terça-feira, 29 de agosto de 2023

Tesouros Cinéfilos - Oldboy

De: Park Chan-wook. Com Choi Min-sik, Kang Hye-jung, Yoo Ji-tae e Ji Dae-han. Drama / Suspense, Coréia do Sul, 2003, 119 minutos.

"Ria e o mundo rirá com você. Chore e você chorará sozinho." Uma história de vingança vertiginosa e cheia de reviravoltas, resultado de um roteiro impecavelmente bem costurado. Num arroubo minimalista, assim pode ser resumida a experiência com Oldboy - obra de Park Chan-wook, que completará 20 anos de seu lançamento em setembro. Mas o filme é muito mais do que só uma narrativa de vendeta, afinal, trata-se de um thriller psicológico voluptuoso e surpreendente, que deriva para temas diversos, como, perdas familiares, a brutalidade humana e a obsessão catártica pela morte. Ao cabo, pode não ser um projeto para todos os paladares, dada a violência gráfica estilizada de suas sequências, com direito a cenas que envolvem desde dentes sendo arrancados na martelada, passando por polvos sendo consumidos vivos, até chegar aos impulsos sexuais edipianos. É tudo exagerado, como se estivéssemos em uma espécie de mangá alternativo.

A trama começa com cenas do empresário Oh Dae-su (Choi Min-sik) que acaba de ser preso por embriaguês. Após um amigo pagar sua fiança, o homem faz uma ligação para a filha, que está completando seu quarto aniversário - que ele perderá dado o imbróglio que se envolveu. Mas as coisas pioram quando ele é sequestrado e acorda em um quarto fechado. Local em que ele permanecerá aprisionado, sem muita explicação. Por quinze anos. Um encarceramento tortuoso, que afetará não apenas o corpo, mas também a mente - o que piorará quando ele souber que sua esposa foi assassinada e que ele mesmo é o principal suspeito. Só que, assim como Dae-su é preso sem nem saber por quê, nem por quem, ele é solto no topo de um prédio abandonado, após uma sessão de hipnose. E terá pouco tempo para tentar descobrir quem foi seu carcereiro e os motivos que lhe levaram ao crime. 



Em meio a coleta de pistas que possam lhe levar a possíveis inimigos, o homem  recebe um celular e uma quantia de dinheiro de um morador de rua. Aos poucos ele perceberá que, mesmo livre, está sendo monitorado. E que no caminho para localizar seu torturador, terá de enfrentar uma série de desafios - com direito a lutas corporais contra capangas que trabalham para o seu algoz (batalhas que fazem lembrar jogos de videogame como Streets of Rage ou Final Fight) em ambientes deliberadamente claustrofóbicos. E como parte dessa teia conspiratória perfeitamente engendrada há ainda a presença da chef de cozinha Mi-do (Kang Hye-jung) que se tornará o interesse amoroso de Dae-su, auxiliando o homem a, inclusive, tentar encontrar a sua filha (que, atualmente, teria sido adotada por um casal que reside na Suécia). É tudo bem estruturado, mas com uma fluidez vigorosa, mesclando flashbacks e cenas atuais que ajudam na compreensão dos fatos e no estabelecimento de uma lógica narrativa.

E, para além do filme em si há o aparato técnico eficiente, que vai desde a trilha sonora de notas ao mesmo tempo caóticas e claudicantes, passando pela fotografia dessaturada que amplia a sensação de urgência, até chegar aos planos-sequência bem orquestrados (muitos deles cheios de elementos, com ótimas coreografias). Ao cabo, o que se tem com Oldboy é uma experiência operística que vai para além da violência e de seus signos: há toda uma psicologia por trás, que pode ser percebida nos detalhes, nos comportamentos, nos olhares e nos silêncios. Em uma sequência decisiva, por exemplo, a expressão ambígua de Dae-su mergulha o espectador na incerteza sobre seus sentimentos. Ele sabe o que, de fato, está vivendo naquele instante? Por tudo isso, o filme se converteria em um marco do cinema sul coreano, com sua capacidade única de mesclar o realismo mágico (com suas formigas gigantes e pesadelos abstratos) com os sentimentos demasiadamente humanos. Park Chan-wook venceria o prêmio de direção no Festival de Cannes daquele ano. Pavimentando o caminho para outras obras-primas modernas, caso do recente Decisão de Partir (2022). Vale demais.


segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Novidades em Streaming - A Sorte Grande (To Leslie)

De Michael Morris. Com Andrea Riseborough, Allison Janney, Marc Maron, Owen Teague, Stephen Root, Andre Royo,. Drama, EUA, 2022, 119 minutos.

[ATENÇÃO: ESSE TEXTO CONTÉM ALGUNS SPOILERS]

De clássicos como Farrapo Humano (1945) a recentes como Druk: Mais Uma Rodada (2020), passando ainda por noventistas como Despedida em Las Vegas (1996), não foram poucas as obras que tiveram a presença das bebidas alcoólicas como parte integrante de suas narrativas. No caso do recente A Sorte Grande (To Leslie), dirigido por Michael Morris e que está disponível para aluguel na Amazon Prime, temos mais um filme que tem como pano de fundo os efeitos adversos do abuso de álcool. A trama não enrola muito ao nos apresentar Leslie (Andrea Riseborough), uma jovem do Texas que ganha US$ 190 mil em uma loteria local - mas que torra a grana com seus vícios em uma velocidade vertiginosa. Sem se ocupar de nos apresentar esse recorte da passagem do tempo, o filme faz um salto para seis anos depois, onde a alegria contagiante das imagens de arquivo pela conquista, já deram lugar à decadência financeira completa. Na miséria, a protagonista não tem dinheiro sequer para manter um quarto de hotel meia bomba das redondezas.

E a "bucha" sobra pra quem? Pro filho James (Owen Teague), que está afastado da mãe há alguns punhados de anos, mas que resolve lhe estender a mão quando percebe que a vida itinerante de Leslie pode resultar em algo ainda pior. James é esforçado, um trabalhador do setor da construção, que divide uma casa com o colega Darren, e tenta tocar sua vida normalmente, a despeito do desastre completo que parece ter sido sua juventude. Sem desejar um novo trauma, James suplica a mãe de que só há uma condição para que ela permaneça com ele até se estabelecer, arranjar um emprego e seguir adiante: a de que ela não beba. Sob hipótese alguma. Encarnando a personagem da mãe supostamente arrependida e mais ou menos amorosa, Leslie consegue enganar o filho por algumas horas, até o instante em que ela vasculha a casa atrás de algum dinheiro para que possa, no boteco da esquina, comprar a sua garrafa de pinga. A dependência de álcool é uma doença severa. E de difícil tratamento, como fica claro.



Sim, a gente chega num ponto de se irritar com Leslie - e a interpretação de Riseborough é tão irretocável que a indicação ao Oscar pode ser considerada justíssima, a despeito da campanha meio enviesada, inclusive com especulação de supostas violações de regras da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. Só que a atriz convence demais como a cracuda incorrigível, que vive de bar em bar, de rua em rua, de quarto de motel em quarto de motel, sendo expulsa por familiares e amigos dos lugares em que tenta, em vão, morar. O filho, mesmo, fica de saco cheio com nem uma semana de estada. A antiga amiga de Leslie, Nancy (Allison Janney) lhe recebe, mas lhe coloca para fora na mesma velocidade, depois que descobre que ela está frequentando o bar local. Resta a rua. Onde ela é encontrada por Sweeney (Marc Maron), que lhe ajudará. Lhe dará um emprego. Tentará salvar de alguma maneira e, a despeito da desconfiança de todos, aquela alma. Mas há espaço pra redenção? E quais os caminhos para isso?

Ao cabo, esse pode ser um filme capaz de gerar certo desgosto no público - os que conhecem alcoolistas pela possível identificação com o comportamento errático de sua protagonista, os que não conhecem simplesmente por repúdio mesmo. Mas essa é uma experiência que não glamouriza em nenhum momento o abuso. Ao contrário, Leslie se torna motivo de chacota qualquer que seja seu comportamento - o que é ampliado em uma cidade pequena, conservadora, e cheia de famílias "de bem" (que gostam de, hipocritamente, apontar dedos). Flertar? Impossível. Dançar? Não pode. Transar? Quem iria querer? Pode haver certo pendor pro moralismo na coisa toda, mas há que se refletir sobre escolhas e, claramente, a perda dos US$ 190 mil que tornam Leslie uma espécie de microcelebridade local parecem ser apenas a ponta do iceberg de uma série de derrotas - morais, financeiras, psicológicas - que a vida imporá a essa anti-heroína. O desfecho pode soar romântico e excessivamente otimista. Mas há que reconhecer a sensibilidade do projeto, ao lembrar que todos podem ter uma segunda chance.

Nota: 8,0


terça-feira, 22 de agosto de 2023

Pitaquinho Musical - The Clientele (I Am Not There Anymore)

O estilo encharcado, enevoado, das melodias do The Clientele - com referências em suas letras às cidades provincianas e seus subúrbios úmidos, gramados e cerquinhas brancas, pássaros vacilantes e finais de tarde incertos -, vamos combinar, sempre foram uma marca registrada. O bucolismo que se mistura com o concreto, a chuva matinal e a grama cortada, os sonhos cintilantes que se mesclam à realidade, o rádio que toca uma música triste na penumbra da sala - tudo nas canções do coletivo evocam esse sentimento meio mágico, capaz de conferir certo verniz à rotina, às coisas cotidianas. E não é diferente com o excelente I Am Not There Anymore, o sétimo disco da carreira dos ingleses. Ninguém afinal fala de fontes de água, de janelas opacas e de luzes furtivas que percorrem vielas, da forma como Alasdair Maclean e companhia - e basta ver os títulos das canções (Chalk Flowers, Through the Roses, Garden Eye Mantra) para que tenhamos a dimensão precisa desse expediente.

E ainda que não haja em si um conceito no novo registro, o que se percebe é uma espécie de melancolia generalizada, que pode ter a ver com perdas familiares e com esse sentimento de esgotamento pós-pandêmico. No limite entre o indie pop nostálgico, o jazz contemporâneo e a eletrônica minimalista, o trabalho é pura personalidade indo do experimentalismo à suavidade dos arranjos mais agridoces em questão de segundos. É possível, por exemplo, cantarolar refrões como na noventista Lady Gray e na primaveril Blue Over Blue, mas também navegar na psicodelia à moda Beatles (Dying In May) ou no rock progressivo (Fables of the Silverlink). Ao cabo e a despeito das diversas pequenas vinhetas, este pode ser um projeto trabalhoso para se escutar de forma descompromissada - são 19 músicas e mais de uma hora de duração, afinal. Mas quem se aventurar, encontrará um disco de grande beleza, daqueles que nos fazem formar imagens mentais palpáveis, conforme percorremos suas curvas.

Nota: 8,5

Novidades em Streaming - Tenho Sonhos Elétricos (Tengo Sueños Electricos)

De: Valentina Maurel. Com Daniela Marín Navarro, Reinaldo Amien Gutiérrez e Vivian Rodriguez. Drama, Costa Rica / França / Bélgica, 2022, 104 minutos.

[ATENÇÃO: ESSE TEXTO TEM ALGUNS SPOILERS]

"Tenho sonhos elétricos. Onde meu pai, quando não pode consertar algo, arrebenta-o no chão. Ele fica bravo, grita, xinga. Nos amamos aos gritos, às vezes com golpes. É isso que somos. Uma horda de animais selvagens sonhando com seres humanos. Às vezes é preciso várias vidas pra entender que a raiva que nos atravessa não nos pertence". É quase no final de Tenho Sonhos Elétricos (Tengo Sueños Electricos) - filme da Costa Rica premiado no último Festival de Locarno -, que Martín (Reinaldo Amien Gutiérrez) lê um poema improvisado que, de alguma maneira, resume a sua relação turbulenta com a própria filha, Eva (Daniela Marín Navarro). Ambos parecem estar sempre aos trancos e barrancos, no limite entre o amor e o ódio, entre o carinho afetuoso e o conflito cheio de agressividade. É a complexidade do ser humano que parece estar no centro da estreia da diretora Valentina Maurel. Somos imperfeitos, afinal, e que atire a primeira pedra quem nunca exagerou na dose quando o assunto é as relações familiares.


E, em alguma medida, esse é um projeto pequeno, que parte de um microcosmo, para uma análise mais ampla desse tipo de vínculo. Eva parece buscar afeto em todas as partes - encontrando migalhas aqui e ali não apenas do pai, mas também da mãe Anca (Vivian Rodriguez). E ser uma adolescente de 16 anos em um cenário de pais separados em que não se é adulto o suficiente para assumir certas responsabilidades, e nem se é mais criança para comportamentos infantis, costuma ser sinônimo de bomba-relógio que parece sempre pronta a explodir. Há ternura mas também há raiva. E Eva trafega de uma casa a outra, indo de um ambiente mais taciturno para outro mais boêmio - o que resultará em uma rotina fervilhante de incertezas. Na casa da mãe, herdada de um parente, há um dia a dia mais tumultuado com obras que ocorrem, um gato amedrontado e uma irmã (Adriana Costa Garcia) pequena que parece distante pelo peso da idade - Eva, em contrapartida, já está com os desejos sexuais escorrendo pelos dedos (quase literalmente).



Na casa do pai um ambiente cultural e de boemia, de discussões literárias, de cinema, de esculturas, de bebedeiras e de liberdades - que vão do cigarro ao sexo. Martin se separou de Anca, uma dançarina "aposentada", e ficou com a parte legal da coisa toda. Ambos talvez queiram o bem-estar da filha, cada um a sua maneira e as turras, como em qualquer família. Equilibrar desejos, sonhos, frustrações parece uma dificuldade para todos ali. Martin é o esquerdomacho atormentado - um pobretão que sonha em viver de sua arte, mas que mal tem dinheiro para alugar um apartamento que preste (e não deixa de ser comovente o instante em que Eva constata que sua futura residência terá apenas um quarto). Já Anca parece mais apagada em suas preocupações domésticas, rotineiras, simplórias, de quem provavelmente abandonou a carreira para cuidar da família. E que precisa lidar com conflitos que, de tão simples, parecem complexos.

Em linhas gerais não é muito fácil gostar desses personagens. Ou de enxergá-los em todas as suas dimensões. E talvez seja justamente aí que resida a beleza da coisa toda - afinal, quem consegue ser afável o tempo todo? Eva, por exemplo, parece se apaixonar por um amigo de seu pai, mas como passar pano para um homem de quarenta e poucos anos que não tem pudor em se relacionar com uma jovem de 16? Dá pra normalizar isso tudo? Com sua câmera bastante íntima, Valentina propaga os tumultos interiores em sequências barulhentas, caóticas, mas cheias de nuances, com a câmera surgindo em muitos casos colada ao rosto daqueles que acompanhamos. Não há muito espaço pra respiro, para ar livre, para fôlego. É tudo muito intenso, vertiginoso - o que é reforçado por instantes como aquele em que Martin "descobre" a maneira como Eva perdeu a virgindade. É uma obra intimista e naturalista, angustiante mas afetuosa. Um tipo de cinema que não nos deixa alheios. E que reforça a potência da produção latino-americana.

Nota: 8,5


segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Tesouros Cinéfilos - Uma História Real (The Straight Story)

De: David Lynch. Com Richard Farnsworth, Sissy Spacek e Harry Dean Stanton. Drama, EUA / França / Reino Unido, 1999, 112 minutos.

Quem acompanha a carreira do diretor David Lynch sabe que as narrativas naturalistas, com os pés bem calcados na realidade, não costumam ser o seu forte - e basta pensar em obras herméticas, oníricas e complexas como Veludo Azul (1986) ou Cidade dos Sonhos (2001), para que tenhamos a certeza disso. Sim, não é todo o dia que o realizador da série Twin Peaks faz um filme mais "normalzinho". E, com o poético e comovente Uma História Real (The Straight Story), ele acerta em cheio. Aqui temos um olhar um pouco mais romantizado para o coração rural dos Estados Unidos, a partir da história do idoso Alvin Straight (Richard Farnsworth), um veterano da Segunda Guerra Mundial que resolve sair de uma cidadezinha no Estado de Iowa em direção ao Wisconsin, a bordo de um cortador de grama motorizado. O objetivo? Visitar o seu velho irmão que, recentemente, tivera um AVC.

Ocorre que Alvin, do alto dos seus 73 anos, e com uma vida não muito regrada no que diz respeito à hábitos alimentares também não está lá muito bem de saúde. Após uma queda inesperada em sua casa, a sua filha Rose (Sissy Spacek) praticamente implora pra que ele faça uma bateria de exames - o que ele aceita meio a contragosto. O resultado do check up não é animador e o histórico envolvendo alto consumo de cigarros e de bebidas cobra seu preço: com diabetes, o idoso já não consegue enxergar direito. Pra piorar, um problema no quadril faz com que ele tenha dificuldades para se deslocar - o que só é possível com duas muletas. Só que a fragilidade generalizada, que se soma ainda a certa deficiência intelectual da própria filha, não demove Alvin de cumprir sua missão: brigado com seu irmão há dez anos, talvez seja o momento de uma reconciliação. Afinal de contas, não se sabe quanto tempo de vida ambos terão. E é a medida dessa incerteza que torna tudo tão mais urgente.

E é evidente que rodar mais de 500 quilômetros a bordo de um veículo que não anda nem a vinte quilômetros por hora não será tarefa fácil. A primeira tentativa dá errada já na arrancada e Alvin sequer ultrapassa os limites da cidade com um velho equipamento. Sem tempo a perder ele compra uma máquina usada da John Deere e reinicia a sua jornada. Que consolidaria este como um dos mais inesperados road movies dos anos 90. Diferentemente do que poderia ocorrer, aqui Lynch está menos interessado nas circunstâncias do afastamento entre os irmãos - essas coisas acontecem nas famílias, afinal -, e sim nas transformações que a viagem possibilitará. No caminho, Alvin fará amizade com uma jovem grávida que está fugindo da família, com um padre que lhe fornece comida, com os moradores de um vilarejo que lhe socorrem quando ele tem problemas no freio de seu "veículo". Com cada encontro sendo a desculpa perfeita para filosóficas divagações sobre vida, morte, sonhos, dores, temores e anseios. No horizonte de Lynch a ideia de que envelhecer não é fácil. Mas que é possível tornar esse processo menos sofrido.

Como poucas vezes no cinema norte americano, Lynch transforma as vastas lavouras de milho, os maquinários agrícolas gigantescos e a rotina de famílias conservadoras do interior em um conjunto bastante amigável, bucólico - o que é reforçado pela trilha sonora comovente de Ângelo Badalamenti. Sem pressa, o diretor nos conduz por inúmeras paisagens isoladas, de um calor palpável, que são enfrentadas com determinação por Alvin que, com seu olhar doce e acolhedor, de olhos sempre úmidos, se converte em uma figura afável, cheia de carisma e de paciência - como vemos em cenas como a que ele perde o seu chapéu inesperadamente, ou quando ele se depara com um grupo de ciclistas que cruza pelo seu caminho. Há um ideal meio afetuoso no todo, que é evidenciado pelo senso de cooperação presente na vida em comunidade. Ao cabo, todos torcem para que Alvin alcance o seu objetivo, por mais complexo e desafiador que ele seja. Em linhas gerais esse é um projeto com um fiapo de história, baseado em um evento real ocorrido em 1994, e que é divertido, solene e e contemplativo em igual medida. Não parece um filme do David Lynch. Mas talvez seja justamente por isso que ele se torne tão especial.


quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Cine Baú - Amarcord

De: Federico Fellini. Com Bruno Zanin, Magali Noël, Armando Brancia e Pupella Maggio. Comédia / Drama, Itália, 1973, 122 minutos.

O rigor da Igreja e do exército de um lado, o clima festivo e meio depravado de outro. A escola e a família como balizadores morais aqui, os desejos impulsivos e sexuais ali (basicamente em qualquer lugar). O fascismo duro e o progressismo utópico. O inverno e a primavera. Tudo meio amalgamado, misturado, de forma que fica quase difícil delimitar onde começa uma coisa e termina outra. É essa Itália vasta, complexa, heterogênea - que é capaz de converter uma passeata em favor de Mussolini em uma inesperada festividade -, que Federico Fellini retrata no autobiográfico Amarcord, filme que completa 50 anos de lançamento em 2023 e que está disponível na HBO Max. Adotando um estilo narrativo que se aproxima do de outros projetos, como no caso de A Doce Vida (1960), o diretor aposta em uma história fragmentada, episódica, que alfineta a alienação dos italianos, em meio a suas rotinas mesquinhas e diante da completa incapacidade de aquisição de alguma consciência política ou social.

Mesmo que espalhada em diversos atos, quase como se fossem pequenas esquetes, a trama é centrada no jovem Titta (Bruno Zanin) e suas idas e vindas entre aulas tediosas na escola - com professores incapazes de reter a atenção dos alunos com seus métodos retrógrados -, confissões de pecados na Igreja e um ímpeto para certa vagabundagem no vilarejo, onde tenta em vão atrair de todas as formas a atenção da sedutora Gradisca (Magali Noël), uma cabeleireira local. Quando está com sua família, a vida de Titta também não é fácil: seus pais Aurelio (Armando Brancia) e Miranda (Pupella Maggio) estão sempre em pé de guerra, convertendo um simples jantar em um front de batalha. Com tudo piorando quando o exército fascista chega oficialmente à cidade e prende Aurelio, sob a desculpa de ter incorrido em ato subversivo (após os generais ouvirem uma música contrária ao Regime). O castigo? Ele é obrigado a tomar uma dose de óleo de rícino.

Ainda assim não deixa de ser curioso notar como a presença de extremistas por todos os lados na região - influenciando não apenas no Estado, mas também na Igreja e na educação - sequer parece ser suficiente para que os habitantes despertem de sua letargia, que faz com que eles conduzam as suas vidas sem nem perceber as tragédias do entorno. Sabe aquele seu tio idoso, ali da Serra Gaúcha, que já afirmou não ter nenhuma memória negativa da Ditadura Militar porque nunca viu nada de ruim acontecendo? Pois é. Em certa altura da projeção, Ciccio (Fernando De Felice), um dos melhores amigos de Titta, tem um sonho "molhado" em que se casa com sua paixão de escola Aldina (Donatella Gambini) sob uma enorme efígie de Benito Mussolini que referenda a união. "Esse entusiasmo faz de nós jovens, mas também antigos", comemora alguém em meio a passeata em favor do Duce. É uma espécie de embrião do flash mob do Partido Novo em favor do "mito".

Sem jamais deixar a peteca cair, Fellini debocha desse coletivo de pessoas que soa até mesmo infantilizado, ainda que a sexualidade latente (à moda quinta série) pareça sempre pronta a vir à tona. Se numa das primeiras sequências a cidade está em polvorosa para os folguedos que saúdam a chegada da primavera, em outro os habitantes fazem uma guerra de bolas de neve para celebrar o frio do inverno. Entre uma e outra temporada, um sem fim de hormônios borbulhantes que estão sempre no limite da excitação - seja por Gradisca, seja pela prostituta Volpina (Josiane Tanzilli) ou seja ainda pela dona da tabacaria (Maria Antonieta Beluzzi), com seus enormes seios que, ironicamente, quase sufocam Titta quando ele se insinua para a voluptuosa mulher (que aceita suas investidas). "Eu quero uma mulher!" berra o tio de Titta, Teo (Ciccio Ingrascia) em uma das mais exóticas cenas do filme: recém saído de um manicômio ele sobe em uma árvore gigantesca e resolve, num arroubo de sinceridade, afirmar para o mundo o que lhe perturba de verdade. Onírica, melancólica, de tintas anarquistas, a produção venceria o prêmio na categoria Filme em Língua Estrangeira no Oscar daquele ano, aparecendo ainda em um sem fim de grandes obras de todas os tempos. Obrigatório é pouco.

quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Tesouros Cinéfilos - O Cafetã Azul (Le Bleu du Caftan)

De: Maryam Touzani. Com Lubna Azabal, Saleh Bakri e Ayoub Missioui. Drama, Marrocos / Bélgica / Dinamarca / França, 2022, 122 minutos.

[ATENÇÃO: ESSE TEXTO TEM ALGUNS SPOILERS]

Em uma das mais belas cenas de O Cafetã Azul (Le Bleu du Caftan), o casal Mina (Lubna Azabal) e Halim (Saleh Bakri) está em uma conversa bastante íntima, reveladora daquilo que pode ter sido um importante recorte de suas vidas. Aos prantos, Halim afirma ter tido muito medo de desonrar a esposa, por não ter conseguido superar aquilo que, aparentemente, ele acredita ser uma espécie de "mal". Naquela altura, o espectador já tem ciência da homossexualidade mantida em segredo pelo homem - como revelam os encontros às escondidas em saunas locais. E que se estendem para a forma afetuosa com que ele lida com o seu jovem funcionário, o dedicado Youssef (Ayoub Missioui). A resposta de Mina diante da manifestação do marido? O acolhimento. "Eu não poderia ter tido mais orgulho de ter sido sua esposa", retruca, de forma enternecedora. Um direcionamento diferente do previsto. E que eleva a obra a um outro patamar.

Como se fosse uma alegoria para os próprios cafetãs - que são túnicas lindamente ornamentadas, com costuras complexas e que costumam ser utilizadas por muçulmanos e judeus -, a obra da diretora Maryam Touzani, do ótimo Adam (2019), é pura sutileza e suavidade na abordagem de seu tema. Em cada close em que os tecidos são delicadamente trabalhados por Halim, parece haver um diálogo direto com a forma com que ele lida com sua sexualidade - sempre discreto, sem chamar a atenção, sem descambar para excessos. Mas sem deixar de vivê-la - com a conivência comovente de Mina, que padece de um câncer terminal. A homossexualidade no Marrocos é proibida e pode levar as pessoas à prisão. O que dá uma dimensão da potência do projeto, que arrancou aplausos em sua exibição no Festival de Cannes, e que foi o enviado do País ao Oscar desse ano (numa daquelas contradições que só a arte é capaz de alcançar).

 


Na trama, acompanhamos a rotina de Halim e Mina como alfaiates da medina de Salé. Em meio ao dia a dia de atendimento de clientes, de organização logística e de busca por certa pureza na confecção de suas peças (como verdadeiros artesãos), que podem levar meses para ser concluídas - o que leva até mesmo à insatisfação de alguns -, eles contratam Youssef como um aprendiz. Enquanto os dois homens parecem se aproximar mais a cada novo encontro, o que é apresentado sem nenhuma pressa, com trocas de olhares, silêncios calculados, mãos que se roçam, Mina sofre com os efeitos de sua doença. E por mais que o casal possa parecer eventualmente afastado, como pode acontecer com aqueles que estão juntos há muito tempo juntos, a sua cumplicidade carinhosa se sobressai nos detalhes - seja no respeito com que Halim cuida de Mina nos momentos mais íntimos, seja na forma como eles debocham de uma cliente desagradável, que os destrata exigindo pressa na produção do cafetã azul que dá nome a obra.

Aliás, é justamente nesse paradoxo entre tradição e modernidade, entre conservadorismo e contemporaneidade, que parece residir uma das forças do projeto. Fechado para ideias mais oxigenadas ou menos retrógradas, o mesmo Marrocos avança para processos mais tecnológicos na hora de elaborar as suas vestes que, atualmente, podem ser feitas com máquinas de costura. Halim parece lutar contra isso e o encantamento com Youssef também tem a ver com isso: o jovem gosta do ofício milenar. Mas há mais nesse combo de contradições e que servem como verdadeiras pílulas para discussão de outros assuntos. Em uma ótima sequência, por exemplo, Mina convida Halim para irem a um bar assistir a um jogo de futebol - o que em tempos de Copa do Mundo Feminina, com o Marrocos sendo o primeiro árabe da história a se classificar para o torneio, não deixa de ser uma bela rima. Autêntico, cheio de empatia, imprevisível. E, ainda, com interpretações magníficas do trio central. É impossível sair da mesma forma desse filme.


Pitaquinho Musical - Garotas Suecas (1 2 3 4)

Talvez um pouco menos efervescente, colorida ou "escaldante" do que em trabalhos anteriores. Assim pode ser resumida, ao menos em partes, a experiência com o quarto álbum de estúdio dos paulistas do Garotas Suecas. Famosos pelo bom humor e por certa irreverência que marcaria projetos como Escaldante Banda (2010) e Feras Míticas (2013), em 1 2 3 4 o coletivo formado por Irina Bertolucci (teclados), Tomaz Paoliello (guitarra), Fernando Perdido (baixo) e Nico Paoliello (bateria) entrega uma safra de canções de tonalidade mais sóbria - ainda que a personalidade do quarteto, o seu DNA, permaneça intacto. "Foi um disco que foi feito com nós quatro nos encontrando da maneira que dava, de máscara" explicou Tomaz, em entrevista ao site Mad Sound, dando uma dimensão da complexidade de se produzir um álbum em um contexto de pós-pandemia e de um projeto de extrema direita que afundou o País.



E ainda que os temas possam soar mais sérios, isso não significa necessariamente um aceno à melancolia. Mesmo em letras poeticamente reflexivas, como no caso do divertido single Gentrificação (Onde havia uma oficina, abriram um brechó / O restaurante estrelado já foi casa de uma avó / A costureira, a manicure, o armazém e o chaveiro / Viraram um prédio, ocupa o quarteirão inteiro), há um aceno para certo deboche, que se estende para a sonoridade que, o tempo todo, estabelece diálogo com o power pop, com a surf music dos anos 60 e com a Jovem Guarda. Com duas metades bem delimitadas, o álbum insere o ouvinte em crônicas cotidianas, relacionamentos complexos e dores da vida adulta na primeira parte, para avançar para discussões políticas e sociais em seu lado B - o que fica claro a partir da trinca What U Want, Como É Que Pode (uma das melhores do álbum) e Bala. Talvez melhor disco do Garotas Suecas? Vocês decidem.

Nota: 9,0


segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Tesouros Cinéfilos - Uma Cilada Para Roger Rabbit (Who Framed Roger Rabbit)

De: Robert Zemeckis. Com Bob Hoskins, Charles Fleischer, Christopher Lloyd, Joanna Cassidy, Kathleen Turner e Stubby Kaye. Comédia / Animação / Fantasia, EUA, 1988, 103 minutos.

Um dos filmes mais inovadores e divertidos dos anos 80 e que, como sessão nostalgia, segue insuperável. Mais ou menos assim da pra resumir a experiência de se assistir ao clássico da Sessão da Tarde Uma Cilada Para Roger Rabbit (Who Framed Roger Rabbit) - obra dirigida por Robert Zemeckis, que acaba de completar 35 anos de seu lançamento. E revisitar essa produção foi satisfatório não apenas por poder constatar as suas evidentes qualidades técnicas - a mescla de live action com animação é simplesmente perfeita -, mas também por perceber que a narrativa detetivesca é muito boa! A trama se passa em uma espécie de realidade alternativa na Los Angeles de 1947, onde seres humanos e personagens de desenho animado (os chamados toons) convivem normalmente. Só que nesse cenário, Roger Rabbit (Charles Fleischer) está com dificuldade para atuar em seu novo projeto, o que faz com que o produtor RK Maroon (Alan Tilvern) contrate um detetive particular, por achar que o coelho está com "problemas conjugais".

É aí que entra em cena Eddie Valiant (o ótimo Bob Hoskins), que é incumbido de ir atrás da estonteante Jessica Rabbit (que recebeu a voz sedutora e rouca de Kathleen Turner) para tentar descobrir se os rumores de que ela está tendo um caso com Marvin Acme (Stubby Kaye) - basicamente o dono de Toontown - são reais. E ao que tudo indica o caso é sim verdadeiro: Eddie obtém fotos comprometedoras da dupla que são entregues para Roger, que entra em desespero com a traição. Só que a coisa piora quando, na manhã seguinte, Acme é encontrado morto, assassinado. Com as circunstância do crime recaindo sobre Roger! Com segredos do passado envolvendo sua relação com os toons - seu irmão teria sido morto por um deles em circunstâncias que não ficam claras -, Eddie não estava querendo assumir o caso. Mas quando percebe que tudo parece ser uma tramoia pra incriminar o coelho resolve dar continuidade à investigação.



Claro que todo esse contexto não passará de uma ótima desculpa para um sem fim de piadas e de gags que envolvem a exótica relação entre humanos e toons. Quando chega no bar em que Jessica trabalha, por exemplo, Eddie se depara com a Betty Boop (Mae Questel), que brinca com o fato de ter de estar fazendo um bico de garçonete por "perdido espaço" com o advento do cinema colorido (por ser um desenho em preto e branco). Em outro instante, o investigador se depara com o "elenco" de Fantasia (1940), que teria sido contratado a preço de banana por Maroon para uso em seus filmes. E o quê dizer do Bebê Herman (Lou Hirsch) que, a despeito de sua aparência, é um senhor de cinquenta anos que vive fumando charutos, é ranzinza e reclama de não poder transar porque a mente não acompanha o corpo? É tudo tão freneticamente engraçado, com tantas esquetes simultâneas por metro quadrado, que a gente quase esquece da chantagem que envolve Roger.

E que tem a ver com a enigmática presença do Juiz Doom (Christopher Lloyd) - uma sinistra figura do Tribunal Superior de Toontown, que parece ter interesse na cidade e que desenvolveu a única arma letal para os desenhos: uma espécie de ácido que é resultado de uma mistura química conhecida como The Dip (vocês vão lembrar do líquido esverdeado que jorra por toda a parte no terço final). Com idas e vindas entre escritórios, bares, becos e estúdios de cinema, Eddie e Roger formam uma das mais improváveis duplas de herois da história do cinema, com o primeiro sendo a porção sisuda, ao passo que o coelho é a figura exageradamente cartunesca, que tem o objetivo de fazer rir. Com a trama se desenvolvendo em meio a ocorrências que envolvem um testamento perdido que poderá ruir Toontown, a obra ainda reserva para o seu terço final uma hilária surpresa - que não chega nem a ser tão surpreendente. E que resultará em um desfecho bem humorado, levemente sinistro e que atesta a qualidade da produção, que receberia três estatuetas do Oscar (Edição, Efeitos Sonoros e Efeitos Visuais). Tá disponível no Disney+ e vale recordar!


sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Tesouros Cinéfilos - As Invasões Bárbaras (Les Invasions Barbares)

De: Denys Arcand. Com Rémy Girard, Stéphane Rousseau, Dorothée Berryman e Marina Hands. Comédia / Drama, Canadá, 2003, 94 minutos.

Um filme cheio de diálogos espirituosos sobre política, cultura, história, religião e sexo e que, ao mesmo tempo, se constitui em uma poderosa história familiar centrada na complexa relação entre um pai idealista e um filho capitalista. Mais ou menos assim é possível resumir As Invasões Bárbaras (Les Invasions Barbares), premiada obra do diretor Denys Arcand, que completa 20 anos de lançamento em 2023. Espécie de continuação de O Declínio do Império Americano (1986), o projeto é centrado em seus personagens, que são apresentados como um coletivo repleto de diferenças - e de falhas -, mas ao mesmo tempo cheio de boas intenções. A trama inicia com Sebastién (Stéphane Rousseau), um liberal bem-sucedido da área financeira, que recebe de sua mãe Louise (Dorothée Berryman) uma triste notícia: seu pai Rémy (Rémy Girard), um professor universitário com um longo histórico de adultérios, padece em uma cama de um hospital público após ser diagnosticado com um câncer terminal.

Ter que interromper seus negócios para ir visitar o pai com quem não tem muito contato há vários anos - um rompimento que tem a ver com o comportamento hedonista de Rémy -, não parece animar muito Sebastién. Mas ainda assim ele sai de Londres, onde mora e trabalha, para ir até o Canadá onde está sua família. O encontro não parece promissor e já no começo do filme poderemos perceber como o esnobe moribundo soa presunçoso ao ridicularizar a carreira do filho, a quem atribui uma completa alienação de mundo que resulta da falta de leitura e de sua preferência por jogos de videogame. Por outro lado, Sebastién ficará exasperado ao se deparar com as condições nas quais seu pai está instalado no hospital - um tipo de estrutura que ele, como bom socialista, teria sido um ardoroso apoiador desde a década de 60. Para Rémy, seu bem-estar ao final da vida tem menos a ver com o financeiro: ele apenas quer estar com aqueles que ama, sejam antigos colegas, amigos intelectuais, amantes. Já Sebastién parece saber, em seu íntimo, que esses paliativos não serão suficientes. Há que se investir. Investir dinheiro, no caso.

Como se fossem uma espécie de Otávio e Tião, os personagens de Gianfrancesco Guarnieri e Carlos Alberto Riccelli em Eles Não Usam Black-Tie (1981), clássico brasileiro sobre um pai e um filho em lados políticos opostos, quando eclode uma greve de metalúrgicos, aqui, Rémy e Sebastién também relutam em aceitar o estilo de vida um do outro - ainda que a doença do primeiro fará com que o segundo, meio que na surdina, se compadeça. Nesse sentido, não serão poucas as vezes em que o jovem sacará um bolo volumoso de dinheiro do bolso, seja para subornar policiais, pessoas que possibilitem cuidados médicos mais adequados nos Estados Unidos ou para molhar a mão de representantes de um Sindicato local, que tendem a não aceitar movimentações de doentes do desorganizado hospital de Quebec. Em certa altura, Sebastién se aproximará de Nathalie (Marie-Josée Croze), uma jovem viciada em drogas, que pode ser a ponte para o fornecimento de heroína, uma droga muito mais potente que a morfina, e que poderá auxiliar a minimizar as dores do pai. 

E enquanto o capital faz a coisa acontecer, Rémy vai saboreando o seu ocaso em longas divagações filosóficas, existencialistas e até niilistas com seus amigos - o que resulta em agradáveis digressões sobre temas diversos, com muito vinho e risadas. Em certa altura, Rémy brinca sobre ter liberado uma verdadeira "cachoeira de esperma" em sua juventude, quando era apaixonado por Inés Orsini ou Françoise Hardy. Ao que seu amigo Pierre (Pierre Curzi) retruca de que está seria a explicação para a alteração do curso de um determinado rio canadense. Desavergonhados, engraçados e cínicos os diálogos são o ponto alto, funcionando ainda como uma metáfora para os tempos em que as Torres Gêmeas norte-americanas recém eram derrubadas, se constituindo em uma alegoria perfeita para o suposto "declínio" do título da obra. O mesmo declínio que atinge aqueles que assistimos que, agora, no limiar da terceira idade, encaram com certo desencanto o futuro, ao mesmo tempo em que romantizam, nostalgicamente, o passado. Ao cabo, esta é uma obra pequena mas abrangente, que trata o conflito geracional com inteligência, profundidade e com um sentimentalismo agridoce irresistível.


quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Cinema - Asteroid City

De: Wes Anderson. Com Scarlett Johansson, Jason Schwartzman, Tom Hanks, Edward Norton, Tilda Swinton e Steve Carell. Comédia, EUA, 2023, 105 minutos.

Já disse isso mais de uma vez e repito: poucos diretores são tão oito ou oitenta como Wes Anderson. Os fãs normalmente aguardam qualquer novo projeto com uma devoção comovente. Os detratores costumam brincar com o fato de o realizador fazer "sempre o mesmo filme". Será que a fórmula um dia vai se desgastar? No meu caso, confesso que fiquei com um sentimento meio ambíguo enquanto conferia Asteroid City, que entra em cartaz nos cinemas nesta semana. Por um lado, e sem soar presunçoso, esse é o tipo de obra que dificilmente deve arrebanhar novos apreciadores da estética excêntrica - e das histórias idem - de Anderson. Por outro, os convertidos devem se deliciar com mais uma narrativa repleta de personagens extravagantes, que trafegam em cenários saturadamente coloridos, enquanto são filmados em enquadramentos geometricamente calculados. Tudo meio de acordo com a cartilha de Anderson.

Talvez quem não assistiu Os Excêntricos Tenenbaums (2001), Moonrise Kingdom (2012) ou A Crônica Francesa (2021) ache tudo apenas esquisito - pra não dizer entediante mesmo. E, na real, tudo bem quanto a isso. Ninguém é obrigado. Aqui o diretor reuniu, como de praxe, um numeroso elenco de estrelas - alguns fazendo pequenas pontas de poucos minutos na tela, como é o caso da incensada Margot Robbie (que não para de colecionar recordes com Barbie) ou dos oscarizados Tom Hanks, Tilda Swinton e Willem Dafoe (que até não faturou o carecão, mas volta e meia é indicado). Outros atores, como Edward Norton, têm papel central na narrativa: ele é o dramaturgo Conrad Earp, que está tendo uma de suas peças encenada para o teatro. Nela, retornamos para o ano de 1955, no Oeste americano - um espaço isolado e arenoso, mas estranhamente futurista - onde ocorrerá uma convenção de jovens cinetistas na cidade que dá nome ao filme.


Aliás, o local se chama Asteroid City justamente por causa de uma enorme cratera, resultado de um fragmento caído três mil anos atrás (e que hoje é uma espécie de ponto turístico). Um dos primeiros a chegar para o evento é Augie Steenback (Jason Schwartzman), um fotojornalista de guerra, que está acompanhado de seu filho adolescente Woodrow (Jake Ryan). Depois que seu carro enguiça ele se vê impossibilitado de levar suas outras três filhas até a casa de seu sogro (Hanks), para que elas fiquem com o avô após a morte da mãe - o que é mantido em segredo. No povoado, Augie e Woodrow conhecem ainda Midge Campbell (Scarlett Johansson) uma atriz famosa meio niilista, que acompanha sua filha Dinah (Grace Edwards), que também será uma das homenageadas na convenção. Orbitando esse núcleo que, aos poucos e de forma meio torta, se aproximará, surgem ainda outras figuras singulares, como o general cinco estrelas Grif Gibson (Jeffrey Wright), a astrônoma Dr. Hickenlooper (Swinton), a jovem professora June Douglas (Maya Hawke), o gerente de um motel local (Steve Carrell), um mecânico, um grupo aleatório de caubois e um ônibus cheio de crianças, entre outros. Ufa! Ah, e tem um alienígena ainda. Acreditem.

Claro que tudo não passa de uma desculpa para que Anderson exercite as suas esquetes insólitas, indo de um personagem a outro em travellings matematicamente perfeitos, que aproximam e expandem - um tipo de recurso técnico que pode ser usado (ou não) em favor da narrativa. Aqui e ali, o diretor insere piadas meio indiretas que dizem respeito não apenas ao período histórico dos Estados Unidos - no caso, o do pós-guerra -, como ainda funcionam como divertido comentário social que atravessa os tempos. É este o caso, por exemplo, do instante em que vemos um trem que vagueia alegremente ainda no primeiro ato, ao som de uma canção country, sendo uma das cargas de um dos vagões uma ogiva nuclear que só deve ser disparada com "autorização presidencial". Em outro momento, a falecida esposa de Augie é apresentada como um montinho de cinzas dentro de uma tupperware. São instantes que, ao mesmo tempo que aludem a um humor extravagante, contribuem para que a narrativa avance. Colorido, exótico, eventualmente ilógico, esse é mais um Wes Anderson raiz que agradará iniciados. E talvez só eles mesmo.

Nota: 7,5


terça-feira, 8 de agosto de 2023

Pitaquinho Musical - Slowthai (UGLY)

"Você já sentiu vontade de cair? / Você já se sentiu como estivesse vagando no espaço?" (Falling, Slowthai)

A gente está devastado por dentro, mas sorri. Está com a mente desgraçada mas com a terapia em dia. Finge saúde e frequenta a academia. Come mal e sobrevive em empregos infelizes. Nesse mundo cheio de dores e barulhos por todos os lados parece que nunca estamos plenos, por mais que na fachada a gente faça de conta que está. O clima em UGLY, do rapper Slowthai é mais ou menos esse até no título do projeto - um acrônimo para U Gotta Love Yourself (ao mesmo tempo em que a tradução literal da palavra afirma o contrário). Nesse sentido, enquanto o artista evoca uma raiva que parece vir da alma - que é expressada em seus vocais selvagens, eventualmente gritados,com um pé no hip hop e outro no punk -, os versos percorrem os meandros da alma, fazendo escorrer sentimentos ambíguos. "Você é rei / Você é rainha / Você é gênio" afirma na abertura Yum para, já na sequência explicitar a sua luta interior (Estou sem motivação / Preciso de uma intervenção).

E muito da força do trabalho, o terceiro da carreira do artista, emerge desse universo de paradoxos. De um suposto bem-estar enquanto mergulhamos no caos. Se Selfish, por exemplo, fala sobre amor próprio ao mesmo tempo em que divaga sobre o que as pessoas em volta efetivamente pensam de você, Never Again alude a cenas cotidianas em meio a idas ao supermercados, fotos guardadas no telefone e relacionamentos que parecem impossíveis de ser superados. As letras verborrágicas se espalham por toda a parte e, mesmo quando repetidas em si mesmas, soam como mantras exagerados, hiperbólicos, que parecem forçar a barra nesse universo good vibes. "Todo mundo tem uma música que coloca quando está triste para se sentir bem, mas eu queria uma música para quando eu simplesmente me sinto mal, para que eu pudesse simplesmente levantar e dizer 'não, eu não me sinto bem!'", explicou o cantor, ao falar sobre o single Feel Good. E, vamos combinar que esses sentimentos borbulhantes que nos levam de lá pra cá não poderiam ser mais atuais.

Nota: 8,5


Novidades em Streaming - Rimini

De: Ulrich Seidl. Com Michael Thomas, Tessa Göttlicher, Hans-Michael Rehberg e Inge Maux. Drama, Alemanha / Itália / Áustria / França, 2022, 114 minutos.

Se tem um tipo de cinema que me fascina é aquele que adiciona camadas por baixo de uma superfície que parece ser rasa. Em muitos casos o resultado costuma ser um filme que parte de um microcosmo para, aqui e ali, ir nos fornecendo algumas pistas de que há algo maior do que sugere a eventual simplicidade narrativa. E talvez - talvez porque, é preciso que se admita que essa é a interpretação que faço - esse seja o caso do sugestivo Rimini, um drama agridoce sobre um cantor decadente que sobrevive de apresentações para idosos saudosistas, que é surpreendido pelo ressurgimento de sua filha anos depois de tê-la abandonado. Só que este é um projeto alemão, dirigido por Ulrich Seidl. O que significa que esse cenário que abarca as tragédias familiares, talvez seja apenas uma boa desculpa para uma análise mais elaborada da própria Alemanha, com suas feridas históricas que, em tempos de ascensão da extrema direita, ainda alcançam a contemporaneidade. Uma memória que, ao cabo, não se apaga tão facilmente.

Porque, por mais que Richie Bravo (Michael Thomas) seja uma figura excêntrica, carismática e performática, há que se admitir o fato de ele funcionar como uma espécie de ponte alegórica entre o arcaico e o contemporâneo, entre o antiquado e o moderno. Ok, evidentemente as suas canções desgraçadamente bregas parecem paralisadas em algum tempo entre a rádio romântica dos anos 80 e o programa de auditório kitsch, mas o caso é que, num comparativo com seu próprio pai - o preconceituoso, intolerante e saudoso do nazismo Ekkard (Hans-Michael Rehberg, em seu último papel da carreira) -, ele até parece alguém mais ou menos oxigenado (sensação reforçada pelo apetite sexual onipresente e pelo senso de juventude tardia, escapista e hedonista mesmo ele sendo alguém de sessenta e poucos anos). Só que quando a sua filha Tessa (Tessa Göttlicher) surge em sua vida para lhe cobrar dezoito anos de pensão nunca pagos, a conta histórica parece ser maior do que o fardo individual. Há que se reparar mais do que algumas centenas de euros.



E, nesse sentido, talvez não seja por acaso que Tessa surja reivindicando uma dívida gigantesca, acompanhada de seu namorado muçulmano. Mais do que isso, a jovem parece habitar uma espécie de comuna improvisada, daquelas que faria o próprio avô morrer de desgosto - lembremos dos contrastes. No meio do caminho do inverno europeu (e curiosamente praiano), Richie moverá mundos e fundos para tentar juntar a grana que compense a sua filha. O que envolverá não apenas as apresentações plastificadas em hotéis gélidos (ainda que os cenários multicoloridos se esforcem em sugerir o inverso), mas a venda do próprio corpo, já que o cantor era uma espécie de sex symbol do passado, como sugerem os pôsteres à moda Elvis Presley que ele preserva em sua casa que, agora, também serve como Airbnb de curiosos. Aliás, há que se destacar a forma louvável como Ulrich naturaliza a sexualidade na terceira idade, convertendo as sequências de transas entre idosos em momentos bastante sensuais e até mesmo, à sua maneira, afetuosos.

Só que, como dito lá no começo, esse não é apenas um drama familiar sobre uma filha que cobra o pai ausente. Nas andanças de Richie chamará a atenção o sem fim de moradores de rua e de imigrantes que habitam as calçadas (inclusive em períodos de nevasca). Em certa altura, o protagonista mostra certo temor em relação ao namorado de Tessa, que ele sequer conhece, fazendo aparentar uma xenofobia entranhada na alma, estruturalmente consolidada. Ainda assim, quando seu decrépito pai que padece de demência insiste em entoar, nos corredores da casa de repouso que reside, uma espécie de hino da juventude hitlerista, Richie cantará ainda mais alto alguma de suas baladas cafonas confrontando o idoso (e seus ideais ultrapassados). Os tempos mudaram, mas os esqueletos parecem incapazes de sair do armário. De serem superados. Há certa naturalização das dores do passado que custam, em alguns casos, a ser oficialmente extirpadas. Como explicar, por exemplo, a sequência em que Emmi (Inge Maux) narra, com a maior tranquilidade, quase aos risos, sobre a vez em que foi abusada sexualmente aos cinco anos de idade? A percepção de certos eventos pode ser nebulosa. A distância temporal também confunde. E o filme arremata todos esses elementos de forma muito coesa.

Nota: 8,5


segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Novidades em Streaming - Clonaram Tyrone! (They Cloned Tyred)

De: Juel Taylor. Com Jamie Foxx, Teyonah Parris, John Boyega e Kiefer Sutherland. Comédia / Ficção Científica, EUA, 2023, 122 minutos.

Um cafetão, uma prostituta e um traficante entram num bar e... finalmente temos um filme bom na Netflix! Mistura de O Show de Truman (1998) e Eles Vivem (1988), com pitadas de Jackie Brown (1998) no universo do blaxploitation, Clonaram Tyrone! (They Cloned Tyrone) é uma mescla eficiente de comédia, ficção científica e drama social sobre um trio que descobre fazer parte de um projeto governamental que envolve controle da mente, clonagem humana e supressão racial (ou eugenia mesmo). Sim, parece complexo, é bastante político e muito atual. Mas também incrivelmente engraçado. E caótico! A trama se passa em um espaço-tempo retrofuturista em que as pessoas falam no celular, citam Obama e Michelle, mas adotam figurinos típicos dos anos 70 enquanto trafegam pra lá e pra cá em Opalas e outros veículos do passado - aliás, o desenho de produção como um todo se consiste em uma grande mescla de todas as décadas recentes.

É nesse cenário que somos apresentados a Fontaine (John Boyega), um traficante da periferia de Glen, que vai confrontar o cafetão Slick Charles (Jamie Foxx) que, pelo visto, lhe deve uma grana. Após um rebu que envolve ainda a prostituta Yoyo (Teyonah Parris), Fontaine é assassinado em frente a casa de Charles por um rival local em seus negócios, um certo Isaac (J. Alphonse Nicholson). Só que quando o dia nasce, Fontaine acorda normalmente como se nada tivesse acontecido, conversa com a sua mãe, vai até o bar local, tenta a sorte na loteria e... vai cobrar novamente a dívida de Charles que, naturalmente, se desespera ao ver aquilo que acredita ser um fantasma. Como pode Fontaine estar vivo, se ele simplesmente assistiu de camarote o sujeito levar uma saraivada de tiros no pátio de sua residência? Essa é a desculpa para que eles resolvam investigar o que pode ter acontecido. O que envolve uma misteriosa van, que leva a uma casa ainda mais misteriosa, que conta com um laboratório em seu subsolo.



Sim, é um pouquinho elaborado e eu afirmo sem nenhuma vergonha o fato de que precisei assistir duas vezes ao filme do estreante Juel Taylor para pegar todos os detalhes, para encaixar melhor os fatos e para tentar compreender melhor quais eram as suas ideias. E se, num primeiro momento, a experiência parece meio diluída em meio a cenários anárquicos, discussões políticas profundas e piadas bastante específicas, lá pelas tantas as ideias começam a ficar claras. Especialmente quando o nosso trio de herois improváveis descobre um complexa instalação subterrânea que submete pessoas negras falecidas a uma espécie de processo de "depuração" que visa a embranquecer as suas peles gradativamente. Devolvidos à sociedade, estereótipos como os do preto traficante ou o da puta de cabelo afro serviriam para manter o status quo em funcionamento. Enquanto a sociedade, com suas mentes controladas, caminharia para um processo de homogeneização, sob a desculpa de que "ainda é melhor assimilar do que ser aniquilado".

Em alguma medida, a obra analisa um certo pacto de branquitude populacional onde todas as raças consomem mais ou menos os mesmos produtos - sejam eles frangos fritos cheios de produtos químicos, sucos de uva industrializados ou tinturas para cabelo que, evidentemente, visam a alisar os fios. Mesmo a música, especialmente o R&B ou o hip hop, deverá soar pasteurizado, suave. Não haverá mais espaço para a fúria, para a revolta ou para a revolução. A comunidade preta deve apenas aceitar que a sociedade é racista, devendo se adaptar a isso. Se for possível, sorria. Se se sentir injustiçado, não conteste. E talvez não seja por acaso que, nesse cenário de submissão, a Igreja surja como um potencializador da apropriação de mentes. Como se o entorpecimento por esse caminho também estivesse a serviço de poderosos. E não está? O filme abre com um longo debate sobre o embranquecimento de Michael Jackson, que culminará em uma saborosa sequência em que um funcionário do bunker subterrâneo - um branquelo de cabelos afro - entoa alegremente Don't Stop 'Til You Get Enough. É uma comédia. Mas que avança com profundidade em seus temas. Um baita acerto.

Nota: 8,0


quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Pitaquinho Musical - Luiza Lian (7 Estrelas / Quem Arrancou o Céu?)

"A minha música é uma paisagem / Pra você entrar e fazer sua viagem / Pra você entrar e fazer sua viagem / Luzes que nela correm são um espelho / Pra cada um iluminar o próprio caminho". Os primeiros versos de 7 Estrelas / Quem Arrancou o Céu?, quarto registro de inéditas da paulista Luiza Lian, não poderiam ser mais convidativos. Sim, cada um pode dar a sua interpretação pra música - e pra arte como um todo - e a cantora e compositora parece consciente disso já nos instantes iniciais do projeto. Ainda assim esse caráter convidativo de A Minha Música É - a primeira faixa - é diluído em uma melodia densa, cheia de efeitos eletrônicos ruidosos, que contrastam com a voz limpíssima da artista. E, honestamente, não precisa muito para que sejamos impactados por essa mescla entre placidez e balbúrdia, com essa dicotomia sendo admitida pela própria Luiza no material de apresentação: "sempre tive pra mim que o encontro com o espírito se dava pelo corpo", afirma.



Ao cabo esse é um disco de corpo e de alma, de concreto e de abstrato, de tecnologia e de espiritualidade, de futuro e de passado. Barulhinhos modernos que se misturam à percussões africanas, vocais robotizados em letras repletas de devaneios divinos, que se chocam com os prazeres da carne. "Tecnicolor, divinas estrelas / Beijei uma foto pixelada" divaga a musicista em Tecnicolor, parceria com Céu. O expediente segue com a saborosa Homenagem que, com sua letra divertidamente safada (Mas quando me vê passar bate uma saudade / Chega em casa pensa em mim faz uma homenagem), se equilibra entre o minimalismo e o deboche quando o assunto é o amor (e o sexo). Experimental em alguns instantes (Eu Estou Aqui), acessível em outros (Desabriga), o álbum é pura personalidade pós-pandemia. "O disco fala sobre a dificuldade de acessar a espiritualidade em um mundo tão desconectado [...] A gente nunca esteve tão conectado com a nossa realidade, mas nunca tão desconectado com a gente" resumiu em entrevista para a Revista Noize.

Nota: 9,0


terça-feira, 1 de agosto de 2023

Cinema - Loucas em Apuros (Joy Ride)

De: Adele Lim. Com Ashley Park, Sherry Cola, Sabrina Wu e Stephanie Hsu. Comédia, EUA, 2023, 93 minutos.

Os tempos mudaram e hoje em dia não são apenas os homens jovens, brancos e héteros que têm aquela comédia escatológica, delirante e hedonista pra chamar de sua. Sim, Se Beber Não Case pode ter feito certo sucesso em 2009, mas aquele ano agora parece tão distante, que um filme de humor histriônico carece de algumas atualizações pra permanecer mais ou menos relevante - especialmente na era do cancelamento. A solução encontrada por Loucas em Apuros (Joy Ride)? Que tal quatro garotas asiáticas vivendo as mais loucas aventuras, enquanto se empenham em encontrar a mãe de uma delas? E tudo isso na movimentada e caótica China? Ok, a diversidade é quase uma necessidade em 2023 - e basta pensar em obras recentes como Parasita (2019) e Tudo Em Todo Lugar ao Mesmo Tempo (2022) para que tenhamos a certeza da importância de ampliar os horizontes culturais. Agooora, significa que qualquer filme vai ser bom somente por adicionar esse componente?

E, justiça seja feita, eu amei os dois filmes oscarizados citados acima - as resenhas são a maior prova disso. Assim como sou um apaixonado pelo cinema do Japão, da Coreia do Sul ou da China. Mas o fato é que não consegui me conectar a contento com o projeto da diretora Adele Lim. E eu até faço uma espécie de "meia culpa" no sentido de que talvez eu não seja o público-alvo da obra. Com seu humor apressadíssimo, referências culturais dispersas, excentricidades sem limites e personagens que parecem sempre agir no modo over - no exagero mesmo -, o caso é que, lá pelas tantas, cansei. E comecei a olhar para o celular, esperando o final de uma vez. Há ideias boas? Há ideias boas. Especialmente quando o projeto se empenha em evidenciar o absurdo da xenofobia ou da discriminação racial que persiste nos tempos modernos.




Em uma das mais divertidas sequências, por exemplo, o quarteto está em um trem onde busca uma cabine que, obrigatoriamente, deverá ser compartilhada com desconhecidos. Após descartar outros vagões por motivos claramente preconceituosos, o grupo aceita dividir espaço com uma mulher loira, jovem e norte-americana que, mais adiante, se revelará como uma traficante de drogas. Outros instantes abordam o absurdo da intolerância mas de forma igualmente bem humorada, como no momento em que eles identificam as diferentes etnias asiáticas por meio de uma série de estereótipos. E estes são pontos positivos, inegavelmente. Na trama, somos apresentados às amigas de longa data  Audrey (Ashley Park) - uma garota que foi adotada por pais brancos ainda criança - e Lolo (Sherry Cola), que se conhecem em um parquinho do bairro quando na juventude, continuando ligadas pelo fato de ambas serem de descendência asiática (o que na "branquela" Seattle é um louvável ponto em comum).

Com personalidades distintas, Audrey é a advogada de tom mais sério que aspira uma melhor posição no escritório que trabalha, ao passo que Lolo é uma artista plástica iconoclasta, que aposta em um kitsch sexualizado em suas peças (em uma maquete de um parquinho de diversões o escorregador é a réplica de um pênis, só pra ficar num exemplo). E quando o chefe de Audrey a envia para uma importante viagem de negócios à China, Lolo vai em sua companhia para lhe auxiliar nas traduções, já que a amiga tem pouco contato com seu País de origem. Às duas se juntam ainda Deadeye (Sabrina Wu) - uma prima de Lolo meio inepta no que diz respeito às interações sociais e ainda Kat (Stephanie Hsu), uma ex-colega de faculdade de Audrey que hoje trabalha como atriz em produções de época. Claro que essa junção será apenas uma desculpa para que diferenças venham à tona o tempo todo, com o quarteto vivendo uma série de estripulias. Com tudo piorando quando Audrey é desafiada a encontrar sua mãe biológica para, somente aí, concretizar o negócio. Rende. É barulhento. Tem uma sequência do ponto de vista de - acredite - uma vagina. Mas é pouco. Infelizmente.

Nota: 5,0