipo de insubordinação, deve ser relatado.

Imbuída de sua nova tarefa, Marita perambula pelos corredores observando se as gravatas estão bem vestidas, se os tênis estão amarrados, se a distância de um aluno para o outro na fila está adequada. Ao cabo, qualquer perturbação do funcionamento normal do quart.. opa, da escola - aliás, uma escola que parece ser de elite, comandada pelo Estado - será motivo para punições. Para bilhetes aos pais. Para alertas gerais sobre os riscos da desordem. Uma das principais preocupações da protagonista tem a ver com a predileção dos jovens por cigarros. Como forma de vigiá-los, ela chega a se postar às escondidas nos banheiros - inclusive masculinos. A tentativa é de proceder com flagrantes. Surpreender bitucas em vistorias à mictórios. Só que não demora para que o espectador perceba que o interesse da docente pode estar para além do simples patrulhamento. Há algo a mais ali no íntimo. Que instiga.


Marita é jovem, tem 23 anos. Talvez, ao que tudo indica, ainda seja virgem. Em um governo ditatorial, jamais esqueçamos, o moralismo exagerado (falso ou não) está sempre na pauta. Transar e ser feliz? Coisa de depravado. É preciso controlar tudo. Deixar todo mundo em pânico. Só que para Marita talvez seja difícil controlar aquilo que está em seu interior. No caso, os seus próprios, e reprimidos, desejos. Que ela quase extrapola em olhares insidiosos, que se confundem com o seu zelo diligente. Em sua casa, na companhia da mãe e da avó, a jovem não tem sequer privacidade para um banho. Há, como pano de fundo, um certo ar de normalidade. Que é quebrado pela paleta de cores pálida, pela falta de vida dos figurinos sempre acinzentados e mesmo pela letargia permanente das atitudes e da rotina repetitiva. "A ditadura é um estado em que todos temem alguém". E a real é que mesmo quando não parece haver o que temer, há certo risco.

[ATENÇÃO, SPOILERS NESSE PARÁGRAFO] E, nesse sentido, a mensagem dessa pequena obra de pouco mais de 90 minutos, que foi exibida no Festival de Cannes, não poderia ser mais óbvia. A frase "cria corvos e eles te comerão os olhos", de autor desconhecido, aqui também se aplica. Tudo segue em uma rotina mais ou menos razoável dentro daquilo a que se propõe Marita. Até ela mesma ser violada, literalmente, aliás, pelo sistema que supostamente estaria ali para protegê-la. Os acontecimentos impactam, mas permanecem. E Julieta Zylberberg brilha como a figura silenciosa, invariavelmente triste, amarga, com sentimentos e desejos retraídos. Uma alma pálida, sem vida, opaca. Que só encontrará algum tipo de libertação a partir de uma atitude extrema. Não dá pra vencer a ditaduras totalitárias com flores ou com gentilezas. Há que se cortar na carne. Marita descobre isso (quase) tardiamente. Mas, ainda é tempo de despertar. Aliás, nossos hermanos souberam disso mais do que ninguém. A história está escrita.


terça-feira, 11 de abril de 2023

Novidades em Streaming - Os Reis do Mundo (Los Reyes del Mundo)

De: Laura Mora Ortega. Com Carlos André Castañeda, Davison Flores, Brahian Acevedo e Cristian Campaña. Drama / Aventura, Colômbia, 2022, 103 minutos.

"São minha família. Eles não tem ninguém. Nem eu. Estamos sozinhos. Fazemos companhia um pro outro. E só quero leva-los a um lugar em que ficarão bem. Onde não nos falte nada. Onde ninguém vai bater, humilhar ou menosprezar a gente. Onde possamos fazer o que quisermos. E lutar pelo que acreditamos." Vamos combinar que, quando o assunto são as injustiças sociais, as burocracias governamentais e o completo descaso com as camadas populacionais mais vulneráveis, só muda o endereço. Já que a história, em linhas gerais, costuma ser a mesma - com pequenas variações, de acordo com o País. Em Os Reis do Mundo (Los Reyes del Mundo) - grande vencedor da Concha de Ouro do último Festival de San Sebástian -, o jovem Rá (Carlos Andrés Castañeda) recebe uma excelente notícia: por meio de um programa de restituição de terras do do governo colombiano, ele tem direito a um terreno que teria herdado de sua avó, no povoado de Nechí - mais de 350 quilômetros distante de Medellín, onde "mora".

Ao lado de outros quatro jovens amigos, Rá embarcará em uma jornada que visa a recuperar de fato, aquilo que é seu de direito. Sem muito conhecimento ele tem apenas um papel na mão - um documento que o reconhece como legítimo herdeiro. Mas, bom, estamos na Colômbia e poderia ser o Paraguai, a Venezuela, o Brasil e a coisa seria igualmente complexa. Dotado de grande senso de persistência, ele pega a perigosa estrada em meio a caronas em caminhões e ousadias de bicicleta. De cada parada - em bares de beira de estrada, em propriedades rurais isoladas ou até mesmo em bordeis improvisados - emergirão eventos inesperados, que alteram rotas, que dão movimento a esse road movie tão aleatório quanto carismático. Em uma sequência comovente, por exemplo, eles chegam a uma casa de prostituição, sendo acolhidos como filhos (ou netos) por um coletivo de putas idosas. Um lugar para chamar de casa é o que todos ali procuram - um afeto que seja. Mais real do que terreno até então abstrato, que era da avó de Rá.

Em certa altura os meninos correm pelas ruas asfaltadas na madrugada solitária. E, como crianças que são, não resistem a uma traquinagem: arremessam pedras em todas as lâmpadas dos postes de iluminação pública que estão no seu trajeto. Ao final da explosão do último refletor resta apenas a escuridão. A alegoria não poderia ser mais óbvia: é o breu que parece estar no horizonte daqueles meninos. Que deixam a violenta e turbulenta Medellín - com sua urbanidade e urgência de metrópole impregnada em todos os poros - para se embrenhar rumo ao desconhecido, à incerteza. Entre eles a relação também não será fácil. De forma magnética, a diretora Laura Mora Ortega, apresenta cada um dos meninos como sujeitos de personalidade únicas, uns mais afáveis, amistosos, outros mais intempestivos, propensos a algum tipo de violência. Ainda assim eles estão juntos em sua jornada. E a frase que abre essa pequena e modesta resenha, proferida por Rá em certa altura, resume o espírito todo da coisa.

De alguma maneira esse é um filme em que o preconceito parece estar nas entrelinhas, ainda que ele não demore a eclodir. No mesmo bordel em que são aninhados pelas mulheres, eles recebem uma boa dose de hostilidade de outros clientes. O racismo, a intolerância, o ódio e a invisibilidade estão em toda parte. Em um bar o atendente simplesmente ignora seus pedidos. Eles queriam apenas comida e bebida. Nada de mais. Nenhum abuso. Ao cabo este é um filme dolorido sobre pessoas que persistem, resistem, caem e levantam. O cavalo branco que volta e meia reaparece também funciona como um símbolo de uma paz que parece que nunca será encontrada. Contemplativa, comovente, urgente, essa é daquelas obras que atualizam, de alguma maneira, Capitães de Areia, de Jorge Amado, num retrato desalentador e fantasmagórico da miséria e da falta de afeto - e das consequências duras que decorrem desse contexto. Tá na Netflix. E vale ser conferido.

Nota: 8,0


quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Novidades em Streaming - Bardo: Falsa Crônica de Algumas Verdades (Bardo or False Chronicle of a Handful of Truths)

De: Alejandro González Iñarritu. Com Daniel Giménez Cacho, Griselda Siciliani e Francisci Rubio. Comédia / Drama, México, 2022, 159 minutos.

"É pretensioso. Desnecessariamente onírico. É onírico para esconder o seu texto medíocre. Uma somatória de cenas sem sentido. Metade do tempo eu morria de rir. A outra metade eu morria de tédio. Devia ser metafórico, mas não tem inspiração poética. Como se tivesse sido roubado. Um plágio. Mal encoberto. Qual é a graça? É banal, é fortuito." Quando o renomado documentarista Silverio Gacho (Daniel Giménez Cacho) é confrontado por um conhecidíssimo apresentador de TV mexicano (Francisco Rubio) durante uma festa em homenagem ao primeiro, temos uma espécie de epifania metalinguística em relação ao próprio filme recente de Alejandro González Iñarritu. Estaríamos nós, espectadores, sendo indiretamente questionados a respeito de nossas percepções sobre Bardo: Falsa Crônica de Algumas Verdades (Bardo or False Chronicle of a Handful of Thruths)? Estaria o realizador antecipando o nosso pensamento? E nos jogando na cara as nossas próprias limitações na hora de interpretar uma obra de arte? Aliás, há de fato, limitações na hora de interpretar uma obra de arte? Ou cada um responde de acordo com a sua bagagem, as suas experiências?

Sim, eu pergunto essas coisas porque após esse instante tão alegórico que parece dialogar com a própria natureza da filmografia de Iñarritu - um diretor que saiu do México para fazer fama nos Estados Unidos (o mesmo País que tantas vezes ele criticou em seus subtextos) -, temos a sua resposta desmoralizante que, entre gargalhadas desajeitadas, enquadra o apresentador: "Rio do seu nacionalismo míope. Seu patriotismo provinciano. Como está a serviço de uma indústria (a da TV) devotada à humilhação pública e ao linchamento digital. os cliques que nos dizem em que acreditar. A nova mina de ouro das corporações". Luis, o apresentador, argumenta que para fazer um filme presunçoso sobre si próprio, Silvério não precisaria produzir um documentário. Silvério garante que se afastou da vulgaridade da TV por gosto, acusando o outro de ressentido e de "mendigo de curtidas em redes sociais, que anda pra lá e pra cá com capangas". É talvez um dos melhores instantes da obra, que está disponível na Netflix. Uma longa divagação de filme dentro do filme sobre os caminhos da produção audiovisual e sobre como ela está submetida a grandes corporações, a egos, a ideologias e até a idiotices do momento.



Muita gente não tem gostado de Bardo e eu tenho a impressão de que esse sentimento é muito menos pela sua suposta petulância, ou mesmo pela complexidade dos temas que deseja discutir - que às vezes surgem confusos, caóticos, meio que jogados como numa grande maçaroca -, e muito mais pela sua metragem, que parece levar a paciência do espectador até o limite, enquanto dá voltas em torno de si mesmo, sem sair muito do lugar. No centro da narrativa, Silvério é o documentarista que será o primeiro mexicano da história a receber na Terra do Tio Sam, o Prêmio Alethea de Ética Jornalística, que é concedido a cada quatro anos por uma sociedade norte-americana. "Seria uma forma de compensar os avanços da extrema direita no País?" argumenta alguém em certa altura. O absurdo do mundo atual, um olhar crítico para a própria história, alegorias que envolvem bebês que supostamente preferem morrer do que ter viver em um ambiente hostil. A abordagem pode parecer meio torta, mas, ali adiante, em meio a um surrealismo onírico que alude a um Fellini e outro, as coisas parecerão se encaixar. Parecerão, não é demais reforçar.

Antes de receber o prêmio, Silvério volta ao seu México Natal para a citada homenagem - o mesmo evento em que o protagonista é abordado pelo apresentador de TV. E a raiva de Luis tem a ver com o fato de o sujeito simplesmente não ter aparecido em seu programa, em que era um ilustre convidado. Sem dar nenhuma explicação. Bem ao estilo das almas egocêntricas que, deixando seu País de origem para trás, agora talvez encarem aquela pátria como um espaço ultrapassado, anacrônico, hipócrita de alguma maneira. Iñarritu aposta em uma viagem meio de sonho em que tudo parece no limite entre o delírio e o devaneio (ou uma soma dos dois). Nem tudo parece fazer tanto sentido quanto uma pilha de corpos falecidos, que faz emergir de seu topo a assombrosa figura de Hernán Cortés, o conquistador espanhol que destruiu o Império Asteca. Há críticas pra todos os lados, muitas delas centradas no próprio México que "não é um País, mas sim um estado mental", como lembra um taxista. Tradições, ritos, costumes. "A vida é uma série de eventos sem sentido", lembra o nosso protagonista em certa altura. Bardo é mais ou menos isso: desconexo, ilógico, hermético. Como um quebra cabeças em que caberá a nós juntar suas partes. Numa espécie de exercício de paciência que pode ser longo mas, talvez, compensador.

Nota: 7,0


sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Pérolas da Netflix - A Fera do Mar (The Sea Beast)

De: Chris Williams. Com Zaris-Angel Hator, Karl Urban e Jared Harris. Animação / Aventura, EUA, 2022, 119 minutos.

Devo admitir a vocês que só fui prestar atenção nesse A Fera do Mar (The Sea Beast) depois da indicação ao Oscar na categoria Animação e, que grata surpresa! Trata-se de uma obra carismática, bonita e que transmite uma mensagem de tom pacifista e de preservação do meio ambiente, de forma a subverter um pouco a lógica da clássica narrativa da "jornada do herói" (algo que nos acostumamos a ver também em desenhos). Não significa, ao cabo, que não haja heroísmo aqui e sim evidenciar que a bravura ou a coragem pode ter muito mais a ver com confrontar sistemas que se perpetuam do que simplesmente lutar uma batalha física, sangrenta - de armas, canhões, espadas e outros. Ok, eu sei que o ideal de filmes mostrando que a guerra é péssima não chega a ser exatamente uma novidade. Mas em tempos tão brutos como os que vivemos, martelar essas ideias parece ser algo cada vez mais necessário. Ainda mais quando o assunto são os pequenos e a maneira como estamos criando essa geração que será a próxima.

A arte, afinal, humaniza. Nos faz pensar, refletir. E, quanto antes isso acontecer, melhor. Então fica aqui o aceno positivo à essa nomeação que fez o filme de Chris Williams (um dos diretores do divertido Operação Big Hero) - que, aliás, está disponível na Netflix - ser uma espécie de convidado de última hora à maior premiação do cinema. A trama nos joga pra uma Era - não se sabe exatamente qual - em que os humanos convivem com feras aterrorizantes que vagam pelos mares. Caçar esses monstros significa ser celebrado e respeitado não apenas pelos imperadores, mas também pelo povo - como é o caso do lendário Jacob Holland (Karl Urban) que é tipo um braço direito do Capitão Crown (Jared Harris) em suas jornadas. Tudo corre mais ou menos de acordo com o script até o dia em que a dupla sai para a caçada de uma enorme e perigosa baleia vermelha - ocasião em que se deparam com a inesperada presença da órfã Maisie Brumble (Zaris-Angel Hator) no convés. Cheia de personalidade, a intrusa pretende participar das aventuras.

Maisie, assim como muitos outros pequenos é uma órfã que, justamente, perdeu seus pais quando estes envolviam-se em uma caçada em alto-mar. De posse de livros que relatam essas jornadas cheias de heroísmo e glórias - sempre narradas de forma bastante laudatória por seus autores -, a jovem acredita ter a predisposição para a batalha em seu DNA. E se para Jacob já não bastassem os desafios do mar em si, agora ele também precisará cuidar de Maisie e, bom, não é preciso ser nenhum adivinho pra saber que dali sairá uma inusitada amizade. Especialmente depois que a dupla for "capturada" pela grande baleia vermelha, sendo conduzida até a ilha em que mora com outras feras marítimas. E será nessa hora que a pequena passará a perceber que a história que é contada por seus antepassados, talvez não seja exatamente como ela imaginava. O que envolverá uma sequência de cenas comoventes de interação entre Maisie, Jacob e o monstrengo gigante (difícil não se emocionar na parte das flechas, por exemplo).

Tecnicamente soberba, a animação aborda temas como empatia, quebras de paradigmas e até enfrentamento a sistemas autoritários de forma sutil, sem fazer parecer que estamos diante de um simples panfleto. Alternando momentos comoventes, com outros mais engraçados - aliás, a gente acaba rindo de instantes meio inusitados, como na parte do primeiro encontro entre o trio já embaixo da água (um momento paralisante para todos, com ótimo uso da fotografia e da trilha sonora), ou mesmo no momento em que Jacob sofre em meio a uma singela pescaria - o filme não deixa a ação de lado, ainda que, lá adiante, faça pensar sobre o absurdo de uma guerra que provavelmente não terá fim. Bonita, respeitosa e inteligente, a obra ainda brilha na subversão da lógica do papel do vilão - e de como aqueles que são doutrinados por certos tipos de política tendem a ser as grandes vítimas em determinados cenários. Aquecimento global, pandemia, extremismo de direita. Sim, sei que talvez esteja avançando para além da análise de uma simples animação. Mas a chave aqui é confrontar a ignorância: o que essa obra faz de forma divertida, consistente e de forma a agradar adultos e crianças.


sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Pérolas da Netflix - O Empregado e o Patrão (El Empleado y El Patrón)

De Manolo Nieto. Com Nahuel Pérez Biscayart, Cristian Borges e Justina Bustos. Drama, Uruguai / Brasil / Argentina / França, 2021, 107 minutos.

Muito mais do que um filme de teor político sobre questões que envolvem o universo do trabalho, O Empregado e o Patrão (El Empleado y el Patrón) é uma obra sobre relações humanas e suas sutilezas. Isso não quer dizer que os contrastes sociais que colocam em lados opostos as duas famílias que acompanhamos em cena não estejam lá. Basta ver a moradia opulenta dos proprietários das lavouras de soja em contraponto a casa de pau a pique da família daquele que será contratado para trabalhar na safra. De um lado o maquinário agrícola que, em muitos casos, avaliza a riqueza. De outro, o cavalo solitário que simboliza um pouco de tudo ao mesmo tempo. O cenário é o Norte do Uruguai, na divisa com o Brasil - um local tão bucólico quanto inóspito. É nele que o jovem Rodrigo (Nahuel Pérez Biscayart) procurará alguém que possa auxiliar a família na colheita de grãos - a mão-de-obra parece meio escassa e o excesso de chuvas pode colocar a perder parte de lavoura.

Mais do que isso, Rodrigo precisa de alguém que saiba dirigir uma colheitadeira - o que ele conseguirá ao contatar Carlos (Cristian Borges), um rapaz de 18 anos que é filho de um antigo funcionário de seu pai. Assim como Rodrigo, Carlos é um jovem casado e pai de um bebê pequeno. Ao cabo, ele precisa trabalhar - ainda que, em seu íntimo, sonhe mesmo com as corridas de cavalos (o seu desejo nem tão secreto é participar de uma espécie de maratona eqüestre, que acontecerá dali algumas semanas). Carlos coloca essa como a única condição para aceitar o emprego. Tudo começa mais ou menos bem e, num universo de tanta precariedade como é o do trabalho no campo, Rodrigo até parece ser um patrão razoável. Ou ao menos não é aquele carrasco que poderia parecer uma figura maniqueísta óbvia - uma solução que o roteiro evita. Mas num dia como outro qualquer, o jovem empregado sofre um grave acidente com o trator que dirigia, com consequências terríveis para todos os envolvidos.



Costurada pelo diretor Manolo Nieto como uma experiência fílmica sobre tragédias e busca de superação, a obra também aposta em uma análise mais estrutural e menos direta na hora de discutir as diferenças de classe. Um bom exemplo disso envolve o fato de o filho de Rodrigo padecer, aparentemente, de uma grave doença que fragiliza sua saúde. O que poderá ser controlado (e contornado) mais adiante, com o tratamento médico adequado. O que decorre, claro, de um bom acesso ao sistema de saúde - o que pode ser obtido com mais facilidade pra quem tem dinheiro. Da mesma forma, será o mesmo dinheiro que moverá as tentativas desesperadas da família de empregadores de tentar apaziguar os traumas do acidente, propondo acordo financeiros ou mesmo outras chantagens quando o sindicato que apoia os trabalhadores entrar na jogada. É quase como um jogo de xadrez sendo jogado lentamente, com cada pequeno gesto podendo vir carregado de sentido.

Um bom exemplo desse expediente está no almoço em que Federica (Justina Bustos), a esposa de Rodrigo vai conversar com Carlos para oferecer ajuda. Seu gestual, sua conversa mansa sugere muito mais uma obrigação que está sendo cumprida - como um protocolo que busca tentar amenizar as dores da consciência - do que algo sincero, honesto. Aliás, não demora para que ela sugira ao marido de que a família de trabalhadores seja dispensada do local. Em meio a tudo, a corrida de cavalos surge como uma moeda de troca que poderá auxiliar a todos: se vencer, Carlos faturará uma boa grana. Às custas de um saudável e valioso cavalo da família de Rodrigo. Os holofotes se voltam ao evento num contexto naturalista, que quase ganha ares documentais. Um empregado que cavalga para o chefe que embolsará o dinheiro. Uma simbologia nem tão discreta. A troca de olhares diz muito. Mais até do que devia. É como se aquelas vidas existissem de fato. Com sua lógica existencial própria. Com sua organicidade vívida. É um filme pequeno, distinto, incômodo, cheio de camadas. E que foi o enviado do Uruguai para o próximo Oscar. Fica a torcida.


quinta-feira, 25 de agosto de 2022

Pérolas da Netflix - Cine Holliúdy

De Halder Gomes. Com Edmilson Filho, Miriam Freeland, Joel Gomes e Roberto Bomtempo. Comédia, Brasil, 2012, 91 minutos.

Mistura de filme do Mazzaropi com Cinema Paradiso (1988) e uma pitada de Rebobine, Por Favor (2008). Mais ou menos assim pode ser encarada a experiência com Cine Holliúdy, simpática obra dirigida por Halder Gomes e que finalmente estreou na Netflix. Aliás, a ideia deu tão certo que se tornaria o embrião da série que, hoje, é sucesso na Globoplay. Quem, afinal, não gosta de filmes que falam de filmes? Ainda mais com tanto carinho, tanta nostalgia, tanta memória afetiva? Inspirado pelas lembranças da infância do próprio Gomes, o projeto nos joga para o interior do Ceará onde, em meados dos anos 70, o exibidor de uma pequena sala de cinema, de nome Francisgleydisson (Edmilson Filho), se empenha em manter o local aberto - após o advento da chegada da TV. Sem muitas perspectivas e à beira da falência, o protagonista se muda com a mulher Graciosa (Miriam Freeland) e o pequeno Francin (Joel Gomes) para a tranquila Pacatuba na intenção de tentar um recomeço.

E é claro que tudo não passará de uma grande desculpa para não apenas homenagear a sétima arte - e todo o esforço dispensado por aqueles que amam o cinema -, mas para divertir o espectador com reminiscências em formato de gags que remetem a clássicos antigos (como os faroestes ou os filmes de kung fu) ou mesmo com piadas divertidíssimas que apontam o contraste entre a aridez de Pacatuba - e seus moradores provincianos, meio xucros -, com a persistência empreendedora quase comovente de Francisgleydisson e sua família. E talvez não seja por acaso que, em tempos como os que vivemos - de destruição da cultura e de massacre às artes - sequer nos vejamos surpreendidos quando um burocrata local pergunta se o protagonista é um "comunista" (sim, né, artes, cultura, quebra do status quo, confronto às convenções sociais, enfim, coisa de vermelhinho). 

O mesmo vale para outros momentos, como no instante em que Francisgleydisson se depara com uma burocracia quase infinita para conseguir legalizar a "firma" na junta comercial local (e a parte em que um sujeito explica o sem fim de documentos, de carimbos e de outros, que serão necessários para viabilizar o negócio é cômica, mas ao mesmo tempo trágica, se pensarmos na precarização atual do trabalho como um todo). Apresentando cada uma das figuras locais como personagens caricatos e cheios de manias - caso do prefeito um tanto egocêntrico, da primeira dama afetada, do padre bagaceiro, do bêbado incorrigível, do viadin ressentido - Cine Holliúdy tem aquela cara de programa de auditório improvisado, meio teatral, o que é reforçado pelo fato de a obra apresentar legendas, uma vez que é toda falada no dialeto cearense (e aí é um tal de "macho", "aperreio", "cabra", "estrambólico", "ispilicute", "peia" e outras gírias que espocam na tela nos divertindo e servindo como uma verdadeira aula sobre a região).

Vencedora de prêmios e tida como uma das grandes comédias brasileiras do ano de 2013, a obra pavimentaria o caminho para que Gomes ampliasse o seu olhar para as questões regionais, o que resultaria uma continuação, além da já citada série e outros filmes, caso do hilário O Shaolin do Sertão, transformando seu estilo em uma espécie de assinatura autoral. "Sempre soube que o Nordeste sozinho teria poder de consumo para justificar uma produção voltada para este mercado. Vivemos num país de dimensões continentais, populoso e com uma diversidade cultural imensa. Esta produção passa por um ponto de equilíbrio entre investimento de produção e lançamento pra chegar num formato que seja rentável", afirmou o diretor em entrevista ao Adoro Cinema à época, reforçando o fato de, mesmo sendo uma produção do Nordeste brasileiro, a obra "conversar" com os mais variados lugares do mundo. Um mérito e tanto.


terça-feira, 26 de julho de 2022

Novidades em Streaming - Chico Ventana Também Queria Ter Um Submarino (Chico Ventana También Quisiera Tener Un Submarino)

De: Alex Piperno. Com Daniel Quiroga, Inés Bortagaray e Noli Tobol. Fantasia / Drama, Argentina / Uruguai / Brasil / Holanda / Filipinas, 2020, 84 minutos.

Meio de transporte ancestral, o navio tem papel central no curioso Chico Ventana Também Queria Ter Um Submarino (Chico Ventana También Quisiera Tener Un Submarino). Aliás, o caráter excêntrico da obra de estreia do diretor Alex Piperno - e que está disponível na Netflix - pode ser observado já no título do projeto. Há um quê de estranheza ali e que nos acompanhará nessa experiência sobre idas e vindas, encontros e desencontros e sobre as eventuais dificuldades que decorrem de choques culturais e de modos de vida bastante distintos. A bordo de um navio de cruzeiro que vaga pelos mares da Patagônia, Chico Ventana (Daniel Quiroga) é um empregado da tripulação que, certo dia, encontra uma espécie de portal mágico que o transporta para um apartamento de Montevidéu. Paralelamente, um grupo de camponeses do interior das Filipinas é surpreendido com o surgimento de uma cabana de concreto nos arredores do assentamento em que vivem.

Em algum momento essas histórias tão aleatórias, tão pouco previsíveis, irão se chocar. Circulando pelo navio, Chico Ventana se ocupa lavando o convés e auxiliando os turistas em atividades cotidianas. Em meio aos cubículos apertados do local, o taciturno sujeito localizará essa porta que lhe conduzirá a um "outro lado". Fora a metáfora do barco em si - um veículo que leva passageiros pra lá e pra cá, atracando em países culturalmente diversos -, o que se dá aqui é a aleatoriedade do inesperado que se junta à nossa eterna busca por conquistar outros espaços. Em Montevidéu, Chico conseguirá se aproximar de Elsa (Inés Bortagaray), numa fantasia existencial que vai no limite do realismo fantástico. Como num encontro entre Quero Ser John Malkovich (2000) e o cinema de Apichatpong Weerasethakul (especialmente na história que se passa no campo), aqui não haverá respostas fáceis, cabendo ao espectador a tarefa de montar o quebra-cabeças que possa dar alguma lógica à narrativa.


Sim, pode ser menos prazeroso que um filme hollywoodiano com começo, meio e fim bem definidos. Mas por ser tão instigante, o filme permite um mergulho para além daquilo que vemos nas aparências. Ao cabo os três personagens centrais das duas histórias parecem estar meio à margem: Chico é o trabalhador de um cruzeiro que não pode participar efetivamente da viagem (como se fosse um turista). Ele apenas está focado na mangueira que esguicha água e em seu ofício. Já Elsa, em meio a livros e doses de vinho, permanece em silêncio a maior parte do tempo, numa solitude que se confunde com a solidão. Ela é feliz? E ele? Como figuras errantes, eles se encontram inesperadamente como que numa espécie de limbo do espaço-tempo. E ali tem a oportunidade de conferirem algum significado as suas existências. Já a terceira pessoa, o camponês Noli (Noli Tobol) fica impactado com o surgimento da cabana, algo que ele acredita ser um castigo divino.

Há um quê, naturalmente, de complexidade no processo. Noli mobiliza a comunidade para sacrifícios que se converterão em ofertas: o componente religioso fala mais alto. Já para Elsa e Chico o que parece haver ali é algum tipo de inocência diante de um mundo muito maior do que sugere os seus próprios cubículos. É tudo achismo, mas isso é parte da diversão em uma obra que é extremamente bem acabada na parte técnica (e os cenários filipinos são não menos do que deslumbrantes, ao passo que a montagem é muito eficiente). Com poucos diálogos e completa ausência de trilha sonora, o trabalho avança para o seu final em que se obterão poucas respostas - ainda que haja instantes de catarse. "Para mim o cinema tem a possibilidade de ser radical e, mais do que isso, tem a obrigação de ser radical, intenso, permitindo a exploração lúdica dos materiais", resumiu Piperno em entrevista ao site Papo de Cinema. Ao fim, nesse abre e fecha de portas sempre haverá a oportunidade para novos campos de exploração. E para que as águas, finalmente, rolem.

Nota: 8,0


quarta-feira, 13 de julho de 2022

Pérolas da Netflix - A Vida de David Gale (The Life of David Gale)

De: Alan Parker. Com Kate Winslet, Kevin Spacey, Laura Linney e Gabriel Mann. Drama / Suspense, EUA, 2003, 131 minutos.

Poucos filmes costumam ser tão unânimes entre o público de cinema como no caso do ótimo drama A Vida de David Gale (The Life of David Gale) - obra derradeira do diretor Alan Parker (de Coração Satânico, de 1987), que finalmente foi disponibilizada na Netflix. Seja pelo tema relevante que leva pro centro da narrativa um debate sobre a pena de morte, seja pelo roteiro extremamente bem costurado, cheio de idas e vindas, de flashbacks, de reviravoltas e outras trucagens, o caso é que o filme estrelado por Kate Winslet, Kevin Spacey e Laura Linney é daqueles que caem facilmente no gosto da plateia. E aqui entra o grande mérito de Parker, e de sua capacidade única de conduzir o espectador para uma reflexão mais ampla a respeito de um assunto que, em geral - e em tempos de "bandido bom é bandido morto" -, costuma ser polêmico. No decorrer de toda a experiência permanece a dúvida: afinal, o professor de filosofia David Gale (Kevin Spacey) seria mesmo o culpado pela morte de sua colega ativista pelos direitos humanos Constance Harraway (Laura Linney)?

No começo da história a jornalista Bitsey Bloom (Kate Winslet) é "convocada" por Gale para uma última e reveladora entrevista, que será concedida em um espaço de três dias - aliás, os últimos três dias de vida do professor, que aguarda pela sua execução em um presídio do Texas, após ter sido condenado pelo estupro seguido de assassinato por asfixia da vítima. Respeitado no meio acadêmico, David é aquele professor boa praça, que participa das noites de bebedeiras com os alunos e transforma suas aulas sobre Lacan e Kant em peças de comédia de stand up involuntárias, mas cheias de ricos recortes temáticos - e nesses instantes iniciais já vale ficar atento às metáforas que correm nas entrelinhas a respeito de "fantasias", "desejos" e "busca por felicidade" que são evocadas por filósofos históricos, e que estabelecerão algum tipo de diálogo com aquilo que acompanhamos.



Em uma dessas noites de festa a beira da piscina, David é seduzido por uma aluna meio relapsa que precisa de nota para não perder o semestre (papel de Rhona Mitra). É a partir desse episódio que sua vida vira de ponta cabeça: acusado de estupro de vulnerável, vê sua credibilidade cair no ambiente universitário, perdendo o emprego. Perante a sociedade, os amigos e a família, mesmo não havendo provas sobre o crime - ele é absolvido -, ele passa a conviver com o rótulo de estuprador escrito na testa. E tudo se torna ainda pior porque, ao lado de Constante, David é um fervoroso ativista contrário à pena de morte, com a pauta girando em torno não apenas da sanha punitivista pregada pelo modelo, mas também pela grande quantidade de recursos que são dispendidos a cada vez que um (pretenso) criminoso vai parar na cadeira elétrica. Como lidar com todas essas circunstâncias?

De forma eletrizante, Parker mantém o espectador em suspense constante, com cada dia de relatos de David espalhando algumas pistas a mais do que possa ou não ter acontecido - e aqui, um dos prazeres será de, ao lado de Bitsey, tentar juntar as peças do quebra-cabeças que revelem o que motiva, afinal, essa inesperada entrevista concedida por um condenado. Em meio a tudo há ainda a figura de um misterioso caubói que parece perseguir Bitsey e seu parceiro de jornalismo Zack (Gabriel Mann) - estando em lugares meio inesperados, o que amplia a tensão. Com ótima trilha sonora e excelente montagem, o filme ainda estabelece, em seu terço final, uma curiosa rima narrativa com a ópera Turandot, de Giácomo Puccini, uma jogada inteligente, tão melancólica quanto celestial. Nas premiações, A Vida de David Gale passaria meio batido. Mas nos corações dos fãs, segue como um trabalho insuperável.


quarta-feira, 18 de maio de 2022

Novidades em Streaming - Curral

De: Marcelo Brennan. Com Thomás Aquino, Rodrigo García, José Dumont e Carla Salle. Drama, Brasil, 2020, 86 minutos.

Que joia do nosso cinema é esse pequeno filme chamado Curral - primeiro longa-metragem de ficção do diretor pernambucano Marcelo Brennan. Quer dizer, ficção ao menos em partes, já que é simplesmente impossível não identificar uma boa dose de realidade naquilo que acompanhamos. A trama nos joga para a pequena Gravatá, cidadezinha típica do interior onde, às vésperas das eleições municipais, o bicho tá pegando entre dois candidatos à prefeito rivais. Em meio a esse cenário turbulento, somos apresentados a Chico Caixa (Thomás Aquino) um modesto funcionário da Prefeitura, que é o responsável por conduzir o caminhão pipa que levará água às localidades que sofrem com a escassez hídrica. Só que, após bater de frente com o prefeito da situação Vitorino (José Dumont, em participação especial) ele é demitido, sendo recrutado após o episódio por um amigo de infância, no caso o advogado Joel (Rodrigo Garcia), que pretende se eleger como vereador e que, para isso, depende do apelo popular do protagonista na campanha.

Joel é tudo aquilo que esses jovens políticos que surgem meio que do nada, garantem ser: éticos, sem "rabo preso" com nenhuma sigla e interessados em proteger apenas os direitos do povão. "Eu nem precisaria estar na política, sou advogado" defende o sujeito que integra um daqueles partidos da nova (ou nem tão nova) política chamado, Avança Brasil. Acompanhado de Chico Caixa, Joel inicia uma campanha massiva pela cidade, percebendo logo o potencial que terá como moeda de troca, as políticas voltadas à distribuição da água. Acreditando inicialmente em Joel - num misto de ingenuidade com necessidade, já que o homem é pai de família e também precisa pagar os seus boletos - Caixa não demorará para ver as suas convicções sendo confrontadas. Especialmente quando a equipe do candidato passar a fazer promessas claramente vazias, num misto de clientelismo, troca de favores e compra de votos.

E por mais dolorido que seja constatar a falência completa de um modelo de disputa política atual que beira a beligerância, não deixa de ser divertido reconhecer aqui e ali toda a semiótica que envolve o pleito dos pequenos municípios Brasil afora. Estão lá desde os carros de som com grudentos jingles de campanha (Tá nervoso / tome um chá / é galego advogado / ele vem para mudar), passando pelos comícios em que artistas locais se vendem em troca de visibilidade e pelos candidatos vaidosos interessados apenas em si, até chegar ao apelativo papel da imprensa, que costuma se travestir de isenta enquanto funciona como "´pena de aluguel" de um dos lados (e a voz de locutor à moda antiga de um dos radialistas, admito, me fez gargalhar alto, pensando em alguma figuras típicas da nossa mídia local). Nesse sentido, a experiência navega no limite entre o trágico e o cômico, entre a desesperança e a reflexão.

Hábil em construir enquadramentos inteligentes - observe por exemplo o ângulo com que acompanhamos a mangueira sendo desenrolada do caminhão ainda na primeira cena -, Brennan ainda utiliza cenários, figurinos, objetos e outros elementos como forma de se comunicar com seu público. Em certa altura da projeção, Chico Caixa usa uma camiseta em que se lê um Enjoy Coca Cola - o que não deixa de ser uma grande ironia, em um cenário em que a população passa sede por não ter os recursos hídricos básicos. Aqui e ali também há nas entrelinhas um debate sobre temas como machismo, racismo, diferenças de classe e a falta de percepção de onde se está no espectro político (e de quem representa efetivamente o povo). Tudo filmado com um senso de naturalismo tão palpável, que quase me fez lembrar outra maravilha do nosso cinema, no caso o divertidíssimo Narradores de Javé (que, ironicamente, conta com José Dumont em um inesquecível papel). Está na Netflix e precisa ser descoberto.

Nota: 8,5

 

quarta-feira, 11 de maio de 2022

Pérolas da Netflix - As Boas Maneiras

De: Juliana Rojas e Marco Dutra. Com Isabél Zuaa, Marjorie Estiano e Miguel Lobo. Fantasia / Drama / Terror, Brasil / França, 2018, 135 minutos.

É um drama sobre questões sociais? Um suspense sobre os desafios da maternidade? Ou seria ainda uma experiência de terror que evoca temas folclóricos? É urbano? É rural? É fantasia? Ou realidade? São tantas as possibilidades em uma análise do ótimo As Boas Maneiras, obra de Juliana Rojas e Marco Dutra, que o resultado são mais perguntas do que respostas, ao final da projeção. E não há nada de errado nisso, porque esse é aquele tipo de filme que permanece conosco, nos faz viajar, inferir, discutir. Da indefinição de seu gênero, passando pelo roteiro dividido em duas partes bem delineadas, a obra tem complexidade sem nunca soar excessivamente hermética. Ao cabo trata-se de um resgate da clássica lenda do folclore, mas de um jeitinho bem brasileiro.


Na trama somos apresentados a Clara (Isabél Zuaa), mulher negra que mora em um bairro periférico de São Paulo e que consegue uma vaga como babá do filho da grávida Ana (Marjorie Estiano), em um luxuoso apartamento. A conversa inicial parece cercada de amenidades mas, aqui e ali, já evidencia o contraste entre a dupla de protagonistas: Ana é a burguesa que não é capaz nem de comprar os seus alimentos, ao passo que Clara se empenha em suas funções, por mais que resista à ideia de se tornar também a empregada do local. Em meio a acontecimentos aleatórios - e que são carregados de tensão -, como uma ida até a geladeira de madrugada, ou um passeio pelo bairro no solidão do avançar das horas (Ana é sonâmbula), vai se ampliando a percepção de que algo estranho está prestes a acontecer. Especialmente nas noites de lua cheia, momento em que o mistério aumenta.

 
Enigmática, a "patroa" entrega pouco sobre seu passado. Quando ela encontra uma amiga no shopping esta parece querer evitar ao máximo qualquer contato. Não há namorado ou família presente - o seu aniversário é de uma solidão devastadora. Tanto que Ana convida Clara para uma cerveja nessa noite. Ambas se aproximam, a amizade salta para um algo a mais. É mais um tema que se instala na narrativa. Mais um ponto de quebra de lógica, daqueles em que há confluências entre polos opostos. Como um todo, a obra parece ser uma ampla alegoria sobre distancias que aproximam, sobre segredos que vêm à tona, sobre castelos contemporâneos de conto de fadas urbano. Novamente dá pra se dizer que não há facilidades: há sugestões, gestos, pontas que escapam e que nos encontram. A cena em que Clara vai a um bar, por exemplo, talvez parecesse apenas deslocada se não fosse esse um filme que discute, nas entrelinhas, temas ligados ao trabalho, aos preconceitos por baixo dos panos, ao fluxo geral da vida (quase ordinária em seu cotidiano).

Tecnicamente soberba, a obra é primorosa ao evocar no espectador sentimentos variados - e é incrível como uma simples cena em que Ana está sentada na sala de jantar, com uma ampla janela ao fundo em que se vê uma enorme lua cheia, comunique tanto. A sequência parece uma pintura e há todo um quê de artes plásticas e literatura que saltam da tela a todo instantes - como se estivéssemos em uma espécie de inesperado filme da Disney live action tão nacional quanto peculiar. Outro aspecto relevante diz respeito à trilha sonora, com as composições originais servindo quase como uma expansão do universo onírico da história. O que fica, por fim, é o elogio à capacidade de nossos realizadores de ir além da comédia Globoplay ou do suspense policial, misturando elementos de fantasia e até de sobrenatural para a construção de um universo único que jamais deixa de "conversar" com os tempos que vivemos. Como comprova o mais do que ilustrativo último ato.
 
 

terça-feira, 19 de abril de 2022

Pérolas da Netflix - O Patrão: Radiografia de Um Crime (El Patrón, Radiografía de un Crimen)

De: Sebastián Schindel. Com Joaquin Furriel, Luis Ziembrowski, Guillermo Pfening e Mónica Lairana. Drama, Argentina / Venezuela, 2014, 99 minutos.

Quem assistiu e gostou do nacional 7 Prisioneiros (2021) vai encontrar em O Patrão: Radiografia de Um Crime (El Patrón, Radiografía de un Crimen) uma experiência semelhante sobre condições de trabalho degradantes e decisões extremas movidas pela violência. Se no filme brasileiro tínhamos o ambiente acinzentado de um ferro-velho como cenário - um espaço insalubre, sujo -, aqui temos um açougue como microcosmo, o que permite uma série de metáforas bastante gráficas que envolvem o manuseio de carnes de procedência duvidosa (pra não dizer podres mesmo). Na trama, o peão interiorano Hermógenes (Joaquin Furriel) encontra emprego numa rede de açougues de Buenos Aires. Semi-analfabeto e sem muito conhecimento sobre direitos e deveres envolvendo esse universo, o protagonista se sujeita a uma série de pressões e extorsões vindas de seu chefe, um certo Don Latuada (Luis Ziembrowski), que age na base da coerção com seus funcionários, quase no limite do comportamento miliciano.

Ocorre que no decorrer da narrativa não demoramos a saber que ocorreu um crime envolvendo os dois homens - com a trama derivando para uma espécie de drama de tribunal a respeito de injustiças relacionadas ao trabalho análogo à escravidão e a ineficiência do Estado na hora de analisar casos como esse. Interessado no caso, o advogado humanista Marcelo Di Giovanni (Guillermo Pfening) passará a investigar os motivos que teriam levado Hermógenes a assassinar o próprio chefe tentando, assim, atenuar sua pena. Voltando no tempo, também descobriremos detalhes da relação conturbada, que levariam o sujeito ao limite da tolerância - o que envolvia maus tratos também a sua esposa Gladys (Mónica Lairana), que passará a trabalhar como doméstica na residência de Latuada. O que ampliará a sensação de degradação já que, por não ter condições financeiras, o casal passará a habitar os fundos do açougue em que trabalham - um espaço pequeno, pouco higiênico, sem ventilação alguma.


Hábil na construção desse cenário um tanto caótico, o diretor Sebastian Schindel (do recente Crimes em Família, 2020) converte o diminuto local do açougue em um ambiente que beira a claustrofobia - sensação ampliada pelo hábito do patrão de receber carne deteriorada, aplicando na matéria-prima uma série de ingredientes e de produtos químicos (inclusive água sanitária) como forma de revitaliza-la para utilização em bifes empanados ou em carnes moídas. Não demora para que os clientes reajam e que a Vigilância Sanitária feche o local, o que só piora tudo, com Latuada cobrando do empregado não apenas os valores relativos a prejuízos financeiros, mas mantendo-o assim preso, enjaulado nesse contexto geral de precariedade. A presença de um açougueiro mais experiente, de nome Armando (German de Silva), não ajuda muito, já que é ele que ensina a Hermógenes as maracutaias do setor, o que naturaliza o processo como algo que, bom, enfim, acontece.

Baseado em fatos reais, o filme tem como grande destaque as atuações, e Furriel está tão bem na pele de Hermógenes que é quase difícil separa-lo do personagem, numa caracterização naturalista e absurdamente convincente (e se alguém me dissesse que se tratava mesmo de um empregado de açougue e não de um ator eu não hesitaria em acreditar). Tecnicamente bem executada, a obra também se utiliza da própria cenografia para uma série de rimas visuais, com a podridão sendo literalmente evidenciada a partir da carne recebida que parece, a cada dia, mais fétida, mais estragada, mais decomposta, numa alegoria perfeita para tudo o que se encontra naquele local em matéria de maus tratos e condições sub-humanas de sobrevivência. É uma experiência difícil, amarga, dolorida, quase para estômagos mais fortes. Mas quem se aventurar pela narrativa encontrará uma experiência que discute exploração no trabalho, contrastes sociais, pressões psicológicas, relações de dependência e, claro, os limites que levam o oprimido a reagir com brutalidade às violências impostas pelo opressor. Em tempos em que direitos trabalhistas e o sonho do retorno à escravidão parecem mover parte da elite, não é demais lembrar ao trabalhador a importância de lutar por aquilo que lhe pertence.


quinta-feira, 3 de março de 2022

Pérolas da Netflix - Peepli Ao Vivo (Peepli Live)

De: Anusha Rizvi. Com Omkar Das Manikpuri, Raghubir Yadav, Shalini Vatsa e Farrukh Jafar. Comédia dramática, Índia, 2010, 96 minutos.

Existe um dado meio chocante da União Nacional de Camponeses da Índia que estima que, desde 1995, cerca de 400 mil agricultores cometeram suicídio no País - uma crise sem precedentes que é resultado do fracasso de políticas neoliberais, privatizações e ausência de qualquer tipo de regulação do setor pelo Estado. Endividados, os produtores ficam à mercê de grandes corporações e de políticas públicas escassas que possam ajudar a solucionar a questão. E, por mais sério que seja o assunto, não deixa de ser curioso notar como a diretora Anusha Rizvi conseguiu, de forma meio paradoxal, utilizar um tom bem humorado no divertido e dramático Peepli Ao Vivo (Peepli Live), filme que está disponível na Netflix - e que foi o enviado ao Oscar pela Índia, lá em 2010.

Na trama, a família Manikpuri está em crise por não conseguir pagar a hipoteca da pequena propriedade que mantém em um vilarejo do interior da Índia. Ao tentar pedir algum tipo de socorro para lideranças locais, os irmãos Natha (Omkar Das Manikpuri) e Budhia (Raghubir Yadav) descobrem que existe um novo programa de Governo que oferece 100 mil rúpias para as famílias de fazendeiros que tenham cometido suicídio. Com a intenção de recuperar a propriedade, Natha se oferece para tirar a própria vida - para desespero da esposa Dhani (Shalini Vatsa) e da mãe (Farrukh Jafar). Bom, não demora para que a notícia passe a circular pelo vilarejo, atraindo a atenção não apenas de políticos, mas de outros poderosos, além da mídia sensacionalista.


Aliás, a chegada da imprensa ao local é o que converte o episódio em um verdadeiro circo, com cinegrafistas, repórteres e outros circulando pela região, na busca pela notícia mais impactante, pela revelação mais chocante, por algum tipo de "furo" que possa ressignificar aquilo tudo. Nesse sentido, a diretora jamais pesa a mão ao denunciar o abuso sofrido pelos agricultores de uma forma leve, quase debochada - como no caso da sequência em que um jornalista faz uma longa digressão a respeito da forma e do conteúdo das fezes de Natha (que poderiam ser um indicativo de como ele estava sob severo estresse, o que poderia explicar seu comportamento). O mesmo valendo para a mesquinharia do descaso político, com as autoridades municipais, estaduais e federais jogando uma no colo da outra a responsabilidade pela morte de produtores.

À moda de um A Montanha dos Sete Abutres (1951) da Nova Bollywood, o filme converte a região de Peepli em um verdadeiro centro de debates que se intensifica às vésperas das eleições (com cada interessado tentando utilizar o desastre em benefício próprio, sem nunca pensar efetivamente no bem-estar do povo). Com ótima trilha sonora - músicas evocativas como Desh, de Raman Ji pontuam a narrativa e contribuem para contar a história - e cenários arenosos e desoladores, a obra jamais deixa de abandonar o otimismo, ainda que nos deparemos com uma Índia absurdamente desigual e miserável. Ao final, em meio a tantas incertezas, fica o sentimento de que, por mais que se dê algum tipo de visibilidade para o tema, ele dificilmente será solucionado. Uma pena.


segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Pérolas da Netflix - A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas (The Mitchells vs the Machines)

De: Jeff Rowe e Michael Rianda. Com Abbi Jacobson, Danny McBride, Maya Rudolph, Mike Rianda e Olivia Colman. Aventura / Animação, EUA, 2021, 110 minutos.

Sério, foram necessários apenas 10 minutos de A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas (The Mitchells vs the Machines) pra que eu já estivesse devidamente mitchelizado! Aliás, sinceramente, fazia bastante tempo que eu não assistia a uma animação que me fizesse gargalhar tanto, mas que também me emocionasse em igual medida. E eu confesso que sou absolutamente fascinado por essa capacidade dos criadores desse tipo de obra, que acerta em cheio na hora de agradar a criançada - com um apelo visual único -, mas que ao mesmo tempo olha com carinho também para os adultos (esses seres nostálgicos e cheios de memórias afetivas). E, nesse sentido, o filme da dupla Jeff Rowe e Michael Rianda oferece a experiência completa, com direito não apenas a reflexões sobre uso da tecnologia no nosso dia a dia (e seus eventuais excessos), mas também sobre relações familiares, anseios juvenis e até sobre nosso comportamento em relação aqueles que amamos.

A trama já inicia vertiginosa e em meio ao caos instalado pela "revolta das máquinas" do título. Voltando algumas semanas no tempo, conhecemos os integrantes da família Mitchell, a começar pela jovem Katie (Abbi Jacobson), uma criativa aspirante a escola de cinema que, de alguma forma, vive em pé de guerra com seu pai Rick (Danny McBride) um sujeito completamente avesso ao uso da tecnologia, daqueles que têm como grande sonho uma existência modesta em meio à natureza e com o uso de ferramentas simples, como uma chave de fenda. Completando o quarteto - ou quinteto se contabilizarmos o simpaticíssimo cãozinho Monchi -, temos o irmão mais novo de Katie, Aaron (Mike Rianda), um jovem obcecado por dinossauros, além de sua mãe Linda (Maya Rudolph), que se empenha em manter a unidade familiar. E será esse grupo completamente disfuncional que terá de se unir depois que um empresário do Vale do Silício de nome Mark Bowman (Eric Andre) é capturado e a revolta em si tem início.

Sim, pode parecer meio impossível que uma traminha tão convencional como essa renda um filme tão agradável, mas o segredo aqui está muito mais nos detalhes que costuram não apenas o roteiro, mas a personalidade dos protagonistas. Um dos melhores exemplos disso é o uso da metalinguagem - ou do filme dentro do filme -, e será justamente o resgate de antigos vídeos familiares, que resultarão em alguns dos momentos mais comoventes. E como Katie simplesmente parece disposta a filmar TUDO, a linguagem cinematográfica retorna a todo instante, seja em referência a outros filmes, seja por meio de novos curtas que estão sempre em construção pelas mãos da jovem. Já a solidão de Aaron, aquele menino nerd típico, é evidenciada em uma hilária cena em que ele liga para todos os números de uma lista telefônica, pra saber se a pessoa do outro lado gostaria de "conversar sobre dinossauros" (o tipo de excentricidade que certamente dialogará com os pimpolhos).

Usando ainda a linguagem da internet a seu favor - o tempo todo somos surpreendidos por emojis, memes e outras imagens que parecem saltar da tela -, o filme ainda faz piada o tempo todo sobre como parecemos ser verdadeiros escravos da tecnologia (e uma das partes que mais gosto é aquela em que Linda debocha, após constatada a pane nos robôs da multimilionária PAL com o consequente sequestro de todos os seres humanos da Terra, de que ela está surpresa "afinal de contas, quem imaginaria que a indústria da tecnologia iria querer nos fazer mal?"). Ainda assim, a obra não é excessivamente moralista nessa análise, nunca deixando de lembrar da importância dos avanços nesse setor para que também a nossa evolução aconteça - e uma cena em especial em que Rick assiste, meio que por acaso, a um dos curtas de sua própria filha, reconhecendo ali uma metáfora para as suas próprias existências, é daquelas de fazer chorar até o mais duro dos corações.


Mas o clima geral é de diversão e mesmo as sequências mais tensas são carimbadas por alguma piadinha ou algum comentário social envolvendo algo relacionado à indústria cultural ou aos tempos que vivemos - seja o visual da máquina utilizada pelos vilões (que parece a capa de um CD do Journey), seja a ocorrência de uma família de vizinhos que parece saída de comercial de margarina (com suas vidas perfeitas virando posts impecáveis no Instagram), seja o maior antagonista da história se revoltando e reagindo da forma mais engraçada possível sobre uma... mesa! Tudo isso com uma trilha sonora maravilhosa e um grupo carismático de personagens. Essa foi a primeira animação com chances reais de ser indicada ao Oscar nessa categoria que assisti nesse ano. Ainda tenho muita coisa pra conferir mas, se depender apenas desse recorte, A Família Mitchell... já tem a minha torcida.

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Pérolas da Netflix - Oitava Série (Eighth Grade)

De: Bo Burnham. Com Elsie Fisher, Luke Prael, Josh Hamilton, Fred Hechinger e Emily Robinson. Comédia dramática, EUA, 2019, 94 minutos.

Vamos combinar que a oitava é a série mais desgracenta do colégio. É quando atingimos aquele ponto em que a gente já não sabe mais se ainda é criança ou se já tá começando a ser adulto. Todos nós já passamos por essa experiência ali pelos 12 ou 13 anos. É um período em que uma espécie de amadurecimento meio forçado costuma bater na porta, na mesma proporção de nossas inseguranças, medos, ansiedades. É um momento em que, honestamente, ficamos meio perdidos entre as brincadeiras infantiloides de outrora e o despertar de outras vontades - que mais tarde se converterão em uma série de novas  "primeiras vezes". E creio que poucos filmes, até hoje, tenham conseguido captar tão bem esta realidade, quanto o ótimo Oitava Série (Eighth Grade) - uma pequena joia disponível na Netflix e que foi dirigida pelo sempre ótimo comediante de stand up Bo Burnham (aliás, o que me fez ser atraído para o projeto).

Esse é o coming of age por excelência. Aquela obra que mostra que vai ser difícil, vai dar vontade de jogar tudo pro alto, mas que será possível superar. É quase como se o filme te pegasse pelo braço e te dissesse "não dá bola pra todo esse caos, que lá no final você vai rir disso tudo". Eu, por exemplo, era uma verdadeira tragédia às portas do Ensino Médio. Gordo, alto, de óculos, até era aquele sujeito mais ou menos boa praça, mas nada popular. Com as meninas, um desastre. Inseguro. Mas todas essas dores, parece bobagem, fortaleceram. Formaram, de alguma maneira, o meu caráter. Compuseram a minha personalidade. Fizeram enfrentar as dores da vida, fossem elas amores mal resolvidos ou um chefão de fase impossível de ser transposto no videogame. E Oitava Série vai nas entranhas disso ao nos apresentar a sua carismática protagonista Kayla (Elsie Fischer).

Kayla é a garotinha quieta, cheia de espinhas na cara, levemente acima do peso e bastante tímida. Uma jovem de doze, treze anos, como muitas. Em sua rotina, visitas infinitas às redes sociais e a atualização de um canal de Youtube com dicas sobre comportamento, vistas por praticamente zero pessoas. Aliás, nas suas dicas online - muito pertinentes, por sinal - costuma aparecer a jovem destemida e "corajosa" que ela não costuma ser. Retraída, fica praticamente paralisada quando se vê diante do jovem Aiden (Luke Prael), com quem mal consegue conversar. E fica ainda mais embasbacada quando recebe um convite para um banho de piscina da popularíssima Kennedy (Catherine Oliviere). Em meio a uma ou outra conquista em sua bolha social, ela vai adquirindo mais confiança. Amplia as amizades com adolescentes mais velhos, em uma espécie de programa estudantil que promove esse tipo de intercâmbio. Sofre, chora, chora mais um pouco e sofre. E briga com o pai. E é lacônica. E se depara com abusos. Inesperados. Outras dores. Algumas bem mais difíceis e lidar.

A naturalidade com que Burnham conduz a narrativa é não menos do que envolvente. É uma obra vibrante, mas que também nos faz refletir sobre relacionamentos familiares, conflitos de gerações, usos da tecnologia e importância das boas amizades. Intercalando ótimas piadas com instantes mais reflexivos, o diretor compõe um verdadeiro painel dessa garotada classe média da escola particular que ainda não tem nenhuma noção do mundo, se comporta como se tivesse, mas que, no fim das contas, provavelmente tá com a autoestima muito baixa para revelar quais são os seus problemas reais, no mundinho que os rodeia. A trilha sonora - especialmente as peças instrumentais caudalosas de Anna Meredith - é ótima. Os diálogos são surpreendentes e cômicos ("mãe, quem ainda usa o Facebook?"). As tomadas de câmera curiosas contribuem para que haja um certo estranhamento divertido (alguém mascando um chiclete ou uma foto despretensiosamente preparada para o Instagram). É tudo muito legal nessa comédia dramática independente que merece ser descoberta. Podem ir na fé.