De: Apichatpong Weerasethakul. Com Tilda Swinton, Juan Pablo Urrego, Agnes Brekke e Daniel Giménez Cacho. Drama, Tailândia / Colômbia / França, 2021, 136 minutos.
Existe uma cena logo no início de Memória (Memoria) que pode dar alguma pista do que pretende o tailandês Apichatpong Weerasethakul em seu novo trabalho. Uma pista, nada definitivo - aliás, como costuma ser na filmografia instigante do diretor de Mal dos Trópicos (2004). Nela, a botânica Jessica Holland (Tilda Swinton) procura o engenheiro de som Hernán (Juan Pablo Urrego) para tentar explicar uma espécie de barulho - um pequeno estrondo, um baque - que a despertou naquela manhã. Ela exemplifica o estampido comparando-o com a sonoridade de uma pedra de concreto que bate no metal. Mas é algo meio abafado. Como se no entorno houvesse água. O sonoplasta utiliza um programa de edição de áudio e uma base de dados que oferece sugestões semelhantes. Picota aqui, ajusta ali. A sequência dura longos minutos. Tudo passa sem muita pressa, em reflexivos planos. O silêncio se alterna com poucos diálogos. E o som - duro, ilógico - parece pairar em algum lugar que não se sabe onde.
Nunca é fácil interpretar com exatidão a semiologia por trás dos filmes do vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes por Tio Boonme, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010). Aqui, novamente, temos uma experiência sensorial, sinestésica, daquelas que parece deixar o espectador meio entorpecido enquanto tenta, aqui e ali, costurar os pedaços que formarão o todo. Do barulho que acorda Jessica no susto em meio ao silêncio de madrugada avançada para um outro plano em que carros parados em um estacionamento têm seus alarmes acionados inexplicavelmente, o que temos aqui é uma engenhosa narrativa sobre como somos assombrados por fenômenos aleatórios que podem (ou não) estar apenas nas nossas cabeças. A protagonista voltará a ouvir o barulho que a desperta em outras circunstâncias. Solitário ou soterrado em meio a conversas em um restaurante. Ou mesmo fazendo rima com outros ruídos. O que será? De onde vem? Por quê ocorre?
Jessica está na Colômbia para visitar a sua irmã que está no hospital - parece ter sido acometida por um tipo de infecção causada por um cachorro. Quando a enferma recebe alta, um encontro entre ambas coloca mais dúvidas no todo: o que vemos é a realidade? Como escapar da balbúrdia que transforma a nossa mente em um HD infinito que absorve trechos, recortes, pedaços, músicas inteiras, fragmentos de sons? Buzinas, trânsito, os insetos no meio do mato, uma cachoeira que tudo lava. A chuva batendo no chão, os vizinhos que discutem. As conversas abafadas, os trovões. A música. Dramática. Comovente. Vibrante. Ou mesmo o silêncio (quase) ensurdecedor. Como se construísse uma ode àquilo que capta os nossos ouvidos, o diretor cria uma jornada misteriosa de vida e morte, de natureza e concreto, de folclore e de tradição, de ciência e de religião, de passado e de futuro. De vida e de morte. De sítios arqueológicos e de medicina moderna. De tribos afastadas e de fungos que emergem. De história. De memória. Afetiva. Metafísica. Distinta pra cada um de nós.
Não é por acaso que cada instante da narrativa é ocupado por segmentos que estabelecem algum diálogo com esse todo - ainda que tudo possa soar meio ilógico, meio irreal, como um livro de ficção científica escrito por Gabriel García Marquez. Em certo momento, por exemplo, Jessica pesquisa sobre estufas que podem retardar o tempo de vida das orquídeas que produz. Em outro, ela se vê paralisada por um show de jazz meio improvisado que ocorre no estúdio de gravação em que trabalho Hernán (que já não existe mais). E o que dizer da médica que cita Salvador Dali, como um exemplo de alguém que enxergava a beleza da vida - e sem precisar de medicamentos? Mas o que fica de tudo isso é que o mistério é o de menos. O que vale aqui é a dança - no sentido metafórico - que envolve um aparato técnico impressionante, com destaque para a edição e a mixagem de sons e para os hábeis planos sequência, que estendem até o limite do aceitável a condição de observadores em que nos colocamos. Pode parecer difícil, hermético. Mas quem insistir certamente será enfeitiçado por uma rica experiência - complexa, cheia de simbolismos, sedutora em alguma medida e absolutamente hipnótica.
Nota: 9,0
Nenhum comentário:
Postar um comentário