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terça-feira, 15 de março de 2022

Lasquinha do Bernardo - A Dicotomia do Futebol e da Educação

Todo brasileiro é especialista em futebol e/ou educação. Adoramos sofrer e chorar pelo nosso time, paramos o país durante a Copa do Mundo e, lógico, nos tornamos autoridades (in)certificadas quando o assunto é arbitragem. Basta abrir sua rede social favorita e lá estão os comentários mais embasados envolvendo técnica e performance, divergências conceituais, teses homéricas sobre times reativos, linhas altas e baixas e sobre a capacidade do extrema esquerda em quebrar linhas e propor alternativas ao ataque em profundidade. Além disso, nutrimos um ódio fervoroso contra qualquer treinador que não enxergue a obviedade natural da titularidade dos nossos onze iniciais. Mas, apesar do interesse e fervor, o brasileiro médio é apenas um teórico-amador das quatro linhas. 

Já, na educação, os papéis se invertem muito por conta dos nossos anos de experiência prático-profissionais. Afinal, vivemos boa parte da infância e adolescência em uma sala de aula. Os noventa e poucos minutos diários do fã mais convicto de futebol não fazem frente às quatro ou cinco horas diárias dos alunos. É um fato, há milhares de frequentadores profissionais de aulas aposentados com grande conhecimento de causa. Apesar da antítese (pouquíssimos foram/são atletas e quase todos foram/são alunos), uma semelhança aproxima os dois universos: a falácia da dicotomia. No jogo, se perdeu, é ruim. Se ganhou, é bom. Somos sempre nós contra eles. Na escola, nota baixa, é burro. Notas altas, ótimo aluno. O vice deveria ter se esforçado mais. O aluno que não entendeu o conteúdo precisa estudar mais. Tão simples, fácil e prático quanto chutar uma bola. 

 

 

É justamente por sermos parte deste universo dualista/lugar-comum de alta performance, que o filme Entre os Muros da Escola (Entre Les Murs), vencedor da Palma de Ouro em 2008, adaptação do livro homônimo de François Bégaudeau, escritor e protagonista, encaixa tão bem. São raras as obras que retratam a sala de aula de maneira tão honesta e realista. Deixando de lado toda a romantização dos professores, que passam longe dos “guerreiros inspiradores” da maioria das representações à la Sociedade dos Poetas Mortos (1990), o filme francês apresenta personagens radicalmente verossímeis em situações corriqueiras das escolas: adolescentes gritando, dormindo, desinteressados e professores cansados, estressados e no limite da paciência. É o anticlichê dos filmes sobre educação e, por isso, beira ao documentário e não à ficção. Absolutamente naturalista, a narrativa se apresenta através de uma câmera que observa os alunos e professores no seu habitat natural, com todos os seus conflitos éticos e sociais, como racismo, desigualdade e imigração, e com as famosas discussões inflamadas sobre regras e disciplina entre alunos e professores. É de desconforto o sentimento que aflora à medida em que aquele retrato fiel vai se desenhando dentro de um ambiente escolar efervescente. Passando longe do senso comum, a obra é, antes, um choque de realidade, ninguém está certo ou errado, todos ali estão apenas sobrevivendo. 

E este peso da realidade que é apresentado no filme acaba sempre se impondo no mundo concreto da educação e também no futebol. Inclusive na cena final (não é spoiler!), em que os professores e alunos disputam uma partida. Entre os Muros da Escola é necessário porque reflete justamente a natural obviedade dos documentários: não há heróis ou vilões, somos todos selvagens, adultos ou adolescentes, animalizados pelas nossas paixões. Na vida sempre buscamos soluções simples, demite-se o treinador e o professor, afasta-se o aluno e o jogador. Ou deixa-se tudo como está, ou muda-se tudo, completamente. Amadores ou profissionais, teóricos ou práticos, ainda carregamos uma semelhança ainda mais clara e cristalina: torcemos muito para que dê tudo certo. 


terça-feira, 3 de novembro de 2020

Lasquinha do Bernardo - Os Braços Sedutores da Solidão

“A solidão é fera, a solidão devora”, escreveu certa vez Alceu Valença em uma bela canção.


Não é preciso ir longe para perceber que esta condição é tema de inúmeras canções, poemas, quadros, filmes e textos. Alguns fogem do assunto, compreensível, afinal a realidade pode ser tão ou mais dolorosa que a ficção. Há aqueles que já estão, muitas vezes, sozinhos e isolados, não é preciso que a arte os lembre disso. Para outros é simples e até mesmo factível imaginar um cenário no qual se está completamente só: andar pelas ruas desertas, sem a necessidade de desvios ou encontros desagradáveis, apreciar o silêncio, deixando para trás o barulho intenso dos carros e das pessoas, manter contato apenas com seu pensamento.

E é neste palco de total distância e isolamento, que Bruno (Fábio Porchat), protagonista de “Entre Abelhas”, drama brasileiro de 2015, produzido e estrelado por boa parte do agora ex-elenco do Porta dos Fundos, começa um exercício doloroso de solidão. O recém separado editor de vídeos percebe que aos poucos todas as pessoas vão simplesmente desaparecendo de sua vida, das suas fotos, das revistas e dos filmes. Em um primeiro momento tudo aparenta ser uma condição patológica fruto da má genética herdada de seu avô. Mas o que acompanhamos é muito mais subjetivo e verossímil, o final do seu relacionamento é repentino e traumático, além disso, ficar sozinho e se ver obrigado a voltar à casa de sua mãe, retornar aos clubes e rolês é difícil para um jovem adulto que acreditava ter alcançado a paz e o sossego. 

Porém, esta curiosa condição revela uma nova e perigosa perspectiva: transformar-se em editor de documentários sobre a natureza, nos quais não há necessidade de pessoas na tela. Assim, aos poucos, o jovem vai acostumando, vivendo uma espécie de profecia pré-pandêmica, afinal, esta agora é a condição que a vida lhe impôs. Bruno, como muitos, cai nos braços sedutores da solidão. Estar sempre sozinho é servir um belo banquete para muitos convidados íntimos, em que todos jantam, mas só um exige perfeição do chef, a insegurança. É fácil criar a autoimagem do romântico leitor de (insira aqui o seu escritor triste favorito), sob a meia luz, torcendo pela próxima noite chuvosa, enquanto ouve um disco de mais uma daquelas bandas melancólicas em uma selva de pedra qualquer.

Em 1882, Machado de Assis publicou o conto “O Espelho”, apresentando a teoria das duas almas, a exterior e a interior. A primeira é a representação concreta de qualquer objeto ou anseio (um militar, por exemplo, acredita que sua farda lhe define), enquanto a segunda é a alma tradicional, espiritual e intangível. A alma exterior é visível quando olhamos para o espelho, mas é sobretudo o que eu desejo ser, maquiado por alguma roupa, acessório ou, neste caso, uma ideia: a falsa noção de que estar constantemente só é um grande projeto pessoal necessário. O protagonista machadiano, atormentado pela alma exterior criada para si, permanece solitário por inúmeros dias, gastando horas e mais horas em frente ao espelho, reafirmando uma posição que parece confortável, mas apontava para uma grande apatia. Aquela imagem reproduzida deixa de ser um instrumento e se torna uma obsessão, então o jovem suprime a sua alma interior e, por insegurança e necessidade de autoafirmação, permanece solitário.

O Bruxo do Cosme Velho, gênio que foi, com a teoria das almas já antecipava uma palavra da moda, um estado positivo de privação: a solitude. Este sim, movimento necessário, difícil, mas real e sem paixões. A nossa alma interior necessita, em boa medida, de sobriedade e boas doses de razão. Já a solidão, fera devoradora, voraz, precisa de atenção exclusiva, exige demais e, como todo péssimo convidado, nunca sabe a hora de ir embora.

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Lasquinha do Bernardo - As Respostas Não Estão em Paris

Há sempre um desejo profundo escondido nos melhores sonhos e nas mais delirantes fantasias de sua alma. Dedicar-se a um instrumento, cuidar melhor da saúde, ter independência financeira, viajar pelo mundo, manter um cronograma comprometido de estudos ou até mesmo escrever um livro. É um enredo bastante comum e muito particular, a insatisfação com a realidade faz com que busquemos aquilo que um dia foi, ou continua sendo, nossa grande paixão. Contudo, acabamos esbarrando nos problemas mais comuns de uma vida ordinária, não temos tempo, não temos dinheiro, não temos algum conhecimento prévio necessário e, acima de tudo, não temos coragem para mudar ou reorganizar a rotina.

O cinema é uma fábrica redentora de desejos frustrados. Quase sempre os mais clichês possíveis, como o músico que sonha em ser um rock/pop star e é descoberto pelo produtor que passa pelas acinzentadas ruas de Londres, o artista plástico incompreendido pelo vulgo que é um sucesso depois de morto, o mochileiro solitário em busca de autoconhecimento (sempre na europa, afinal somente lá podemos encontrar a verdadeira cultura e filosofia) que vivencia o amor da sua vida e, claro, o ávido leitor classe média que sonha em escrever um clássico da literatura universal. Confesso que, sendo professor de literatura e produtor de conteúdo dedicado aos livros, muitas vezes me vi fantasiando uma grande palestra ou uma sessão de autógrafos na Feira do Livro de Porto Alegre, ao lado de grandes mestres da estirpe de Charles Kiefer, Luis Fernando Veríssimo, Milton Hatoum e Altair Martins, para ficar apenas nas “possibilidades reais” da vida. Enquanto isso, aqueles contos e poemas inacabados que - talvez - um dia se convertam em uma edição continuam escondidos e muito bem guardados nas gavetas virtuais do computador.


É comum desejarmos o nosso “Meia-Noite em Paris” particular, aquele momento em que os astros e os signos se alinham e o universo conspira para nossa felicidade, nos presenteando com as respostas mais reveladoras e com os mais didáticos acontecimentos, uma espécie de vida em modo tutorial, tão fácil, tão simples….e totalmente irreal. O filme de Woody Allen, ganhador do Oscar de Melhor Roteiro Original em 2012, é belíssimo ao apresentar a romântica, atual e nostálgica, Paris que, convenhamos, é cenário perfeito para qualquer obra, seja na rua, na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapê. Gil Pender (Owen Wilson) é um roteirista de sucesso em busca de inspiração para finalizar o seu romance e que, amarrado junto à família de sua noiva Inez (Rachel McAdams), não consegue desenvolver sua escrita, não consegue encontrar a sua voz. Sobra dinheiro, sobra tempo, sobra técnica, mas lhe falta coragem. E nós, muito distantes do protagonista do filme, ficamos frustrados quando reconhecemos que Hemingway em pessoa não vai nos dar uma dica preciosa, nos mostrar uma técnica narrativa surpreendente. Pensamos em desistir quando percebemos que Salvador Dalí não vai nos convidar para saborear um bom vinho tinto e destilar toda sua genialidade em nosso favor.

Deixo aqui as epifanias hollywoodianas de lado para a necessidade de escrever o óbvio: as respostas não estão na astrologia, no acaso ou em Paris. A inspiração não é um objeto, mas um estado. Não é preciso sair em busca de um cálice sagrado, ou melhor, saia, procure, mas atente ao percurso. Estamos sempre tão focados em algum tipo de prêmio e esquecemos que o processo mais revelador e surpreendente é permitir-se vivenciar as experiências, liberando um espaço interno da nossa mente e coração. A vida real pode ser a prática mais inspiradora possível e as respostas estão nas suas dores, alegrias, vitórias e derrotas. Na teoria é bem mais fácil, há que se admitir, mas você pode estar em Londres, Berlim, Budapeste, em Roma ou Pequim, quase casado com a Rachel McAdams e ainda estar insatisfeito.


Jesse e Céline (Ethan Hawke e Julie Delpy) ou "o melhor casal da história do cinema", em “Antes da Meia-Noite”, percebem que a realidade, mesmo que dura, é melhor do que o mais improvável sonho de verão. Imagine você que Viena, Paris, Nova Iorque e Atenas não foram o bastante. A inspiração está em um táxi, em passeio durante a tarde, em uma mesinha de bar, na própria relação, nos seus filhos, em uma música ou em um filme de Woody Allen num sábado qualquer.

terça-feira, 16 de junho de 2020

Lasquinha do Bernardo - Caio Fernando Abreu e The Office: A Grande Falta em Michael Scott e Bolsonaro

Por: Bernardo Siqueira

Avenida Slough, 1725 – Scranton – Pensilvânia.
Filial da Dunder Mifflin Paper Company, Inc.

Observe este local. Um típico escritório. Ao abrir a porta você percebe uma simpática e eficaz recepcionista, atenta ao telefone, “Dunder Mifflin, this is Pam”, que não raro dirige seu olhar para a mesa que está a sua frente e sorri. Este gesto simples é logo interrompido por um momento de vergonha, como são as demonstrações honestas de um amor escondido que escorre pelo rosto, indevidamente. Pam Beesly, interpretada por Jenna Fischer, tem uma visão ampla, quase completa, deste grande ambiente. Tudo ocorre na perfeita e tediosa normalidade de um dia de trabalho. Não para Jim Halpert (John Krasinski) que está mais ocupado pregando peças ou, em bom português, enchendo o saco, sistematicamente, de Dwight Schrute (Rainn Wilson), um descendente de alemães com inspirações nazifascistas, fazendeiro, criador de beterrabas e cuja maior responsabilidade e prazer é puxar o saco e o tapete, se necessário for, do seu gerente, Michael Scott (Steve Carell).

Este cenário e ações descritas são o ponto de partida para quase todos os episódios de The Office, adaptação americana da série britânica de mesmo nome, lançada nos Estados Unidos pela NBC em 2005 e que, depois de nove intensas e hilárias temporadas, chegou ao fim em 2013.


Michael é o autodenominado “melhor chefe do mundo” como orgulhosamente exposto em sua caneca, um singelo presente a si mesmo. Solteirão megalomaníaco, verdadeiro tiozão do pavê, com um repertório imenso de piadas de mau gosto e comentários inapropriados que fariam a família Bolsonaro e seus seguidores ficarem ruborizados (minto, até para Michael há limites!) o líder do escritório é o pior pesadelo de qualquer funcionário, um verdadeiro exercício de vergonha alheia. Pode parecer contraditório ou paradoxal, mas é impossível não amar Michael Scott. The Office é uma trajetória de redenção e, sobretudo, de amor.      

Apesar de todas as peripécias, o gerente regional faz todo o possível para agradar e ser amado. Michael é leal, inocente e dono de um angustiado coração.  Aos poucos vamos conhecendo esse homem que é movido pela dedicação ao trabalho e percebemos que há uma ausência na sua vida, como escreve Caio Fernando Abreu no conto “Transformações”, “a Grande Falta crepitava em chamas dentro dele”. É verdade que isso não o torna menos ridículo ou incapaz de perceber os limites socias, mas enquanto todos estão absortos em suas atividades mecânicas, Michael está tramando algum tipo de diversão muito específica e improvável que, em sua mente cartunesca, alegrará o dia do escritório e tornará o trabalho robotizado em uma catarse coletiva. É a perceptível Grande Falta, um desejo intrínseco de agradar seus comandados, que difere o desajuste da maldade. Há certa complexidade nesta personagem que nos gera um imenso constrangimento e, ao mesmo tempo, um grande carinho. Michael é guiado pela insegurança, pela necessidade de validação e se desdobra, sempre com cômico exagero, para atingir a legitimidade.

Não é preciso ir muito longe, especialmente se você estiver em Brasília, para observar similaridades nas atitudes de Michael e Bolsonaro. Engana-se quem pensa que a comparação reside no fato do presidente ter a complexidade de uma folha em branco, o que aproximaria o Palácio do Planalto da Dunder Mifflin, fornecedora de papéis. Também não é pelo fato de Dwight, braço direito de Michael, ser autoritário e misógino. O que os une é a diferente perspectiva sobre a mesma Grande Falta. Se o gerente regional está preocupado com invencionices para transformar a rotina maçante do escritório, Bolsonaro parece fazer o oposto. Preocupado em inflamar a população contra os mais diversos inimigos da pátria, como o Supremo, o Establishment e o Comunismo, acaba se tornando aquilo que, de fato, é o papel de Michael: ser uma piada.


O que faz arder o coração de Bolsonaro não é o desejo profundo de agregar, de compartilhar alegrias e de união, como percebemos no protagonista de The Office. Mesmo com todos os defeitos aceitáveis para uma pessoa civilizada, Michael é o desajustado bom, e Bolsonaro insiste em interpretar o “cidadão de bem”, o desajustado malvado, armamentista e desqualificado. Ambos constrangem e embaraçam. Um deseja amigos, o outro, a morte e, este, infelizmente, está na realidade e não em séries de televisão.  A psicologia explica com maior qualidade o que é visível nestas duas personagens: há diferentes formas de lidar com a sua Grande Ausência, Grande Indiferença ou Grande Partida, citadas por Caio F. Abreu.

A Grande Falta está em todos nós. Ela pode não ser perceptível, talvez hoje esteja guardada em lugares inacessíveis, em imensos desertos emocionais, mas sempre é acompanhada do brutal morcego de Augusto dos Anjos que, “por mais que a gente faça, à noite, entra imperceptivelmente em nosso quarto”. E ali, no escuro, ao observar o morcego da Consciência Humana, Michael sorri, talvez arrependido por um comentário ou outro, arquitetando o próximo dia de aventuras na sede regional da Dunder Mifflin. Bolsonaro, por sua vez, briga, se levanta e tenta espantar o animal, enquanto, pela janela, o país pega fogo.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Lasquinha do Bernardo - A Primeira Vez de Um Homem ou (Punk Mesmo é Falar de Amor)

Texto: Bernardo Siqueira

Há certos chamados do destino que não podemos ignorar. Não lembro com exatidão o dia, o mês ou até mesmo o ano, mas lembro do local e das pessoas. Antigamente, quando nos era permitida a liberdade, havia um cantinho especial em Lajeado, hoje já revitalizado e frequentado por outro público. Antes da construção do teatro da Univates, alguns amigos se encontravam ali com frequência quase religiosa. Vou preservar o nome das personagens, poderia revelar suas identidades, contudo, fica aqui apenas o capricho do autor. O pequeno grupo de pessoas tinha uma finalidade nobre com fim em si mesmo, a amizade. Não é preciso descrever os encontros, a não ser um aspecto comum entre tantos outros encontros: o violão, o cantor e as músicas. O repertório era diverso e imprevisível, lembro-me de uma famosa versão de Dívida do Ultramen declamada (isso mesmo, declamada) com muita propriedade em espanhol, em tradução livre, como os leitores podem imaginar. Não raro, porém, recebíamos alguma “estrela móvel”, um pedestre que por ali passava, alguém que saíra do trabalho ou um amigo de outro amigo que não conhecíamos. Em uma dessas inúmeras noites às margens da Avelino Talini, conheci o homem com o violão, mas não era nosso cantor oficial, nem o mesmo violão e muito menos a mesma música.

A letra que capturou a minha atenção contava sobre um triângulo amoroso e uma flor. Nada mais clichê do que canções de amor, mas essa não era apenas uma canção de amor. Era dramática, era triste, era a minha cara. A dor de um foi a glória do outro. Quando a música acabou, meu primeiro reflexo foi perguntar se aquela era uma obra autoral, não era. O leitor mais próximo já deve ter percebido que escrevo sobre A Flor da banda carioca Los Hermanos que, a partir daquele primeiro acorde, é figurinha mais do que carimbada na minha vida. O resto é história. Comprar os quatro álbuns, ganhar DVDs dos amigos, baixar toda a discografia (aqui não escondo minha idade) e fazer todo o esforço possível para ir ao show, anos depois, em Porto Alegre no Pepsi On Stage. Aquele domingo foi marcante, como toda primeira vez.


No último dia 14, a banda liderada por Marcelo Camelo e Rodrigo Amarante lançou nas plataformas de streaming um álbum contendo músicas ao vivo executadas durante os shows de 2019, celebrando os vinte anos de lançamento do seu primeiro disco. Foi a desculpa perfeita para ouvir e vibrar novamente com toda a poesia, sentimentalismo e melancolia que são características dos quatro barbudos. Dia desses, após um episódio do podcast do Picanha sobre Guilty Pleasures a questão retornou das cinzas: é vergonhoso gostar de Los Hermanos? É certo que banda carrega uma legião de fãs pelo Brasil, mas percebo muitos amigos e muitos desconhecidos pelos confins da internet desmerecendo o trabalho ou pior, reduzindo toda obra construída em Anna Júlia que, justiça seja feita, é uma ótima música.

A primeira análise óbvia é que há pessoas que não gostam das músicas e ponto final. Não é nesta direção que me dirijo. Uma possível explicação para o demérito seja a própria trajetória da banda, que surge com um ska-punk-rock romântico para fazer inveja aos ultrarromânticos no primeiro disco e vai, aos poucos, se tornando mais intimista, mais reflexiva e mais madura, nas composições e nas narrativas. Talvez encontremos ainda alguém que encha os pulmões para dizer que “eles traíram o movimento!”. Outra tentativa de explicarmos o hate seja a complexidade das letras que foram se modificando à medida que a banda traçava sua trajetória. O fato é que sempre vai ter alguém para proferir o tal “Loser-manos”. Deixar de lado o som frenético, incorporar sensibilidade, ressignificar o amor romântico nas composições não são características de um perdedor, mas sempre haverá aquele que ainda não está pronto para ter essa conversa.


E aqui fica o acerto de contas. Punk mesmo é ter coragem para falar de amor. Atitude rock’n’roll de verdade é poder sentir, é entender que podemos estar tristes e, tudo bem. E não tem problema não entender aquela letra, é estranha mesmo. Há beleza também na dor. Um dia acordarás acreditando ser a pessoa mais sentimental do mundo e podes ficar tranquilo. Olharás o espelho e verás um cara estranho, deslocado, sem saber para onde ir. Não é preciso correr atrás da aprovação dos outros vencedores, seja rebelde, seja punk de verdade. Teu machismo, disfarçado de preconceito musical, precisa acabar.

Afinal, todo carnaval tem seu fim. 

terça-feira, 26 de maio de 2020

Lasquinha do Bernardo - Abrir o Coração é Um Saco

Pessoal, estamos com um novo quadro! Nele, o nosso parceiro Bernardo Siqueira - da Sonar Podcasts, que é a responsável por colocar o nosso podcast do Picanha Cultural no ar -, dá o seu pitaco. Ou, melhor dizendo, pra linguagem ficar de acordo com o Picanha: a sua Lasquinha! No espaço do Bernardo ele vai ter a liberdade de falar do que quiser e como quiser - e certamente falará com a propriedade de quem curte filmes, séries e música, assim como nós, com o diferencial de ser formado em Letras e atuar como professor. Seja bem-vindo Bernardo! A "lasquinha" será toda tua, para a hora que quiser descer no nosso prato! E, vocês, queridos leitores, espero que vocês gostem!
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Abrir o Coração é Um Saco
(Por: Bernardo Siqueira)

O texto encara um título amargo, mal humorado e até rebelde. Não é difícil nos encontrarmos nessa situação durante um período também ácido e doloroso. Mas, o que para muitos é uma tortura, para outros pode ser uma janela para novas descobertas: ficar em casa. E foi assim que aconteceu, entre um filme revisto e uma série repetida, descobri, literalmente, uma janela para um novo mundo. Em abril desse ano, a Netflix, famoso serviço de streaming audiovisual, lançou a animação The Midnight Gospel, criada pelo mesmo produtor de outra série animada e celebrada, A Hora da Aventura. O enredo é muito simples: Clancy, um produtor de podcast (aqui a explicação pelo meu interesse instantâneo), navega através de um simulador de realidades pelo universo, encontrando diversas personagens peculiares em situações igualmente peculiares e até mesmo desesperadoras como, por exemplo, um apocalipse zumbi ou um mundo submerso habitado por gatos marinheiros. O interesse de Clancy é singelo, entrevistar esses seres estranhos e discutir o que os move no seu percurso diário de sobrevivência.

Em cada episódio há uma conversa profunda que serve como base para vários questionamentos ao espectador, cada entrevistado tem uma crença, um ensinamento ou um conselho para ser dado ao protagonista, sobre amor, sobre morte, sobre perdão. Porém, há um episódio em especial, que vou guardar em segredo para não desanimar os mais ansiosos, no qual Clancy diz exatamente o título desse texto. Uma intensa e melancólica conversa entre o podcaster e sua mãe, que enfrenta uma situação de vulnerabilidade. O protagonista se vê de mãos atadas, pois existe a garantia do sofrimento e, ao mesmo tempo, a vontade inerente do ser humano de fugir da sua realidade. É quando sua mãe lhe diz que “as pessoas tentam evitar pensar no fato de que vão morrer e de que as pessoas que elas amam vão morrer e isso abre seu coração, ele se parte para abrir. Nossos corações ficam fechados porque nós os fechamos, nós tentamos nos proteger da dor. Lidar com a morte abre o coração.


O impacto desse diálogo em mim foi imediato e até bastante óbvio. Quantas pessoas desrespeitando o distanciamento social você já viu? Quantos amigos e parentes preferem colher desculpas na árvore da sua arrogância e ignorar a pandemia, bradando que tudo não passa de uma invenção midiática? É isso, senhoras e senhores, o medo da realidade mais cruel e certeira, a morte. Quando nos encontramos em situações-limite, somos um simulacro de Clancy, preferimos fugir ou entrar em um mundo alternativo, buscar culpados, criar um avatar, uma sombra do que somos, no lugar de uma solução simples, porém dolorosa: abrir nosso coração. C.S. Lewis, filósofo britânico, no livro A Abolição do Homem escreve que “um coração duro não é uma proteção infalível contra um miolo mole.” Posições negacionistas não vão nos proteger ou nos salvar.

A realidade, apesar de dura, é... real. É aqui que encontramos a satisfação e a dor. É o único lugar capaz de transformarmos um coração endurecido, partido pela perda, pelo isolamento, pela mentira, em algo bom, em amor, ou em solidariedade, que é um tipo de amor. Quem prefere ficar distante do óbvio em tempos difíceis presta um desserviço a si mesmo, envolvendo seus sentimentos em um sepulcro. Abrir o coração é um saco? É terrível, é um exercício contra nosso próprio ego e, cá entre nós, ninguém gosta de enfrentar o seu verdadeiro eu. Mas está ali, na palavra, mais uma vez, uma cura contra a nossa alienação pessoal. Sempre dói? Pergunta de Clancy a sua mãe e aqui dirigida a você, leitor. Respondo: não sei. Em mim, sempre dói.