quarta-feira, 26 de maio de 2021

Novidades em Streaming - Kikee (Single)

Se há um artista que se entrega de corpo e alma à música este é o nosso parceiro lajeadense Kikee que, cerca de um ano após o lançamento do ótimo Transição - nosso 13º melhor disco nacional do ano passado -, está de volta com um novo single. Aliás, que single! Demonstrando amplo domínio técnico e uma incrível maturidade, o cantor e compositor entrega, com Ei Saudade, talvez a sua melhor canção. Com referências de todo o continente americano - de música gaúcha, passando por latina, urbana, chill eletrônica e guitarra texana -, a melodiosa composição compreende os caminhos que Kikee vem buscando em suas criações. "Nesse sentido, Ei Saudade é uma canção que expõe a sensação de desconforto que venho sentindo de tempos em tempos, que envolve principalmente a impossibilidade de se relacionar com as pessoas de maneira próxima e de não poder mudar essa situação, o que nos obriga a esperar, deixar o controle, aceitar e permitir a vida acontecer", salientou no material de apresentação. Por aqui ficamos muito satisfeitos com o resultado, que pode acenar para um possível caminho em um futuro registro!

terça-feira, 25 de maio de 2021

Cinemúsica - O Diário de Bridget Jones (Bridget Jones's Diary)

De: Sharon Maguire. Com Renée Zellweger, Hugh Grant, Colin Firth, Gemma Jones e Jim Broadbent. Comédia romântica, Reino Unido / EUA / França / Irlanda, 2001, 97 minutos.

Mesmo tendo sido lançado há apenas 20 anos - o aniversário foi agora em abril -, é preciso admitir: O Diário de Bridget Jones (Bridget Jones's Diary) envelheceu muito mal. Aliás, chega a impressionar como podiam ser aceitáveis piadas bastante machistas e flagrantemente gordofóbicas como aquelas que assistimos na obra estrelada por Renée Zellweger. Alguns instantes, como os que envolvem sequências de assédio moral (e sexual) na editora em em que a protagonista trabalha, beiram o constrangimento (caso daqueles que envolvem um colega esquisitão de meia idade que tem uma predileção por olhar para os seios de Bridget, independente do teor da conversa entre ambos). Enfim, duas décadas se passaram. E com o devido distanciamento e reduzindo um pouco a régua das exigências no que diz respeito ao politicamente correto, é possível se divertir bastante com o filme dirigido por Sharon Maguire e que toma como base o livro de Helen Fielding.

Afinal, trata-se ao cabo de uma comédia romântica, com todas as suas idas e vindas, incertezas, personagens inseguras - as femininas, inescapavelmente atribuindo a sua felicidade a presença de um namorado/marido -, arcos narrativos bem arredondados e aquele final feliz em que o casal central se beija, após alguma hesitação, enquanto a câmera se afasta e a trilha sonora sobe. Aliás, sobre a trilha sonora, ela é um capítulo a parte e respeita a tradição do estilo, ao valorizar o cancioneiro antigo como forma de dar um caráter nostálgico e eventualmente kitsch à narrativa. Não por acaso, em uma das primeiras grandes sequências da película, Bridget surge solitária e um tanto neurótica, após ter sido humilhada na festa de Natal da família. Ao som da breguíssima All By Myself, entoada por Jamie O'Neal, a protagonista resolve criar o famoso diário, onde abandonará as músicas de FM light, os cigarros e os quilos a mais, na intenção de surgir como uma nova mulher: mais magra, mais confiante, mais interessante (ou, ao menos, menos desengonçada).

É dessa forma que ela atrai a atenção do chefe cafajeste Daniel Cleaver (Hugh Grant), com quem tem um caso. Enquanto canções diversas, de artistas como Sheryl Crow (Kiss That Girl), Aretha Franklin (Respect), Diana Ross (Ain't No Mountain High Enough) e The Pretenders (Don't Get Me Wrong) dão o tom da narrativa, Bridget aparece oxigenada, vivendo uma vida de sonho. Até o momento em que ela percebe que o candidato a príncipe encantado não era aquela coisa toda: enquanto ela perde a confiança no, agora, ex-chefe (e ex-amante) - que é contragolpeado em uma das melhores sequências, e que culmina numa gostosíssima sequência ao som de I'm Every Woman, de Chaka Khan -, a protagonista se reaproxima, meio que involuntariamente, de Mark Darcy, o amigo de infância responsável pela humilhação na citada festa de Natal. Aliás, Darcy surgirá o tempo todo, em tudo quanto é lugar, e não é preciso ser nenhum adivinho pra entender onde esse vai e vem dos dois vai terminar.

Nesse sentido, O Diário de Bridget Jones é a construção clássica da comédia romântica por excelência, com um sem fim de reviravoltas que chegam a deixar o espectador em dúvidas sobre a possibilidade de que se sobressaia algum tipo de amor verdadeiro, ao final do filme. Divertida, a película utiliza o seu elenco carismático para entregar sequências que beiram o delírio nonsense - como aquela em que Darcy e Cleaver "duelam" por sua amada (o o que ocorre ao som de uma versão oxigenada de It's Raining Men, cantada por Geri Halliwell -, para  no instante nos inundar de amor com uma sequência bastante romântica que ocorre ao som da graciosa Out Of Reach da britânica Gabrielle. Todo esse combo funcionou tão direitinho à época que rendeu duas continuações, que utilizaram o mesmo expediente musical: Bridget Jones No Limite da Razão (2004) e O Bebê de Bridget Jones (2016).

segunda-feira, 24 de maio de 2021

Podcast do Picanha Cultural #4 (Segunda Temporada) - Apanhadão dos Clássicos

Se quando você pensa em filme clássico a primeira imagem que te vem na cabeça é a daquela obra cabeçona, em preto e branco, arrastada e que te faz bocejar só de imaginar apertar o play, podemos dizer que seus problemas acabaram! Sim, no episódio dessa semana a gente resolveu dar a barbada pra vocês: há uma forma de mergulhar na história do cinema sem sofrer. Indo só naquele filme confirmado, daquele diretor que marcou época. E isso sem levar em conta o estilo. De faroestes como Os Brutos Também Amam (1953), passando por musicais como Cantando na Chuva (1952), até chegar em películas obrigatórias como Psicose (1960) e Crepúsculo dos Deuses (1950), até recentes como O Silêncio dos Inocentes (1991), chegou a hora de tirar a poeira dos DVDs antigos e degustar aquilo que está na origem dessa arte que tanto amamos. "Um clássico é um livro que nunca termina de dizer aquilo que tinha para dizer", já dizia o autor Ítalo Calvino no sugestivo livro Por Quê Ler os Clássicos?. Vale o mesmo para os filmes. Afinal de contas, a gente tem uma certeza: se você gosta de cinema esse, certamente, é um caminho sem chance de retorno. Bora dar play?



quinta-feira, 20 de maio de 2021

Na Espera - Friends: The Reunion (Especial)

Eu não vou mentir pra vocês ou fazer de conta que não dei bola: a reunião do elenco de Friends, no especial que vai ao ar no HBO MAX na próxima quinta-feira (27/05) nos Estados Unidos, me deixa realmente animado! Afinal de contas, como um tiozão com 40 anos recém completados eu cresci assistindo as "aventuras" de Ross (David Schwimmer), Rachel (Jennifer Aniston), Monica (Courteney Cox), Chandler (Matthew Perry), Joey (Matt Le Blanc) e Phoebe (Lisa Kudrow). No teaser divulgado é possível ver o elenco se divertindo ao recordar passagens da série, que teve dez temporada entre 1994 e 2005. Dirigido por Ben Winston (de Carpool Karaoke), o show contará com diversas participações especiais, incluindo David Beckham, Justin Bieber, James Corden, Cindy Crawford, Cara Delevingne, Lady Gaga, Elliott Gould, Kit Harington, Larry Hankin, Mindy Kaling, Thomas Lennon, Christina Pickles, Tom Selleck, James Michael Tyler, Maggie Wheeler, Reese Witherspoon e Malala Yousafzai. A expectativa é alta e só há uma má notícia: a de que teremos de aguardar a estreia no Brasil, o que deve ocorrer somente em meados de junho.


Cine Baú - Cidadão Kane (Citizen Kane)

De: Orson Welles. Com Orson Welles, Joseph Cotten, Dorothy Comingore e Agnes Moorehead. Drama, EUA, 1941, 118 minutos.

Um cavalo de corrida? Uma garota inesquecível? Algum lugar nostálgico? Uma memória que nos enche de saudade? É inegável que, até os dias de hoje, os mistérios envolvendo a palavra Rosebud, permanecem na mente (e na retina) de qualquer cinéfilo. Dita por Charles Foster Kane (Orson Welles) ainda no começo do clássico Cidadão Kane (Citizen Kane), a sentença servirá como uma espécie de guia para a narrativa vertiginosa daquele que é tido, por muitos críticos e veículos de imprensa, como o maior filme de todos os tempos. Kane estava em sua grande mansão - conhecida como Xanadu -, quando profere a palavra. Prestes a morrer, ele segura em suas mãos um pequeno adorno, daqueles vendidos em casas de quinquilharias, que replica uma casa de aspecto simples, envolta em neve. Nós, espectadores, pouco sabemos a respeito. Os jornalistas e documentaristas que divulgam o fato tampouco. E essa será a deixa para que voltemos no tempo, para contar a história dessa figura tão charmosa quanto controversa.

Vamos combinar que em 1941, ano de lançamento da obra-prima dirigida pelo próprio Welles (que tinha 25 anos à época), não eram lá muito comuns trucagens técnicas como flashbacks, fusões de imagens, quebras de quarta parede, sobreposições de fotografia e narrativa não-linear. Famoso por quebrar paradigmas, o filme também permanece inabalável como um estudo de personagem: inspirado livremente no magnata da mídia William Randolph Hearst, Kane é retratado com complexidade, ao se apresentar ao mesmo tempo como um sujeito empático a causa de trabalhadores, mas que não dispensava o uso da violência (física, psicológica, moral), se assim achasse necessário. Assim, o rosário de amores e mágoas descritos por amigos, ex-mulheres e antigos colegas, dá conta da verdadeira colcha de retalhos que representava a personalidade do protagonista: em sua investigação, os jornalistas mergulham fundo para encontrar uma infância de abandono materno, mas de muito conforto material, de afabilidade com aqueles que gosta, mas de truculência com eventuais "inimigos".

E talvez esteja aí um dos charmes de Cidadão Kane: como obra, acaba sendo muito lembrada pelos fãs de cinema por suas inovações (e confesso que fico embasbacado toda vez que revejo sequências como aquela em que a câmera, instalada em uma espécie de grua, mergulha por sobre um telhado de vidro, enquanto a chuva cai lá fora de forma intermitente). Mas é preciso salientar que a película de Welles segue como um grande e completo filme, cheio de camadas, e idas e vindas e de incertezas na cabeça do espectador. Não há soluções fáceis. Nada é definitivo. Rosebud? É um detalhe. Mais enigmática do que a palavra é o próprio protagonista: uma figura indócil, imprevisível e cativante, que nos será revelada a partir de um verdadeiro caleidoscópio de informações vindas daqueles que ficam - caso do amigo Jebediah Leland (Joseph Cotten) e de sua amante Susan (Dorothy Comingore). Aliás, ao primeiro, mesmo sem nenhuma instrução, garantiu um posto de colunista em seu jornal. Para a segunda, construiu um teatro exclusivo para que pudesse cantar (mesmo sem talento). Acabou descartando os dois na mesma velocidade com que os acolheu.

Nesse sentido, Cidadão Kane segue como um filme que envelhece muito bem. Cultuado, é ainda repleto de frases de efeito, que resumem os tempos pós-depressão de 1929, período em que o sonho americano ainda era gestado como uma espécie de ideário que integrava o New Deal. Em certo instante, Jennings (Joe Manz), um dos jornalistas que investiga o nascedouro da expressão que origina tudo, divaga: "nenhuma palavra pode explicar a vida de um homem. Acho que Rosebud é só uma peça de um quebra-cabeças. Uma peça que falta". Dita enquanto a câmera se afasta em um amplo plano aéreo, a sentença serve como uam espécie de epílogo ideal para uma obra tão rica, tão cheia de camadas e que, não por acaso liderou a lista da prestigiosa Sight and Sound durante cinquenta anos seguidos (de 1962 a 2012) - o posto só foi tomado na mais recente relação pelo igualmente clássico Um Corpo Que Cai (1958). Cheio de controvérsia, o filme ressurgiu no imaginário coletivo a partir do indicadíssimo ao Oscar Mank (2020), lançado no ano passado. Uma homenagem, por sinal, mais do que justa.

quarta-feira, 19 de maio de 2021

Pérolas da Netflix - A Escalada (L'ascenscion)

De: Ludovic Bernard. Com Ahmed Sylla, Alice Belaïdi, Moussa Maaskri e Umesh Tamang. Comédia / Drama, França, 2017, 103 minutos.

Estava querendo assistir a um filme mais leve em uma dessas noites frias e fui direcionado, meio que aleatoriamente, para este A Escalada (L'ascencion), curiosa obra baseada em fatos reais, que conta a história do primeiro franco-argelino a conseguir escalar o Monte Evereste. Vou dizer a vocês que tive, ao menos em partes, o meu objetivo alcançado. Não, não se trata de nenhum filme inesquecível sobre esportes de aventura e muito menos uma película surpreendentemente engraçada. Mas tem lá seus bons momentos, gerados muito mais pela excentricidade geral do episódio do que por qualquer outra licença poética do roteiro - ainda que sejam várias as existentes na narrativa. Na trama somos apresentados a Samy (Ahmed Sylla), sujeito comum, sem muitas perspectivas de vida, que resolve embarcar nessa jornada de autoconhecimento, como forma de ratificar o seu amor por Nadia (Alice Belaïdi), uma antiga colega de escola.

Aliás, a ideia um tanto estapafúrdia surge de uma forma bastante esquisita: em uma noite em que Samy sai com Nadia cheio de "segundas intenções", a jovem dá um chega pra lá no sujeito, escancarando a falta de futuro (financeiro, inclusive) naquela relação. Meio desesperado, Samy alega que faria qualquer coisa para poder ficar com ela, até mesmo "escalar o Monte Evereste". E é a partir dessa frase meio jogada no ar, que o objetivo ganha forma, especialmente após o protagonista conseguir um patrocínio de cerca de R$ 40 mil, que poderá lhe ajudar em seu intento. Apoiado ainda por uma rádio local, que acompanhará a jornada com boletins diários, Samy parte num estilo meio Jamaica Abaixo de Zero (1994) do alpinismo. Em meio à ingleses, alemães, japoneses e outros aventureiros saídos de países ricos, o nosso heroi se torna o único negro com este propósito de vida, enfrentando os mais variados tipos de preconceitos - fora os próprios desafios saídos das montanhas geladas.

E eu confesso que o que mais me agradou na experiência foi poder conferir de perto como funciona a logística desse tipo de projeto. Do sopé da montanha até o cume, vamos compreendendo desde o funcionamento de estratégias de respiração e de evolução, até os pontos de parada (e eles são vários no caminho). Aliás, o filme faz perceber que a missão poderia ser praticamente suicida se não fosse o suporte de alpinistas mais experientes e de nativos do Nepal que são conhecidos como "xerpas", que auxiliam em tarefas pesadas, como levar mochilas e equipamentos durante a escalada (em troca de algum dinheiro, claro). Por sinal, o filme nos faz perceber ainda o quão na moda está esse tipo de turismo, o de aventura, passando um tipo de mensagem, a meu ver, meio negativa a respeito desse tipo de desafio, que tem levado muitos aventureiros inexperientes à morte.

Mas no geral trata-se de uma obra que se aproveita de sua temática para apresentar belíssimas paisagens, trazendo ainda uma jornada de amadurecimento, que aproveita a amizade de Samy com o xerpa Johnny (Umesh Tamang) para adicionar camadas à narrativa (e confesso que as cenas em ambos trocam favores que envolvem leituras e aprendizados de técnicas de escalada, são daquelas que aquecem o coração). Aliás, aquece mais do que a química entre Samy e Nadia, que beira à ZERO - e o desastre só não é completo nas sequências derradeiras porque o roteiro faz alguns pequenos milagres técnicos, com o uso da trilha sonora e das escolhas de imagens (e do desenho de produção com o um todo). Em tempo: o nome verdadeiro desse aventureiro inusitado é Nadir Dendoune e sua história parece ser um tanto diferente daquela vista nas telonas. Mas um filme sempre vai ter lá as suas licenças poéticas - e esse aqui, que aposta ainda em relações familiares complexas, funciona a contento.

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Novidades no Now/VOD - A Mulher na Janela (The Woman in the Window)

De: Joe Wright. Com Amy Adams, Juliane Moore, Fred Hechinger, Gary Oldman, Jennifer Jason Leigh e Wyatt Russel. Suspense / Drama, EUA, 2021, 101 minutos.

Vamos combinar que, a despeito do hype, o livro do escritor A. J. Finn já não é aquela coisa toda. Então seria necessário que o diretor Joe Wright (de Desejo e Reparação) operasse um pequeno milagre pra que o filme não se tornasse tão constrangedor o que, em partes, ele conseguiu. Eu confesso que esperava algo mais desastroso - e quem leu a obra sabe que algumas escolhas narrativas, especialmente no terço final, chegam a ser quase delirantes. Mas tentei, como sempre faço nesses casos, separar a literatura do cinema - são linguagens diferentes, afinal -, pra não me ver contaminado na hora de escrever esse pequeno texto. Pra quem não conhece a história, ela bebe desavergonhadamente na fonte de clássicos como Janela Indiscreta (1954), de Alfred Hitchcock. A protagonista Anna Fox (Amy Adams) é uma mulher separada e solitária que sofre de agorafobia, o que a mantém reclusa dentro de casa. Entre medicamentos, taças de vinho, conversas aleatórias pela internet e com o ex-marido e filha, ela passa seus dias assistindo filmes antigos e espionando os vizinhos em uma ampla janela na sua casa.

Ocorre que em um dia de rotina, observando os demais moradores, Anna se vê intrigada com a chegada dos Russels, os novos vizinhos, que passam a ser objeto de seus olhares (e de sua câmera). A protagonista ficará ainda mais desconfiada com o comportamento excêntrico dos integrantes da família - do filho Ethan (Fred Hechinger) aos pais Alistair (Gary Oldman) e Jane (Julianne Moore) -, que lhe visitarão, aleatoriamente, em dias separados. E tudo ficará ainda mais estranho quando Anna tiver a clara impressão de ter visto Jane sendo assassinada dentro de sua própria casa. Alucinação? Efeitos colaterais dos medicamentos? Excesso do vinhos, misturados com clássicos suspenses antigos do cinema? Tudo piorará quando a polícia chegar e todos perceberem que... Jane segue viva! Viva, só que agora aparentando ser outra pessoa. O caso deixará Anna ainda mais cismada, com seu psicológico sendo ainda mais abalado pela presença aleatória de David (Wyatt Russell), o seu inquilino que mora no porão de sua residência.

E admito que, assim como acontece com o livro, o filme faz uma boa costura de todos esses acontecimentos, gerando um certo clima de tensão que é ampliado pela ambientação absurdamente claustrofóbica da casa da protagonista - sempre mergulhada em uma penumbra que só é substituída, eventualmente, por uma opaca iluminação vermelha (e o tom, classicamente, sabemos que em cinema está relacionado à mortes e a tragédias). A câmera que trafega com lentidão pelos ambientes, se aproveita de eventos episódicos para torná-los ainda mais tensos do que poderiam ser, caso do instante em que Anna recebe uma curiosa foto em seu e-mail. E há ainda o fato de que o filme não faz nenhuma questão de esconder suas referências - e achei muito inteligente a inclusão de cenas dos filmes que Anna assiste, que passam a funcionar quase como fragmentos narrativos de sua própria vida (e é claro que não é por acaso que, já na primeira cena, nos deparamos com James Stewart segurando sua clássica câmera fotográfica em um quadro da obra que faz com que A Mulher na Janela exista).

Quando li o livro lembro que tive a mesma sensação: a de ter adorado a primeira metade. Na obra de cerca de 400 páginas há mais espaço para as referências cinematográficas e para as conversas com estranhos em chats na internet (algo que acaba suprimido pelo bem da narrativa, que se torna bastante enxuta). Há também uma sensação maior de abandono, de desalento por parte da protagonista, o que também perturba o leitor. Só o que não se modificou foi o desenrolar, que culmina em um dos desfechos mais estapafúrdios da literatura (e, agora do cinema). O "vilão", suas motivações, o desenrolar dos fatos... nada parece fechar decentemente e, no filme, ao menos tiveram a decência de não se deter demais em algo melodramaticamente grandioso. Era pra ser uma obra possível para o Oscar: diretor de renome, grandes estrelas no elenco, livro hypado. Mas houve apenas o escape de um fiasco maior. Para uma sessão na noite de domingo foi de bom tamanho. E era isso.

Nota: 5,5

terça-feira, 11 de maio de 2021

Cinema - Anônimo (Nobody)

De: Ilya Naishuller. Com Bob Odenkirk, Connie Nielsen, Aleksei Serebryakov e Christopher Lloyd. Ação, EUA, 2021, 92 minutos.

Anônimo (Nobody) é o tipo de obra que me faz lembrar os motivos de eu não gostar tanto assim de filmes de ação. Va lá, talvez eu seja apenas um tiozão chato, mas ter de tolerar, em pleno ano de 2021, uma película abertamente armamentista, que ainda faz algum tipo de elogio à cultura da violência como uma espécie de compensação à masculinidade frágil é de doer. E esse aqui ainda faz um negócio pior, que é dar uma roupagem meio moderninha, com direito à Bob Odenkirk como protagonista, o que supostamente conferiria uma aura mais cool ao projeto. O que na realidade só torna o combo ainda mais maquiavélico. E confesso que fui atrás do filme após ter visto algumas críticas meio positivas e admito que o começo da narrativa me deixou animado - especialmente quando a rotina ordinária de Hutch (Odenkirk) é apresentada por meio de uma montagem engraçada, que dá conta do quão repetitiva é a sua existência do homem, que tem como uma das emoções da semana levar o lixo para a rua (com atraso, claro).

Na realidade a sequência inicial serve pra nos mostrar o quão sem graça é a sua vida: a esposa é distante, os filhos ainda mais e o trabalho em uma companhia metalúrgica não parece muito empolgante. É aquela rotina sem muita novidade, típica do americano médio que tem uma vidinha estável, sem maiores preocupações. Só que tudo muda quando, numa noite, Hutch se depara com bandidos tentando invadir a sua residência. Ao interpelá-los, o protagonista não aposta na violência: consegue dominar a dupla de assaltantes, tirando-os de sua casa sem assassinar ninguém. Sem matar. Sem acreditar que, necessariamente, bandido bom tenha que ser bandido morto. Só que daí o que o filme faz? Nos faz acreditar que essa atitude foi a errada! "Como assim tu permite que meliantes invadam a tua propriedade, ameacem a tua família e tu não faz nada?", passa a ser a cobrança social do entorno, meio que em uníssono. Do irmão panaca, do pai veterano de guerra, da esposa que, agora, parece ter ainda menos tesão por ele, do filho que o tem apenas como um frouxo. 

Sim, por não ter sido o machão babaca que provavelmente causaria uma tragédia na vida real, Hutch passa a ser mal visto pelo contexto social em que vive. Os vizinhos tiram sarro. Os colegas de trabalho o têm como um homem com "h" minúsculo. E quando eu penso que a obra do diretor Ilya Naishuler vai evoluir para mostrar para o espectador que, vejam bem, violência gera violência e isso aqui não é um troço tão legal assim, especialmente em um mundo polarizado, com boa parte da população mundial sendo armada pra uma guerra que não existe no mundo real (no Brasil a ideia é combater o comunismo, por exemplo), a película avança para nos entregar um Hutch atormentado, que encontrará no banho de sangue a única solução para os seus problemas. Cada vez mais pressionado por não ter resolvido a pendenga com os bandidos de forma violenta, o protagonista canalizará seu ódio em um grupo aleatório de sujeitos babacas em uma sequência dentro de um ônibus.

Só que o resultado dessa atitude será apenas a ponta do iceberg quando ele descobrir que, dentro do coletivo, havia integrantes da máfia russa (sim, acreditem, máfia RUSSA) que, agora, querem dar cabo da sua vida, de sua família e de todo o entorno. O que gerará uma caçada de gato e rato que deixará em êxtase os adeptos de filmes em que a variedade de tipos de armamentos se empilham na tela, ao passo que a testosterona meio confusa se avoluma na mesma intensidade em que o número e balas é disparada por todos aqueles que assistimos. Chega um ponto em que, mesmo com apenas uma hora e meia, o filme se torna meio interminável. Todo mundo está apenas se matando, atirando a esmo - entre eles o pai de Hutch, David (vivido por Christopher Lloyd, que saiu da aposentadoria para se "divertir" nesse projeto estapafúrdio). Mas eu volto a dizer: é provável que o aborrecido seja eu. O público tem adorado a obra que tem um tipo de violência meio estilizada à moda de um Guy Ritchie, mas sem um pingo do carisma do diretor de Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes (1998). Sem arredar pé, o filme se encerra com um close de um arsenal de armas, enquanto pai e filho fogem do cenário de devastação que é deixado pra trás. Enquanto a plateia provavelmente urra de satisfação. São tempos sombrios. E filmes como Anônimo apenas ampliam a sensação de desamparo, quando percebemos que a solução para a questão da segurança pública parece vir do lugar errado. Foi mal, pessoal. Não rolou.

Nota: 2,0

sábado, 8 de maio de 2021

Podcast do Picanha Cultural #3 (Segunda Temporada) - 10 Filmes Sobre Relações de Trabalho

Quem acompanha o Picanha de perto deve ter percebido que nesta semana nos dedicamos a algumas postagens com filmes sobre questões de trabalho, de sindicalização, de luta por direitos e a respeito de relações entre patrões e empregados. O caso é que, em matéria de cinema, o assunto já rendeu desde clássicos como Tempos Modernos (1936), até obras bem recentes como o ótimo Você Não Estava Aqui (2020), uma daquelas obras mais Ken Loach que o próprio Ken Loach. E foi refletindo sobre isso tudo que o Bernardo e eu resolvemos ampliar o tema, levando-o para o Podcast. Sim, sabemos que estamos uma semana atrasados em relação ao Dia do Trabalhador - celebrado em 1º de maio -, mas acreditamos que ainda estamos em tempo de reivindicar que vocês ouçam esse episódio! A gente promete melhores condições de audição, uma carga horária leve (pouco mais de uma hora), equipamentos de proteção individual (melhor de fones), férias (estiquem as pernas) e plano de saúde (você vai se divertir, o que em tempos pandêmicos ajuda). Ah, e acesso ilimitado ao videogame - essa parte é mentira. Bora dar play?



sexta-feira, 7 de maio de 2021

Cine Baú - Norma Rae (Norma Rae)

De: Martin Ritt. Com Sally Field, Ron Leibman, Beau Bridges e Barbara Baxley. Drama, EUA, 1979, 110 minutos.

"O trabalho deve ser um trabalho. E não uma sentença de prisão". Norma Rae (Norma Rae) já passa da metade quando essa frase é dita por alguém, em meio à uma reunião de um embrionário sindicato de trabalhadores da indústria da tecelagem, em alguma cidade do Sul dos Estados Unidos. Baseada em fatos reais, a história volta ao final dos anos 70 - período marcado por turbulentas discussões políticas e sociais -, para nos apresentar à Norma Rae do título (vivida com entusiasmo por Sally Field), uma jovem operária que se junta a um sindicalista itinerante (Ron Leibman) na luta por melhores condições de trabalho. Cargas horárias exaustivas, maus tratos, excesso de barulho, sensação de aprisionamento, impossibilidade de se sentar durante as jornadas... os problemas relatados pelos empregados são vários. Mas a complexidade do assunto e a dificuldade de abordá-lo em uma região absolutamente conservadora, torna tudo complicando, ao passo que dá vigor à jornada daqueles que acompanhamos. É difícil não torcer por Norma e Reuben.

Por sinal, o filme já começa de forma acachapante. Enquanto assistimos cenas penosas do funcionamento da indústria - a opressão está nos detalhes, no maquinário monstruoso, na sensação de claustrofobia, na frieza e na melancolia das cores -, a trilha sonora nos entrega à graça do clássico It Goes Like Goes, de Jennifer Warnes, que venceria o Oscar na categoria Canção Original. O som real das estruturas metálicas, dos equipamentos, aquele som caótico que a gente sabe que existe nesse universo, demora um pouco pra aparecer. E quando surge nos assombra, assusta. Há uma troca quase instantânea da leveza musical para a entropia de roldanas, molas, alavancas, engenhocas. E isso nos perturba já de saída, assim como nos incomoda o fato de que a mãe de Norma, também operária da indústria, pode estar perdendo a audição por causa do barulho excessivo. Equipamento de proteção? Que nada. O negócio é produtividade e dela os empregadores não abrem mão.

Só que por mais que tudo isso incomode Norma - e por mais que ela efetivamente pareça uma mulher à frente de seu tempo (uma feminista sem plena consciência disso) -, o seu "despertar" é meio lento, levemente desconfiado. Quando Reuben surge em frente à indústria convocando os operários para reuniões que poderão formalizar um sindicato que lute por eles, sem comprometer os seus empregos, Norma o assiste com certo distanciamento, reflexiva. Aliás, chega a debochar do fato de Reuben ser judeu, em um de seus primeiros encontros meio fortuitos. Mas conforme vai se aproximando daquele sujeito arejado, inteligente, disposto a uma luta que nem precisaria ser dele, a protagonista passa a compreender as suas motivações. Mais do que isso, a importância daquele tipo de debate. Seus pais já ao final da vida sequer conseguem se aposentar decentemente, e com dignidade. Pior, a família já está na quarta geração de operariado em uma indústria que lhes suga muito para devolver pouco. O caminho para resolver isso? Muita conversa, panfleto, conversa, reunião e mais um pouco de panfleto, na ideia de elaborar uma política que comprometa os industriários a fornecerem salários mais justos, jornadas menos pesadas e melhores condições gerais na "firma".

Olhando hoje em perspectiva, o filme talvez possa soar até um pouco datado, dado o sem fim de obras que discutem relações de trabalho e de questões envolvendo patrões e empregados. Mas nos anos 70, fora do circuito europeu, uma figura imponente como a de Norma - com seus dois filhos de pais separados (o que denota sua liberdade sexual), com disposição para colocar seu emprego em risco por uma causa maior -, era quase uma novidade. Sim, a película de Ritt abusa aqui e ali de sequências que hoje se tornaram famosas pela alcunha de Oscar bait - caso daquela em que Norma sobe em uma mesa dentro da indústria para protestar, portando um cartaz escrito Union, que faz com que todos desliguem suas máquinas -, mas que continuam eficientes em suas mensagens. Aliás, se até hoje existem pessoas dispostas a RETIRAR direitos de trabalhadores, nunca é demais lembrar que alguns discursos, por mais óbvios que pareçam, devem ser escancarados para que, efetivamente, não haja dúvidas sobre aquilo a que se propõem. Aliás, Norma é taxada de comunista em certa altura da projeção. É praticamente expulsa da diocese local. Seus vizinhos, marido, família, todos a olham com desconfiança. Semelhança com os dias de hoje? Muitas. Mas o resultado final compensa - e provavelmente não teríamos tantos direitos trabalhistas se não fossem as Normas que se espalham pelo mundo. O Oscar foi merecido para Sally Field. Sua entrega comove. E o filme, exibido à exaustão na antiga Sessão de Gala, segue valendo.

terça-feira, 4 de maio de 2021

Novidades em Streaming - Teenage Fanclub (Disco)

Parece incrível pensar que uma banda como o Teenage Fanclub já está com mais de 30 anos de carreira. E que continua produzindo com regularidade, vigor e alguma relevância - a despeito da aparência de "tiozões do rock" que Norman Blake e companhia, naturalmente, agora ostentam. Para quem cresceu ouvindo o quarteto - caso de qualquer adolescente consumidor de programas noventistas como o Lado B, exibido pela extinta MTV -, é muito satisfatório dar play em discos como o recém-lançado Endless Arcade e perceber que pouca coisa mudou em relação aos grandes álbuns clássicos (caso do imperdível Grand Prix). Vá lá, os integrantes do grupo certamente amadureceram, as letras provavelmente estão mais cabeçudas e menos juvenis (aliás, o mundo mudou, né?), mas a sonoridade agridoce, primaveril, daquelas que aconchega o ouvinte, segue intocada. É sempre prazeroso escutar Raymond McGinley, Francis MacDonald, Dave McGowan e o já citado Blake em ação. Faça um teste com The Sun Won't Shine On Me, Warm Embrace e com Back In The Day - esta última candidata forte para as listas de melhores canções do ano. Dificilmente você não será tragado pelas ambientações ensolaradas e nostálgicas dos escoceses.


Tesouros Cinéfilos - Dois Dias, Uma Noite (Deux Jours, Une Nuit)

De: Jean-Pierre e Luc Dardenne. Com Marion Cotillard, Fabrizio Rongione e Olivier Gourmet. Drama, Bélgica / França / Itália, 2014, 95 minutos.

A capacidade dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne em pegar um fiapinho de história para transformá-la em um grande tratado social sobre temas profundos atinge um de seus ápices no dolorido Dois Dias, Uma Noite (Deux Jours, Une Nuit) - obra que deu à Marion Cotillard uma indicação ao Oscar. Na trama, a atriz se despe de qualquer vaidade para interpretar Sandra, uma funcionária de uma empresa que comercializa painéis de energia solar que está retornando ao trabalho, após um período em que esteve em licença saúde para tratamento de uma depressão. Só que o retorno não será fácil. E não apenas pela incerteza sobre qualquer tipo de "cura". Enquanto esteve ausente, seu chefe remanejou a equipe de trabalho: para que não precisasse contratar ninguém para executar as atribuições de Sandra, concedeu horas extras aos demais empregados, lhes pagando uma espécie de abono salarial. 

Agora acostumados ao benefício, os trabalhadores não querem perdê-lo. Só que para reincorporar Sandra à equipe será necessário abrir mão do bônus. É uma coisa ou outra, uma coisa meio "a escolha de Sofia" do mundo corporativo: ou a colega (agora rotulada como uma figura complicada, depressiva) retorna e todos abrem mão de mil euros mensais a mais nos vencimentos ou o abono fica e a mulher é despedida. Sandra também tem contas pra pagar, filhos, família. Os colegas também. Mas o empregador não quer saber disso. Pra piorar faz um plebiscito em que os próprios funcionários decidirão o futuro de todos. Derrotada em uma espécie de "primeiro turno", Sandra pede uma revisão na votação - o que ocorrerá na próxima segunda-feira. E durante um final de semana inteiro empreenderá uma verdadeira via-crúcis em que tentará convencer os demais colegas a mantê-la em seu trabalho. De casa em casa. Como se mendigasse pelo seu emprego. 

Olhando para a humilhação sofrida por Sandra - desesperada para manter o seu trabalho após um doloroso processo de recuperação de sua saúde -, os irmãos Dardenne tecem a teia em que criticam nas entrelinhas, de forma sutil, o tipo de assédio que o mercado de trabalho eventualmente direciona ao trabalhador. O que exaure sua saúde. A decisão desumana do empregador jamais é questionada diretamente, mas não seria o caso de ajustar as "melancias" nesse trator para que nem Sandra perdesse o emprego e nem os colegas abrissem mão, nem que fosse em partes, do bônus? Nesse sentido a selvageria do capitalismo - sempre vizinho do desemprego, das perdas de direitos, das necessidades de consumo, dos caprichos da iniciativa privada -, são evocados a partir da fisionomia sequencialmente devastada da personagem de Cotillard, que luta uma em uma causa inglória. Vamos combinar que chega a ser bizarro o peso de ela ter de correr atrás de uma solução para o seu caso.

Em sua peregrinação encontra de tudo: colegas empáticos por sua situação, arrependidos por terem votado contra ela, em dúvida, convictos de que não podem perder o abono. Cada um com suas vidas, seus corres, suas rotinas. Com valores empenhados em obras, benfeitorias, na criação dos filhos. Sandra conta com a compreensão do marido (mas não com sua admiração). A câmera está sempre colada neles, se apresenta como se fosse um participante incidental, como se assistíssemos um documentário sobre o sofrimento dos trabalhadores em sua luta diária. A fotografia granulada, amarelada, a quase ausência total de trilha sonora, contribuem para o caráter absolutamente naturalista do projeto - expediente que já havia sido aplicado em outras obras dos irmãos, casos dos ótimos O Filho (2002) e O Jovem Ahmed (2019). Assistir aos filmes dos Dardenne é sempre uma experiência imersiva, envolvente. A gente fica impactado, sem quase nem perceber com quais tipos de desdobramentos. É cinema que faz pensar mas sem soar excessivamente pesado. Vale cada frame.

segunda-feira, 3 de maio de 2021

Cine Baú - Tempos Modernos (Modern Times)

De: Charles Chaplin. Com Charles Chaplin, Paulette Godard e Henry Bergman. Comédia dramática, EUA, 1936, 87 minutos.

Mecanização, rotinas de trabalho exaustivas, luta por direitos, intolerância política, pobreza, doença. Desencanto. Alienação. Sim, esse combo todo pode até parecer um resumo dessa era aceleradíssima que vivemos. Mas também é aquilo que assistimos no clássico Tempos Modernos (Modern Times), o que comprova a atemporalidade da obra de Charles Chaplin. E, sim, já tá se tornando meio repetitivo falar do criador do vagabundo Carlitos aqui no Picanha - tem texto aqui e texto aqui -, mas o caso é que eu nunca canso de assistir aos seus filmes. Tratam-se, ao cabo, de experiências cinematográficas completas: a gente ri, se emociona, fica tenso, reflete sobre o contexto que vive, enfim, sobre a vida. Seu humor nunca vence. Suas críticas parecem sempre atemporais. E em tempos tão tecnológicos como os deste começo de século, chega a ser comovente perceber como um filme lançado há 85 anos ainda nos pega desse jeito. A gente fica o tempo todo naquele clima de "nossa, isso é muito atual".

Aliás, a obra já começa com uma cena clássica: centenas de trabalhadores entrando em uma indústria metalúrgica como se fossem um rebanho bovino indo pro abate. No local, Carlitos é um dos operários que atua em uma esteira onde deve repetir, mecanicamente, os mesmos movimentos monótonos durante toda a jornada - ao ponto de ele não conseguir se "desconectar" da rotina, quando o serviço se encerra (a cena em que ele surge obsessivamente apertando botões de casacos e de outros objetos nas ruas é ótima). Após um rebu envolvendo a melhor sequência do filme - quando o "peão" é convocado para experimentar um equipamento que visa a automatizar o horário do almoço (a engenhoca sai completamente de controle) -, Caritos vai parar, involuntariamente, em um protesto de trabalhadores nas ruas. Resultado: é preso acusado de, pasmem, comunismo! Sim, eu já disse ali no começo que o filme dialoga muito com os dias de hoje.

Após a temporada na prisão ele gosta tanto do tratamento dado pelos carcereiros - com alimentação, banho, um quarto limpo -, que quando ele é liberado faz um esforço para retornar para trás das grades. O que ele consegue ajudando uma jovem orfã (Paulette Godard) a se livrar de uma acusação de furto de pães. Sim, nos tempos pós Crise de 1929 as pessoas estavam desempregadas, miseráveis, precisavam comer. Sabe o Brasil do Bolsonaro? Mais ou menos isso. A partir do momento em que encontra a moça, serão várias idas e vindas entre prisões, desejos de alcançar a estabilidade financeira e luta pela sobrevivência. Duas carismáticas figuras errantes encontrando a felicidade nas pequenas conquistas - como da casa paupérrima que surge como opção no meio do filme. As criticas à brutal desigualdade social estão sempre lá: em meio a sorriso desajeitados, aos empregos inseguros, às incertezas sobre o futuro.

E Chaplin conseguiu tudo isso entregando uma verdadeira coleção de grandes sequências de cinema - resultado também de um criterioso desenho de produção e de uma trilha sonora que faz lembrar um Nine Inch Nails do começo do século. Pistões, alavancas, roldanas, esteiras e outras engenhocas surgem gigantescas em cena, como se fossem "engolir" os operários - e é quase o que acontece, quando Chaplin se vê fundido ao mecanismo que opera (foto acima). Já o som é caótico, entrópico, confuso. Não apenas da fábrica, mas também da rua, da balbúrdia, da rotina, dos carros e das pessoas. O filme é mudo, mas é o barulho acelerado que aprisiona, confunde. A crítica social tão contundente de Tempos Modernos fez com que Chaplin fosse, de fato, acusado de comunismo. Pior, durante o período que ficou conhecido como Caça às Bruxas - aquele promovido pelo senador Joseph McCarthy e que acompanhamos no ótimo Boa Noite e Boa Sorte (2005) -, precisou se exilar na Suiça. Já para a história ficou a atemporalidade da película, que é figurinha fácil em qualquer lista de melhores - na do American Film Institute ocupa a 78ª posição. Não é pouco.