De: Luis Buñuel. Com Silvia Pinal, Tito Junco, Jaqueline Andere e Enrique Rambal. Fantasia / Drama, México, 1962, 93 minutos.
Poucas vezes a futilidade da burguesia - bem como os seus modos absurdamente frívolos e carregados de boa dose de alienação - foi tão bem retratada, como no clássico O Anjo Exterminador (El Angel Exterminador), do espanhol Luis Buñuel. Na alegoria do diretor, lançada em 1962, um casal de elite da sociedade aristocrata convida um grupo de amigos para um jantar em sua luxuosa mansão. Mas, depois do evento, todos descobrem estar presos no local - ainda que não haja nenhuma barreira física ali, como grades, por exemplo. Com a impossibilidade de entrar ou sair, os moradores passam a se sentir, conforme passam os dias, como reféns, não demorando para que as máscaras de cada um comecem a cair. E que as vidas, recheadas de aparências, passem a contar com comportamentos puramente animalescos, pautados prioritariamente pelos instintos mais primitivos.
O caso de O Anjo Exterminador não foi o único em que Buñuel centrou a sua temática na crítica a sensação de torpor vivida pelas classes mais abastadas, muito mais preocupadas com o próprio umbigo, do que com o universo que as rodeia - o expediente seria repetido em outras grandes obras, como O Discreto Charme da Burguesia (1972), um dos favoritos da casa. E os momentos de "desespero" do grupo, enquanto aguardam pelo socorro externo que não parece chegar nunca, diante de uma ameaça que simplesmente não existe, não deixam de ser um excelente indicativo desse comportamento individualista e mesquinho daqueles que compõem o grupo. É a exacerbação dos problemas, por menores que eles sejam - e a existência de tumblrs como o, hoje já clássico, Classe Média Sofre, possibilita inferir que, mais de 50 anos após o lançamento do filme, pouco parece ter mudado em relação a isso.
Ainda que, aparentemente, a obra não seja de fácil "digestão", um olhar mais atento certamente possibilitará o encontro de significados em praticamente todas as cenas cuidadosamente encenadas por Buñuel, que, apelando para o clima onírico e fantasioso, tão típico do surrealismo, transforma o absurdo da situação, em algo plenamente palpável. E se o grupo, fechado em um cubículo, não deixa de ser uma bela metáfora para, novamente, a deficiência de se enxergar para além daquilo que os cerca, a existência de cenas envolvendo ovelhas andando em filas - e, sendo, brutalmente, sacrificadas - ou mesmo a grande quantidade de imagens santas e de outros elementos sagrados, não deixa de ser também uma "ponta" do ataque de Buñuel. Isto por estar atento ao fato de que as "famílias de bem", por mais devotas que sejam em relação as crenças religiosas, também tem os seus pecadinhos, os seus segredos e a sua moral duvidosa. Por mais que isto não apareça diante dos outros.
Criticando ainda a dificuldade que, muitas vezes, as classes ricas tem em modificar o status quo estabelecido - uma mudança, mínima que seja, pode ser o estopim para que seja desencadeado um cenário de depravação e a obscenidade - essa obra-prima do surrealismo nos mostra, ainda, que, no frigir dos ovos, rico ou pobre, alto ao baixo, todos são humanos. Aliás, demasiado humanos. Com fraquezas, doenças, medos, delírios e inseguranças - que podem se sobressair no formato da mais pura degradação de caráter diante de fatos extremos. (e, nesse sentido, é praticamente impossível não lembrarmos de filmes hollywoodianos modernos, como Beleza Americana e Pecados Íntimos, só pra citar dois, que certamente beberam desta fonte - ainda que não de maneira tão evocativa e extravagante)
Funcionando ainda como um divertido tour de force da luta de classes - a saída à francesa dos empregados, logo no início é um dos grandes momentos - o filme ainda mostra que, mesmo na decadência, a pose não é perdida, como deixam claro os maus tratos sofridos por Julio (Claudio Brook), o mordomo e único funcionário que permanece na casa. E se o final com explosão fascista - com direito a tiros para conter uma multidão alvoroçada - deixa um gosto amargo, a crítica mordaz a empáfia da aristocracia e a um cenário composto por uma sociedade débil e de diferenças sociais gritantes, são os pontos mais do que fortes. Ainda que figure em diversas listas de melhores, talvez O Anjo Exterminador não seja o filme mais importante de Buñuel - Um Cão Andaluz (1929), Os Esquecidos (1950) e Viridiana (1961), seguem entre os mais lembrados. Mas, certamente, é um dos mais pungentes. E, para nós do Picanha, mais do que merecedor do Cine Baú.
Nenhum comentário:
Postar um comentário