terça-feira, 29 de agosto de 2023
Tesouros Cinéfilos - Oldboy
segunda-feira, 28 de agosto de 2023
Novidades em Streaming - A Sorte Grande (To Leslie)
terça-feira, 22 de agosto de 2023
Pitaquinho Musical - The Clientele (I Am Not There Anymore)
O estilo encharcado, enevoado, das melodias do The Clientele - com referências em suas letras às cidades provincianas e seus subúrbios úmidos, gramados e cerquinhas brancas, pássaros vacilantes e finais de tarde incertos -, vamos combinar, sempre foram uma marca registrada. O bucolismo que se mistura com o concreto, a chuva matinal e a grama cortada, os sonhos cintilantes que se mesclam à realidade, o rádio que toca uma música triste na penumbra da sala - tudo nas canções do coletivo evocam esse sentimento meio mágico, capaz de conferir certo verniz à rotina, às coisas cotidianas. E não é diferente com o excelente I Am Not There Anymore, o sétimo disco da carreira dos ingleses. Ninguém afinal fala de fontes de água, de janelas opacas e de luzes furtivas que percorrem vielas, da forma como Alasdair Maclean e companhia - e basta ver os títulos das canções (Chalk Flowers, Through the Roses, Garden Eye Mantra) para que tenhamos a dimensão precisa desse expediente.
E ainda que não haja em si um conceito no novo registro, o que se percebe é uma espécie de melancolia generalizada, que pode ter a ver com perdas familiares e com esse sentimento de esgotamento pós-pandêmico. No limite entre o indie pop nostálgico, o jazz contemporâneo e a eletrônica minimalista, o trabalho é pura personalidade indo do experimentalismo à suavidade dos arranjos mais agridoces em questão de segundos. É possível, por exemplo, cantarolar refrões como na noventista Lady Gray e na primaveril Blue Over Blue, mas também navegar na psicodelia à moda Beatles (Dying In May) ou no rock progressivo (Fables of the Silverlink). Ao cabo e a despeito das diversas pequenas vinhetas, este pode ser um projeto trabalhoso para se escutar de forma descompromissada - são 19 músicas e mais de uma hora de duração, afinal. Mas quem se aventurar, encontrará um disco de grande beleza, daqueles que nos fazem formar imagens mentais palpáveis, conforme percorremos suas curvas.
Nota: 8,5
Novidades em Streaming - Tenho Sonhos Elétricos (Tengo Sueños Electricos)
[ATENÇÃO: ESSE TEXTO TEM ALGUNS SPOILERS]
"Tenho sonhos elétricos. Onde meu pai, quando não pode consertar algo, arrebenta-o no chão. Ele fica bravo, grita, xinga. Nos amamos aos gritos, às vezes com golpes. É isso que somos. Uma horda de animais selvagens sonhando com seres humanos. Às vezes é preciso várias vidas pra entender que a raiva que nos atravessa não nos pertence". É quase no final de Tenho Sonhos Elétricos (Tengo Sueños Electricos) - filme da Costa Rica premiado no último Festival de Locarno -, que Martín (Reinaldo Amien Gutiérrez) lê um poema improvisado que, de alguma maneira, resume a sua relação turbulenta com a própria filha, Eva (Daniela Marín Navarro). Ambos parecem estar sempre aos trancos e barrancos, no limite entre o amor e o ódio, entre o carinho afetuoso e o conflito cheio de agressividade. É a complexidade do ser humano que parece estar no centro da estreia da diretora Valentina Maurel. Somos imperfeitos, afinal, e que atire a primeira pedra quem nunca exagerou na dose quando o assunto é as relações familiares.
segunda-feira, 21 de agosto de 2023
Tesouros Cinéfilos - Uma História Real (The Straight Story)
De: David Lynch. Com Richard Farnsworth, Sissy Spacek e Harry Dean Stanton. Drama, EUA / França / Reino Unido, 1999, 112 minutos.
Quem acompanha a carreira do diretor David Lynch sabe que as narrativas naturalistas, com os pés bem calcados na realidade, não costumam ser o seu forte - e basta pensar em obras herméticas, oníricas e complexas como Veludo Azul (1986) ou Cidade dos Sonhos (2001), para que tenhamos a certeza disso. Sim, não é todo o dia que o realizador da série Twin Peaks faz um filme mais "normalzinho". E, com o poético e comovente Uma História Real (The Straight Story), ele acerta em cheio. Aqui temos um olhar um pouco mais romantizado para o coração rural dos Estados Unidos, a partir da história do idoso Alvin Straight (Richard Farnsworth), um veterano da Segunda Guerra Mundial que resolve sair de uma cidadezinha no Estado de Iowa em direção ao Wisconsin, a bordo de um cortador de grama motorizado. O objetivo? Visitar o seu velho irmão que, recentemente, tivera um AVC.
Ocorre que Alvin, do alto dos seus 73 anos, e com uma vida não muito regrada no que diz respeito à hábitos alimentares também não está lá muito bem de saúde. Após uma queda inesperada em sua casa, a sua filha Rose (Sissy Spacek) praticamente implora pra que ele faça uma bateria de exames - o que ele aceita meio a contragosto. O resultado do check up não é animador e o histórico envolvendo alto consumo de cigarros e de bebidas cobra seu preço: com diabetes, o idoso já não consegue enxergar direito. Pra piorar, um problema no quadril faz com que ele tenha dificuldades para se deslocar - o que só é possível com duas muletas. Só que a fragilidade generalizada, que se soma ainda a certa deficiência intelectual da própria filha, não demove Alvin de cumprir sua missão: brigado com seu irmão há dez anos, talvez seja o momento de uma reconciliação. Afinal de contas, não se sabe quanto tempo de vida ambos terão. E é a medida dessa incerteza que torna tudo tão mais urgente.
E é evidente que rodar mais de 500 quilômetros a bordo de um veículo que não anda nem a vinte quilômetros por hora não será tarefa fácil. A primeira tentativa dá errada já na arrancada e Alvin sequer ultrapassa os limites da cidade com um velho equipamento. Sem tempo a perder ele compra uma máquina usada da John Deere e reinicia a sua jornada. Que consolidaria este como um dos mais inesperados road movies dos anos 90. Diferentemente do que poderia ocorrer, aqui Lynch está menos interessado nas circunstâncias do afastamento entre os irmãos - essas coisas acontecem nas famílias, afinal -, e sim nas transformações que a viagem possibilitará. No caminho, Alvin fará amizade com uma jovem grávida que está fugindo da família, com um padre que lhe fornece comida, com os moradores de um vilarejo que lhe socorrem quando ele tem problemas no freio de seu "veículo". Com cada encontro sendo a desculpa perfeita para filosóficas divagações sobre vida, morte, sonhos, dores, temores e anseios. No horizonte de Lynch a ideia de que envelhecer não é fácil. Mas que é possível tornar esse processo menos sofrido.
Como poucas vezes no cinema norte americano, Lynch transforma as vastas lavouras de milho, os maquinários agrícolas gigantescos e a rotina de famílias conservadoras do interior em um conjunto bastante amigável, bucólico - o que é reforçado pela trilha sonora comovente de Ângelo Badalamenti. Sem pressa, o diretor nos conduz por inúmeras paisagens isoladas, de um calor palpável, que são enfrentadas com determinação por Alvin que, com seu olhar doce e acolhedor, de olhos sempre úmidos, se converte em uma figura afável, cheia de carisma e de paciência - como vemos em cenas como a que ele perde o seu chapéu inesperadamente, ou quando ele se depara com um grupo de ciclistas que cruza pelo seu caminho. Há um ideal meio afetuoso no todo, que é evidenciado pelo senso de cooperação presente na vida em comunidade. Ao cabo, todos torcem para que Alvin alcance o seu objetivo, por mais complexo e desafiador que ele seja. Em linhas gerais esse é um projeto com um fiapo de história, baseado em um evento real ocorrido em 1994, e que é divertido, solene e e contemplativo em igual medida. Não parece um filme do David Lynch. Mas talvez seja justamente por isso que ele se torne tão especial.
quinta-feira, 17 de agosto de 2023
Cine Baú - Amarcord
De: Federico Fellini. Com Bruno Zanin, Magali Noël, Armando Brancia e Pupella Maggio. Comédia / Drama, Itália, 1973, 122 minutos.
O rigor da Igreja e do exército de um lado, o clima festivo e meio depravado de outro. A escola e a família como balizadores morais aqui, os desejos impulsivos e sexuais ali (basicamente em qualquer lugar). O fascismo duro e o progressismo utópico. O inverno e a primavera. Tudo meio amalgamado, misturado, de forma que fica quase difícil delimitar onde começa uma coisa e termina outra. É essa Itália vasta, complexa, heterogênea - que é capaz de converter uma passeata em favor de Mussolini em uma inesperada festividade -, que Federico Fellini retrata no autobiográfico Amarcord, filme que completa 50 anos de lançamento em 2023 e que está disponível na HBO Max. Adotando um estilo narrativo que se aproxima do de outros projetos, como no caso de A Doce Vida (1960), o diretor aposta em uma história fragmentada, episódica, que alfineta a alienação dos italianos, em meio a suas rotinas mesquinhas e diante da completa incapacidade de aquisição de alguma consciência política ou social.
Mesmo que espalhada em diversos atos, quase como se fossem pequenas esquetes, a trama é centrada no jovem Titta (Bruno Zanin) e suas idas e vindas entre aulas tediosas na escola - com professores incapazes de reter a atenção dos alunos com seus métodos retrógrados -, confissões de pecados na Igreja e um ímpeto para certa vagabundagem no vilarejo, onde tenta em vão atrair de todas as formas a atenção da sedutora Gradisca (Magali Noël), uma cabeleireira local. Quando está com sua família, a vida de Titta também não é fácil: seus pais Aurelio (Armando Brancia) e Miranda (Pupella Maggio) estão sempre em pé de guerra, convertendo um simples jantar em um front de batalha. Com tudo piorando quando o exército fascista chega oficialmente à cidade e prende Aurelio, sob a desculpa de ter incorrido em ato subversivo (após os generais ouvirem uma música contrária ao Regime). O castigo? Ele é obrigado a tomar uma dose de óleo de rícino.
Ainda assim não deixa de ser curioso notar como a presença de extremistas por todos os lados na região - influenciando não apenas no Estado, mas também na Igreja e na educação - sequer parece ser suficiente para que os habitantes despertem de sua letargia, que faz com que eles conduzam as suas vidas sem nem perceber as tragédias do entorno. Sabe aquele seu tio idoso, ali da Serra Gaúcha, que já afirmou não ter nenhuma memória negativa da Ditadura Militar porque nunca viu nada de ruim acontecendo? Pois é. Em certa altura da projeção, Ciccio (Fernando De Felice), um dos melhores amigos de Titta, tem um sonho "molhado" em que se casa com sua paixão de escola Aldina (Donatella Gambini) sob uma enorme efígie de Benito Mussolini que referenda a união. "Esse entusiasmo faz de nós jovens, mas também antigos", comemora alguém em meio a passeata em favor do Duce. É uma espécie de embrião do flash mob do Partido Novo em favor do "mito".
Sem jamais deixar a peteca cair, Fellini debocha desse coletivo de pessoas que soa até mesmo infantilizado, ainda que a sexualidade latente (à moda quinta série) pareça sempre pronta a vir à tona. Se numa das primeiras sequências a cidade está em polvorosa para os folguedos que saúdam a chegada da primavera, em outro os habitantes fazem uma guerra de bolas de neve para celebrar o frio do inverno. Entre uma e outra temporada, um sem fim de hormônios borbulhantes que estão sempre no limite da excitação - seja por Gradisca, seja pela prostituta Volpina (Josiane Tanzilli) ou seja ainda pela dona da tabacaria (Maria Antonieta Beluzzi), com seus enormes seios que, ironicamente, quase sufocam Titta quando ele se insinua para a voluptuosa mulher (que aceita suas investidas). "Eu quero uma mulher!" berra o tio de Titta, Teo (Ciccio Ingrascia) em uma das mais exóticas cenas do filme: recém saído de um manicômio ele sobe em uma árvore gigantesca e resolve, num arroubo de sinceridade, afirmar para o mundo o que lhe perturba de verdade. Onírica, melancólica, de tintas anarquistas, a produção venceria o prêmio na categoria Filme em Língua Estrangeira no Oscar daquele ano, aparecendo ainda em um sem fim de grandes obras de todas os tempos. Obrigatório é pouco.
quarta-feira, 16 de agosto de 2023
Tesouros Cinéfilos - O Cafetã Azul (Le Bleu du Caftan)
De: Maryam Touzani. Com Lubna Azabal, Saleh Bakri e Ayoub Missioui. Drama, Marrocos / Bélgica / Dinamarca / França, 2022, 122 minutos.
[ATENÇÃO: ESSE TEXTO TEM ALGUNS SPOILERS]
Em uma das mais belas cenas de O Cafetã Azul (Le Bleu du Caftan), o casal Mina (Lubna Azabal) e Halim (Saleh Bakri) está em uma conversa bastante íntima, reveladora daquilo que pode ter sido um importante recorte de suas vidas. Aos prantos, Halim afirma ter tido muito medo de desonrar a esposa, por não ter conseguido superar aquilo que, aparentemente, ele acredita ser uma espécie de "mal". Naquela altura, o espectador já tem ciência da homossexualidade mantida em segredo pelo homem - como revelam os encontros às escondidas em saunas locais. E que se estendem para a forma afetuosa com que ele lida com o seu jovem funcionário, o dedicado Youssef (Ayoub Missioui). A resposta de Mina diante da manifestação do marido? O acolhimento. "Eu não poderia ter tido mais orgulho de ter sido sua esposa", retruca, de forma enternecedora. Um direcionamento diferente do previsto. E que eleva a obra a um outro patamar.
Como se fosse uma alegoria para os próprios cafetãs - que são túnicas lindamente ornamentadas, com costuras complexas e que costumam ser utilizadas por muçulmanos e judeus -, a obra da diretora Maryam Touzani, do ótimo Adam (2019), é pura sutileza e suavidade na abordagem de seu tema. Em cada close em que os tecidos são delicadamente trabalhados por Halim, parece haver um diálogo direto com a forma com que ele lida com sua sexualidade - sempre discreto, sem chamar a atenção, sem descambar para excessos. Mas sem deixar de vivê-la - com a conivência comovente de Mina, que padece de um câncer terminal. A homossexualidade no Marrocos é proibida e pode levar as pessoas à prisão. O que dá uma dimensão da potência do projeto, que arrancou aplausos em sua exibição no Festival de Cannes, e que foi o enviado do País ao Oscar desse ano (numa daquelas contradições que só a arte é capaz de alcançar).
Na trama, acompanhamos a rotina de Halim e Mina como alfaiates da medina de Salé. Em meio ao dia a dia de atendimento de clientes, de organização logística e de busca por certa pureza na confecção de suas peças (como verdadeiros artesãos), que podem levar meses para ser concluídas - o que leva até mesmo à insatisfação de alguns -, eles contratam Youssef como um aprendiz. Enquanto os dois homens parecem se aproximar mais a cada novo encontro, o que é apresentado sem nenhuma pressa, com trocas de olhares, silêncios calculados, mãos que se roçam, Mina sofre com os efeitos de sua doença. E por mais que o casal possa parecer eventualmente afastado, como pode acontecer com aqueles que estão juntos há muito tempo juntos, a sua cumplicidade carinhosa se sobressai nos detalhes - seja no respeito com que Halim cuida de Mina nos momentos mais íntimos, seja na forma como eles debocham de uma cliente desagradável, que os destrata exigindo pressa na produção do cafetã azul que dá nome a obra.
Aliás, é justamente nesse paradoxo entre tradição e modernidade, entre conservadorismo e contemporaneidade, que parece residir uma das forças do projeto. Fechado para ideias mais oxigenadas ou menos retrógradas, o mesmo Marrocos avança para processos mais tecnológicos na hora de elaborar as suas vestes que, atualmente, podem ser feitas com máquinas de costura. Halim parece lutar contra isso e o encantamento com Youssef também tem a ver com isso: o jovem gosta do ofício milenar. Mas há mais nesse combo de contradições e que servem como verdadeiras pílulas para discussão de outros assuntos. Em uma ótima sequência, por exemplo, Mina convida Halim para irem a um bar assistir a um jogo de futebol - o que em tempos de Copa do Mundo Feminina, com o Marrocos sendo o primeiro árabe da história a se classificar para o torneio, não deixa de ser uma bela rima. Autêntico, cheio de empatia, imprevisível. E, ainda, com interpretações magníficas do trio central. É impossível sair da mesma forma desse filme.
Pitaquinho Musical - Garotas Suecas (1 2 3 4)
segunda-feira, 14 de agosto de 2023
Tesouros Cinéfilos - Uma Cilada Para Roger Rabbit (Who Framed Roger Rabbit)
sexta-feira, 11 de agosto de 2023
Tesouros Cinéfilos - As Invasões Bárbaras (Les Invasions Barbares)
De: Denys Arcand. Com Rémy Girard, Stéphane Rousseau, Dorothée Berryman e Marina Hands. Comédia / Drama, Canadá, 2003, 94 minutos.
Um filme cheio de diálogos espirituosos sobre política, cultura, história, religião e sexo e que, ao mesmo tempo, se constitui em uma poderosa história familiar centrada na complexa relação entre um pai idealista e um filho capitalista. Mais ou menos assim é possível resumir As Invasões Bárbaras (Les Invasions Barbares), premiada obra do diretor Denys Arcand, que completa 20 anos de lançamento em 2023. Espécie de continuação de O Declínio do Império Americano (1986), o projeto é centrado em seus personagens, que são apresentados como um coletivo repleto de diferenças - e de falhas -, mas ao mesmo tempo cheio de boas intenções. A trama inicia com Sebastién (Stéphane Rousseau), um liberal bem-sucedido da área financeira, que recebe de sua mãe Louise (Dorothée Berryman) uma triste notícia: seu pai Rémy (Rémy Girard), um professor universitário com um longo histórico de adultérios, padece em uma cama de um hospital público após ser diagnosticado com um câncer terminal.
Ter que interromper seus negócios para ir visitar o pai com quem não tem muito contato há vários anos - um rompimento que tem a ver com o comportamento hedonista de Rémy -, não parece animar muito Sebastién. Mas ainda assim ele sai de Londres, onde mora e trabalha, para ir até o Canadá onde está sua família. O encontro não parece promissor e já no começo do filme poderemos perceber como o esnobe moribundo soa presunçoso ao ridicularizar a carreira do filho, a quem atribui uma completa alienação de mundo que resulta da falta de leitura e de sua preferência por jogos de videogame. Por outro lado, Sebastién ficará exasperado ao se deparar com as condições nas quais seu pai está instalado no hospital - um tipo de estrutura que ele, como bom socialista, teria sido um ardoroso apoiador desde a década de 60. Para Rémy, seu bem-estar ao final da vida tem menos a ver com o financeiro: ele apenas quer estar com aqueles que ama, sejam antigos colegas, amigos intelectuais, amantes. Já Sebastién parece saber, em seu íntimo, que esses paliativos não serão suficientes. Há que se investir. Investir dinheiro, no caso.
Como se fossem uma espécie de Otávio e Tião, os personagens de Gianfrancesco Guarnieri e Carlos Alberto Riccelli em Eles Não Usam Black-Tie (1981), clássico brasileiro sobre um pai e um filho em lados políticos opostos, quando eclode uma greve de metalúrgicos, aqui, Rémy e Sebastién também relutam em aceitar o estilo de vida um do outro - ainda que a doença do primeiro fará com que o segundo, meio que na surdina, se compadeça. Nesse sentido, não serão poucas as vezes em que o jovem sacará um bolo volumoso de dinheiro do bolso, seja para subornar policiais, pessoas que possibilitem cuidados médicos mais adequados nos Estados Unidos ou para molhar a mão de representantes de um Sindicato local, que tendem a não aceitar movimentações de doentes do desorganizado hospital de Quebec. Em certa altura, Sebastién se aproximará de Nathalie (Marie-Josée Croze), uma jovem viciada em drogas, que pode ser a ponte para o fornecimento de heroína, uma droga muito mais potente que a morfina, e que poderá auxiliar a minimizar as dores do pai.
E enquanto o capital faz a coisa acontecer, Rémy vai saboreando o seu ocaso em longas divagações filosóficas, existencialistas e até niilistas com seus amigos - o que resulta em agradáveis digressões sobre temas diversos, com muito vinho e risadas. Em certa altura, Rémy brinca sobre ter liberado uma verdadeira "cachoeira de esperma" em sua juventude, quando era apaixonado por Inés Orsini ou Françoise Hardy. Ao que seu amigo Pierre (Pierre Curzi) retruca de que está seria a explicação para a alteração do curso de um determinado rio canadense. Desavergonhados, engraçados e cínicos os diálogos são o ponto alto, funcionando ainda como uma metáfora para os tempos em que as Torres Gêmeas norte-americanas recém eram derrubadas, se constituindo em uma alegoria perfeita para o suposto "declínio" do título da obra. O mesmo declínio que atinge aqueles que assistimos que, agora, no limiar da terceira idade, encaram com certo desencanto o futuro, ao mesmo tempo em que romantizam, nostalgicamente, o passado. Ao cabo, esta é uma obra pequena mas abrangente, que trata o conflito geracional com inteligência, profundidade e com um sentimentalismo agridoce irresistível.
quarta-feira, 9 de agosto de 2023
Cinema - Asteroid City
De: Wes Anderson. Com Scarlett Johansson, Jason Schwartzman, Tom Hanks, Edward Norton, Tilda Swinton e Steve Carell. Comédia, EUA, 2023, 105 minutos.
Já disse isso mais de uma vez e repito: poucos diretores são tão oito ou oitenta como Wes Anderson. Os fãs normalmente aguardam qualquer novo projeto com uma devoção comovente. Os detratores costumam brincar com o fato de o realizador fazer "sempre o mesmo filme". Será que a fórmula um dia vai se desgastar? No meu caso, confesso que fiquei com um sentimento meio ambíguo enquanto conferia Asteroid City, que entra em cartaz nos cinemas nesta semana. Por um lado, e sem soar presunçoso, esse é o tipo de obra que dificilmente deve arrebanhar novos apreciadores da estética excêntrica - e das histórias idem - de Anderson. Por outro, os convertidos devem se deliciar com mais uma narrativa repleta de personagens extravagantes, que trafegam em cenários saturadamente coloridos, enquanto são filmados em enquadramentos geometricamente calculados. Tudo meio de acordo com a cartilha de Anderson.
Talvez quem não assistiu Os Excêntricos Tenenbaums (2001), Moonrise Kingdom (2012) ou A Crônica Francesa (2021) ache tudo apenas esquisito - pra não dizer entediante mesmo. E, na real, tudo bem quanto a isso. Ninguém é obrigado. Aqui o diretor reuniu, como de praxe, um numeroso elenco de estrelas - alguns fazendo pequenas pontas de poucos minutos na tela, como é o caso da incensada Margot Robbie (que não para de colecionar recordes com Barbie) ou dos oscarizados Tom Hanks, Tilda Swinton e Willem Dafoe (que até não faturou o carecão, mas volta e meia é indicado). Outros atores, como Edward Norton, têm papel central na narrativa: ele é o dramaturgo Conrad Earp, que está tendo uma de suas peças encenada para o teatro. Nela, retornamos para o ano de 1955, no Oeste americano - um espaço isolado e arenoso, mas estranhamente futurista - onde ocorrerá uma convenção de jovens cinetistas na cidade que dá nome ao filme.
Aliás, o local se chama Asteroid City justamente por causa de uma enorme cratera, resultado de um fragmento caído três mil anos atrás (e que hoje é uma espécie de ponto turístico). Um dos primeiros a chegar para o evento é Augie Steenback (Jason Schwartzman), um fotojornalista de guerra, que está acompanhado de seu filho adolescente Woodrow (Jake Ryan). Depois que seu carro enguiça ele se vê impossibilitado de levar suas outras três filhas até a casa de seu sogro (Hanks), para que elas fiquem com o avô após a morte da mãe - o que é mantido em segredo. No povoado, Augie e Woodrow conhecem ainda Midge Campbell (Scarlett Johansson) uma atriz famosa meio niilista, que acompanha sua filha Dinah (Grace Edwards), que também será uma das homenageadas na convenção. Orbitando esse núcleo que, aos poucos e de forma meio torta, se aproximará, surgem ainda outras figuras singulares, como o general cinco estrelas Grif Gibson (Jeffrey Wright), a astrônoma Dr. Hickenlooper (Swinton), a jovem professora June Douglas (Maya Hawke), o gerente de um motel local (Steve Carrell), um mecânico, um grupo aleatório de caubois e um ônibus cheio de crianças, entre outros. Ufa! Ah, e tem um alienígena ainda. Acreditem.
Claro que tudo não passa de uma desculpa para que Anderson exercite as suas esquetes insólitas, indo de um personagem a outro em travellings matematicamente perfeitos, que aproximam e expandem - um tipo de recurso técnico que pode ser usado (ou não) em favor da narrativa. Aqui e ali, o diretor insere piadas meio indiretas que dizem respeito não apenas ao período histórico dos Estados Unidos - no caso, o do pós-guerra -, como ainda funcionam como divertido comentário social que atravessa os tempos. É este o caso, por exemplo, do instante em que vemos um trem que vagueia alegremente ainda no primeiro ato, ao som de uma canção country, sendo uma das cargas de um dos vagões uma ogiva nuclear que só deve ser disparada com "autorização presidencial". Em outro momento, a falecida esposa de Augie é apresentada como um montinho de cinzas dentro de uma tupperware. São instantes que, ao mesmo tempo que aludem a um humor extravagante, contribuem para que a narrativa avance. Colorido, exótico, eventualmente ilógico, esse é mais um Wes Anderson raiz que agradará iniciados. E talvez só eles mesmo.
Nota: 7,5
terça-feira, 8 de agosto de 2023
Pitaquinho Musical - Slowthai (UGLY)
"Você já sentiu vontade de cair? / Você já se sentiu como estivesse vagando no espaço?" (Falling, Slowthai)
A gente está devastado por dentro, mas sorri. Está com a mente desgraçada mas com a terapia em dia. Finge saúde e frequenta a academia. Come mal e sobrevive em empregos infelizes. Nesse mundo cheio de dores e barulhos por todos os lados parece que nunca estamos plenos, por mais que na fachada a gente faça de conta que está. O clima em UGLY, do rapper Slowthai é mais ou menos esse até no título do projeto - um acrônimo para U Gotta Love Yourself (ao mesmo tempo em que a tradução literal da palavra afirma o contrário). Nesse sentido, enquanto o artista evoca uma raiva que parece vir da alma - que é expressada em seus vocais selvagens, eventualmente gritados,com um pé no hip hop e outro no punk -, os versos percorrem os meandros da alma, fazendo escorrer sentimentos ambíguos. "Você é rei / Você é rainha / Você é gênio" afirma na abertura Yum para, já na sequência explicitar a sua luta interior (Estou sem motivação / Preciso de uma intervenção).
E muito da força do trabalho, o terceiro da carreira do artista, emerge desse universo de paradoxos. De um suposto bem-estar enquanto mergulhamos no caos. Se Selfish, por exemplo, fala sobre amor próprio ao mesmo tempo em que divaga sobre o que as pessoas em volta efetivamente pensam de você, Never Again alude a cenas cotidianas em meio a idas ao supermercados, fotos guardadas no telefone e relacionamentos que parecem impossíveis de ser superados. As letras verborrágicas se espalham por toda a parte e, mesmo quando repetidas em si mesmas, soam como mantras exagerados, hiperbólicos, que parecem forçar a barra nesse universo good vibes. "Todo mundo tem uma música que coloca quando está triste para se sentir bem, mas eu queria uma música para quando eu simplesmente me sinto mal, para que eu pudesse simplesmente levantar e dizer 'não, eu não me sinto bem!'", explicou o cantor, ao falar sobre o single Feel Good. E, vamos combinar que esses sentimentos borbulhantes que nos levam de lá pra cá não poderiam ser mais atuais.
Nota: 8,5