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sexta-feira, 14 de junho de 2024

Foi Um Disco que Passou em Minha Vida - The Killers (Hot Fuss)

Talvez o maior disco de estreia do milênio? Ou será que a crítica tinha razão em afirmar, à época, que essa era apenas mais uma banda a se aproveitar do revivalismo dos anos 80 - com seu fácil apelo nostálgico -, pra entregar um punhado de canções óbvias? Eu, sinceramente, não sei como é pra vocês, mas o caso é que o Hot Fuss, o álbum inaugural do The Killers, segue mexendo comigo. Vai ver é só a lembrança juvenil meio falha de uma época em que éramos apenas estudantes universitários do curso de Jornalismo cheios de sonhos, indo pra alguma boate do interior para levar alguns foras de algumas meninas, enquanto cantarolávamos a plenos pulmões Mr. Brightside sem nem saber direito o significado da letra. Aliás, que só fica melhor depois que a gente entende - e quem nunca sofreu ao ver a pessoa que ama nos braços de outro, em um grau de literalidade comovente (Mas ela está tocando o peito dele agora / Ele tira o vestido dela agora / Deixe-me ir), que atire a primeira pedra. Mas o caso é que seguimos num caso de amor.

Sim, hoje em dia a citada canção que ficou não sei quantas dezenas de semanas entre as mais tocadas da Billboard talvez seja a mais batida do planeta Terra entre aquelas de empolgação pós-adolescente - e não existe absolutamente nenhuma bandinha de colégio que investe em uma sonoridade tardiamente alternativa, que já não tenha executado essa música em meio a vocais desafinados e boas intenções. Mas estamos falando de 2004. Do inverno de 2004, mais precisamente. E eu não quero fazer parecer que existe algum tipo de saudade melancólica daqueles dias, porque sinceramente não há. Eu tinha 23 anos, trabalhava na mesma Universidade em que estudava e, naqueles anos de esperança do primeiro Governo Lula, eu ainda não tinha certeza do que ocorreria dali pra frente. Ganhava pouco. Me ferrava inacreditavelmente - na seara amorosa era uma espécie de Mr. Brightside nada surpreendente, sem o charme, o carisma, a beleza, o fashionismo e o estilo de canto à David Bowie de Brandon Flowers. Mas o caso é que escutei e escutei o Hot Fuss - que chegou até mim meio que em tempo real, enviado pelo meu irmão Felipe (o Pi) que, na época, residia na Nova Zelândia.


 

Em 2004 o Genius (ou o Letras) ainda eram produtos meio incipientes na Internet e, entre um acesso e outro no Orkut, a gente descobria que Jenny Was a Friend of Mine, a música que abre o trabalho, poderia ser sobre um sujeito acusado do assassinato da própria namorada (ou de alguém que o eu lírico estivesse a fim). O que tornava tudo mais pungente - da abertura que emula uma saraivada de hélices de helicóptero à tensão da melodia sombria, soturna, de madrugada que avança enquanto as tragédias acontecem. Ocorre que a cada semana a gente se apaixonava pelo disco por um motivo diferente. Lá pelas tantas, Smile Like You Mean It poderia se tornar a preferida, com a sua melodia ondulante, refrão grudento e letra sobre amadurecer - e (tentar) estar preparado pra isso. No outro mês a paixão migrava, pairava em All These Things That I've Done, com seu coralzinho de Igreja que cai como uma luva em uma canção sobre conflitos internos religiosos. Ali adiante a gente gostava mais de Somebody Told Me ou de Andy You're a Star. Por motivos os mais variados.

Aliás, essa primeira metade segue impecável como uma das maiores primeiras metades daquela década. É tudo absurdamente glorioso - mas uma glória meio empoeirada, que parece emular uma Las Vegas suja, das noitadas dos cassinos ou dos postos de gasolina, das beiras de estrada empoeiradas e iluminadas de final de noite (ainda que o grupo pareça saído da Inglaterra, com sua mistura de sons que vai de Smiths à The Police, passando por New Order e pelo já citado Bowie). Os detratores gostam de dizer que não há coesão no trabalho, que ele atira pra tudo quanto é lado - e não há algo mais coeso do que unir sintetizadores cintilantes, guitarras mais altas que o normal e vocal sofrido. Flowers, naquele momento, tinha 22 anos. E parecia ser capaz de cantar sobre qualquer coisa. De luta contra as drogas e amores gays (On Top, que segue sendo a minha favorita, com seu sintetizadorzinho Erasure e refrão maior que a vida), passando por HIV (Believe Me Natalie), até chegar na insanidade de criar uma balada roqueira meio boba sobre a cena independente quase desgastada naquele começo de década (Glamourous Indie Rock and Roll). Retornar pra esse disco e pra todas essas músicas, me joga de volta à estrada, pro velho Mondeo do meu amigo Carlos Spohr em alguma noite gelada de 2004/2005, cantando Mr. Brightside em meio a uma série de incertezas. Um período em que não tenho exatamente saudade em si. Mas que fazer parte da minha formação. Do meu amadurecimento. Musical, inclusive. E o Killers está no meio disso. Feliz vinte anos.

terça-feira, 27 de setembro de 2022

Foi Um Disco que Passou em Minha Vida - R.E.M (Automatic for the Pepole)

Não sei como foi pra vocês, mas a minha paixão pelo R.E.M não começa com Automatic for the People. Na realidade é o Out of Time (1991) que abre as portas: um disco que talvez não fosse tão coeso, mas que tinha hits imbatíveis - e basta pensar que Losing My Religion e Shiny Happy People, com seus videoclipes marcantes, fazem parte desse álbum. O fato é que quando se é uma criança de dez, onze anos, que está crescendo e meio que descobrindo o mundo, as memórias se tornam meio aleatórias, difusas. Sim, eu lembro das canções de Michael Stipe e companhia ecoando no rádio. As citadas acima. Outras como The One I Love, Orange Crush ou Radio Free Europe. É tudo meio espaçado dentro dos sonhos juvenis. Nostálgico em alguma medida. A gente ia se formando meio que sem saber. Aprendendo não se sabe bem de onde. E quando vê, bate. E eu jamais vou me esquecer da minha alegria ao sair de uma das lojas de CDs locais, com a minha cópia do oitavo trabalho do R.E.M.

Na minha juventude utilizávamos uma expressão que buscava resumir a paixão demasiada por um disco: o de que ouvíamos ele até "furar" (o que não deixava de ser um curioso paradoxo, diante de um artefato que possui um buraco em seu centro). Esse foi o caso de Automatic for the People. Trancado no quarto ficava horas saboreando aquelas canções que iam da melancolia extrema (como no começo, com Drive e mais adiante com Everybody Hurts), passando pelo otimismo debochado de The Sidewinder Sleeps Tonight, até chegar a intimista e grandiosa Man on the Moon que, até hoje, permanece como uma das minhas músicas preferidas da vida. Tudo nela é perfeito, da melodia sinuosa e envolvente, passando pela letra que homenageia o comediante Andy Kaufman ao mesmo tempo em que divaga sobre atemporalidade, memória, mitologia e a inocência perpetrada pelo sonho americano, até chegar ao refrão grudento. A canção entraria mais tarde na trilha do ótimo O Mundo de Andy (1999) e, bom, apenas amamos.


Sobre as outras canções, interessante notar como, mesmo os instantes mais enigmáticos, parecem ser envoltos em uma ambientação dramática, soturna. A reflexiva Monty Got a Raw Deal homenageia o astro da Hollywood dos anos 50 Montgomery Clift, que morreria tragicamente anos após um acidente que deformaria seu rosto. Clift era um dos homens mais belos de Hollywood e lidar com uma série de cirurgias em que nada poderia ser feito o fez se entregar às bebidas e aos remédios. "Monty, isso me parece estranho / Os filmes têm aquela coisa de filme / Mas o absurdo tem um quê de boas-vindas / E os herois vão e vêm facilmente", divagaria Stipe. Esse expediente que mescla referências culturais, dilemas cotidianos e dores mundanas, seria repetido em outros momentos. As perdas familiares são mencionadas em Sweetness Follows. As intenções suicidas em Try Not to Breathe. A esperança por dias melhores em meio a adversidades em Everybody Hurts. E a pesada crítica política às eras Bush e Reagan ecoa em Ignoreland. É um conjunto que se torna heterogêneo à sua maneira.

De alguma forma falar de morte, de sofrimentos, de tempo que não retorna mais, de passado mas olhando para o futuro, tudo é despejado para o ouvinte com calma, com elegância, de forma complacente. É como se Stipe se posicionasse como uma espécie de amigo que está ali ao lado para apoiar, para dizer a palavra certa, para fazer levantar a cabeça. Mesmo Drive, com suas cordas cortantes e melodia repetitiva, surge como um libelo a liberdade de escolha, especialmente por parte dos jovens (Hey, crianças, onde estão vocês? / Ninguém lhes diz o que fazer, baby). E mesmo quando adota o deboche, o pastiche aleatório, a banda de Athens o faz de forma graciosa, transformando o inusitado na matéria-prima ideal, como no caso de The Sidewinder Sleeps Tonite, que nada mais é do que uma canção sobre um sujeito que aguarda uma ligação na calçada da rua. Levemente acústico, estabelecendo diálogo com o country e o alternativo em igual medida, Automatic for The People talvez tenha sido o último grande disco do R.E.M. Não que Monster (1994), com suas três insuperáveis guitarras, fosse ruim. Mas aí já é outra história. Que fica pra um outro texto.


quinta-feira, 26 de maio de 2022

Foi Um Disco Que Passou Em Minha Vida - Foo Fighters (The Colour & the Shape)

Mil novecentos e noventa e sete. Se paramos pra pensar nas nossas próprias vidas muito provavelmente existirão alguns anos que são mais relevantes do que outros. Com acontecimentos marcantes - ou nem tanto, mas que pra nós têm significado. O ano da formatura, da carteira de motorista, do primeiro emprego. Do primeiro beijo, do primeiro namoro, da primeira transa. A primeira bebedeira, o primeiro porre para além dos limites da cidade de origem. De tudo um pouco em meio a risadas nas escadas do colégio católico. Mil novecentos e noventa e sete marca alguma coisa no meio do caminho pra esse jornalista que, hoje, aos 41 anos, vos "tecla". Com quinze para dezesseis anos a gente costuma ser uma espécie de nada descobrindo meio que tudo. No final dos anos 90 a tecnologia ainda se resumia a uns celulares em formato tijolão que os pais dos colegas mais playboys utilizavam. Ou um Super Nintendo com Top Gear torando. Era o ano de filmes como Homens de Preto ou Gênio Indomável que, a sua maneira, dialogavam com a moçada, enquanto as acirradas disputas entre os Berdinazi e os Mezenga agitavam o folhetim da noite.

E aí eu me lembro como se fosse hoje da primeira vez em que assisti ao clipe de Monkey Wrench do Foo Fighters, na antiga televisão de tubo da época. A TV a cabo era uma novidade, um luxo recém chegado - e minhas tardes passaram a ser regadas à programas como o Gás Total e o Disk, ambos da MTV. Ver a Sabrina Parlatore anunciando o vídeo da banda de Dave Grohl e companhia era uma espécie de prazer que se mesclava com outras coisas que costumam deleitar os adolescentes. E eu me tornei meio que obcecado por aquela banda. Tão ruidosa mas ao mesmo tempo tão "assobiável". O clipe tinha fúria e doçura na mesma medida - era algo completamente novo pra quem convivia apenas com o que tocava nas rádios ou com apresentações de bandas de pagode aleatórias em shows de auditório dominicais. E não seria por acaso que The Colour & The Shape, disco que completou 25 anos de vida na última semana, se tornaria o primeiro CD adquirido da minha história.

Sim, porque ouvir música em 1997 não era como hoje, onde basta dar play no Deezer ou no Spotify que temos praticamente qualquer música ao nosso alcance. Bendita tecnologia! Mas naquela época, encontrar um disco que nos apaixonava e, mais do que isso, conseguir o dinheiro para comprá-lo, era uma espécie de pequena epopeia, digna de um livro sobre cultura pop que mistura Nick Hornby com Haruki Murakami. Lembro bem que revirei a cidade de Lajeado para ver se encontrava o disquinho da capa azul. Por "revirar a cidade" leia-se ir nas duas ou três lojas que comercializavam discos (uma no shopping local, talvez duas no centro) na tentativa de encontrar o trabalho. Foi em vão, o que fez a missão migrar para outras cidades - e fui encontrar o álbum na vizinha Encantado onde, com o apoio do colega Luciano Girardi (hoje um renomado dentista do citado município), consegui uma edição. Foram meses de espera, é bom mencionar. Mas que valeram a pena.

Ter esse ou aquele CD em 1997 era quase uma conquista pessoal. Se fosse importado então, era uma espécie de vitória em relação aos demais mortais. The Colour & the Shape tinha edição nacional, mas a banda de Dave Grohl e do recém-falecido Taylor Hawkins ainda era um recorte embrionário do grupo gigante que, muito mais tarde, viria a se tornar. Mas na raiz de tudo estavam aquelas músicas - Everlong, Wind Up, My Hero, Up in Arms - uns rockões animados e furiosos, envolventes e porrudos. Ok, hoje em dia a música avançou de tal maneira que o FF quase se tornou uma espécie pálida em meio a profusão de estilos da modernidade. Muitos deles com uma aura mais roqueira que o próprio rock. Ao menos em matéria de atitude. Mas esse disco foi, pra mim, o começo de tudo. Que ampliou meus horizontes - para o britpop, para o grunge realizado anteriormente, para outras vertentes. Pra quem já tinha a paixão pelos Beatles no sangue, esse foi um passo meio que natural. E que foi muito transformador. Em partes, sou quem sou hoje, gosto do que gosto, também por causa do The Colour... E esse passado, eu não posso renegar jamais.


sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Foi Um Disco Que Passou em Minha Vida - Nirvana (Nevermind)

He's the one
Who likes all our pretty songs
And he likes to sing along
And he likes to shoot his gun
But he don't know what it means
Don't know what it means
And I say, yeah

(In Bloom - Nirvana)

Eu tinha dez anos quando o Nevermind, do Nirvana, foi lançado. Dez. E apesar de já gostar de muito de música - os Beatles já eram uma paixão herdada, como relatei neste texto - demorei um bom tempo para perceber a grandeza daquilo que havia concebido Kurt Cobain, Krist Novoselic e Dave Grohl há exatos 30 anos. E talvez até hoje ainda não compreenda direito - especialmente quando ouço os acordes iniciais de Come As You Are em alguma rádio alternativa aleatória, que parece encravada em uma época que não volta mais. Aliás, uma época em que o rock talvez ainda fosse algo relevante. Foi bem mais tarde que eu fui prestar atenção no famoso disco da capa do bebê pelado perseguindo uma nota de dinheiro. O ensino médio já avançava. Entre uma partida de futebol na escola e a persistência em concluir algum jogo da franquia Streets Of Rage do Mega Drive, fui seduzido pelas imagens do clipe de In Bloom que, sinceramente, eu nem lembro direito de como foram parar na nossa televisão. Algum programa de variedades? Uma semi-embrionária MTV?

Sinceramente até hoje não sei. Existem memórias da nossa juventude que simplesmente se perdem por mais que tentemos evocá-las. Há algum instante meio nebuloso e nostálgico em que alguma coisa acontece mas nunca conseguimos materializa-la de forma palpável. É algo meio abstrato. Tão abstrato quanto assistir a uma banda de rock em um clipe em preto e branco, como se fosse em um programa de variedades, um vocalista loiro com óculos de nerd, todos de terninho cafona, um palquinho meio teatral (que mais tarde seria devastado naquela mistura sombria em caótica), uma guitarra pesada e bem arranjada, uma bateria bem pontuada, um refrão gutural e grudento. Sério, aquilo me fisgou. Eu precisava saber mais sobre essa música, sobre essa letra, sobre esses caras. Lembro que até obter minha edição do Nevermind em vinil - um dos poucos que preservo em minha modesta coleção, mesmo sem ter aparelho de som para ouvi-lo -, foi uma antiga cópia em K7 que movimentaria minhas tardes. Com In Bloom no talo. E todo o resto.

É claro que a fita acabou sendo a porta de entrada tardia para o meu mergulho no grunge - o que transformaria aquele adolescente magrelo de 1997 no excêntrico sujeito que usava uma camiseta xadrez AMARELA  e um All Star surrado. A tiracolo, a nova obsessão se tornaria obter alguns álbuns do Pearl Jam, do Alice In Chains, do Stone Temple Pilots e do Soundgarden (esse último também já devidamente homenageado nesse quadro tão subjetivo). Aliás, sobre o Pearl Jam, um parênteses: um dia ainda relatarei por aqui a EPOPEIA que foi obter o disco Ten, quase ao final dos anos 90. E a emoção que foi tê-lo em mãos pela primeira vez. Assim, nessa época, foi que o "pessoal de Seattle" se tornou parte da minha companhia oficial. Com o Nirvana sempre à frente, numa espécie de obsessão permanente, que tornaria até o Foo Fighters uma das bandas do coração por muito tempo. Como se a onipresença de Dave Grohl fosse capaz de garantir a manutenção do legado do próprio Kurt. Vai saber.

Hoje é o dia em que, de forma justa, os sites especializados em música prestarão a sua homenagem a esse disco que, talvez junto com o Ok Computer do Radiohead forme os dois grandes pontos de ruptura em matéria de rock noventista. Analisarão a importância de Butch Vig na produção e a evolução do coletivo - que inicialmente contava ainda com Pat Smear -, até chegar ao refinamento melódico que encontraríamos em Nevermind. E em canções como Lithium, Polly, Smells Like Teen Spirit, On A Plain e as já citadas Come As You Are e In Bloon. Todas, contra qualquer previsibilidade, hits radiofônicos. Todas nostalgicamente saborosas. Religiosamente ouvidas. Todas com suas letras viscerais e enigmáticas - repletas de metáforas sobre amadurecimento, Deus, violência, amizades, excitações e tristezas juvenis. Sim, hoje é dia de tudo isso para todos as páginas que se dedicam à música - e até para quem não sabe escrever sobre o tema, mas se mete, que é o nosso caso. Porque, aqui entre nós, todo o dia é dia de Nevermind. E isso nem sempre é algo fácil de descrever.

quarta-feira, 7 de julho de 2021

Foi Um Disco Que Passou em Minha Vida - The Strokes (Is This It)

Vou abrir esse texto com uma confissão: por mais que a gente saiba que o tempo passa rápido - e ele tem passado voando, mesmo em meio à pandemia - me parece meio difícil aceitar que já faz 20 anos que a banda The Strokes lançou o, agora icônico, Is This It. Vinte anos! Vinte anos que as Torres Gêmeas seriam derrubadas. Vinte anos que a doença da Vaca Louca surgia como um excêntrico boato que comprometeria as importações de carne brasileira. Duas décadas de uma embrionária internet bastante lenta, ainda discada - utilizada com mais intensidade após à meia-noite. Vinte anos da morte de Jorge Amado e da primeira edição da Casa dos Artistas. É incrível pensar que, naqueles anos, nos preparávamos para o momento em que Lula seria alçado à presidente, ao mesmo tempo em que o Brasil venceria a sua última Copa do Mundo. E, nós, éramos um grupo de pós-adolescentes que iam para a finada Lupus Land ao som de Last Nite, The Modern Age, Someday e outras. Sim, o álbum chegaria ao mundo no dia 27 de agosto de 2001. Meu pai, o seu Ènio, tinha 40 anos. Hoje sou eu que tenho essa idade.

Os tempos eram tão outros que quem me mostrou o disco de Julian Casablancas e companhia pela primeira vez foi o Rodrigão - aliás, o amigo Rodrigo Macedo da Silveira me honra com a sua amizade até hoje. Sabe-se lá porque, naqueles anos, ele era uma espécie de referência quando o assunto eram as novidades culturais. Bem mais velho do que a gurizada que iniciava a faculdade de Jornalismo na Univates - e, consequentemente com mais acesso, com mais recursos financeiros -, era ele quem nos falava dos filmes, dos discos, dos shows previstos e do que mais estivesse rolando no período. Hoje, com a situação completamente invertida pelas vicissitudes da vida, essa condição é motivo de chacota e a piada costuma ser justamente essa: a de que a última vez em que o Rodrigão nos apresentou algo realmente novo, que representaria um legítimo ponto de ruptura, foi com o Is This It. As caixas de som do Santanão nunca mais seriam as mesmas. Nem os ouvidos da vizinhança enquanto nos esgoelávamos entoando Last Nite num inglês meio macarrônico, que replicaríamos mais tarde no show no Pepsi On Stage.

Sim, eu peço desculpas a vocês pelas eventuais licenças poéticas, mas os textos desse quadro costumam ter essa verve bastante particular, sendo inevitavelmente recheados por subjetividades. Falar, afinal de contas, sobre como os Strokes equilibrariam a urgência do rock'n roll tocado sem firulas, que emulava aquilo que os Rolling Stones e o Velvet Underground já faziam há bastante tempo, talvez seja chover no molhado. Exagero na paixão desenfreada? Talvez. Lembro de ter passado por algum tipo de arrebatamento musical poucas vezes na vida. Talvez quando escutei o Nevermind, do Nirvana, ainda na minha infância. Mais tarde com o OK Computer, do Radiohead. Vá lá. Outros discos me emocionaram - casos do Modern Vampires of the City do Vampire Weekend, do Boxer do The National e do Deserter's Song do Mercury Rev. Juro, não foi o caso aqui. Mas ouvir um rock com menos invencionice, menos programação eletrônica, com aquele clima garageiro, enquanto My Sacrifice do Creed tocava nas rádios, com aquela pompa de quem fazia algo grande (mesmo sem fazer), era quase um alívio. 

E talvez não tenha sido por acaso que tantas bandas tenham aproveitado o hype para dar uma oxigenada nesse padrão como um todo. De Franz Ferdinand, passando pelo The White Stripes até chegar ao Arctic Monkeys, a "moda" do coletivo de terninho descolado comprado no brechó e do cabelo cuidadosamente desgrenhado, por alguns anos, faria a alegria das festas dos cursos de Comunicação Social mundo afora. Para o desespero dos puristas que, naqueles dias, ainda acreditavam  no rock "de verdade" como uma criação do Led Zeppelin ou do The Doors. Cantar, afinal, sobre frustrações amorosas e dores cotidianas ao som de baixo, guitarra e bateria com um vocalzinho enfumaçado, meio "bêbado", convenhamos, parecia não ser nada de mais. Mas era uma forma, vá lá, de resgate, de algo que parecia ter se perdido no decorrer dos anos 90. Algum tipo de nostalgia pulsante que, paradoxalmente, nos conectava ao mundo tecnológico, computadorizado e apressado que viria dali pra frente. A gente teima muitas vezes em voltar para o passado - muitas vezes fazendo isso de forma errada. "De muitos modos eles sentirão falta dos bons e velhos tempos / Algum dia, algum dia" entoaria Casablancas em tom quase premonitório no começo de Someday, até hoje uma das favoritas. Ele estava certo?

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Foi um Disco que Passou em Minha Vida - Pinegrove (Marigold)

Lembro daquele filme cujo final mostra uma apresentação artística e um quadro cuja pintura eternizou um momento importante. Lembro das lágrimas da protagonista cujo sentimento era um misto de alegria e tristeza, um turbilhão de sentimentos conflitantes que, em uma época de impossibilidades, tornava tudo aquilo mais trágico e subversivo. Cada época com seus conflitos. Muito se conquistou para que pudéssemos amar livremente MAS... o efeito colateral, as muitas possibilidades, o acesso fácil e variado na palma da mão, acabou por transformar a conquista num jogo de perde/ganha. Até que ponto o excesso de amor próprio tão badalado e recomendado por especialistas é capaz de nos tornar tão frios, incapazes de enxergar o outro? Uma reação em cadeia que torna pessoas fraturadas em predadores vingativos, pródigos em causar no outro aquilo que sofreram?

Em outro filme, a personagem da atriz Gwyneth Paltrow é ensinada pela sua avó, desde criança, a fazer o sexo oposto sofrer. Avó cuja vida de abandono, loucura e ressentimento encontrou sua forma de “reparar” o dano sofrido no passado por alguém. O personagem de Ethan Hawke, em cena emblemática, registra sob forma (também) de uma pintura um raro momento onde a vida se faz surgir dentro de tanta frieza. É a Arte sempre presente de forma a eternizar pequenos milagres pois, como dizia o pensador, só viver não é suficiente. E existem obras que registram momentos, assim como citados acima: filmes, pinturas. Existem músicas que são como pinturas, retratos de um tempo, companheiros de jornada. E existe este disco que, lançado recentemente por uma jovem banda de Nova Jersey, ao qual retornei recentemente.


Desde criança sonhei com uma viagem, em conhecer aquele lugar que só existia nos sonhos. Um lugar de luz, som, cor, dança, delícias gastronômicas. Várias etapas se passaram até chegar o grande dia - foram muitos anos. Lembro do frio externo abaixo de zero, mas do calor no peito. Lembro de deitar na cama na primeira noite, colocar o fone de ouvido e ouvir Marigold. Tudo fazia sentido. Foi um período em que coisas incríveis brotavam do smartphone, os sons, as palavras, as imagens. Era muito raro tudo aquilo e, para coroar, veio a neve, minha Macondo particular, na sacada do hotel. Um sentimento forte de compartilhar felicidade em uma época que escrevi corações e nomes na neve. De novo, era o frio externo e o calor no peito. E a trilha sonora que embelezava tudo aquilo naquela felicidade melancólica.

A natureza nos dá alguns sinais. Assim como a neve derrete e o nome desaparece, tudo é passível de desmoronar de uma hora pra outra. Lembro do ansioso retorno. Lembro dos desafios, de quantas noites peguei aquela estrada em busca de um futuro. Lembro das raras palavras de carinho e apoio, e de quando tudo desmoronou. Era o calor externo e o gelo interior. Lembro daquela trilha sonora no carro que remeteu à lembrança de um período feliz e que, naquele momento, me rasgava o peito. Lembro de quando eu percebi que não restava outra alternativa a não ser desistir. Como diz aquele senhor naquela série para o personagem que está sofrendo e quer esquecer de um amor mal (existe isso?) sucedido: você deve ser a figura mais sem graça que existe. Eu daria qualquer coisa para ter meu coração partido novamente. O pior ainda está por vir: é quando você esquece dela, é quando você não dá mais a mínima.

Um único instante de amor justifica uma vida inteira, li em algum lugar.

É difícil ser original quando tanto já se falou sobre. É difícil ter que retornar para algo que criamos em nossa mente, que não sabemos se é verdadeiro ou não. Mas se a lembrança é unicamente nossa e tão clara, porque não considerá-la verdadeira? E se, depois de alguns meses, retornamos com receio àquela trilha sonora e percebemos, ao invés de dor, beleza? Não terá valido à pena? Em minha pintura mental a neve que derretia virava água e escorria pelos escombros, atingia o piso de concreto penetrando pelas frestas, servindo de nutriente até encontrar um solo fértil. Hoje floresceu. Na metáfora óbvia da flor nascendo no concreto brotou uma calêndula, e esta virou um quadro pregado na parede. Hoje me emociono quando revejo este filme, mas não é de tristeza: há orgulho e paz. Amadurecer requer coragem, destruição e reconstrução.

Há algo de belo na dor, e na trilha sonora que nos ajuda a florescer.

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Foi Um Disco que Passou Em Minha Vida - Teenage Fanclub (Grand Prix)

Não sei como tem sido para vocês mas para mim, especialmente em tempos de quarentena, não é todo o dia que estou disposto para qualquer tipo de música. O pessimismo em relação ao futuro, a impossibilidade de sair de casa, de abraçar os amigos, de beijar aqueles que amamos. A frieza dos dias que são percorridos, muitas vezes, com uma solidão resignada por causa de um vírus que, entre o pior de seus efeitos, nos desaloja o coração. Tudo envolto em uma névoa de indefinições - como se estivéssemos em uma distopia literária sem perspectiva de final feliz. E, então, como suportar? Como tentar enfrentar tudo isso com um sorriso no rosto, enquanto aguardamos por dias melhores? Bom, em muitos casos, no que diz respeito aos discos, tenho recorrido àqueles já familiares, que me trazem algum tipo de conforto, que me fazem sorrir naturalmente. Que me deixam nostálgico e até otimista. E, a meu ver, poucos trabalhos alcançam tão bem esse ideal quanto o ótimo Grand Prix, do Teenage Fanclub.

Esse álbum, pra quem não sabe, foi um dos responsáveis por formatar a minha amizade com o Henrique Oliveira, que escreve o Picanha junto comigo. Há 25 anos atrás, época em que o disco foi lançado, havia uma prática comum, que talvez surpreenda os jovens de hoje em dia: a de trocar discos. Emprestar ao outro. Com prazo especificado de devolução, em um tipo e equação que tornava inversamente proporcional a urgência dessa mesma devolução quanto mais raro fosse o disco. E conseguir uma edição do Grand Prix não era pra todo mundo. Era um álbum importado, que constava em tudo quanto é lista de melhores - como no caso daquelas que apareciam na finada Revista Bizz -, e que custava, mesmo naquela época, a bagatela de uns 80 reais (o que convertendo para hoje em dia seria facilmente uns R$ 400 em um disco). Então vejam só que grande sinal de amizade, quando o Henrique me emprestou este disco e, bom, só posso dizer que foram algumas tardes gastando-o na vitrola, enquanto lia o encarte, com as letras.



Eu tô falando desse disco em um texto meio sem lógica por aqui - como costumam ser os desse quadro -, porque o Grand Prix é aquele tipo de álbum do veraneio. Trata-se de um registro acolhedor, primaveril, cheio de canções e de refrões enérgicos, que consolidada o trio Glasgow como um dos principais expoentes do power pop no mundo. Até este trabalho foram outros três discos - A Catholic Education (1990), Banwagonesque (1991) e Thirteen (1993) - e salvo um ou outro instante de euforia em cada um deles, foram obras muito mais marcadas pelo shoegaze e pelo deboche universitário, que os fazia cantar olhando os próprios pés. Sim, os fãs raiz do Teenage Fanclub talvez citem o Bandwagonesque e sua capinha à moda videogame com uma sacolinha de dinheiro e suas letras sobre usar jeans descompromissadamente como sua principal influência juvenil. Mas aquela melodia sinuosa, quente, com algum toquinho de psicodelia, que juntou The Byrds com Big Star numa coisa só, chacoalhou no liquidificador, e entregou ao mundo um creme saboroso de música adocicada, foi somente no disquinho com o carro de fórmula 1 estampado na capa.

Em uma entrevista, certa feita, o baixista Gerard Love disse, sobre o Grand Prix, que não era "música para quando você está prestes a sair e sim para quando você voltar". Nesse sentido é a música que acalma e aconchega. É aquela em que nos sentimos familiarizados - ainda que mantenha, é preciso que se diga, a verve roqueira. É mais ou menos como na abertura, com About You em que Norman Blake canta a plenos pulmões, amparado por Love e Raymond McGinley, que "sempre soube o caminho até você". É um tipo de bobice tão elementar, que é repetido em gemas como I'll Make It Clear (Eu vou deixar claro / Eu te amo querida), Going Places (Tenho a noção / Que essa chuva não vai durar) e Sparky's Dream (Preciso de uma bola de cristal para enxergá-la de manhã / E olhos mágicos para ler nas entrelinhas), que nos fazem manter o sorriso necessário, especialmente em tempos delicados. O Teenage Fanclub anda meio parado agora. Mas o que ele fez com Grand Prix não se apaga, o que torna um disco quase necessário para tempos tão sombrios.


sábado, 22 de fevereiro de 2020

Foi Um Disco Que Passou Em Minha Vida - The Beatles (Help!)

Eu não me lembro qual era a minha idade. Talvez nove ou dez anos. Eu já era fã dos Beatles nessa época - por fã leia-se viciado em uma fitinha K7 com vinte músicas deles, uma espécie de coletânea que passava as tardes ouvindo -, quando fomos visitar o tio Rogério, irmão da minha mãe que mora em Estância Velha. A casa do tio Rogério sempre foi simples e cultural. No local há uma pequena biblioteca, que é de propriedade de um outro irmão, o tio Zeza (que é escritor no underground portoalegrense). Nas estantes, discos e fitas. Muita coisa brega, provavelmente. Mas lá no meio, meio perdida, uma fitinha do álbum Help!, instalada, meio empoeirada. Nessa época as fitas "originais", reproduziam a arte do disco de vinil, as fotos, tudo mais. Em uma versão pequena, claro. Lembro que pirei com aquilo. Já conhecia a música Help!, e algumas outras que estavam no álbum, mas eu precisava dele com todas as minhas forças.

Bom, eu não sei como era o processo pra comprar disco de vinil no final dos anos 80 e início dos 90, mas as lojas certamente se espalhavam pela cidade. E foi numa delas que o meu pai, o seu Ênio, achou a versão em vinil para me presentear no aniversário seguinte. Eu simplesmente enlouqueci com aquilo. Eu queria ter qualquer disco dos Beatles. Até umas imitações que eram vendidas no mercado local me faziam feliz, então imagina poder ouvir Help!, Ticket To Ride, You've Got to Hide Your Love Away e The Night Before todas juntas em um mesmo álbum. Mas eu lembro que a descoberta MESMO veio com o lado B. Aquelas músicas um pouco diferentes, mesclando folk, country, outros instrumentos, um vocal que não era necessariamente do John Lennon ou do Paul McCartney, alguma quebra de lógica no andamento de algumas canções - caso de It's Only Love ou Tell Me What You See. Bom, aquilo foi a minha trilha sonora por alguns pares de meses - ou até anos. E, de vez em quando, eu ainda volto a ele, evidentemente.


Foi bem mais tarde que eu fui compreender que o disco fazia parte de um filme dos Beatles. E que nem de perto ele estava entre os favoritos dos fãs da banda - normalmente o Revolver (1966) e o Sgt. Pepper's Lonely Heart Club Band (1967), costumam ser os mais citados. Mas o que talvez as pessoas não lembrem, é que Help! pode ter pavimentado o caminho para esse processo de desconstrução total que os fab four passariam em seus grandes trabalhos. Em 1965, o Ié Ié Ié dos primeiros álbuns da carreira já andava meio saturado e grupos como os Rolling Stones e o The Animals, já começavam a ocupar o lugar no coração dos fãs de boa música. Assim o movimento de troca, de distanciamento de um estilo/vertente, que era proposital ou não, ainda entrega uma grande coleção de canções na primeira parte do disco, com os temas de amor que lhes eram caros - gosto de pensar na espetacular You're Going To Lose That Girl como um momento derradeiro disso, uma canção febril que já acenava para algum tipo de melancolia diferente -, para, na segunda metade do registro, apresentar com mais força aquilo que viria dali pra frente.

E pra este que vos escreve não existe exemplo melhor desse movimento do que a música que é cantada por Ringo Starr, logo na abertura do lado B - e juro a vocês que Act Naturally tá no meu top 5 de preferidas! A letras é sobre um cara que vai entrar pro cinema e acha que pode ganhar um Oscar por um motivo prosaico (Eles vão me colocar no cinema / Eles vão me transformar numa grande estrela / Faremos um filme sobre um homem triste e sozinho / E tudo o que tenho que fazer é agir naturalmente). E tudo com um violãozinho country que remete aos filmes de faroeste do mesmo período! A letra fugia da romantização quase paranoica do começo da carreira - sim, a gente ama She Loves You, Love Me Do, And I Love e Hard Day's Night, mas era necessário, lembremos, um passo diferente. Para além dos gritinhos ensandecidos do auditório nas apresentações em estúdios de TV americanos. E, a meu ver Help!, o disco que fez um piá de dez anos pirar num domingo despretensioso na casa de um tio, é esse registro. Que pra sempre estará em local privilegiado na minha estante!


terça-feira, 19 de novembro de 2019

Foi Um Disco Que Passou Em Minha Vida - Skank (Calango)

Diferentemente do que ocorreu com outros álbuns que já figuraram aqui no Foi Um Disco Que Passou Em Minha Vida, eu sinceramente não lembro qual foi a primeira vez na vida que ouvi alguma canção do Skank. E nem em que momento ela se tornou uma espécie de !banda do coração" na juventude. O que eu sei é que, com 13 ou 14 anos de idade, Jackie Tequila, Esmola, Pacato Cidadão, Te Ver, A Cerca e outras tantas, se transformaram naquele porto seguro musical, capaz de mesclar ótimas melodias, arranjos criativos e letras diversificadas - que podiam ser românticas em algum momento, excêntricas em outro ou mesmo recheadas por críticas sociais eventuais. Na realidade, tenho viva a memória da vizinhança no bairro Moinhos, aqui em Lajeado, em volta do 3 em 1 que tocava incansavelmente a fitinha do álbum Calango - com direito a letras decoradas e muita cantoria no chuveiro.

Tentando puxar pela memória, acho que foi com Jackie Tequila que tudo começou. Não sei se foi o primeiro single. Mas aquele clima de reggae praiano, cheio de suingue, uma percussão harmoniosamente simpática, tudo me ganhou. E ainda havia a letra, que versava sobre funk, baião, misturava um inglês meio improvável (Essa menina tá dizendo don't worry) e fechava tudo com citações a Tenessee Williams (claro, nem reparávamos), ilha, Coca Cola, Taiti, uma mistureba à brasileira, de um romantismo poético, esperançoso. Bem à moda que um apaixonado adolescente espinhento sonhava. As demais músicas vieram na esteira e não paravam de tocar nas rádios daquele 1995 ardorosamente febril. Aliás, esse é um daqueles casos de disco com mais da metade das canções se tornando de "trabalho", ganhando videoclipe e apresentação no Faustão (ou no Gugu).


Sobre videoclipes, é simplesmente impossível citar o Calango sem falar do vídeo de A Cerca. Dirigido por Gringo Cardia, transformava e embolada regionalista em imagem e a improvável "briga de vizinhos" da letra (Terequitem, ô pra cá você não vem) era gloriosamente materializada. Aliás, vale recordar. Outras canções, como Te Ver, É Proibido Fumar (cover de Roberto Carlos) e Pacato Cidadão também receberam videoclipe, em uma época em que a MTV era o símbolo da divulgação oficial daquilo que as bandas pretendiam tornar conhecido. E, mesmo as canções não tão conhecidas, como O Beijo e A Reza (uma das preferidas), Sam e Amolação, passaram a se tornar queridas do público, conforme o disco foi ganhando espaço. Com cada uma delas mostrando a habilidade única do coletivo - formado por Samuel Rosa, Henrique Porugal, Haroldo Ferretti e Lelo Zanetti -, em criar baladas, rocks juvenis e reggaes.

O disco vendeu mais de um milhão de cópias (na época que se ia no Gugu pra receber o Disco de Platina) e pavimentou o caminho para que a banda lançasse um sem fim de outros trabalhos inesquecíveis (O Samba Poconé, Siderado, Maquinarama, Cosmotron), que renderiam hits, como, Resposta, Dois Rios, Uma Partida de Futebol, Garota Nacional, Vou Deixar, Tão Seu, Balada do Amor Inabalável, Saideira, Canção Noturna e, mais recentemente, Esquecimento. Ainda que não tivesse mais a relevância daquela época - hoje em dia tudo é o hedonismo e o niilismo do sertanejo universitário -, o fim do coletivo mineiro foi meio inesperado, deixando meio órfãos os fãs das antigas, que acreditavam que Samuel Rosa e companhia ainda pudessem ter "lenha pra queimar". Ainda assim, o que fica é a memória das grandes canções lançadas nos anos 90 e que, para sempre estão no coração dos fãs.

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Foi Um Disco Que Passou Em Minha Vida - Titãs (Õ Blésq Blom)

Se não me falha a memória eu devia estar completando nove anos quando ganhei de presente dos meus pais, o disco Õ Blésq Blom dos Titãs. Eu não pedi esse álbum, evidentemente, mas na entrada dos anos 90 eu já era aquele gurizinho esquisito, de óculos e gordinho, que passava as tardes de fone de ouvido escutando discos e fitas antigas de rock no três em um do seu Ênio. Havia uma fita dos Beatles que gostava muito. E outra do Elvis Presley. Além de uma coletânea do Mamas and The Papas. E sei lá eu por quê eles acharam interessante a ideia de me presentear com esse registro - o quinto de estúdio da banda de Paulo Miklos, Arnaldo Antunes, Nando Reis e companhia. Sinceramente, não sei se meus pais tinham a consciência da representatividade desse trabalho e de sua relevância para um País que aos poucos se acostumava com a ideia de não ter mais uma Ditadura. Mas o caso é que o disco TAMBÉM ajudou na minha formação musical.

Óbvio que com nove anos nós não temos consciência social de nada. Às vezes nem com trinta e nove anos temos - pense nas pessoas dessa idade que votaram no Bolsonaro, por exemplo? Mas para mim era uma coisa muito diferente, relativamente excêntrica, ouvir aquele repente com um palavreado confuso, cantado pelo casal Mauro e Quitéria, já no começo do registro. Essa abertura, antropologicamente estranha, fazia a ponte para a música Miséria, que efetivamente abria o álbum. Miséria é miséria em qualquer canto / Riquezas são diferentes / Índio, mulato, preto, branco / Miséria é miséria em qualquer canto. Os versos surgiam meio rasgados, sujos, uma batida roqueira que misturava regionalismo, com uma letra que olhava para os vulneráveis, ecoava as aflições dos carentes. Eu não percebia isso num nível de consciência enquanto escutava a canção com um sorriso no rosto. Mas isso me fez desde cedo refletir, talvez até de maneira inconsciente: havia miséria. Em qualquer canto. E a morte não causava mais espanto.


Quando lançou esse trabalho, os Titãs já eram uma banda consagrada, com uma dúzia de hits radiofônicos - Sonífera Ilha, Marvin, Televisão, Não Vou Me Adaptar, Comida e outras - tocando nas paradas. Álbuns como o essencial Cabeça Dinossauro (1986), já haviam tornado a banda uma espécie de porta-voz anti autoritarismo, com músicas como Polícia, Bichos Escrotos, Família, Igreja e outras servindo como denúncia da hipocrisia da sociedade e de suas instituições. Era um disco mais punk. Mais rock. O que Õ Blésq Blom parece ter feito foi atenuar a melodia - sai a agressividade, entra algum tipo de sutileza, que reverbera pop e rimos regionais -, mas mantendo a mesma pegada de crítica. "Havia o momento do Brasil que estava se desenhando muito problemático, uma ditadura militar ainda se desmanchando, a morte de Tancredo. O clima era de desilusão, um cenário de distopia", chegou a afirmar o baterista Charles Gavin em entrevista na época do lançamento de Cabeça. Esse espírito, essa abordagem, se arrastou por mais alguns álbuns, com os Titãs ecoando a fúria juvenil, de quem se recusava a se dobrar para um "sistema".

Com uma mistura de ritmos nordestinos, do repente ao maracatu - que mais tarde contribuiriam para a consolidação do movimento manguebeat -, o disco ainda deu ao mundo a música Flores, talvez um dos maiores hits dos Titãs. Em suas curvas, outras canções como O Pulso, 32 Dentes, Medo e, especialmente Deus e o Diabo (uma de minhas preferidas), reafirmaram a relevância do trabalho, um monumento ao rock cheio de guitarras suingadas, batidas criativas, efeitos sinuosos e que nos apresentava um coletivo em plena forma. Até retornar à moda no final dos anos, quando canções insossas como Epitáfio passaram a fazer sucesso nos bailes do formatura, a impressão que se tem é que os Titãs nunca mais tiveram a energia juvenil apresentada nesse trabalho. Septuagésimo quarto melhor disco da música brasileira - de acordo com votação feita pela Rolling Stone -, o álbum permanece na memória de quem, no final dos anos 80, ainda não sabia bem o que era ter esperança por dias melhores. Mas que encontrava na voz amargurada e cheia de vigor de Mauro e Quitéria, um estranho caminho possível.


quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Foi Um Disco Que Passou em Minha Vida - Os Paralamas do Sucesso (O Passo do Lui)

Por que você não olha pra mim? Ô ô
Me diz o que é que eu tenho de mal ô ô
Por que você não olha pra mim?
Por trás dessa lente tem um cara legal.

Pra quem cresceu usando óculos, como foi o caso deste que vos escreve, poucas músicas foram mais simbolicamente relevantes quanto aquela que abre o disco O Passo do Lui, d'Os Paralamas do Sucesso. Quando escutava ela no rádio em meados dos anos 80, ainda não sabia direito o que ela significava, em sua magnitude. Mas era uma canção que afagava aquele menino de apenas seis anos que, inesperadamente, se tornava o mais novo "quatro olhos". Óculos, até hoje, é uma das músicas nacionais preferidas da vida. Sou capaz de colocá-la na mesma "prateleira" de Construção do Chico Buarque ou de Tropicália do Caetano Veloso. Há um clima primaveril da juventude efervescente nela, amparado pelo divertido contraponto entre ser esnobado pelas gurias do Leblon e fazer "charme de intelectual" para conquistá-las. A canção começa com um suingue ensolarado, uma guitarrinha e uma percussão sacana, que explodem no refrão. E que fazem qualquer guri que "não nasceu assim" sorrir de orelha a orelha, por se sentir representado por um dos caras mais legais do rock brasileiro.

O Passo do Lui foi lançado em 1984. E, evidentemente, ele não era apenas Óculos. O Brasil estava próximo da abertura política, com os compositores se sentindo mais à vontade para escrever músicas sobre os dilemas da juventude, suas frustrações amorosas, a busca da felicidade e valorização das coisas simples. Já havia sido assim um ano antes, quando Herbert Vianna, Bi Ribeiro e João Barone surgiram para o mundo com o modesto Cinema Mudo. O disco não chamou tanto a atenção, ainda que Vital e Sua Moto - o primeiro sucesso da carreira - trouxesse algum tipo de divagação bastante semelhante àquela vista em Óculos: a do jovem buscando a felicidade, que poderia ser simbolizada pelo "sonho de metal" (ou pelas meninas que olhassem para o eu lírico que andava por aí de óculos). Herbert Vianna se transformaria assim numa espécie de voz daquela juventude classe média, relativamente politizada, com suas letras cheias de referências ao cinema, a literatura e ao simbolismo da liberdade alcançada numa moto, num óculos, em um romance bem sucedido.


Nesse sentido, talvez não tenha sido por acaso que o registro fez tanto sucesso. Seus hits - Meu Erro, Romance Ideal, Ska, Mensagem de Amor - tocavam a exaustão nas rádios. Os Paralamas do Sucesso foram tocar no Rock In Rio no ano seguinte, o que contribuiu para que o álbum se espalhasse com mais força. A mistura saborosa de ska, dubstep, reggae e música pop, os refrões ganchudos, urgentes, tudo contribuiu para que o trabalho se tornasse um dos mais inesquecíveis da história. Só fui conseguir comprar o álbum bem mais tarde. Mas aquelas músicas já estavam todas impressas na minha mente: fosse na rodinha de voz e de violão do colégio, com a moçadinha cantando a letra de Meu Erro de cabo a rabo - travestida de uma autoridade sobre relacionamentos que ainda estava bem longe de existir (se é que HOJE existe) -, fosse no isolamento do quarto, cantarolando para si próprio os versos de Óculos, na tentativa comovente de acreditar que, sim, não há nada de mal em usar aquilo.

O Passo do Lui certamente pavimentou o caminho para que Os Paralamas se tornassem a maior banda nacional que existe - bom, é a minha preferida desde sempre. Discos como Selvagem (1986), Os Grãos (1991) e Nove Luas (1996), despejaram DEZENAS de hits, como, Alagados, Tendo a Lua, Caleidoscópio, Melô do Marinheiro, O Beco, Trac Trac, La Bella Luna, Loirinha Bombril, entre tantas outras, que foram acolhidas com devoção pelos fãs. Mesmo o acidente com um ultraleve em 2001, que tirou a vida da esposa de Herbert, Lucy, tornando-o paraplégico, não o impediu de trabalhar. Ao contrário, a impressão que se tem é a de que a sinergia entre banda e público só aumentou de lá para cá. O Passo do Lui completa 35 anos agora em setembro. Eu estou com 38. E nunca canso de ouvi-lo. Ele me ajudou na minha formação. E até na minha compreensão do mundo: hoje eu o enxergo muito melhor. Com meus óculos.



quinta-feira, 30 de maio de 2019

Foi Um Disco que Passou em Minha Vida - Soundgarden (Superunknown)

Existem discos que te "formam" enquanto ouvinte. Que, a seu tempo, alteram a sua percepção enquanto consumidor de música, definindo as bases daquilo que se vai gostar ou não, no futuro. A gente muda, amadurece, cresce. Mas aquilo que nos acompanhou na juventude - especialmente do ponto de vista das artes - muitas vezes permanece. Eu tinha treze anos, quando o Soundgarden lançou o Superunknown, mas fui um consumidor tardio desse registro. Em 1994 o jogo de futebol com a vizinhança no final da tarde ou o Mega Drive barulhento da noite, ocupavam o tempo do recém-adolescente. Mas em algum momento entre 1996 e 1997 eu fui assistir, despretensiosamente, o clipe de Black Hole Sun, que era lançada como single. Não sei explicar o sentimento. Os olhos brilharam, os ouvidos se apuraram, a camisa de flanela saiu do armário. Era um videoclipe diferente, colorido - a despeito do clima chuva cinza de fim de tarde do grunge -, a voz gutural do Chris Cornell alternando estrofes adocicadas, com o peso imprevisível do refrão...

Eu sei que eu PRECISAVA daquele álbum. Naquela época se comprava álbuns. Se ia em lojas - no caso daqui de Lajeado, nas extintas Planet Laser e CD e Cia - para adquirir discos, por preços inacreditáveis e que, em alguns casos, chegavam a um décimo do salário mínimo. Hoje alguns registros custam um décimo do salário mínimo. Aqueles mais raros, difíceis de encontrar ou que sejam material de colecionador. Mas o causo é que o Superunknown era impossível de se achar. Até o OK Computer do Radiohead eu comprei por aqui. Mas não esse do Soundgarden, que acabou se tornando objeto de desejo. Havia um colega meu do terceiro ano, o grande amigo Guilherme Priebe, que possuía o registro. E ele foi absurdamente ouvido na viagem do TERCEIRÃO para Santa Catarina. Aliás, foi lá, no Estado vizinho, que fui encontrar o álbum, em uma despretensiosa loja de um shopping qualquer, que eu nem lembro o nome. Aos 16 anos, a aquisição da vida.


Quem já ouviu o Superunknown - aliás, se você não escutou, faz a um favor a si mesmo e abre o Deezer ou o Spotify e dá o play - sabe: trata-se de uma explosiva experiência sonora de 73 minutos e 16 músicas. Hoje em dia nem se faz mais disco de 73 minutos. Fora o Kamasi Washington, talvez. O Vampire Weekend lançou um álbum de 59 minutos e tá sendo chamado de disco "duplo". Enfim, desvendar aquele trabalho era reconhecer, talvez pela primeira vez na vida, quais eram os reais limites entre o rock mais pesado e a música comercial. Na juventude, uma novidade que abriria portas para a descobertas de outras bandas. Hits como Feel On Black Days, Spoonman, The Day I Tried To Live e, especialmente, My Wave - essa última com a sua guitarra flamejante, barulhenta e inesquecível -, tocaram a exaustão na MTV. E provaram que era possível bater cabeça de All Star surrado, mas também cantar o refrão de forma desavergonhada.

Premiado no Grammy, o registro alcançou grande popularidade, deixando para trás o hermetismo de Badmotorfinger (1991), o pesado trabalho anterior, que ficaria mais famoso pela suposta blasfêmia do videoclipe de Jesus Christ Pose do que qualquer outra coisa. Com uma estética mais limpa, o Soundgarden abraçava a incerteza do mundo no meio dos anos 90, fazendo um dos álbuns mais "anos 90" daquela década. Nas letras o pessimismo ruidoso, que pedia a audição solitária do quarto juvenil, ainda que fosse irresistível gritar junto um "alive in the superunknown". A subversão do 4 de julho e, consequentemente, do sonho americano (4th Of July), viagens depressivas e violentas (The Day I Tried To Live), o passado turbulento que insiste em aparecer (Let Me Drown) ou simplesmente o homem que insiste em fazer música com uma colher (Spoonman). Uma mistura nervosa, roqueira, pessimista, de uma das mentes mais criativas que surgiram nas últimas décadas e que, lamentavelmente, nos deixou tão cedo.



sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Foi Um Disco Que Passou Em Minha Vida - Los Hermanos (Ventura)

Diz, quem é maior que o amor?
Me abraça forte agora, que é chegada a nossa hora
Vem, vamos além
Vão dizer, que a vida é passageira
Sem notar que a nossa estrela vai cair

(Conversa de Botas Batidas - Los Hermanos)

Vocês que gostam de música e nos acompanham aqui no Picanha sabem melhor do que nós: quando a gente gosta de um disco a gente escuta ele. E escuta de novo. E escuta mais uma vez. E vai escutando, escutando e escutando. E parece que sempre que a gente escuta aparece algo novo, diferente, que não havíamos percebido. Alguma nota. Algum verso. Algum efeito. E que faz com que a gente volte a amar novamente aquele registro com todas as forças. E, quando vê, se passaram cinco anos. Dez. Quinze. Trinta. E aquele álbum se torna um dos nossos preferidos de sempre. Para sempre. Fazendo parte da nossa formação musical. Ou formação como sujeito mesmo. Pra mim esse é o caso do Ventura, o terceiro trabalho do Los Hermanos, lançado em 2003. Um dos discos que mais ouvi na vida. E que, volta e meia, vai parar na vitrola novamente.

Não fosse o Ventura, com todas aquelas letras maravilhosas, robustas e cheias de significados e, hoje em dia, talvez eu nem tivesse disposição para conhecer outros artistas, como Silva, Marcelo Jeneci, Vanguart, Mahmundi, Maglore ou outros. Nesse sentido o Los Hermanos serviu como porta de entrada. Uma riquíssima porta de entrada. Em uma época em que comprar CDs ainda era hábito, gastar o dinheiro suado para ouvir o que mais aqueles cariocas tinham para oferecer depois do Bloco do Eu Sozinho (que tinha os hits Todo Carnaval Tem Sem Fim, Retrato Pra Iaiá e A Flor) era um daqueles prazeres raros. No limite entre o rock e a MPB, o alternativo e o comercial, o quarteto carioca - formado por Marcelo Camelo, Rodrigo Amarante, Bruno Medina e Rodrigo Barba - transformaria o disco em objeto de culto. E não seria para menos.



Lembro até hoje de quando o primeiro single foi lançado. Era Cara Estranho, com aquela letra sobre desajustados tentando encontrar o seu lugar na sociedade (Olha ali quem tá pedindo aprovação / Não sabe nem pra onde ir / Se alguém não aponta a direção). Uma música com pegada roqueira, que vai crescendo até a explosão final. Lembro que gostei, mas, na época, achei ok. O caso do Ventura não são nem os singles ou mesmo o conjunto da obra, mas os tesouros "escondidos". Se O Vencedor, Samba a Dois e A Outra tocaram a exaustão (vá lá) nas rádios e na MTV, foi com Além do Que Se Vê, O Velho e o Moço e Conversa de Botas Batidas que o jogo começou a ser ganho. Que a complexidade (e o aconchego) dos versos se sobressaíram. Que a comoção tomou conta. Que os amigos de faculdade começaram a falar. A repetir. A tentar entender o que aquelas frases lindas queriam, no fim das contas, dizer. Foi algo bonito. Que fez a moçada cantar junto nos shows. E dar risada do repórter estúpido que perguntava pro Amarante porque a banda não tocava mais Anna Júlia.

O tempo passou e o Ventura ainda ecoa pelos cantos em que se fala de boa música. Estamos todos quinze anos mais velhos, alguns já pensando como o "velho" da já citada O Velho e o Moço sobre o que poderia ter sido se agíssemos diferente. Ou não. Ou velhos para ainda amar e morrer de amor, abraçados, juntos, sem largar, como na também já citada Conversa de Botas Batidas - com seu arranjo insinuante, cheio de curvas. Otimista e melancólico, festivo e reflexivo em iguais medidas, este é um daqueles trabalhos raros, capazes de sobreviver muito bem ao tempo e de trazer reflexões existencialistas misturadas com outras, relacionadas à rotina do homem comum. Tudo pontuado por arranjos que tomam por base os metais, mas que se aproximam do cancioneiro popular, evitando a aposta em um hermetismo duro. Um disco que foi um verdadeiro divisor de águas: se por um lado indicou o começo do fim para os cariocas - seria apenas mais um trabalho, o 4 (2005) - por outro pavimentou o caminho para o surgimento de dezenas de outros artistas nesse novo milênio.

quarta-feira, 20 de junho de 2018

Foi um Disco Que Passou Em Minha Vida - Chico Buarque de Hollanda (Construção)

Não é difícil para este jornalista que vos escreve essas linhas tortas falar sobre o disco Construção, do MESTRE (sim, tudo em maiúscula) Chico Buarque de Hollanda: o registro foi meu objeto de estudo, quando da realização do trabalho de conclusão de curso na faculdade de Jornalismo, aqui na Univates. Sendo assim, ele é simplesmente o álbum que eu mais escutei na vida. Disparado. E o mais incrível é que, mesmo tendo ouvido essa obra-prima do nosso cancioneiro umas boas dezenas de vezes quando me meti a estudá-la, o causo é que ela nunca me cansa. E, diga-se de passagem, em tempos de Golpe, de desesperança e de desalento, esse álbum, lançado em 1971, nunca foi tão atual. Afinal de contas, a persona aquela que "sobe na construção como se fosse máquina" e "come feijão com arroz com se fosse um príncipe" poderia ser eu, você e cada um de nós que, no fim do dia, ainda mantém a esperança por dias melhores.

Chico lançou Construção no auge da Ditadura Militar, quando tinha acabado de retornar do exílio. Encontrou, no início dos anos 70, um Brasil mergulhado em uma crise política e econômica sem precedentes, o que parece ter ampliado ainda mais a importância do registro - que captura bem o zeitgeist daqueles tempos. Com o disco, Chico procurou fugir do óbvio, usando uma série de metáforas em suas canções - o que lhe permitiu, em muitos casos, driblar a censura. Uma espécie de artesanato refinado e original, que transformou canções como Cotidiano, Deus Lhe Pague, Samba de Orly e até a engenhosa e romântica Valsinha em verdadeiros hinos de resistência, de um povo que não queria se calar. Como exemplo, Chico sempre usou o carnaval como uma figura que simbolizava a esperança ou a libertação - como em Vai Passar ou Tô Me Guardando Pra Quando o Carnaval Chegar. Em Construção essas figuras atingem o seu grau máximo de complexidade.



É um disco fácil de ouvir - são pouco mais de 30 minutos - e quase simples no que diz respeito ao instrumental, que equilibra o samba (Samba de Orly), a música romântica (Valsinha), a bossa nova (Olha Maria) e o pop (Cotidiano) em medidas iguais. Já as letras são complexas, dolorosas, urgentes. Deus Lhe Pague ilustra de maneira quase explícita a miséria, a depressão e a falta de perspectivas para uma população obrigada a conviver com migalhas - Por mais um dia, agonia, pra suportar e assistir / Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir. Tudo isso em meio ao clima de tensão crescente, capaz de gerar uma espécie de catarse em seus instantes finais. Já Cordão é mais contundente no que diz respeito ao papel do artista durante a ditadura militar, embora a primeira impressão sobre a letra seja a de estarmos diante de um eu lírico romântico - Ninguém / Ninguém vai me acorrentar / Enquanto eu puder sorrir / Enquanto eu puder cantar. Por outro lado, Samba de Orly (feita em parceria com Tom Jobim e Vinícius de Moraes) tem clima festivo e recomendações para quem está retornando do exílio - Vai meu irmão / Pega esse avião / Vocês tem razão de correr assim / Desse fio mas beija / O meu Rio de Janeiro / Antes que um aventureiro lance mão.

Ainda assim, em meio a tantas canções importantes (algumas até mesmo se tornaram hits comerciais e são até hoje tocadas nas rádios), nada causou mais impacto neste trabalho do que a faixa-título. Com sua estrutura repleta de jogos de palavras que formam um verdadeiro quebra-cabeças de sentidos, Construção utiliza as idas e vindas, as trocas e o intercâmbio entre vocábulos para ampliar a sensação de estranhamento e de quebra de lógica - quase em um jogo matemático que muito tem a ver com a "mecanização do indivíduo", condição apontada pela letra. O embaralhamento, a presença inesperada de antíteses - paredes flácidas, pacotes bêbados -, a adoção de proparoxítonas e a balbúrdia provocada por barulhos de buzinas, de pessoas e de tráfego, tudo parece contribuir para a denúncia da situação de abandono vivida pelo trabalhador, preso em meio a ações automáticas, rotineiras. É a clausura diária traduzida em uma letra dura, fria, impactante e mais atual do que nunca.


Após Construção, Chico teve outros bons lançamentos, como foi o caso de Meus Caros Amigos (1976) - que teve diversos clássicos, como O Que Será?, Olhos nos Olhos, Mulheres de Atenas e Vai Trabalhar Vagabundo, além de Meu Caro Amigo. Só que é provável que nenhum outro registro tenha tido, até hoje, o impacto provocado por Construção. Divisor de água, o trabalho representa para muitos críticos a "perda de inocência" do artista, que deixa de ver "a banda passar" para se preocupar com temas mais importantes, relevantes e caros para a sociedade. Uma forma de alcançar a maturidade e o profissionalismo, inegavelmente. Não é por acaso que o registro é figurinha fácil em listas de melhores. Em eleição feita pela Rolling Stone, apareceu em terceiro lugar entre os mais relevantes discos nacionais da história. No livro 1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer, também tem lugar garantido. É um trabalho inesquecível e fundamental também para nós, aqui do Picanha.

quarta-feira, 12 de abril de 2017

Foi um Disco Que Passou Em Minha Vida - Radiohead (OK Computer)

Lembro que tinha dezesseis anos quando assisti ao clipe de Paranoid Android, do Radiohead, pela primeira vez. Era uma daquelas tardes invernais em que a MTV Brasil ainda exibia programas vespertinos bacanas, como o Gás Total. Admito ter ficado paralisado na ocasião. Que música era aquela? Cheia de idas e vindas, de curvas nunca óbvias e de andamentos curiosos amparados por um vocal lamurioso que colocava a canção no limite entre os rockões para serem cantados no estádio e a musiqueta intimista pra ouvir trancado no quarto. E o que dizer da parte visual do clipe? Uma sequência de imagens em animação capaz de denunciar um certo desencanto com uma sociedade doente, violenta, intolerante e individualista. Sim, agora em maio - mais precisamente no dia 21 - faz 20 anos que o grupo inglês lançou o clássico OK Computer - Paranoid Android é a segunda canção do álbum. Mas o impacto causado pelo lançamento na época não chega a superar o fato de que o registro, nos tempos que vivemos hoje, nunca foi tão atual.

Comprar o disco envolveu uma pequena epopeia que aliava a junção dos trocados necessários para a aquisição do registro e a torcida para que ele de fato EXISTISSE em uma loja do shopping local que, há muitos anos, já nem existe mais - e que certamente, na ocasião, estava mais interessada em comercializar os álbuns de alguma boy band. Com o sucesso na empreitada - os R$ 16,50 mais bem empregados DA VIDA - corri para casa para poder escutar o trabalho (na época lembro que o videoclipe de Karma Police já era figurinha fácil na programação da mesma MTV). Mas devo confessar que a experiência, inicialmente, não foi fácil. Quem conhece o OK Computer sabe que não se trata de um registro simples. O clima desalentador, as letras potentes (e, inicialmente, incompreensíveis), os excessos eletrônicos, a melancolia sôfrega, os refrões escassos... para alguém de 16 anos, definitivamente, aquela foi uma experiência difícil, mas transformadora. E que me fazia perceber algo diferente e a gostar mais do disco quanto mais eu insistisse em ouvi-lo!



Aliás, até hoje escuto o trabalho envolvido por um amontoado de sentimentos que me fazem não cansar nunca do álbum. Se hoje, para escutar música, basta dar um play no Spotify, no final dos anos 90 a aquisição de um CD qualquer de um grupo ou artista que amávamos representava uma espécie de conquista particular. E não foram poucas as noites em que peguei escutando o disco com um pequeno dicionário de inglês ao lado, com o objetivo de traduzir as letras metafóricas, irônicas, complexas e abundantes de sentidos. E que, hoje, me fazem perceber o quão genial era - e ainda é - Thom Yorke e companhia. Fitter, healthier and more productive / A pig / In a cage / On antibiotics canta o vocalista em Fitter, Happier, capaz de resumir de maneira completa o espírito de uma sociedade individualista, hedonista, niilista e alienada. (aliás, a canção "divide" o álbum e acaba funcionando como elemento central do fluxo de ideias previsto por Yorke para a concepção do trabalho)

O caos do cotidiano trazido por OK Computer pode ser resumido ainda por uma vida em que alienígenas, acidentes automobilísticos, yuppies que trabalham em busca do sonho americano, reações químicas, doenças, politicagem, capitalismo desenfreado, corações machucados, trabalhos que nos matam lentamente e feridas que não curam "convivem" permanentemente ao lado do homem, que parece o tempo todo lutar para sobreviver. O espírito anárquico das melodias - e dos elementos eletrônicos e de uso de instrumentos musicais pouco usuais - transforma o registro em um material riquíssimo do ponto de vista sonoro, nunca previsível e invariavelmente surpreendente. Tudo combinando com o trabalho gráfico apresentado pelo encarte, que provoca inquietação, instiga e nos faz olhar atentamente em busca de significados escondidos em meio a símbolos e ícones que transformariam qualquer aula de semiótica em algo muito mais divertido.


Como não poderia deixar de ser, o disco me fez perceber que o rock and roll podia oferecer muito mais do que os cabelos compridos, as camisas de flanela e os All Star de cano alto do grunge - que a algum tempo já definhava. Foi a partir de OK Computer que todos nós nos sentimos (é possível assim dizer) impelidos a descobrir outras bandas, grupos e artistas de cenas mais independentes ou alternativas, o que provavelmente forjou o gosto musical de uma geração inteira - e não é por acaso que o registro de Thom Yorke e companhia é colocado AO LADO de Nevermind, do Nirvana, como um dos mais importantes dos anos 90. A partir do trabalho o Radiohead atingiu outro patamar dentro da indústria da música. Bom para os fãs que encontrariam, mais adiante, um outro registro espetacular, chamado Kid A (2000). Mas essa, é outra história.

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Foi um Disco que Passou Em Minha Vida - Belchior (Alucinação)

Tenho vinte e cinco anos
De sonho e de sangue
E de América do Sul
Por força deste destino
Um tango argentino
Me vai bem melhor que um blues
Sei que assim falando pensas
Que esse desespero é moda em 76
E eu quero é que esse canto torto
Feito faca, corte a carne de vocês

A Palo Seco - Belchior


Poucas vezes o desencanto e a letargia de uma geração foram tão bem retratados em um disco, como no clássico Alucinação, lançado em 1976 pelo cantor Belchior. Com apenas 30 anos na época do lançamento do trabalho, o cearense de Sobral sentia que a mesma juventude que poucos anos atrás abraçava a bandeira do flower power e de outros movimentos que tomavam por base o espírito iconoclasta e anárquico das revoluções - fossem elas políticas, sociais ou culturais - agora se entregava a um estilo de vida conformista e que se espelhava na lógica de existência de nossos antepassados. Condição em que ideais mais libertários e questionadores do status quo davam lugar a apatia. Onde estaria o clamor? A luta? Teriam os jovens se cansado disso, se transformando em uma massa que, agora madura, se alinhava a ideais mais moderados, se mantendo passiva?

Era latente o lamento do compositor, que não se furtava de utilizar a sua voz à moda dos poetas repentistas e melancólicos do Nordeste para denunciar a condição que se estabelecia. Fosse em canções com uma poética mais direta, caso de Como Nossos Pais - E hoje eu sei, eu sei / Que quem me deu a ideia / De uma nova consciência / E juventude / Está em casa / Guardado por Deus / Contando os seus metais - ou mesmo em linguagem mais figurada, como em Velha Roupa Colorida - Nunca mais meu pai falou: She's leaving home / E meteu o pé na estrada, Like a Rolling Stone / Nunca mais eu convidei minha menina / Para correr no meu carro (loucura, chiclete e som) / Nunca mais você saiu a rua em grupo reunido / O dedo em V, cabelo ao vento, amor e flor -, era possível identificar em sua lírica o desgosto por ver a vida de uma geração inteira passando sem que se pudesse "sair do chão".



É evidente o fato de não se poder ignorar o contexto político da época, no Brasil. Ainda que o governo de Ernesto Geisel apontasse para uma abertura institucional lenta, gradual e segura - período que ficou conhecido como "distensão" - eram latentes as feridas de uma ditadura militar que sugou da juventude da época toda a sua capacidade de mobilização. Não é por acaso que, consciente do poder das palavras e do que elas poderiam representar para quem as ouvisse, Belchior também transforma Alucinação em um veículo de amparo em que a empatia, a consciência social e o senso de justiça falavam mais alto. Assim, quando canta na espetacular Fotografia 3X4 que A minha história é talvez / É talvez igual a tua, jovem que desceu do norte / Que no sul viveu na rua / Que ficou desnorteado, como é comum no seu tempo, canta como alguém que reconhece esta realidade como sua, bem como as implicações necessárias para uma adequadão a esse modo de vida.

Nesse sentido, é possível constatar que, em cada curva do trabalho, em cada lamento em verso e prosa, era também para as camadas mais desfavorecidas ou em vulnerabilidade social que Belchior destinava as suas conjurações. Para o preto, o pobre, a mulher sozinha ou os humilhados, além do já citado estudante, como na clássica canção-título. Mas a eventual contestação do artista não se insurgia em um sentido de afronta do ponto de vista bélico. E jamais se mostrava desalinhada a seu tempo. Pelo contrário, a sua melancolia doce, ainda encontrava espaço para o bom humor em meio as dificuldades - como não sorrir desajeitadamente com as desventuras do protagonista de Apenas Um Rapaz Latino Americano - e para um sem fim de citações culturais - Laranja Mecânica, hot dog, Isaac Newton, cabarés, Rolling Stones, Edgar Allan Poe, tiros no salloon - capaz de transformar cada canção em um verdadeiro almanaque das coisas, de tudo, enfim, do mundo.


Com Alucinação Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes - que completa 70 anos, hoje - não fez apenas o seu melhor disco. Fez um verdadeiro tratado sobre a vida na América do Sul, suas dificuldades, superações de obstáculos, diferenças culturais e sociais e mesmo de resistência ao capitalismo e de forças limitadoras que vem varrendo tudo, transformando as pessoas em uma massa cinza, sem vida, alienada e vazia em ideias. Um álbum não apenas artístico, ainda que "fácil" do ponto de vista instrumental, e recheado de hits, mas que utiliza o poder da fala para "rasgar a carne" de quem o escuta - como metaforiza o cantor em A Palo Seco (uma das melhores músicas brasileiras da história). Como que se fizesse força para acordar as pessoas na marra, no grito, no choro se for preciso. Quarenta anos depois de seu lançamento, o álbum nunca foi tão atual, afinal de contas as novas gerações de hoje em dia poucas vezes imitaram tão bem o modus operandi de seus pais - e seu comportamento eventualmente anacrônico. Mas certamente ainda há quem prefira o tango argentino ao blues. É para estes que Belchior destinou seu lugar de fala. Onde quer que ele esteja nesse momento - no Uruguai, em Porto Alegre ou no mundo.