sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Encontro com a Professora - Pacto de Sangue (Double Indemnity)

Billy Wilder e a arte de desconstruir clichês

Engana-se, ao menos em parte, quem pensa que foram atrizes como Theda Bara, Marlene Dietrich, Greta Garbo e Marilyn Monroe que prestaram o maior serviço para a construção da femme fatale no cinema hollywoodiano. Elas engrandeceram a tela, provocaram homens e mulheres, criaram uma aura de gélido distanciamento ou de possibilidades infinitas de prazer. Mas...

...no meio do caminho estava Barbara Stanwyck.


 Esta garota de pouco mais de 1,60m não era exatamente uma beldade. Nem tinha as curvas mais provocantes ou lançava olhares com aquele Je ne sais quoi de Dietrich ou de Garbo. Tanto podia ser uma pacata dona de casa como uma senhora da alta sociedade. Ou seja, não havia em torno dela a construção fixa de femme fatale. O filme que deu a ela esta aura foi o incrivelmente bem feito Pacto de Sangue (Double Indemnity, 1944). Dirigido por Billy Wilder, foi indicado a sete Oscar. O longa é baseado em uma história real que se transformou em romance pelas mãos de James M. Cain, em 1935. O roteiro é de Raymond Chandler, conhecido escritor noir.

No filme, o severo agente de seguros Walter Neff (Fred Mac Murray) conhece e se apaixona por Phyllis Dietrichson (Stanwyck), a atraente esposa de um milionário. Em pouco tempo, Neff abandona a ética e o bom senso e Phyllis o convence a matar o marido dela, a fim de receber o dinheiro do seguro de vida. Mas não pode ser “qualquer” tipo de assassinato. Para receber o dinheiro, é preciso convencer a seguradora que se trata de um acidente pessoal. Desnecessário dizer que as coisas não saem como planejadas. E, na verdade, isso pouco importa.

 

Wilder segue à risca a fórmula do filme noir, sem torná-lo um clichê: uma mulher sedutora e misteriosa; um homem desiludido com a humanidade – no caso de Neff, ele não crê que possa ser enganado, pois conhece o caráter humano –; um "detetive" astuto – o chefe de Neff –; uma série de reviravoltas, um ambiente sufocante, com a prevalência da filmagem em preto e branco. Diferentemente da trama policial clássica (Agatha Christie, Conan Doyle, por exemplo), que garantiu a glória do gênero desde os começos da era industrial, no texto noir escrito a partir de Dashiel Hammett (1894-1961) – de quem Chandler era seguidor – mais importante do que saber quem cometeu o crime é descobrir como se chega à conclusão.

Quando Phyllis Dietrichson desce as escadas, deslumbrando Neff que a vê pela primeira vez, o espectador sabe que ele está encrencado. É também quando Stanwyck, brilhantemente dirigida por Wilder, apresenta e solidifica, em simultaneidade, a femme fatale e a estética noir. Pouco a pouco, a expectativa e a dúvida passam a nos rondar: como tudo isso vai terminar? Como deslindar esta rede – da qual somos comparsas, já que acompanhamos a elaboração e a execução do crime – e na qual os detestáveis vilões se tornaram os protagonistas incontestes, identificando-se com o público? Sobretudo, pesa a pergunta: como alguém tão maduro e idôneo como Walter Neff pode descer a tal nível?


Não há, no entanto, inverossimilhança na mudança de comportamento de Neff. Uma retomada ao início do filme lança luz sobre um homem saturado pela rotina e pela previsibilidade. Para ele, a resposta para o crime é clara: I killed him for money and for a woman. Mas talvez nada seja simples assim e este implícito coloca mais uma estrela na classificação de Pacto de Sangue como um clássico.

Tanto Mac Murray quanto Stanwyck relutaram em aceitar os respectivos papéis. Para convencer Barbara a incorporar Phyllis, Wilder teria lhe perguntado se ela era uma atriz ou um rato. A resposta é o melhor filme noir de todos os tempos.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Lado B Classe A - Arcade Fire (Funeral)

No mês de outubro de 2005 houve, em Porto Alegre, um noite mágica para este jornalista fã de boa música. E para milhares de pessoas que praticamente lotaram o Pepsi On Stage para assistir uma apresentação dos americanos dos Strokes. Não, você não leu errado. Lembro como se fosse hoje: ao lado dos amigos e eternas parcerias Diogo Botti e Rodrigão Macedo, chegamos cedo para acompanhar a exibição dos sempre legais Acústicos e Valvulados. Entre os gaúchos e a banda de fundo havia um outro show previsto: de um grupo canadense chamado Arcade Fire e que pouquíssimo havia ouvido falar. Confesso que, na ocasião, não tinha tido acesso ao som do grupo, que havia lançado seu primeiro trabalho, Funeral, no finalzinho de 2004. Na real, fora aqueles sujeitos mais antenados ao que ocorria no mundo da música alternativa - Spotify e Deezer eram como um sonho dentro de algum filme futurista - talvez poucos ali soubessem do que estavam prestes a presenciar.

Eu não tenho bem certeza, mas se não me engano a música que abriu a apresentação foi Wake Up. Aquele amontoado de gente no palco - contando todos os instrumentistas, o grupo chega a quase 10 integrantes - aquele falso refrão que é uma barbada de cantar em coro, um tipo de arranjo ao mesmo tempo melancólico e espacial, capaz de jogar o ouvinte lá pro meio dos melhores discos do David Bowie dos anos 70. Tudo somado ainda a emanações etéreas, enevoadas, rasgantes. Sério, poucas vezes tive um baque tão grande com uma banda nova, como naquela noite, naquele show. Pra quem aguardava, entre uma cerveja e outra, a apresentação de Julian Casablancas e companhia, não poderia haver melhor aperitivo. Aperitivo que, na real, veio a se mostrar, nos dias posteriores, uma espécie de suculento prato principal. E que até hoje é capaz de alçar o prazer de se ouvir boa música a um outro patamar.



Nos dias posteriores aquela apresentação, lembro de ter "furado o disco" - pra usar uma expressão bem da época em que ainda ouvíamos CDs - em infinitas audições madrugada adentro. O disco, por muitos anos, foi um dos meus preferidos - condição a que se mantém até hoje, não posso negar. Não se trata apenas de pop perfeito, iluminado quase que literalmente por arranjos de cordas imprevisíveis, sintetizadores bem pontuados e uma série de camadas que ambientam o som dos canadenses entre o otimismo dark e o sofrimento ensolarado. Se trata de uma estreia que conseguiu ser ao mesmo tempo grandiosa e intimista, potente e sutil. Muito se fala que a última grande banda que surgiu nesse milênio - após Nirvana e Radiohead terem dado o último suspiro ainda no século passado - foi, por ironia do destino, o próprio Strokes. Pois eu discordo frontalmente em relação a essa assertiva: com o seu riquíssimo repertório de registros, é do Arcade Fire este posto, até o momento.

Com letras capazes de versar sobre temas tão distintos, como, amadurecimento (Neighborhood #1 - Tunnels), programa espacial soviético (Neighborhood #2 - Laika), nostalgia (Wake Up) e imigração (Haiti), o disco ainda promove uma fácil aproximação com o ouvinte. Não apenas de quem gosta de música alternativa - e talvez até seja exagero enquadrar esse registro no nosso Lado B Classe A - mas também dos fãs de músicas comerciais e radiofônicas. Como ignorar o refrão grudento de Crown Of Love, por exemplo? Ou o compasso absolutamente ritmado e contagiante de Rebellion (Lies)? Ainda assim, o clima geral, e as metáforas empregadas, tem, em seu fundo, a intenção de fazer uma reflexão sobre nossas atitudes durante a vida e sobre como nos preparamos para o ocaso de nossa existência. Não à toa, o clima sacro e o título do álbum efetivamente remetem a morte, já que quatro integrantes perderam parentes próximos semanas antes do lançamento do disco. Algo que talvez também tenha contribuído para a grandiosidade desse registro. Sobre o show dos Strokes, em 2005? Não lembro, pois saímos antes do final. Já satisfeitos com a dose cavalar de boa música que recebemos na ocasião.

Na Espera - Ave, César! (Filme)

George Clooney, Josh Brolin, Scarlett Johansson, Ralph Fiennes, Channing Tatum, Tilda Swinton, Jonah Hill e Frances McDormand. Esse foi o "modestíssimo" grupo de atores que os irmãos Joel e Ethan Coen reuniram para o seu mais recente filme, o aguardado Ave, César (Hail, Caesar!), que deve chegar aos cinemas daqui no próximo dia 10 de março. Não bastasse o elenco absolutamente estelar, a obra promete divertir tanto como já aconteceu em outras pérolas da dupla de realizadores - casos de Fargo (1996), O Grande Lebowski (1998) e E aí, Meu Irmão, Cadê Você? (2000).


A trama se passa na Hollywood dos anos 50. É nesse cenário que Edward Mannix (Brolin) trabalha como o responsável por proteger as estrelas do Estúdio Capitol de escândalos e polêmicas. Ele viverá um dia intenso quando Baird Whitlock (Clooney), o astro de uma superprodução chamada Hail, Caesar! for sequestrado por uma organização que leva o misterioso nome de Futuro. O trailer capricha nas piadas e no clima colorido-kitsch, que marcou muitas dos grandes musicais dos Anos de Ouro. A completa esnobada da Academia, na temporada de premiações, de certa forma surpreende, ainda mais em um ano em que o Oscar - tão desacreditado - pouco promete. De qualquer maneira, enquanto o filme não chega, a gente se diverte com o trailer!


quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Cinema - A Grande Aposta (The Big Short)

De: Adam McKay. Com Ryan Gosling, Christian Bale, Steve Carell, Brad Pitt, Melissa Leo e Marisa Tomei. Comédia dramática, EUA, 2015, 131 minutos.

Em setembro de 2008 o mercado imobiliário norte-americano entrou em colapso, resultando em uma crise econômica talvez só vista, anteriormente, na época da quebra da Bolsa de Valores de Nova York, que veio a acarretar a Grande Depressão nos Estados Unidos. O indicado ao Oscar - e um dos favoritos, após a recente vitória na premiação do Sindicato dos Produtores (PGA) - A Grande Aposta (The Big Short) se propõe a contar essa história, mas de uma maneira diferente: partindo justamente do ponto de vista daqueles que apostaram todas as suas fichas CONTRA o "infalível" sistema financeiro americano, a fim de lucrar milhões (e até bilhões) de dólares, as custas do sofrimento de centenas de milhares de pessoas que depositaram tudo no sonho da casa própria.

Assim, o que se vê na tela são sujeitos inescrupulosos dos mais variados tipos, sejam eles banqueiros, investidores, corretores e empresários de médio porte, que atuam em companhias de seguro, instituições bancárias e agências de classificação. Todos tendo por base apenas a ganância e o foco no lucro pessoal - e no polpudo bônus do final do mês - em uma espécie de cadeia alimentar da titularização, onde bancos realizam financiamentos que são verdadeiros negócios de risco, investidores compram esses títulos por um outro tanto, companhias de seguro fazem vista grossa e agências de classificação completam a farra, ranqueando com grandes notas - o famoso Triple AAA - os papeis. Inclusive os de alto risco. Tudo movido, em absolutamente todas as etapas, por gigantes movimentações financeiras, com outros crimes, como lavagem de dinheiro, estelionato, fraudes em notas fiscais e falsificação, fazendo parte do bolo. Enfim, a tal "bolha imobiliária" era inevitável.


Eu sei, parece chato. E, no começo, até dá a impressão de que vai MESMO ser chato. Termos como tranches, subprimes, títulos lastreados, hipotecas, derivativos de crédito, obrigações de dívidas garantidas, empréstimos ninja (sim, acredite) e outras tantas expressões, que somente aqueles economistas caga regras, que aparecem em noticiosos parecem entender, são colocados em um texto rápido e repleto de informações importantes. O que exige do espectador, inicialmente, certa concentração. Sim, inicialmente. Não demora muito para que o diretor Adam McKay mude o tom e resolva brincar com essa certa solenidade que envolve o tema, trazendo leveza na condução da trama. Tudo no melhor estilo "rir, pra não chorar".

Não custa lembrar que McKay dirigiu os absolutamente hilários O Âncora (2004), Ricky Bobby - A Toda Velocidade (2006) e Quase Irmãos (2008). Nesse sentido, e tendo a frente da produção um diretor de comédias - talvez um dos melhores de sua geração -, não faltam referenciais pop (músicas, séries, filmes), trilha sonora cheia de hits, quebras de quarta parede, gags engraçadas (a cena em que um grupo de especuladores pratica tiro ao alvo em inimigos públicos dos norte-americanos, como Osama Bin Laden, é sensacional) e uma série de celebridades - casos de Selena Gomes e Margot Robbie - que aparecem nos momentos mais "espinhosos" para esclarecer para o público o que alguns daqueles fatos querem dizer. O que torna a sessão não apenas mais divertida, como também mais didática. Especialmente para os que, assim como eu, não estão assim tão familiarizados com Wall Street e todos os seus caminhos.





Ainda assim isso não significa que o drama não esteja lá. A ideia central não é fazer deboche de um acontecimento real que marcou a vida dos americanos da pior maneira possível, resultando na falência de bancos e em milhões de desempregados e de desabrigados. Além dos trilhões em títulos pendentes, claro. O objetivo é mostrar como uma situação que beira o nonsense - americanos ambiciosos (e estúpidos) torcendo pelo fracasso e pela miséria de muitas pessoas -, consegue ser tão patética quanto as próprias piadas que compõem o roteiro, num processo de análise de uma realidade tão absurda, que, no fim das contas, só rindo pra conseguir aguentar. Algo que é alcançado com grande mérito não apenas pelo roteiro bem intrincado e pelo argumento nunca monótono, mas também pelas incríveis atuações - com destaque para Christian Bale (indicado ao Oscar) e, especialmente, Steve Carell, em mais um excelente papel dramático depois de Foxcatcher - Uma História que Chocou o Mundo. Pra ver e rever.

Nota: 9,0

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Disco da Semana - David Bowie (Blackstar)

Existe uma história muito legal (e curiosa) envolvendo as últimas semanas antes da morte do compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart. Em 1791, já debilitado pela doença que lhe atingia, Mozart foi encarregado pelo conde Franz Von Walsegg de compor um Réquiem em Ré Menor - espécie de missa fúnebre que serviria de trilha sonora para o enterro da esposa do nobre. Só que o austríaco não andava numa boa fase. Além de o conde ter lhe parecido um sujeito um tanto quanto misterioso, Mozart ainda nutria uma certa obsessão com ideias de morte, desde que o seu pai tinha ido desta para uma melhor. Somada ainda a esta conjuntura os graves sintomas que as inflamações na garganta lhe acometiam e, pronto: o compositor talvez tenha entendido esse contexto como uma espécie de "mensagem do além", colocando em sua obra - especialmente em trechos como a Lacrimosa - toda a carga dramática, angustiante, em alguns momentos até sobrenatural e, evidentemente, de grande rigor e sensibilidade barroca, que, oras, no fim das contas, bem poderia ter servido para o seu próprio funeral.

Se Mozart sabia que iria morrer? Bom, não temos como saber e as opiniões se dividem na hora de falar, inclusive sobre as causas da morte - que, hoje, se sabem, foram naturais e fruto de uma infecção generalizada. Da mesma forma, são muitas as explicações sobre o processo de finalização do Réquiem, que, pensava-se, ter sido fruto do trabalho de um dos pupilos do austríaco, o compositor Franz Xavier Süssmayr. O que, dada a complexidade do trabalho final - coisa de gênio, mesmo - possibilitou a pesquisadores concluírem que Süssmayr pouco teve a ver com a conclusão da peça. A essa altura do campeonato, o leitor do Picanha certamente já percebeu onde este modesto artigo quer chegar. Teria David Bowie, com o impressionantemente soturno Blackstar - mais recente registro - "previsto", assim como parece ter ocorrido com Mozart, o seu próprio óbito? O videoclipe de Lazarus - e suas dezenas de mensagens secretas, com direito a cenas de sofrimento em uma cama de hospital -, apenas dois dias antes de sua morte, também não contribuiria para esta tese?


A verdade é que não temos como saber. Os sinais parecem estar todos lá. Desde o clima melancólico e sufocante que permeia todo o registro - num movimento novamente "camaleônico", pra usar a expressão que o consagrou -, e que distancia a obra, por exemplo, do teor levemente festivo e pop, do trabalho anterior, The Next Day (2013). Época em que Bowie ainda não sabia do terrível mal que lhe acometeria apenas um ano depois. As letras, igualmente pessimistas, parecem também apontar para o mesmo caminho, como pode ser visto na própria Lazarus (Look up here, I'm in heaven/ I've got scars that can't be seen/ I've got drama, can't be stolen) ou em Blackstar (Something happened on the day he died/ Spirit rose a metre then stepped aside). A própria capa, uma estrela preta em meio a um fundo branco também serviria, de acordo com o responsável pela arte, o amigo de longa data Jonathan Barnbrook, como uma representação do senso de mortalidade, tão palpável a Bowie em seus últimos momentos.

Ainda que tudo isto pouco importe dada a grandiosidade da obra do inglês - capaz de influenciar praticamente TODAS as bandas modernas que, certamente, beberam de sua fonte em algum momento da vida - é quase inevitável pensar em todo esse conjunto de signos como uma última circunstância de genialidade artística, capaz de colocar o ídolo, novamente, alguns passos acima de tantos outros que nascem de (raros) tempos em tempos. Ao dialogar tão naturalmente com a morte, em seus últimos dias, Bowie praticamente construiu o seu próprio Réquiem, a sua marcha fúnebre pessoal, a sua preparação para um descanso, que provavelmente será de muita paz. Assim como Mozart, Bowie foi um virtuoso, de altíssimo grau de intelectualidade, capaz de fazer com que todos aqueles apaixonados pela sua arte, dialogassem diretamente com ela, mesmo em seus momentos mais derradeiros. Imprimindo, dessa maneira, seu último trabalho diretamente nos aflitos corações dos fãs, que o eternizaram em seus movimentos e repetições.

Nota: 8,5

PS: texto escrito a partir das (ótimas) ideias da namorada Natally.

domingo, 24 de janeiro de 2016

Picanha.doc - Cartel Land

O tema narcotráfico tem sido debatido incessantemente nos últimos tempos, com inúmeras obras sobre o gênero sendo disponibilizadas ao grande público principalmente no ano que passou. Séries como Breaking Bad ou até a mais recente Narcos, passando pelo excepcional filme Sicario (indicado a 3 Oscars), mostram que o problema segue em uma espiral infinita que está longe de ser solucionada, trazendo uma série de consequências trágicas devido à sua complexidade. Mas nenhuma obra esteve tão no meio da ferida como este estarrecedor documentário Cartel Land (disponível no Netflix).

Indicado ao Oscar 2016 na sua categoria (e um dos favoritos ao prêmio, diga-se de passagem), o filme coloca seus autores literalmente no meio da guerra do narcotráfico no México, bem como suas repercussões na fronteira com os Estados Unidos. Dirigido por Matthew Heineman, o doc concentra-se simultaneamente em duas partes: uma delas acompanhando o veterano militar americano Tim "Nailer" Foley, que tem como propósito de vida patrulhar a fronteira e evitar a entrada de mexicanos ilegais. A outra, seguindo a rotina do médico mexicano José Manuel Mireles, da cidade de Michoacán que, revoltado com o domínio e abuso dos narcotraficantes locais (os sanguinários Cavaleiros Templários), lidera um levante convocando os cidadãos locais a criarem uma milícia armada e combater com as próprias mãos estes "inimigos".


O que mais impressiona aqui é a coragem dos realizadores em acompanhar estas rotinas, mesmo que para isso tivessem que colocar suas próprias vidas em risco. Ao entrevistar membros do cartel logo no início do filme, vemos a dimensão do terror a que estaremos submetidos na sequência - criminosos que, sem perspectiva de futuro, vêem no tráfico de drogas a única maneira de levarem suas vidas, mesmo que para isso tenham que matar ou morrer. Por outro lado, temos a insatisfação de uma população (personificada pelo seu líder, "El doctor" Mireles) desamparada por um governo corrupto que pouco tem a lhes oferecer em relação às suas reivindicações.

Servindo também como estudo de personagens, Cartel Land traça um perfil preciso de seus protagonistas: se em Dr. Mireles temos um cidadão respeitado que com sua revolta acaba por liderar um movimento que ultrapassa a linha da legalidade, de outro temos o americano Tim Foley que, repleto de traumas que levam a uma xenofobia preocupante, lidera o seu grupo em uma guerra solitária contra o "tráfico de drogas" (leia-se: entrada de mexicanos) através da fronteira, uma iniciativa questionável por não ter amparo legal do governo de seu país.

Sem jamais tentar simplificar a situação nem estereotipar seus personagens, ao final do filme temos a certeza que, amparado em um mercado de drogas e armas, sujeitos que agem com as próprias mãos na ausência de um Estado protetor podem a qualquer momento romper a tênue linha que separa o bem do mal - o que torna seus resultados ainda mais trágicos, preocupantes e sem perspectivas de melhora.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Na Espera - Weezer (Disco)

Não é piada de primeira de abril, não! O Weezer anunciou para esta data o lançamento de um novo disco de estúdio - após o elogiado Everything Will Be Alright in the End, de 2014. O trabalho se chamará White Album, assim como já ocorreu anteriormente com outros álbuns homônimos, que receberam nomes de cores, como azul, verde e vermelho. O mistério sobre o novo lançamento começou a ser desvendado após o grupo de Rivers Cuomo divulgar uma série de imagens brancas e até mesmo uma espécie de videoclipe em que se vê apenas um fundo esmaecido, com uma sonoridade plácida.


A julgar pelos singles lançados até o momento, especula-se sobre uma possível volta a sonoridade utilizada no início da carreira, especialmente em registros como o garageiro Blue Album (1994) e o versátil Pinkerton (1996) - até hoje tido por público e crítica como o melhor lançamento dos californianos. Enquanto o disco não chega, os fãs já podem curtir as músicas disponibilizadas previamente, como no caso do videoclipe King Of the World, lançado no final da semana passada. É só clicar e conferir!


Lançamento de Videoclipe - Grimes (Kill V. Maim)

Quem acompanha o Picanha, sabe: somos fanáticos pela banda da cantora Claire Boucher, o Grimes. Não à toa, colocamos o imperdível álbum Art Angels, num honroso segundo lugar na nossa lista de melhores de 2015! Como forma de seguir na divulgação do trabalho, que tem recebido críticas e elogios de grande parte da crítica especializada, a canadense lançou, na última terça-feira (19/01), um videoclipe para a divertida e frenética canção Kill V. Maim. Altamente colorido, dançante e um tanto kitsch, o vídeo foi dirigido pela própria cantora - que na real é a legítima "faz tudo" da banda - ao lado de seu irmão Mac. A canção, como quase todo disco, tem alta carga pop, fazendo aquela mistura bacana de synthpop oitentista, com hip hop - mas sem perder o clima "Annie Lennox enlouquecida na balada". Vale a pena clicar!


quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Encontro com a Professora - O Criado (The Servant)

Mais um daqueles textos iluminados da nossa querida colunista Rosane Cardoso que nos brinda, dessa vez, com uma análise maravilhosa do ótimo O Criado, de Joseph Losey. Boa leitura!

Sobre criados e patrões
O Criado

Escrito por Harold Pinter, baseado no romance de Robin Maughan, O Criado (The Servant, 1963) é uma pérola. Denso, em preto e branco, pontuado por uma excelente trilha sonora de blues e jazz, este filme inglês é dirigido Joseph Losey. James Fox e Dirk Borgade interpretam, respectivamente, Tony, um aristocrata que compra uma bela casa que precisa de reforma, e Barrett, que atende ao anúncio de Tony solicitando um criado que resolva todos os seus problemas domésticos e pessoais.

E Barrett faz exatamente o que o patrão exigiu: toma conta de tudo.  Nem os avisos da namorada Susan (Wendy Craig) conseguem alertar Tony para o que virá. A chegada de Vera (Sarah Miles), amante de Barrett que se passa por sua irmã, desencadeia a catástrofe anunciada. Tramas, traições, baixaria, perdas. Quando Tony se dá conta da situação em que se meteu, expulsa os “irmãos” da casa. Mas já é tarde demais, pois não consegue mais viver sem a assistência do criado. Readmitido, Barrett impõe suas próprias regras, transformando o patrão em um sujeito patético.


Mas não se trata de uma simples inversão de papéis e é nesta complexidade que está a beleza do filme. Barrett não mais obedece, mas continua servindo. Tony não manda mais, mas segue recebendo pelo que pagou. O paradoxo é que servir Tony dá o poder ao criado e receber tudo nas mãos rebaixa tremendamente o patrão.

A parceria doentia se constrói através de discussões existenciais, brincadeiras infantis, prostitutas decadentes e muito álcool. Com isso, as cenas vão se tornando cada vez mais pesadas. Já não há tomadas externas, nem luz, nem natureza e começa a se destacar uma personagem essencial à trama, a casa, agora o único cenário do filme, com sombras que se agigantam, claustrofobicamente.


À primeira vista, filme parece tropeçar na vulgaridade excessiva de Vera. Porém, é ela que denota a essência moral de Barrett. Francamente, eu preferiria que o criado fosse mais sofisticado – uma espécie de James Stevens “do mal” (personagem de Anthony Hopkins em Vestígios do dia, 1993). Contudo, o meu desejo tem problemas, pois a baixeza dos “irmãos” ratifica a decadência de Tony neste enredo genial sobre a luta de classes. Além disso, se Barrett fosse sofisticado como eu gostaria, ele se converteria em um vilão clássico, elevando a Tony, e Pinter e Losey querem mais da trama do que dicotomias e o rebaixamento das personagens é avassalador, quase niilista. Tony, ao se relacionar sexualmente com Vera, transpõe os limites hierárquicos da pior maneira, não apenas pela diferença social, mas porque a jovem é absolutamente vazia, um objeto sexual sem vontade própria e sem voz.




Nesse sentido, chamo a atenção para o fato de Tony ser sempre chamado pelo primeiro nome (e de “Senhor”, claro, por Barrett), ao passo que o criado é quase sempre tratado pelo sobrenome. A ausência deste tratamento que, no caso do patrão, representaria respeito e no caso do empregado, distanciamento, demonstra o modo como Tony é visto por todos: um jovem tolo e influenciável, não um sir. Quanto ao criado, cabe a ele deixar isso perfeitamente claro. Não “qualquer” criado, mas alguém moralmente medíocre como Barrett. No fim, não há mais distinções entre eles. Gritam um com o outro, xingam-se como se estivessem na sarjeta, deixam cair todas as máscaras.

Soturna, a casa observa.

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Especiais Oscar: O Menino e o Mundo

A indicação do brasileiro O Menino e O Mundo na categoria de Melhor Animação para a premiação do Oscar 2016 pegou todo mundo de surpresa - inclusive aquele seu amigo cinéfilo hipster que, se bobear, sequer tinha ouvido falar do trabalho de Alê Abreu, como brincou o Sensacionalista. Mas fomos surpreendidos não pela (inquestionável) qualidade artística do projeto - capaz de equilibrar um tracejado simples, de "giz de cera", com uma trama complexa sobre a opressão em um mundo em que prevalece o individualismo, as diferenças sociais e tecnologia desenfreada - mas sim pela forma como essa pequena grande obra chegou ao principal prêmio do cinema, tendo agora como desafio bater de frente com gigantes como Divertida Mente, da Pixar. O filme foi lançado no final de 2013 e entrou em cartaz, ao menos por aqui, em janeiro de 2014. O que, em tese, o credenciaria para o Oscar daquele ano. Sim, em tese.

A jogada que deslocou o filme de Abreu para a disputa da estatueta dourada nesse ano tem a ver com o sistema de distribuição da obra em solo americano. A detentora dos direitos da película na terra do Tio Sam é a GKids - maior distribuidora de filmes de animação independentes do País e que tem batalhado forte para que o nosso "Menino dos Olhos" emplaque de vez nos Estados Unidos, como revelou matéria publicada pelo El País. Ainda que a briga seja no melhor estilo Davi e Golias - pra usar o surrado chavão - nos bastidores o sonho de bater os favoritos da noite é grande - além de Divertida Mente, ainda corre por fora Anomalisa, mais recente empreitada do diretor Charlie Kaufman, e que é defendido com unhas e dentes pela gigante Paramount Pictures. Ainda mais se levarmos em conta o fato de o filme já ter faturado 44 prêmios em festivais mundo afora - e isso com uma obra com orçamento de apenas 500 mil dólares. (Para efeito de comparação, o filme da Pixar custou US$ 200 milhões)


Se vamos ganhar, é coisa que só saberemos na noite do dia 28 de fevereiro. A disputa com gigantes do setor evidentemente é complicada - não à toa, nas bolsas de apostas o filme de Abreu aparece geralmente em quarto lugar, entre os favoritos. Mas vai saber, né? A GKids, com o seu rico catálogo, parece ter ótimo trânsito em Hollywood, de acordo com a mesma matéria do El País. Quem não se lembra, por exemplo, da vez em que Juan José Campanella bateu Michael Haneke, levando a estatueta na categoria Filme Estrangeiro com o seu imperdível O Segredo de Seus Olhos (2010)? E isso que o favoritíssimo, na ocasião, era o incensado A Fita Branca (2010), do austríaco. Enfim, são coisas que eventualmente acontecem e que enchem nossos surrados corações cinéfilos de esperanças!

Mas ganhar, vamos combinar, agora é detalhe! O Menino e O Mundo, com sua história ao mesmo tempo singela e realista - e que mostra um jovem garoto do interior que vê seu pai migrar para a cidade grande atrás de melhores oportunidades, perseguindo-o incansavelmente, logo após, movido pelo sentimento demasiado humano da saudade - deve ser vista por todos. É uma obra tocante, doce, que mostra a transição forçada de um jovem para a fase adulta, ocasião em que irá descobrir da maneira mais melancólica possível como sobrevive uma sociedade (doente) em que a ordem do dia é consumir. É ter, ter e ter. É viver pensando em si e no seu umbigo. E mostrar para os outros que tem, num ciclo de espetacularização da vida em que pouco importa se, logo ao lado, outros passarão fome. Ou não terão emprego. O que importa é o número. E a geração de divisas. Em uma emblemática cena, o jovem acompanha a poluição acachapante e desvairada que caudalosamente toma conta de todo um ecossistema, inclusive dos rios - fruto de um sistema que premia poucos e que ainda é aplaudido por muitos. Alguém aí lembrou de algum evento real que seja parecido?


Claro, há gente boa lá no meio e será a essas pessoas que o menino se apegará em sua jornada, em um filme que, além de divertir e inundar os olhos pela riqueza de detalhes do trabalho - a forma como o rapaz "guarda" na sua mente as notas musicais tocadas pelo pai na época de sua infância é daquelas que ficarão na memória para sempre -, ainda fará pensar, como poucas animações são capazes de fazer. E, ainda por cima, o filme ainda possui uma matadora trilha sonora do Emicida, nosso primeiro colocado entre os Melhores Discos Nacionais de 2015!




segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Novidade em DVD - Shaun: O Carneiro (Shaun The Sheep Movie)

De: Richard Starzak e Mark Burton. Com Omid Djalili, Andy Nyman e Nick Park. Animação / Aventura / Comédia, Reino Unido / França, 2015, 85 minutos.

Entre tantas experiências cinematográficas prazerosas, uma das que tenho grande apreço é a que envolve as animações em stop motion. Especialmente aquelas que, alinhada a técnica impecável, ainda são capazes de contar boas e divertidas histórias, que possam ser marcantes tanto para crianças como para adultos. Nesse sentido deveria ser terminantemente proibido para qualquer crítico de cinema - e, vejam bem, certamente não me incluo entre estes, já que, como sempre digo, sou apenas um cara que gosta de filmes e escreve sobre - elaborar qualquer resenha negativa sobre obras do segmento. Dadas as exigências desse trabalho exaustivo, repetitivo e minucioso, capaz de envolver a dedicação de centenas de pessoas - algo que pode ser visto e entendido em uma série de vídeos existentes internet afora, como é o caso deste.

O recém lançado em DVD, Shaun: O Carneiro (Shaun The Sheep Movie) utiliza exatamente esta técnica, já adotada anteriormente em pequenas pérolas do estilo, casos de Fuga das Galinhas (2000) e Wallace e Gromit (2005) - não por acaso o o filme é da mesma desenvolvedora, no caso a Aardman Animations. Na trama, o carneiro Shaun, ao lado de seus companheiros de fazenda, cumpre uma rotina repetitiva, que envolve levantar, trabalhar e dormir - e a divertida sequência inicial mostra de que maneira o tédio começa aos poucos a afetar o dia a dia de todos. Para quebrar a mesmice, o protagonista resolve bolar um plano para que o rebanho possa tirar um dia de folga. Nem é preciso dizer que a ideia não funcionará. O resultado será o grupo todo perdido na "cidade grande", inclusive o pragmático (e carinhoso, é preciso que se diga) fazendeiro responsável pela propriedade, que, de quebra, ainda perde a memória em um acidente no caminho para a metrópole.


No melhor estilo Sessão da Tarde, o grupo - que fará de tudo para localizar o seu dono para que todos possam voltar em paz para casa - viverá altas aventuras ao lado do cão de guarda da propriedade, Bitzer, e de uma nova amiga, a simpática cachorrinha Slip, que rouba a cena. Além de ter de se adaptar ao caos urbano, os carneiros ainda se verão as voltas com uma espécie de funcionário responsável pelo recolhimento de animais, que não hesitará em levar os "maus elementos" para uma espécie de canil, que mais parece uma prisão de segurança máxima - e as piadas relacionadas ao local estão, certamente, entre as melhores da película. Ao abrir mão de diálogos, o filme investe em uma narrativa que se vale do visual para contar cada parte da história, algo que funciona de forma plenamente satisfatória, conferindo ainda a obra um certo charme de "cinema mudo" em seu desenvolvimento.

A propósito das piadas, elas certamente agradarão tanto crianças - que se divertirão, por exemplo, com o sistema adotado pelos carneiros para adormecer as pessoas - como adultos - que encontrarão durante os 85 minutos de exibição referências tão diversas como as relacionadas a capa do disco Abbey Road dos Beatles, ou mesmo a filmes como O Silêncio dos Inocentes (1991), e, na melhor delas, do clássico O Mensageiro do Diabo (1955). Simples e singela, a obra - indicada ao Oscar na categoria Melhor Animação (em que concorrerá com o favorito Divertida Mente da Pixar e com o brasileiro O Menino e o Mundo) - ainda funciona como uma pequena ode a beleza da vida simples no campo - em um contraponto a urgência opressora da cidade -, valorizando ainda a a importância da amizade, acima de tudo. Tudo com um magnífico cuidado com os detalhes.

Nota: 8,0


Disco da Semana - Fábio Góes (Zonzo)

Alguns discos acabam por cruzar nosso caminho um pouco tarde demais, ao ponto de não conseguirmos valorizar devidamente o trabalho feito com tanto esmero e capricho. É o caso de Zonzo, álbum do paulista Fábio Góes, lançado no segundo semestre de 2015. Digno de figurar na lista de melhores do ano que passou aqui no site, Zonzo é um dos melhores exemplares do que se produz no pop/rock brasileiro contemporâneo, e mais um exemplo de empreitada bem sucedida através de financiamento coletivo via internet.

Góes é compositor e produtor musical, mais conhecido por trabalhar com trilhas sonoras para o cinema (Abril Despedaçado, Cidade de Deus, e Não Por Acaso são algumas das obras mais notórias), mas que já possui uma carreira solo com os álbuns Sol No Escuro (de 2007) e O Destino Vestido de Noiva (de 2011), ambos igualmente elogiados pela crítica musical.Tendo como referência o que de melhor o Brasil produz na música pop, no presente disco o artista amplia seu leque de influências ao resgatar a sonoridade dos anos 80, com a estética devidamente incorporada à música alternativa do novo milênio.


Quando falamos em pop aqui, não é aquele pop descartável a que estamos acostumados. Em Zonzo temos canções extremamente cantaroláveis embaladas em uma produção requintada, com vários truques de estúdio que enriquecem ainda mais suas criações. O início etéreo com Sonho Guia faz a cama pro que há de vir nas faixas seguintes. Moça, Nada Demais (que lembra The Cure), Nerves, Apenas Simplesmente (com participação de Tulipa Ruiz) e Perto (cuja batida lembra muito Lisztomania da banda Phoenix) fazem uma sequência memorável de hits que poderiam (deveriam) perfeitamente figurar nas FM's de plantão. Já o lado B do álbum nos reserva algumas surpresas, com as canções mais pungentes e belas do álbum. Da lenta, melancólica e climática Espanto, até a linda Dois Lados, vemos a influência de cantores como Guilherme Arantes e até do Clube da Esquina (reverenciado na regravação de O Trem Azul) enquanto a derradeira Levanta encerra o disco em uma nota otimista e esperançosa.

A gente sabe que uma obra é especial quando a mesma permanece conosco por vários dias após sua audição, nos fazendo querer retornar a ela sempre que possível. Como bom autor de músicas para o cinema, Fábio Góes pode ter composto aqui a trilha sonora da vida de muita gente, seja para momentos em que precisamos de um empurrãozinho pra se motivar até outros mais contemplativos. Com a facilidade que temos acesso à música atualmente, resta incluir este Zonzo no filtro de obras relevantes da sua playlist. O Picanha agradece.

Nota: 8,5

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Oscar 2016 - Indicados (e Comentários)

E finalmente saiu a lista de indicados ao Oscar 2016!


Hoje pela manhã, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas revelou os seus escolhidos.

Dentre as surpresas podemos citar as 12 indicações do filme O Regresso (The Revenant), nova empreitada do diretor Alejandro Gonzalez Iñárritu, que desde já desponta como favorito ao prêmio principal - bem como Leonardo DiCaprio para Melhor Ator. Na sequência vem Mad Max: Estrada da Fúria (Mad Max: Fury Road), com 10 indicações - um feito e tanto para um filme de ação. Por falar em ação, surpresa também foi a ausência de Ridley Scott na categoria Melhor Direção, aposta dada como praticamente certa, pelo seu Perdido em Marte (The Martian).

Dentre as ausências mais sentidas por nós, aqui do Picanha, estão o novo filme do Tarantino Os Oito Odiados (The Hateful Eight) nas categorias Roteiro Original e Melhor Filme, e a total falta de indicações da produção original do Netflix Beasts of No Nation, onde o ator Idris Elba fez grande trabalho e merecia estar entre os coadjuvantes. E, falando em Netflix, duas produções originais da empresa estão concorrendo a Melhor Documentário (What Happened, Miss Simone? e Winter on Fire: Ukraine's Fight for Freedom).

O Regresso

Apesar do nosso querido Que Horas Ela Volta? ter ficado de fora da disputa, temos o Brasil representado na premiação na categoria Melhor Animação pelo filme O Menino e o Mundo, do diretor Alê Abreu - uma surpresa e tanto! Apesar do franco favoritismo da animação da Pixar Divertida Mente (Inside Out), um dos preferidos aqui da casa (e que deveria ter sido indicado a melhor filme, por sinal), temos que convir que é um baita feito para o cinema brasileiro!

O Menino e o Mundo


E você, o que achou das indicações? Deixe seu comentário e confira a lista dos indicados abaixo. Ah! como alguns dos filmes já foram comentados aqui no site, deixamos o link para que vocês possam saber um pouco mais sobre as produções, ok?

Um abraço e boas apostas! ;)


Oscar 2016


Melhor filme

A grande aposta
Ponte dos espiões
Brooklyn
Mad Max
Perdido em Marte
O regresso
O quarto de Jack
Spotlight


Melhor ator

Bryan Cranston (Trumbo)
Matt Damon (Perdido em marte)
Leonardo DiCaprio (O regresso)
Michael Fassbender (Steve Jobs)
Eddie Redmayne (A garota dinamarquesa)


Melhor atriz

Cate Blanchett (Carol)
Brie Larson (O quarto de Jack)
Jennifer Lawrence (Joy)
Charlotte Rampling (45 anos)
Saoirse Ronan (Brooklyn)


Melhor diretor

Alejandro G. Iñárritu (O regresso)
Tom McCarthy (Spotlight)
George Miller (Mad Max)
Adam McKay (A grande aposta)
Lenny Abrahamson (O quarto de Jack)


Melhor animação

Anomalisa
O menino e o mundo
Divertida mente
Shaun, o carneiro
Quando estou com Marnie


Melhor filme estrangeiro

Embrace of the Serpent (Colômbia)
Cinco graças (França)
O filho de Saul (Hungria)
Theeb (Jordânia)
A war (Dinamarca)


Melhor trilha sonora

Ponte dos espiões
Carol
Os 8 odiados
Sicario
Star Wars


Melhor roteiro adaptado

A grande aposta
Brooklyn
Carol
Perdido em Marte
O quarto de Jack


Melhor roteiro original

Ponte dos espiões
Ex Machina
Divertida mente
Spotlight
Straight Outta Compton


Melhor design de produção

Ponte dos espiões
A garota dinamarquesa
Mad Max
Perdido em Marte
O regresso


Melhor fotografia

Carol
Os oito odiados
Mad Max
O regresso
Sicario


Melhor figurino

Carol
Cinderela
A garota dinamarquesa
Mad Max
O regresso


Melhores efeitos visuais

Ex Machina
Mad Max
Perdido em Marte
O regresso
Star Wars


Melhor montagem

A grande aposta
Mad Max
O regresso
Spotlight
Star Wars


Melhor atriz coadjuvante

Jennifer Jason Leigh (Os oito odiados)
Rooney Mara (Carol)
Rachel McAdams (Spotlight)
Alicia Vikander (A garota dinamarquesa)
Kate Winslet (Steve Jobs)


Melhor ator coadjuvante

Christian Bale (A grande aposta)
Tom Hardy (O regresso)
Mark Ruffalo (Spotlight)
Mark Rylance (Ponte dos Espiões)
Sylvester Stallone (Creed: nascido para lutar)


Melhor edição de som

Mad Max
Perdido em Marte
O regresso
Sicario
Star Wars


Melhor mixagem de som

Ponte dos espiões
Mad Max
Perdido em Marte
O regresso
Star Wars


Melhor curta de animação

Bear Story
Prologue
Sanjay's Super Team
We can't live without Cosmos
World of tomorrow


Melhor curta de live action

Ave Maria
Day one
Everything will be okay (Alles Wird Gut)
Shok
Stutterer


Melhor cabelo e maquiagem

Mad Max
The 100-year-old man who climbed out the window and disappeared
O regresso


Melhor documentário

Amy
Cartel Land
The look of silence
What happened, Miss Simone?
Winter on fire: Ukraine's Fight for Freedom


Melhor documentário de curta-metragem

Body team 12
Chau, beyond the lines
Claude Lanzmann: Spectres of the Shoah
A Girl in the River: The Price of forgiveness
Last day of freedom


Melhor canção original

"Earned it" (Cinquenta tons de cinza)
"Manta Ray" (Racing extinction)
"Simple song #3" (Youth)
"Writing's on the wall" (007 contra Spectre)
"Til it happens to you" (The hunting ground)


Fonte: G1

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Cinema - Spotlight: Segredos Revelados (Spotlight)

De: Tom McCarthy. Com Michael Keaton, Mark Rufallo, Rachel McAdams, Liev Schreiber, Stanley Tucci e John Slattery. Drama / Suspense, EUA, 2015, 128 minutos.

Filmes sobre jornalismo podem se constituir em verdadeiras lições de casa sobre o tema - não por acaso funcionando como material de apoio de excelência para atividades complementares em cursos de Comunicação Social mundo afora. Tomemos como exemplo obras como o recente Boa Noite e Boa Sorte (2005) de George Clooney, ou mesmo o já clássico Todos os Homens do Presidente (1976), de Alan J. Pakula. Ali, nestes bons filmes, estão exemplos do bom jornalismo, pautado pela ética, pelo compromisso com a verdade e pela imparcialidade. E também de paixão por aquilo que se faz - sem deixar de lado o pensamento crítico. No caso de filmes como O Quarto Poder (1997), do grego Costa-Gavras, ou mesmo no clássico (e maravilhoso!) A Montanha dos Sete Abutres (1951), de Billy Wilder, é o contrário. Vale o sensacionalismo barato, a exploração da tragédia humana, a chantagem e a manipulação, com o simples objetivo de conquistar uns pontos a mais no ibope.

O recém lançado Spotlight: Segredos Revelados (Spotlight) - um dos grandes favoritos para a principal premiação da noite do Oscar - pertence a primeira categoria. E, certamente, deverá ser exibido em cursos de Jornalismo, futuramente, como reflexão relativa aos caminhos da profissão. Especialmente em uma época em que os grandes veículos de mídia parecem mais interessados em seus próprios umbigos - e em como manter as suas contas correntes bem polpudas -, esquecendo assim a importância da credibilidade, da pauta bem apurada, ou mesmo de outros aspectos que tenham por base a valorização da pluralidade de temas (e de debates), que sejam capazes de contribuir para a construção de uma sociedade mais democrática, justa e com ampla visão de mundo. Sem esquecer, claro, da pirâmide invertida, do lide, da objetividade, da clareza, das confiáveis fontes e de uma boa foto.


Baseada em fatos reais, a trama do filme dirigido por Tom McCarthy - dos ótimos O Agente da Estação (2003) e O Visitante (2007) - segue os passos de um grupo de jornalistas do diário Boston Globe, que, em 2001, teve acesso a uma série de documentos capazes de provar diversos casos de pedofilia causados por padres católicos. Com um agravante: os eventos teriam sido acobertados pela própria igreja, com transferências de religiosos para outras localidades e chantagens diversas - com direito a participação de advogados e da própria imprensa - ao menor sinal de que os casos pudessem vir à tona. É mais ou menos como um Todos os Homens do Presidente, já citado por aqui, mas sai o escândalo de Watergate, envolvendo o presidente americano Richard Nixon, entra um movimento escabroso de violência, capaz de traumatizar centenas de famílias, e que foi acobertado justamente por aqueles que deveriam apoiar os sobreviventes.

Um filme desse estilo, recheado de diálogos intensos em meio a cubículos e de pequenas surpresas no decorrer da projeção, praticamente implora por um elenco que consiga equilibrar aspectos como carisma,  certa ternura, alguma fúria e muita frieza diante daquilo que se investiga - e nem é preciso dizer que os atores, especialmente Ruffalo (como sempre) e Schreiber (em um papel que já tem a minha torcida por uma indicação ao Oscar), dão conta do recado. A fotografia quase pálida da redação do Globe, ou mesmo das ruas em seu entorno, em contraponto com a suntuosidade dos símbolos católicos, também funciona como impactante metáfora relacionada ao poder de cada uma das instituições retratadas. E, quando um dos personagens constata que 53% dos assinantes do periódico são católicos e que isso, de maneira alguma, impedirá o avanço da investigação - que dura meses, num ardoroso exercício jornalístico - o telespectador parece voltar no tempo. Para uma época em que, acima de qualquer ideologia, valia o jornalismo bem apurado e preocupado em levar informação de qualidade para o leitor.

Nota: 9,0 


Lançamento de Videoclipe - Letuce (Muralha da China)

Os cariocas da Letuce lançaram, no ano que passou, o disco Estilhaça, um dos melhores álbuns nacionais de 2015, como você pôde conferir aqui mesmo no Picanha! Como forma de divulgar o trabalho - terceiro na carreira da dupla de músicos Letícia Novaes e Lucas Vasconcellos - a banda divulgou na terça-feira (12/01) um videoclipe para a delicada canção Muralha da China. Dirigido pela artista plástica Elisa Riemer, o clipe apresenta uma série de gifcolagens, com uma estética que se relaciona a capa do disco. Ah, e tem homenagem ao filme Viagem a Lua (1902), de George Meliés, durante o "percurso" realizado pelos protagonistas do vídeo! É só clicar e conferir!


terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Encontro com a Professora - Senhoritas em Uniforme

A nossa colunista preferida está de volta com mais um grande texto! No quadro Encontro com a Professora, a nossa querida amiga - e professora, e mestre - Rosane Cardoso fala do clássico Senhoritas de Uniforme, de 1958. Está aí um filme que ainda não vi, mas fiquei extremamente curioso por ele. Boa leitura!

Jungen, Kirche, Küche!!
Senhoritas em Uniforme

Prússia, 1910. A educação das mulheres está firmemente baseada na ideia de criar boas esposas para bons soldados. Para isso, nada melhor do que um internato em que as famílias tradicionais possam confiar. Esta é premissa de Senhoritas em Uniforme (Mädchen in Uniform), versões de 1931, dirigida por Leontine Sagan, e de 1958, de Géza von Radványi. Baseado no romance de Christa Winsloe, é o primeiro filme na história do cinema a ter elenco inteiramente feminino. Falemos da segunda versão.

Manuela Meinhardis (Romy Schneider) é a mais nova interna de uma severa instituição de ensino para meninas. Órfã, encontra conforto nas colegas e, principalmente, na professora Fräulein Elisabeth Von Bernburg (Lilli Palmer), amada por todas as alunas, em uma mistura de figura materna e objeto de desejo. Manuela apaixona-se quase imediatamente.



O filme intercala cenas sombrias e claras. No quarto onde todas as internas dormem, seus risos, sonhos e curiosidade iluminam completamente a cena. Existe inocência no ar e elas estão à espera de um futuro maravilhoso para o qual o único obstáculo é passar pelo tempo de formação. Ainda que tenham de marchar com o passo milimetricamente cronometrado, estão esperançosas. Mas o espectador não tem como se deixar enganar por muito tempo.

Em torno delas está o mundo das mulheres adultas controladas por um sistema patriarcal feroz. A Diretora dirige o internato sob o lema “Não estamos no mundo para sermos felizes, mas para fazer o nosso trabalho”. Quase sempre famintas, pois a fartura pode conduzir a excessos, as garotas pertencem ao ciclo anunciado por uma das mães: Trato minha filha como a minha mãe me tratou: primeiro, internato, depois, o matrimônio; no meio, nada. Ao que a diretora responde: São os nossos princípios: meninos, igreja, cozinha! (Jungen, Kirche, Küche!).


Por amar Elisabeth, Manuela traz a poesia de volta ao internato, descobre o sofrimento amoroso, cai num processo de autodestruição que, felizmente, também terá papel transformador entre as habitantes daquele mundo cheio de interditos nunca totalmente confrontados. Aliás, este é um dos méritos de Senhoritas em uniforme: deixar perguntas no ar enquanto os créditos baixam ao som dos passos da Diretora.

Embora tenha causado polêmica pelo homoerotismo feminino, não me parece que este seja o tema, ainda que esteja aí. Mas está, do meu ponto de vista, como deve estar. Isto é, a opção do filme é pela discussão da sexualidade e não do sexo per si. Por isso, chama mais atenção o medo de Von Bernburg ante o desejo que sente; o amor simples e direto de Manuela pela mulher que a compreende; a fragilidade da Diretora escondida atrás do autoritarismo; a imposição da solteirice para que o magistério seja exercido de forma adequada; e, por fim, a liberdade abortada pela premência de dar bons soldados à pátria.  



Destaco ainda, a relativização de papéis estabelecidos entre opressores e oprimidos: quem manda nem sempre tem o poder que imagina ter. Às vezes, só seguem o que lhe impuseram a tanto tempo que não percebem que são peças de um jogo decidido. Embora a Diretora comande o internato com mão de ferro, ela é refém do ciclo Jungen, Kirche, Küche. Quem realmente manda jamais aparece no filme.


Não obstante, este apagamento vale mais do que mil imagens. E, não por acaso, os nazistas odiaram.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Cine Baú - A Estrada da Vida (La Strada)

De: Federico Fellini. Com Anthony Quinn, Giulietta Masina, Richard Basehart e Aldo Silvani. Drama, Itália, 1954, 104 minutos.

Quando Fellini lançou A Estrada da Vida (La Strada), seu quinto filme na carreira, ele ainda não era assim tão conhecido. Ao menos não como seria mais tarde, após a realização de clássicos arrebatadores como Noites de Cabíria (1957), A Doce Vida (1960), Oito e Meio (1963) e Amarcord (1973) - este último o meu favorito. O que de maneira alguma diminui a importância dessa verdadeira obra-prima que aborda os relacionamentos em tom próximo ao da fábula, com personagens dominados por emoções complexas. A propósito, o legado enquanto diretor que se utiliza de uma orquestração onírica, fantasiosa, com personagens histriônicos ou mesmo circenses - e que contribuíram para que se cunhasse a expressão cinema felliniano - muito se deve ao que se vê na trama de A Estrada da Vida.

O filme inicia em uma comunidade pobre onde uma mãe, desesperada para garantir o sustento de seus rebentos, vende a filha mais velha, Gelsomina (Masina, esposa do diretor), para Zampano (Quinn), um brutamontes que realiza um número em que arrebenta correntes amarradas em seu corpo. A intenção com a compra é fazer com que Gelsomina se torne sua ajudante, o que ocorrerá na base de muito grito, porrada e explosões de fúria. Aos trancos e barrancos, a jovem passa a se apresentar ao lado de Zampano, em números de humor de gosto duvidoso, em que ela interpreta uma espécie de palhaça que, com seus gestos, nos faz lembrar imediatamente de um certo Charles Chaplin. Os dias passam e nada muda na relação entre ambos, com Zampano invariavelmente maltratando Gelsomina.


A coisa muda de figura quando Gelsomina conhece Bobo (Basehart), um acrobata de um circo itinerante que leva a vida de uma forma mais leve - ainda que se arrisque em improváveis números de corda bamba. Evidentemente a jovem terá vontade de fugir com Bobo. Aliás, ela parece ter vontade de fugir o tempo todo - e ofertas para isso não faltam, como quando é convidada pelos integrantes do circo para permanecer com eles ou mesmo durante a estada em um convento de beira de estrada, com as madres e freiras praticamente implorando para que ela ali permaneça. Mas Gelsomina ficará ao lado de Zampano que, incapaz de lidar com seus sentimentos em relação a moça - e mesmo a Bobo, que vive lhe provocando, o que rende as sequências mais divertidas -, tomará atitudes extremas que resultarão em um desfecho ao mesmo tempo poderoso e comovente.

Ainda que o clima circense do filme tenha contribuído para que os críticos o tratassem como um contraposto ao neorrealismo italiano, não deixa de ser curioso o fato de a obra trafegar quase no limite do cinema "documentário" adotado por Rosselini e De Sica, e que tinha como pano de fundo as diferenças sociais, a busca da classe trabalhadora por melhores condições de vida e um certo pessimismo do pós-guerra. O que, de alguma forma, pode ser encontrado na película, ainda que com outro tom. Com A Estrada da Vida, Fellini se tornou conhecido internacionalmente e pavimentou o caminho para outras obras por ele filmadas, que permanecem até hoje no coração de qualquer cinéfilo, como as citadas no início desse texto. O Oscar de Melhor Filme Estrangeiro foi concedido pela primeira vez na história da academia, talvez não por acaso, a essa pequena joia que cresce em tensão a melancolia conforme trafegamos por seus caminhos.



domingo, 10 de janeiro de 2016

Cinema - Os Oito Odiados (The Hateful Eight)

De: Quentin Tarantino. Com: Samuel L. Jackson, Kurt Russel, Jennifer Jason Leigh, Walton Goggins, Demián Bichir, Tim Roth, Michael Madsen e Bruce Dern. Faroeste, EUA, 2015, 167 minutos.

O cinema é a maior de todas as Artes. Ou a junção de praticamente todas elas. Roteiro (a escrita), atuações (artes cênicas), fotografia, trilha sonora (a música), cenários (direção de arte) e outras tantas unidas para criar uma obra pronta a ser apreciada pelos espectadores em comunhão em uma sala escura. A catarse em forma de riso, choro, reações frente ao que se vê na tela e se ouve saindo das caixas de som. Uma orquestração milimetricamente desenvolvida para proporcionar emoções na plateia. O absurdo da vida amplificado em forma de imagens e som. E quando tudo isso vem no pacote genial do diretor americano Quentin Tarantino, temos algo especial - como no caso de seu mais novo filme Os Oito Odiados (The Hateful Eight), o oitavo de sua irrepreensível carreira.

Quando um caçador de recompensas (Russel) está em sua diligência com a prisioneira Daisy Domergue (Leigh) fugindo de uma nevasca, encontra no meio do caminho o Major Marquis Warren (Jackson) que, após ter capturado alguns criminosos e está sem o seu cavalo, pede carona para a cabana mais próxima afim de fugir da tempestade de gelo que se aproxima cada vez mais. Ainda no caminho, encontram alguém que se diz o atual xerife da cidade de Red Rocks (Goggins), que acaba por fazer parte da caravana até chegarem à cabana de propriedade de Minnie e Sweet Dave, que lá não se encontram. Ao invés disso, eles acabam se juntando com o carrasco britânico Oswaldo Mobray (Roth), o mexicano Bob (Bichir) e o misterioso Joe Gage (Madsen), além do general aposentado Sandy Smithers (Dern), que lá estavam. Para não revelar detalhes da trama, resta dizer que a dinâmica entre os personagens será de crescente tensão, visto que todos estão presos em um local cujo ambiente externo é tão ou mais hostil.


Seja na trilha sonora magistral do mestre Enio Morricone, da fotografia em 70 mm de Robert Richardson e do roteiro e direção precisas de Tarantino, tudo funciona neste faroeste que presta uma homenagem ao cinema da década de 60. Mas como trata-se de uma obra tarantinesca, os traços do cinema de autor estão presentes, remetendo a obras anteriores do diretor como Cães de Aluguel e Django Livre. Aqui temos os diálogos inspirados (e extensos), a calma em desenvolver os personagens, os cenários caprichados, a violência extrema, o mistério, e a crítica social, características desenvolvidas na potência máxima. O elenco está fantástico, com destaque para Samuel Jackson (cujo monólogo no meio do filme certamente será lembrado por quem assistir), Jennifer Jason Leigh (como a perigosa, debochada e "saco de pancadas" Domergue) e a surpresa Walton Goggins, cuja expressão lembra muito os faroestes de Sergio Leone e proporciona, junto a Jackson, os momentos mais hilários do filme.

Se levarmos apenas em consideração o aspecto entretenimento, a obra já seria uma experiência altamente satisfatória - vide o aspecto farsesco e de mistério do filme, que lembra muito os romances de Agatha Christie e suas histórias de detetive, além das já manjadas referências cinematográficas (Russel em O Enigma de Outro Mundo) tanto utilizadas pelo cineasta. Mas é ao transformar seu roteiro em uma alegoria da história sangrenta dos Estados Unidos que Tarantino eleva sua obra a uma condição superior de Arte. Temos aqui a busca por recompensas (o capitalismo), a violência contra a mulher (bem como a força desta frente às adversidades), o racismo (o papel do negro e sua segregação, bem como sua busca por espaço em um mundo dominado por brancos), a xenofobia, a colonização inglesa, e a esperança por dias melhores tão desejada pelo presidente americano à época, Abraham Lincoln - mas tão longe de ser alcançada por uma espécie que desde sempre foi fadada à auto-destruição, como o gênio Tarantino sabe demonstrar como ninguém.

Nota: 9,5.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

25 Melhores Discos Nacionais de 2015 (+15 Menções Honrosas)

E finalmente chegamos a nossa última - mas não menos importante - lista de melhores de 2015! O ano que recém terminou foi maravilhoso também para a música nacional. Foram grandes e diversos lançamentos que mostraram a pluralidade do nosso cancioneiro, capaz de ir (muito) para além daqueles estilos que "poluem" as rádios populares nos dias de hoje. E, o melhor: muitas delas com o acesso a um clique, seja por meio dos sites dos artistas ou através de plataformas de streaming como o Deezer ou o Spotify. Ou seja, não tem desculpa pra não ouvir música boa! Esperamos que a nossa relação com os 25 Melhores Discos Nacionais de 2015, com direito a mais 15 menções honrosas, possa servir, humildemente, de referencial nesse sentido! Boa leitura e que venha 2016!

Menções honrosas

40) The Mozões - The Mozões
39) Diogo Strausz - Spectrum Vol. 1
38) Facção Caipira - Homem Bom
37) Pélico - Euforia
36) Cidadão Instigado - Fortaleza
35) Lia Paris - Lia Paris
34) Black Alien - Babylon VS. Gus Vol. 2 (No Princípio Era o Verbo)
33) Sara Não Tem Nome - Ômega III
32) Chico César - Estado de Poesia
31) Maria Gadú - Guelã
30) Mahmed - Sobre a Vida em Comunidade
29) BNegão e Seletores de Frequência - Transmutação
28) Jair Naves - Trovões a Me Atingir
27) Bike - 1943
26) Gal Costa - Estratosférica


25) Wander Wildner (Existe Alguém Aí?): o gaúcho hoje está com 55 anos. E a proximidade da tão famosa "terceira idade" o tornou mais sério, o que se reflete nas letras políticas, reflexivas e em alguns momentos até sombrias do novo registro. Em entrevista a Zero Hora, ele chegou a dizer que este se tratava de seu primeiro disco conceitual - o que não deixa de ser verdade, já que os trabalhos anteriores, na maioria dos casos, se configuravam como um apanhado de canções que, ainda que soassem divertidas, roqueiras, sacanas, muitas vezes representavam um recorte um tanto desconexo, em uma análise mais global. "As músicas mostram a minha visão da sociedade atual" falou o compositor ao periódico. Leia a resenha completa.


24) P A R A T I (Superfície): também integrantes do grupo Cabana Café, os músicos Rita Oliva e Zelino Lanfranchi lançaram o seu elogiado primeiro trabalho com este projeto paralelo. Com um estilo que remonta a composições da MPB dos anos 60, o duo também flerta com a música moderna, especialmente ao utilizar emanações ao mesmo tempo oníricas e eletrônicas que aproximam a banda do dreampop de grupos distintos como Beach House ou Mazzy Star. Divertido, leve, eventualmente empoeirado e com letras espertas sobre relacionamentos, este é um dos grandes registros desse ano, a despeito do formato enxuto, com apenas oito canções e cerca de 30 minutos.


23) SILVA (Júpiter): o capixaba SILVA decidiu descomplicar tudo com o seu terceiro registro de inéditas, o que pode ser uma barreira para aqueles que acreditam que a evolução natural de um músico está diretamente relacionada ao alcance de uma certa complexidade nos versos e de algum requinte na parte instrumental. Se pra você o que importa é a boa música, seja ela simples e de alcance universal ou rebuscada e hermética, sem problemas: SILVA bebe de referências tão diversas - de Lulu Santos a Sampa Crew - e entrega um trabalho direto, com alta carga romântica e de batidas e versos simples. O que de maneira alguma significa algo menor em sua curta (e ótima!) carreira. Leia a resenha completa.



22) Comunidade Nin-Jitsu (King Kong Diamond): juramos que quando vimos que os gaúchos tinham lançado disco novo - o anterior havia sido o discreto Na Laje, no longínquo 2008 -, nossa primeira reação foi a de desconfiança. O play foi dado com pouquíssima expectativa. Não que esperássemos um novo Maicou Douglas Syndrome - das hoje já clássicas Cowboy, Ah! Eu Tô Sem Erva, Patife, Não Aguento Mais, Arrastão do Amor, entre outras. Mas o que queríamos mesmo era o mesmo clima leve, descompromissado, chinelão. Queríamos aquela boa e velha mistura criativa (!) de funk com rock, de pancadão com guitarras. E tá tudo lá, podem acreditar, num dos mais improváveis, sacanas e divertidos álbuns do ano. Leia a resenha completa.


21) Siba (De Baile Solto): o mais legal do mais recente registro do pernambucano Siba é que, a despeito do clima regionalista - que não está apenas nos versos e no instrumental, mas também na capa - o músico fala sobre temas universais, colocando o dedo na ferida sobre temas os mais diversos, sejam eles relacionados a política, a causa social, abuso de poder. Sim, há o clima de bailão carnavalesco, de cultura local, de maracatu. Toda vez que esmorecer a vontade de cantar/ Vai sempre um doido gritar “tamo afim”/ De festa enquanto dorme o inimigo enorme, neles em nós e em mim, canta o artista na ótima O Inimigo Dorme, emulando Chico Buarque em canções como To Me Guardando Pra Quando o Carnaval Chegar. Festa e reflexão andam lado a lado, definitivamente.


20) Bárbara Eugênia (Frou Frou): a carioca Bárbara Eugênia tem um jeito absolutamente irresistível de misturar música brega com o alternativo, trafegando sempre no limite daquilo que seria a música mais comercial - com aquele quê de Jovem Guarda - com aquela mais voltada para o consumo dos indies de plantão. E a abertura com a espetacular Besta - Preste atenção no que eu digo/ Você me marcou com unhas e dentes/ E sangue/ Eu lhe tenho amor/ Eu lhe tenho amor/ Eu lhe tenho amor - já dá as caras, pavimentando o terreno para uma rica coleção de canções melancólicas e confessionais, com um caráter tão universal que é impossível o ouvinte não se identificar.


19) Jonas Sá (BLAM BLAM!): Perdidos na Noite, Gigolô, Safo, Sexy Savannah e, principalmente, Chat Roulette. Os nomes das canções do mais recente registro do carioca já tão o tom sobre o divertidíssimo e sacana último tranalho! E o que dizer da capa? Some-se a isso um instrumental eletrônico, recheado de referências a programas de auditório, games e filmes dos anos 80 e tá feito um caldeirão explosivo e criativo como poucas vezes se viu na música nacional recente. Jonas Sá definitivamente deixou pra trás o clima Lulu Santos wannabe do seu disco anterior, Anormal, para, à vontade, versar sobre aquilo que realmente lhe interessava! Ouço a tua carne/ O som da respiração/ O ranger da cama/ Acende a minha emoção, canta Sá em Gigolô. Tirem as crianças da sala!


18) Letuce (Estilhaça): Se eu quiser eu tenho muita cara de pau/ De cu, de arara, de clown/ Se eu quiser eu tenho muita cara. É assim de cara limpa e de peito aberto, que Letícia Novaes canta a música Muita Cara, que integra o terceiro registro de inéditas do projeto Letuce, que ela divide com o parceiro Lucas Vasconcellos. Mantendo a tradicional mistura de MPB, com lounge music e soft rock, que permeia o trabalho do duo desde a estreia com o ótimo Plano de Fuga Pra Cima dos Outros e de Mim (2009), a dupla mantém a pegada melancólica na hora de falar de desilusões amorosas, ressacas matrimoniais ou mesmo medos diversos ligados a relação a dois. É pesado, doloroso, por vezes difícil. Mas ainda assim saboroso em cada detalhe.



17) Dingo Bells (Maravilhas da Vida Moderna): ainda que não seja assim nenhum exemplar do outro mundo em termos de criatividade ou em relação ao que se tem ouvido nas últimas décadas no rock gaúcho, o primeiro trabalho da Dingo Bells merece (muita) atenção. Muito por conta do trabalho dos produtores Felipe Zancaro (Apanhador Só) e Gustavo Fruet (Chimarruts), capazes de levar o ouvinte a uma fácil navegação por meio de um conjunto de canções essencialmente pop, muito próximas de artistas da soul music dos anos 70 (oi Tim Maia?) e nunca vazias em seu conteúdo. O clima é colorido, a despeito da capa acinzentada, e a viagem versa sobre a vida depois dos 30 e sobre o "sentimento" dos dinossauros, entre outros.



16) Wado (1977): o mais recente álbum do alagoano, cujo título faz referência ao ano de nascimento do cantor, é um disco curto e direto - o que talvez torne esta sua obra mais acessível até o momento. Ou seja, é uma excelente porta de entrada para quem quiser se aventurar na excelente obra do músico! A novidade da vez é a influência do rock, explicitada de cara na excelente (e pesada) faixa de abertura, Lar. As faixas seguintes, Cadafalso (com participação de Lucas Silveira, da banda gaúcha Fresno), com seus jogos de palavras, e Deita, a mais pop de todas, não deixam a peteca cair. Mas engana-se quem pensa que o disco inteiro seguirá na mesma vibe, pois também há espaço para a beleza neste, que é um dos grandes registros do ano. Leia a resenha completa.
 

15) Cícero (A Praia): o recente trabalho do cantor e compositor serviu para "resgatar" aquele Cícero que andava perdido pelas introspecções balbuciadas e excessivamente incompreensíveis do trabalho anterior, o irreconhecível Sábado, para recolocá-lo novamente no caminho daqueles que aprenderam a gostar dele não pelos recortes e fragmentos concretistas, que servem apenas como demonstração de um eventual virtuosismo, mas pela música pura e simples. Aquela que a gente gosta de cantar junto nos shows. Que nos acompanha. Que significa. Que nos faz mais leve a hora de limpar a casa ou de lavar a louça. Ainda que ninguém seja obrigado a agradar o público e muito menos as rádios. Mas é que ficamos mal acostumados. E estamos felizes com o "reencontro". Leia a resenha completa.


14) Supercordas (Terceira Terra): só a letra arrebatadora de Fundação Roberto Marinhos Blues & Co - canção quase autoexplicativa que abre o mais recente registro de inéditas dos cariocas - já seria o suficiente para colocar a banda de Pedro Bonifrate nessa lista. Com o clima colorido e onírico de sempre - talvez com uma nota mais baixa em relação aos trabalhos anteriores, especialmente o bucólico A Mágica Deriva dos Elefantes (2012) - o grupo reforça a crítica social, especialmente aquela relacionada as grandes corporações e aos governos com ares totalitaristas, mas sem perder a ternura. O instrumental equilibra bem os ruídos e sintetizadores com as guitarras, aproximando-os de bandas tão distintas como My Bloody Valentine, Pink Floyd, Mercury Rev e Clube da Esquina. É imperdível.


13) Ventre (Ventre): é na visceralidade e na delicadeza – como o próprio nome já sugere – que a banda carioca Ventre mostra suas cartas em forma de power trio no seu homônimo álbum de estreia. A trinca baixo, guitarra e bateria só é simples na aparência. Ao dar uma entortada nas canções, a banda faz a cama para as letras que versam sobre amor de forma muitas vezes bastante intensa - vide as faixas Quente (Mas eu gosto quando tudo fica quente/ Gosto de quando me falta o ar) e Pernas (E quando você se tocar/ Deixa escorrer pelas pernas), por exemplo. Rock, MPB e até stoner rock são estilos que podem ser encontrados aqui. Uma estreia de força de uma banda a se prestar atenção daqui em diante.





12) Rafael Castro (Um Chopp e Um Sundae): prolífico e extremamente talentoso, o músico paulista Rafael Castro deixa de lado as guitarras para abraçar os sintetizadores estilo anos 80 e a irreverência nesse divertidíssimo registro. Irreverência esta já explícita na capa do disco, onde ele encarna uma espécie de David Bowie tupiniquim. E as letras não deixam por menos: ouça Caetano Veloso e Bicho Solto - Porque o bicho bom é bicho solto na natureza - para ter uma noção. Além do mais, tem a presença dos hits Preocupado e Motivo que deixariam o Ritchie e o grupo Dominó (ou Polegar, enfim) - pra se ter uma ideia da diversidade no caldeirão de referências - orgulhosos.




11) Ian Ramil (Derivacivilização): o teu papinho é de fudê. Eu tô sentado em casa vendo qualquer merda na tevê. Mas você se quiser pode cagá nesse artigo. Todas as frases aqui descritas fazem parte de alguma das canções do segundo registro do gaúcho - filho do cantor e compositor Vitor Ramil - que foi lançado nesse ano. Um tanto mais afiado (pra não dizer raivoso!) do que no suave primeiro trabalho, Ian abusa do estilo irônico das letras ao falar de política, indústria cultural, burocracia, vida veloz, violência urbana e relação amorosas (e sexuais). Bem distante daquilo que se convencionou chamar de "rock gaúcho", o músico apresenta ampla variação instrumental, capaz de lhe aproximar de artistas não distintos como Nação Zumbi e Radiohead, em um registro cheio de personalidade.



10) Karina Buhr (Selvática): é maravilhoso demais o contraste provocado pela voz adocicada e melodiosa da pernambucana na relação com os seus versos e mesmo o potente instrumental. É como se a Mallu Magalhães - e, vejam bem, isso é um elogio! - se tornasse selvagem, tropicalista, teatral. Hoje eu não quero falar de beleza/ Ouvir você me chamar de princesa/ Eu sou um monstro, canta Karina na ótima Eu Sou um Monstro. O tom é caótico, instável, por vezes agressivo, e os temas, como não poderiam deixar de ser, são os mais variados, passando por política (e corrupção), diferenças sociais e feminismo. De peito aberto, a artista entrega um trabalho enérgico, rápido, adequado aos dias de hoje, mas sem perder a eventual doçura, com direitos a refrãos absolutamente grudentos.



09) Ava Rocha (Ava Patrya Yndia Yracema): Ava Rocha não nega de quem é filha e em cada cantos dos versos e arranjos apresentados pela filha de Glauber Rocha, é possível perceber a influência do pai - um dos grandes expoentes do movimento Cinema Novo, famoso pelos filmes com críticas sociais inflamadas, caso de Deus e o Diabo na Terra do Sol. E isso, de maneira alguma, quer dizer que a artista não tenha personalidade própria. Justamente ao atualizar os temas tratados no passado, a partir de uma roupagem moderna - ainda que, eventualmente, regionalista - é que se pode perceber a força desse registro, equilibrado entre emanações climáticas e excêntricas, com outras mais acessíveis e até radiofônicas. Um belo trabalho.



08) Jaloo (#1): Jaloo é um fanfarrão! Sarcástico, irônico, divertido, subversivo! Tudo o que de melhor pode servir pra que se faça não apenas boa música, mas também arte num sentido pleno - ainda que altamente acessível. Da capa que emula (pasmem), a frente do primeiro disco da excêntrica cantora FKA Twigs, às letras improváveis, tudo resulta em composições magnéticas, que farão sorrir até o mais sisudo dos sujeitos. Com arranjos que remetem aos sintetizadores dos anos 80, modernizados pelo verniz do tecnobrega e da música regionalista, o paraense convida o povo pra curtir. Ah, vem pra cá, balançar, se acabar/ Sente o som, tudo é bom/ Here we go, entra nessa e vem pra cá, canta o artista na abertura com Vem. Nem precisa convidar duas vezes!



07) Tulipa Ruiz (Dancê): Medida, forma, direção / Proporcional aos fatos / Gostar assim sem previsão / É normal nesse caso / Aconteceu de caber / Coube em mim. Coube em você / Calhou de encaixar legal / Envergadura, estatura, peso e tal / Visto GG, você P. Tulipa está safadinha no disco Dancê - o que é ótimo! -  e isso é algo que pode ser percebido nesse trecho da fantástica Proporcional. Apenas uma entre tantas gemas pop dessa que é uma das principais artistas brasileiras da atualidade. O disco é puro balanço, brasileirismo, sensualidade. Tem participação de João Donato e Felipe Cordeiro, entre outros músicos de renome.  A artista canta firme e faz o ouvinte suar. E dançar. Ah e tem uma das melhores canções do ano: Tafetá.



6) Lenine (Carbono): poucos artistas brasileiros (e atuais) conseguem traduzir tão bem a amplitude de significados da música nacional como Lenine. Suas canções são ao mesmo tempo regionalistas e universais, simples e complexas. O mesmo vale para suas letras, para a estética adotada em cada trabalho, para a sonoridade. No seu mais recente álbum, o artista utiliza o carbono - elemento que compõe basicamente toda a matéria - como uma metáfora as coisas que parecem simples, mas no fundo guardam certa complexidade. O cantor - que é engenheiro químico, nunca é demais lembrar! - se reúne com grandes nomes nacionais, sendo a Nação Zumbi o mais marcante. E lança um discaço, recheada de clássicos modernos como Cupim de Ferro e A Meia Noite dos Tambores Silenciosos.



5) Boogarins (Manual): reduzir o Boogarins a uma simples "banda de rock psicodélico" parece ser uma espécie de reducionismo capaz de não abarcar a grandiosidade do grupo capitaneado por Fernando Almeida. Sim, a banda possui em seu DNA as emanações coloridas (e setentistas), capazes de remeter a artistas distintos como Os Mutantes e os hypados do Tame Impala. Mas conseguem, ao mesmo tempo, e com grande personalidade, rechear o seu segundo registro de inéditas com uma forte identidade própria, mostrando que Goiânia tem muito mais a oferecer além das famosas duplas com homens usando calças apertadas. Onírico e delicado, o trabalho se equilibra bem entre os momentos mais reflexivos e arrastados - como em Tempo - com outros que não fariam feio naquela rádio universitária descolada - casos de Avalanche e 6000 Dias (Ou Mantra dos 20 Anos).



4) Luneta Mágica (No Meu Peito): com o espetacular segundo registro, os amazonenses abraçam, definitivamente, os versos cantaroláveis e um instrumental mais fluído e de fácil reconhecimento por parte do público. Como se estivesse pronta para derrubar algum eventual muro, que ainda servisse de bloqueio para o ouvinte. Evolução? Retrocesso? Uma banda, uma vez que inicia o seu processo de constituição, precisa invariavelmente caminhar com segurança naquela trilha que a torna conhecida com o decorrer de seus trabalhos? Ou é importante se reinventar a cada registro, ampliando suas possibilidades? Bom, não somos críticos de música profissionais, como vocês já sabem, e não sei dizer se isso é bom ou se é ruim. Gosto demais de música pop, em todas as suas vertentes e, assim como o primeiro projeto da Luneta..., o segundo é sensacional. Leia a resenha completa.



03) Maglore (III): se o Vamos Pra Rua já se constituía em um excelente exercício de música pop, o mais recente trabalho ampliou ainda mais esse espectro, consolidando o grupo como um dos mais criativos e interessantes da cena atual. Ainda mais homogêneo que o trabalho anterior, o disco se apropria de outras vertentes, caso da nova onda psicodélica - que tá na moda agora - para enriquecer ainda mais as melodias de suas canções. Nesse sentido, a eventual melancolia que permeia o registro, acaba absorvida pelos arranjos multicoloridos e ensolarados - sendo, nesse sentido, impossível ficar alheio ao potencial radiofônico da ótima Se Você Fosse Minha. Outra músicas como Mantra, Dança Diferente, Ai Ai e Café Com Pão certamente arrancarão do eventual novo ouvinte aquele sorriso de satisfação. Vida longa ao Maglore!



02) Elza Soares (A Mulher do Fim do Mundo): a veterana carioca tem 85 anos, mais de 30 discos lançados, e ainda tem gás pra fazer esse espetacular trabalho, cantando com a fúria e a voz rouca de sempre, como se fosse uma novata! Quebrei a cara e me livrei do resto dessa vida/ Na avenida dura até o fim/ Mulher do fim do mundo/ Eu sou e vou até o fim cantar, versa Elza na canção título, já dando a letra sobre suas intenções. Mas esse magistral trabalho é muito mais! Temas como violência contra a mulher (na divertida Maria da Vila Matilde), sexualidade (na autoexplicativa Pra Fuder)  e vida em comunidade (Firmeza?!) são abordados em um álbum recheado de suingue, brasileirismo e malandragem numa mistura explosiva, capaz de atrair, inclusive novos ouvintes. Simplesmente fundamental!



01) Emicida (Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa): quem vê a delicada (e ótima!) Passarinhos - parceria com a cantora Vanessa da Mata - sendo trilha sonora de propaganda de TV, pode até se enganar em relação ao ótimo segundo registro - fora as mixtapes - do rapper paulista. Sim, há espaço para as músicas mais radiofônicas, esperançosas, dançantes, mas também permanece reservado para a crítica social e para o diálogo com as minorias - sejam elas gays, negros, pobres, dependentes químicos, trabalhadores, mulheres - uma grande fatia das canções desse irretocável álbum. E músicas como as magníficas 8, Boa Esperança e Mandume mandam o recado amparadas por batidas menos complicadas, rimas bem elaboradas e uma clara aproximação em relação aos ritmos africanos. Com Sobre Crianças... Emicida chega ao primeiro lugar aqui no nosso humilde Picanha, ao mesmo tempo em que se consolida como um dos principais artistas da música nacional.

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