segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Livro do Mês - Poeta Chileno (Alejandro Zambra)

Já dizia Pablo Neruda que "é tão difícil as pessoas razoáveis se tornarem poetas, quanto os poetas se tornarem pessoas razoáveis". Não sei dizer se Neruda estava certo, mas no universo bastante íntimo retratado por Alejandro Zambra no ótimo romance Poeta Chileno, o que temos é um verdadeiro mergulho nesse ambiente quase mitológico dos poetas chilenos. "Somos bicampeões na Copa do Mundo de poesia" afirma a certa altura da narrativa, num tom que vai no limite entre o orgulho e o deboche, um certo Pato, amigo de Vicente, um jovem recém-saído da adolescência, que sonha seguir os passos de Gabriela Mistral, Nicanor Parra, Armando Uribe, além do próprio Neruda. Aliás, Mistral e Neruda atestam a eficiência da poesia saída do País de Salvador Allende, afinal, venceram o prestigioso Prêmio Nobel de Literatura. Mas há espaço para esse tipo de leitura nos tempos atuais? Fora os clássicos, as pessoas se interessam por esse tipo de material curto, meio formulaico e excessivamente subjetivo, ainda que invariavelmente provocativo?

Zambra, ele mesmo um escritor de poesias, ensaios e outros textos brinca com o tema, ao adotar um tom realista, quase pessimista, ao lançar um olhar para um mundo excessivamente antipoético, onde o estilo parece ser celebrado apenas entre os pares, em festas em que os poetas parecem dispostos a reafirmar sua importância para si próprios. O próprio Gonzalo, um dos protagonistas, é aspirante a escritor - daqueles que sonha em produzir um material que possa ser digno à conversão em livro, que possa ir ao encontro de leitores involuntários que se interessem por esse mundo de "herois, anti-herois e até de impostores literários". De forma bastante irônica a poesia, para Gonzalo, era a "história de homens geniais e excêntricos, bons de copo e especialistas nos altos e baixos do amor". Um tipo de mitologia que, desde a juventude, o contaminava. E que viria a influenciar diretamente em sua vida, seu presente e seu futuro - especialmente em sua relação com a namorada Carla e seu pequeno filho, o já citado Vicente.

E é nesse ponto que o livro de Zambra ganha a gordura dos eventos mundanos que, não por acaso, servirão de matéria-prima para a poesia, que costura a narrativa de uma forma comovente. Da juventude ao lado de Carla - com os desejos juvenis se convertendo em verdadeiras manobras no sofá, embaixo de um poncho vermelho, enquanto a mãe da jovem circulava de forma desconfiada pelo ambiente -, até a separação, passando pelo futuro e inesperado reencontro, que resultará na mais improvável das amizades (a de Gonzalo com Vicente), as idas e vindas, medos e vontades, frustrações e anseios, sofrimentos e conquistas se mesclarão à própria história do Chile - especialmente após o fim do autoritário Governo do Ditador Augusto Pinochet. Trata-se ao cabo de uma obra que divaga permanentemente a respeito do fazer literário, sobre como poetas parecem desprezar o romance, sobre as tragédias contemporâneas, sobre o desejo de pertencimento, sobre masculinidade, paternidade e suas curvas espinhosas.

Percorrendo as mais de 400 páginas da obra editada pela Companhia das Letras, personagens secundários como Pru, uma jornalista estrangeira que está interessada em elaborar uma reportagem sobre a poesia chilena contemporânea; León, o medíocre pai verdadeiro de Vicente que atua como corretor de imóveis frustrado e Safadão, o extravagante avô de Gonzalo, conferem cor à narrativa cheia de possibilidades, de pequenos becos, de encaixes inesperados, numa reflexão que, acima de tudo, aborda o sentido de ler e escrever nos nossos dias. Repleto de citações culturais, Poeta Chileno ainda é um prato cheio para os fãs de literatura, que encontrarão na obra um verdadeiro desfile de autores, muitos deles completos desconhecidos - como aqueles vistos no magistral capítulo que se dedica as entrevistas realizadas por Pru. "Ser poeta chileno é como ser um chef peruano, um jogador de futebol brasileiro ou uma modelo venezuelana", resume alguém a uma certa altura. O que dá a dimensão da arte sobre a própria arte que propõe Zambra. Vale demais.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Picanha.doc - Fuga (Flee)

De: Jonas Poher Rasmussen. Com: não divulgado. Documentário / Drama / Animação, Suécia / Dinamarca / Noruega / França, 2021, 127 minutos.

[UPDATE: essa resenha foi escrita antes do início do ataque das tropas russas à Ucrânia, num contexto que provocará um novo movimento de fuga de refugiados. Aliás, a ONU acredita que 4 milhões de civis poderão deixar o País nas próximas semanas. Infelizmente o horror continua.]

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Revoltante. Comovente. Perturbador. Sombrio. Definir com adjetivos uma obra completa e complexa como Fuga (Flee) não é tarefa fácil. Esse é um filme que me fez chorar em mais de um momento, por motivos os mais variados. Ainda que nos deixe de estômago embrulhado é uma experiência necessária em tempos em que o tema "crise de refugiados" segue em alta. Aliás, ainda está viva em nossa memória recente as cenas em que milhares de afegãos perseguem aviões militares dos Estados Unidos para tentar, como uma última medida desesperada, fugir junto com eles. São imagens que já estão na história. E que seguem contando a dolorosa e complicada trajetória política, social, cultural e religiosa do País asiático, que parece conviver há algumas décadas com um estado de guerra permanente - com as influências de Rússia e Estados Unidos servindo muito mais para estremecer os ânimos do que para prestar algum tipo de socorro efetivamente humanitário. Isso sem falar no Talibã, o movimento fundamentalista que atualmente detém o poder no País, sendo uma ameaça permanente.

Por tudo isso o Afeganistão é tido como o País mais perigoso do mundo - e o que mais "produz" refugiados e solicitantes de asilo. E aqui a gente já tem um ponto importantíssimo que, em muitos casos, gera confusão: nunca devemos confundir aqueles que estão em fuga de um País com aqueles que estão promovendo o terror no local. Parece meio óbvio, mas não é porque um homem vem da Palestina que ele será, necessariamente, um homem-bomba em potencial. Ele pode ser só alguém querendo fugir de uma nação em que o fundamentalismo impera. E talvez seja por isso que uma das cenas mais desoladoras de Fuga envolva uma pequena embarcação que está em fuga tentando chegar à Suécia - por meio do Mar Báltico - e se depara com um enorme navio de turistas cheio de pessoas loiras, ricas, bonitas. São instantes de tensão e de suspense em que aquelas pessoas apenas clamam por uma salvação. Uma alternativa. Alguma coisa qualquer que não seja ter de retornar ao Afeganistão. Ou à Rússia. É chocante. Desesperador. 


Na real em linhas gerais é meio inconcebível pensar que estamos em um mundo em que esse tipo de barbárie ocorra. Em que violência, sangue, tortura e morte resulte de uma necessidade de se aniquilar o diferente. Em que pessoas movidas por ódio, por intolerância, por preconceitos os mais diversos apenas desejam que o outro deixe de existir. E eu estou aqui escrevendo essa resenha e despejando essas palavras meio sem pensar e ainda nem falei do filme em si e da história que ele conta. E de como Fuga se tornou a primeira obra da história a ser nominada ao Oscar nas categorias Documentário, Animação e Filme em Língua Estrangeira (é o enviado da Dinamarca). A trama narra a história real de um intelectual (sem nome fictício é Amin Nawabi), que faz um relato comovente ao diretor Jonas Poher Rasmussen sobre como tenta recomeçar a sua vida na Europa após conseguir, a muito custo, fugir do Afeganistão. Para se tornar, inicialmente, uma "não pessoa" - sem família, sem passado, sem documentos.

O filme mescla documentário e a animação como uma opção, até mesmo para preservar a identidade do protagonista, que até hoje vive na Dinamarca. Isso não impede que detalhes de sua vida íntima sejam revelados, como o fato de ser gay em um País absurdamente conservador e radical também no que diz respeito a esses temas. E não deixa de ser curioso notar como será justamente a sexualidade de Amin - e a sua busca permanente (e incerta) pelo amor - que o humanizará ainda mais (e não é por acaso que soem tão agradáveis a nós os comentários do protagonista sobre os filmes do Van Damme ou mesmo uma rara entrada em uma boate, numa daquelas sequências que nos fazem rir e chorar ao mesmo tempo). E que mostrarão que a vida pode ser tão simples. Tão bela. O que queremos, o que desejamos. Longe do ambiente acinzentado e arenoso do contexto de fuga, recriado na animação como uma espécie de borrão macabro na mente de Amin. É uma experiência rara, complexa, atual. E que precisa chegar ao maior número de pessoas possível. Na realidade me faltam até palavras. Resta apenas a opção de ver. E de torcer para que a visibilidade possibilitada pelo Oscar possa render bons frutos.

Pitaquinho Musical - Tears For Fears (The Tipping Point)

Pode parecer meio paradoxal o fato de que, talvez, a maior virtude do mais recente trabalho do Tears For Fears, The Tipping Point, seja justamente não parecer com nada daquilo que a banda já tenha feito no passado. E isso não significa renegar a era do clássicos do grupo - canções como Everybody Wants to Rule The World, Sowing the Seeds of Love e Shout estão eternizadas em nossos corações - e sim reconhecer que a música, especialmente nesses tempos tão urgentes e tecnológicos, é um organismo em movimento. E é justamente dessa maneira que os britânicos parecem oxigenar o seu som - algo que, por sinal, já havia se in iniciado no agora distante Everybody Loves a Happy Ending (2004). Da abertura com o folk de No Small Thing até o fechamento com o dream pop Stay temos uma coleção de canções palatáveis - caso da faixa título e da ótima Break The Man -, que mantém o Tears for Fears conectado com as sonoridades atuais. Afinal, vamos combinar que aquele clima épico dos discos dos anos 80, se replicado nos dias de hoje, talvez soasse apenas anacrônico (ou até brega). Roland Orzabal e Curt Smith, afinal, também mudaram bastante nessas quatro décadas de estrada. Dores, perdas, tentativas de recomeços, tá tudo lá, condensado em 40 minutinhos que descem redondo. Pode ir na fé!


quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Novidades em Streaming - Free Guy: Assumindo o Controle (Free Guy)

De: Shawn Levy. Com Ryan Reynolds, Jodie Comer, Joe Keery e Taika Waititi. Ação / Aventura / Comédia / Ficção Científica, EUA / Canadá, 2021, 115 minutos.

Vamos combinar que não é sempre que a mistura de videogame com cinema funciona, mas no caso de Free Guy: Assumindo o Controle (Free Guy) até que dá pra passar um paninho numa boa. Ok, não se trata de nenhuma experiência tão inesquecível ou inovadora - há ecos salpicados na narrativa de obras como Feitiço do Tempo (1993), O Show de Truman (1998) e Matrix (1999), além de games como Grand Theft Auto (GTA), Sim City e Fortnite, com direito a participação de streamers e outras referências da área -, mas é possível se divertir de forma descompromissada, com direito até a uma mensagem bacana sobre termos a ousadia de viver uma vida que possa ir além daquilo que parece programado para a nossa existência. É bobinho? Sim. É farofa? Total! Vai passar na Sessão da Tarde? Olha, só não passará se os programadores estiverem malucos, afinal a obra tem carisma, tem senso de humor e excelentes cenas de ação.

Na trama Ryan Reynolds é Guy, um sujeitinho de vida ordinária que trabalha em um banco, repetindo a sua rotina cheia de banalidades dia após dia. Quer dizer, "trabalha em um banco" é uma forma de dizer, já que Guy - também conhecido como o "cara da camisa azul" -, é um personagem secundário de um jogo de aventura ultrarrealista chamado Free City. Sim, enquanto o pau TORA naquele ambiente - com perseguições alucinantes, explosões, crimes, agressões e outros - Guy apenas caminha até o seu emprego, pede um café, cumprimenta amavelmente as pessoas (como uma espécie de Jim Carrey em O Show de Truman do ambiente virtual). O protagonista, na realidade, é aquilo que se conhece no universo desses jogos como Non-Player Character (ou Personagem Não Jogável). São aqueles que não podem ser controlados mas fazem parte do contexto e interagem de outras formas.


Bom, só que não demora muito para Guy cansar daquilo que ele faz todos os dias. E o "gatilho" para que ele burle o código que está programado pra ele envolve a jogadora Millie (Jodie Comer, a maravilhosa Villanelle da série Killing Eve) que, no ambiente virtual utiliza o nome de Molotov Girl - e, na real, Guy se apaixona por ela. Completando o trio de protagonistas, temos o programador Keys (Joe Keery), que trabalha para a empresa que produz Free City - e que está movendo uma ação contra Antwan (Taika Waititi) a quem acusa de ter roubado os códigos-fonte do game para benefício próprio. Pode parecer embaralhado de compreender, mas tudo vai se conectando direitinho quando Guy se aproxima da Molotov Girl, com ambos percebendo que a chave para solucionar o mistério pode estar dentro do ambiente do próprio jogo.

Recheado de boas piadas, o filme dirigido por Shawn Levy é um prato cheio pra quem gosta de cultura pop, com as referências aparecendo aos montes (algumas até de forma imprevisível). Já o Ryan Reynolds não poderia estar mais à vontade no papel de um sujeito comum (até meio panaca às vezes), mas que se converterá no heroi involuntário que será necessário pra salvar o universo em que não apenas ele, mas todos os NPCs vivem. O mesmo vale para os movimentos de câmera e corporais, além do desenho de produção, que emulam de forma perfeita o ambiente de um jogo de videogame virtual. É tudo bem conectado até para que se evoque o sentimento de nostalgia nos mais veteranos e de associação direta para a geração Playstation. Ah, rolou uma indicaçãozinha ao Oscar para Efeitos Visuais. E que me parece ser justa, convenhamos.

Nota: 7,5

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Curta Um Curta - Audible

Vamos combinar que uma das magias da categoria documentário é a de tomar contato com histórias que jamais imaginaríamos existir. No caso do curta-metragem Audible - um dos indicados ao Oscar em sua categoria e que está disponível na Netflix - somos apresentados a um grupo de jovens que integra um time de futebol americano apenas de surdos. E que, não bastasse essa especificidade, está invicto há 46 jogos! Sinceramente, eu não imaginava que existissem ligas regionais que possibilitavam esse tipo de inclusão. E muitos menos que o esporte fosse tão competitivo - aliás, mérito para as ótimas sequências que envolvem os jogos, repletas de ângulos de câmera criativos.

Mas as disputas em si são o de menos na obra de apenas 40 minutos dirigida por Matthew Ogens. Sendo entrecortada por diversos diálogos - a grande a maioria deles realizados por meio da língua de sinais -, o filme aborda temas ásperos como suicídio, solidão das pessoas com deficiência, homossexualidade, luto e até as inseguranças da adolescência - a sequência em que dois meninos conversam sobre convidar uma garota para o baile da escola é uma pequena joia! Ainda que adote um tom otimista e de superação (aparece lá no meio até um pastor da Igreja Evangélica), o gosto é meio amargo. O que comprova que ainda temos muito a aprender e muitos preconceitos a superar quando o assunto é esse.

Novidades em Streaming - Encanto (Encanto)

De: Byron Howard, Charise Castro Smith e Jared Bush. Com Stephanie Beatriz, Maria Cecilia Botero, John Leguizamo e Wilmer Valderrama. Animação / Fantasia, EUA / Colômbia, 2021, 102 minutos.

Vamos combinar: é maravilhoso o esforço da Disney em ampliar a representatividade em seus projetos. Dar visibilidade pra outros povos, outras culturas, pras minorias, tudo isso é excelente. Afinal de contas não é só de princesas indefesas sendo salvas por algum herói involuntário que vive esse universo. Só que isso significa que os filmes sempre serão bons, apenas por causa dessas alterações? Não, nem sempre. E, a meu ver é justamente esse o caso de Encanto (Encanto) que, a despeito de ter uma história que se passa na Colômbia e contar com uma protagonista que foge de qualquer estereótipo, não consegue estabelecer uma conexão maior com o público, já que seu arco narrativo é frágil e até excessivamente infantilizado. E antes que vocês me lembrem - com justiça diga-se - que se trata de uma animação, mais voltada para as crianças, lembro que é perfeitamente possível construir uma história sólida, bem-humorada e que ainda passa o recado direitinho, o que comprovam exemplos recentes Raya e o Último Dragão (2021) (da própria Disney) e A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas (2021).

Sim, talvez não seja uma equação tão fácil de acertar. E vale lembrar que, para cada pessoa - inclusive para as crianças -, a experiência com um filme será diferente. Vai ver eu tinha muita expectativa pela obra dirigida por Byron Howard, Charise Castro Smith e Jared Bush. Havia um hype muito grande que até o colocava como um dos favoritos a faturar o Oscar na categoria Melhor Animação - ele concorre contra os dois citados acima, além de Flee (2021) e Luca (2021). Mas, como eu já disse, faltou alguma coisa. Um tempero a mais. Algo que tirasse a experiência até de um certo marasmo. Ainda que o empenho na bela mensagem de respeito às diferenças ecoe por todo o canto, sendo uma das grandes virtudes. O que certamente fará com que muitos se apaixonem pela protagonista Mirabel (Stephanie Beatriz), a única integrante da família Madrigal que, de forma meio inexplicável, não possui nenhum tipo de poder mágico (ou encanto).


Ter um poder é uma espécie de sina dos Madrigal. O bônus que surge a partir de um ônus - justamente quando os antepassados escapavam da Guerra dos Mil Dias na Colômbia, uma mulher chamada Alma "Abuela" Madrigal (Maria Cecilia Botero) perde o seu marido em meio a uma fuga da aldeia, que era atacada por soldados. O sacrifício do homem que, assim, salvaria sua família converte-se em uma espécie de proteção divina: no episódio, Alma segurava uma vela e é justamente a partir dela que é criado um refúgio para a Abuela e os aldeões, que são protegidos junto às montanhas. Nesse novo local a própria casa (chamada afetuosamente de "casita") tem poderes especiais, ao passo que todos os descendentes de Alma contam com uma espécie de dom mágico. Os dons - capacidade de cura, super força física, possibilidade de conversar com os animais e outros - são utilizados para o bem-estar de toda a comunidade. Até o dia em que Mirabel nasce e, ao ser batizada na casa, percebe não ter nenhum poder. Nenhum dom. Um enigma. O que a torna diferente de todos?

Bom, não é preciso estar muito acostumado com esse tipo de narrativa para perceber que será justamente a falta de dom de Mirabel o seu maior dom. Sim, é meio paradoxal, mas lá pelas tantas a casa dos Madrigal passa a ser ameaçada pelo enfraquecimento do encanto e, bem, talvez Mirabel possa ser a única a encontrar o caminho para que tudo se resolva. E é meio que isso. Sem um grande vilão. Ou um antagonista realmente imponente. O maior percalço estará nos próprios descendentes da família que, lá pelas tantas, passarão a se desentender, enquanto tentam compreender o que acontece com a habitação em que vivem (que parece ruir a cada dia). Ah, quase esqueço de falar: trata-se de um musical. Então toda a narrativa é costurada por músicas, algumas boas (Dos Oruguitas, que está nominada ao Oscar na categoria Canção Original, é uma joia), outras nem tanto. É meio contraditório falar isso, mas, faltou um pouquinho a mais de magia em Encanto. E também tá tudo bem. Não é sempre que a gente vai se comover com uma animação.

Nota: 6,5

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Novidades em Streaming - Mães Paralelas (Madres Paralelas)

De: Pedro Almodóvar. Com Penélope Cruz, Milena Smit, Isreal Elejalde e Aitana Sánchez-Gijón. Drama, Espanha, 2021, 121 minutos.

Vamos combinar que se tem um diretor que sabe olhar para o íntimo dos personagens (e bota íntimo nisso), mas sem ignorar o contexto - social, político, cultural - este é o Pedro Almodóvar. Sim, suas obras podem ser novelescas, anárquicas, ousadas, debochadas e até eventualmente histriônicas. Mas também sabem ser comoventes, sutis, humanas. Almodóvar é, ao cabo, o diretor completo - e não foi por acaso que muitas de suas produções já passaram aqui pelo Picanha, como nos casos de Carne Trêmula (1998), Tudo Sobre Minha Mãe (1999) e o recente (e soberbo) projeto Dor e Glória (2019). Aliás, assim como outros realizadores - casos de Wes Anderson, Quentin Tarantino e Tim Burton, só pra citar alguns -, o espanhol é mais daqueles que possuem uma assinatura própria, um estilo inconfundível, sendo praticamente impossível olhar para a paleta normalmente quente de cores, para os cenários cheios de elementos e para os figurinos vibrantes sem pensar "bom, está aí um Almodóvar raiz".

E talvez seja a soma desses ingredientes - a história que emerge do microcosmo, a estética que vai no limite da ambiguidade, o olhar carinhoso para o passado - justamente aquilo que torna possível a existência de pequenas joias como este Mães Paralelas (Madres Paralelas), que está disponível na Netflix. Aliás, o "assunto" das mães - das mulheres em geral - costuma se repetir nos filmes de Almodóvar, como uma espécie de metáfora geradora do todo, da continuidade da vida, da persistência em meio às dificuldades, da superação em uma sociedade machista, misógina, patriarcal. E provavelmente seja essa cumplicidade que faça com que Janis (Penélope Cruz) e Ana (Milena Smit) se aproximem na maternidade - aliás, elas darão à luz no mesmo dia. De personalidades opostas, Janis é a fotógrafa bem estabelecida e independente que, próxima dos 40 anos, sonha com a maternidade. Está eufórica com a ideia. Já Ana, uma adolescente, engravidou por "acidente" e está arrependida, traumatizada, morrendo de medo de tudo.


E as circunstâncias que as tornarão mães podem até parecer desimportantes num primeiro momento, mas funcionarão também como fio condutor que engendra a narrativa muito bem costurada. Janis, por exemplo, engravida de um arqueólogo ligado ao Governo - seu nome é Arturo (Israel Elejalde) -, após um trabalho conjunto que executam. Janis tem interesse no tema das escavações pois alguns de seus parentes podem estar enterrados em um sítio em uma antiga vila onde viveram seus antepassados, tendo sido assassinados durante o regime do ditador Francisco Franco. Detalhe: Arturo é casado. Já Ana, aparentemente, foi estuprada e é meio assombroso constatar o fato de que ela talvez sequer tenha se dado conta disso. E é justamente esse emaranhado que faz com que Janis e Ana se aproximem ainda mais, se fortaleçam em suas dores, se apoiem diante do sofrimento, especialmente quando a ligação entre ambas dá sinais de que, muito provavelmente, se quebrará. Há algo maior que une as mães da nação. E que conecta passado, presente e futuro.

E acompanhar tudo isso é se emocionar sem que para isso sejam necessárias muitas lágrimas. Há uma série de subtextos que envolvem escolhas profissionais x maternidade (e aqui entra o papel conturbado e ambíguo de Aitana Sánchez-Gijón que interpreta Teresa, a mãe de Ana), incertezas diante do futuro, superação do luto, solidão e outros. Com os atores, especialmente Penélope Cruz, dando um verdadeiro show de interpretação - e as formas com que a sua expressão se modifica tão naturalmente diante de uma ou outra notícia reveladora, dão conta da grande atriz que, afinal de contas, ela viria a se tornar (e, nesse sentido, a indicação ao Oscar não é por acaso). Aliás, a propósito do "carecão dourado" (como diz o Otávio Ugá, do Canal Super Oito), Alberto Iglesias, colaborador de longa data do diretor, também foi lembrado na categoria Trilha Sonora (e com justiça, já que as suas cordas cortantes contribuem para o clima de suspense e drama da narrativa). Resumo da ópera: Almodóvar está na melhor forma possível. E quem ganha é o espectador.

Nota: 9,0


sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Pitaquinho Musical - Beach House (Once Twice Melody)

Vamos combinar que, em tempos de tik tok, de vídeos curtos e de pessoas saltando de um conteúdo pra outro em questão de segundos, é sempre admirável quando uma banda se desafia a lançar um disco longo, que exige uma apreciação mais calma do ouvinte. E se há um grupo que pode fazer isso sem nenhum peso na consciência é o Beach House. Com quase 20 anos de estrada e, no mínimo, dois registros memoráveis - Teen Dream (2010) e Bloom (2012) -, a dupla formada por Victoria Legrand e Alex Scally embala praticamente todos os experimentos testados anteriormente em seu oitavo trabalho Once Twice Melody. Afinal, adentrar nas 18 faixas do disco de quase 1h30 é mergulhar num universo onírico que cruza o dream pop, o shoegaze e a psicodelia sem esquecer dos instantes mais acessíveis, dos refrões e das soluções mais fáceis. Sinceramente, dado o tamanho e a ambição do projeto, nunca foi tão descomplicado digerir um álbum uma vez que as canções são perfumadas pelo tradicional verniz adocicado, mas esculpidas de uma forma tão simples quanto consistente, que nos permitem identificar a identidade sonora da dupla já nos primeiros acordes. Espaciais, modernas, polidas, elegantes, canções como Superstar, Runaway, Only You Know e Sunset parecem ter vindo para ficar. É um dos discos do ano, sem nenhuma dúvida.


quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

Novidades em Streaming - A Vida Extraordinária de Louis Wain (The Electrical Life of Louis Wain)

De: Will Sharpe. Com Benedict Cumberbatch, Claire Foy, Toby Jones e Olivia Colman. Drama, Reino Unido, 2021, 111 minutos.

"O artista Louis Wain tornou seu o gato. Ele inventou um estilo de gatos. Uma sociedade de gatos. Todo um mundo de gatos. Gatos que não se parecem e vivem como os gatos de Louis Wain têm vergonha de si mesmos. Mas não é isso que importa. O que importa é que Louis Wain dedicou sua vida a tornar todas as nossas vidas mais felizes. Ao fazer isso, ele sem dúvida elevou o gato na sociedade, mudando nosso mundo para melhor". Dita pelo escritor britânico de ficção científica H.G. Wells, pode-se dizer que a frase acima resume, ao menos em partes, aquilo que acompanhamos no "elétrico" A Vida Extraordinária de Louis Wain (The Electrical Life of Louis Wain), uma das novidades da semana no Now. Vivido pelo onipresente Benedict Cumberbatch, Wain foi um espírito inquieto - um representante típico da Inglaterra Vitoriana - daqueles que tinha a mente sempre em ebulição e controlava parte do caos interior sempre se movendo. De forma frenética, intensa.

Nesse sentido talvez não seja por acaso que a eletricidade do título original volta e meia reapareça na narrativa, como uma espécie de força mais metafórica do que efetivamente concreta que sirva para nos impulsionar. Que nos tira do passado para nos arremessar para o futuro em uma espécie de processo irreversível. Em meio a tantas atividades praticadas por Wain - ele foi um fracassado professor de artes, um boxeador ocasional, um músico frustrado, um aspirante a inventor que buscava patentear qualquer coisa - foi a pintura que lhe possibilitou esse tipo de elevação. A ilustração. Especialmente as de gatos. Calendários, álbuns, cartões postais, charges de jornais... no final do século 19, os gatos distorcidos do artista plástico, eventualmente fragmentados ou até psicodélicos estavam em toda a parte. E quanto mais progredia a sua esquizofrenia e o seu apelo a eletricidade - esse negócio tão extraordinário, incompreensível à mente humana, essa força misteriosa e elementar que guarda os segredos mais profundos da vida -, mais fantasiosos, surrealistas e psicóticos se tornavam os seus gatos.


Conduzido com elegância e urgência por Will Sharpe, o filme avança a partir de dificuldades da vida de Louis que, após a morte do pai precisou cuidar das cinco irmãs e de sua mãe. Mal visto pela sociedade da época, o casamento com a governanta da família Emily Richardson (Claire Foy) foi o ponto de partida para a verdadeira obsessão por gatos - Wain costumava retratar o felino Peter, especialmente após a precoce morte de Emily, vitimada por um câncer de mama. Essas notas tristes que pontuaram a vida do artista são retratadas por Sharpe como uma verdadeira montanha-russa que conduz o protagonista à fama repentina mas também a completa incapacidade de gerir seus próprios negócios. Wain chegou a integrar entidades como a Sociedade de Proteção aos Gatos - uma novidade lá pelo ano de 1890. Mas nunca soube ganhar dinheiro, nem comercializando seu material e muito menos preservando a propriedade intelectual de suas imagens. Logo os gatos de Wain estavam por toda a parte. E ele seguia com poucos recursos - condição que pioraria com os primeiros sinais de sua doença mental.

De certa forma essa é uma obra que, por mais que aposte no tom eventualmente melancólico, não deixa de reconhecer a beleza do legado de Wain. A produção é caprichada, com seu desenho de produção competente e com sua fotografia que parece emular a paleta de cores de quadros - isso sem falar na trilha sonora envolvente. Narrado por Olivia Colman, o filme ainda presta tributo à poesia que existe por trás da busca da beleza do mundo - aquilo que muitas vezes os nossos olhos parecem fazer força pra enxergar e que muitas vezes está na nossa frente (e, nesse sentido é impossível não se emocionar com o instante em que Emily lembra Louis de que o olhar é a chave para que capturemos à beleza). "E você pode funcionar como um prisma, que espalha as cores ao redor". É tudo muito honesto, com um roteiro bem costurado e um empenho geral para que o resultado seja satisfatório. Talvez não fosse a necessidade de uma campanha tão ampla e estaria entre os cotados para o Oscar. Ainda assim, mesmo sem indicações, vale conferir.

Nota: 8,0

Cinema - O Beco do Pesadelo (Nightmare Alley)

De: Guillermo Del Toro. Com Bradley Cooper, Rooney Mara, Cate Blanchett, Toni Colette e Willem Dafoe. Drama / Fantasia / Suspense, EUA, 2021, 150 minutos.

A imagem de uma roda gigante surgida em um plano aberto ainda no comecinho de O Beco do Pesadelo (Nightmare Alley) pode ter sido apenas uma aleatoriedade. Ainda assim não deixa de ser fascinante como o imponente brinquedo do parque de diversões itinerante - que serve como cenário de parte da narrativa - funciona como uma metáfora meio involuntária daquilo que acompanharemos dali para frente. Sim, a vida vai e volta, sobe e desce e às vezes parece que estamos no mesmo lugar, ainda que tenhamos, de alguma forma, nos movimentado. E é exatamente isso que ocorre com o protagonista Stan Carlisle (Bradley Cooper), um trambiqueiro que engendra um truque que mistura mentalismo e espiritismo para tentar manipular seu público nessa arena tão fantasiosa quanto mística. Stan começa meio pequeno e por acaso nesse parque excêntrico, recheado de atrações de gosto duvidoso ou meio bizarras - como por exemplo a existência de uma espécie de "fera" que se alimenta de animais vivos. E vai galgando algum sucesso, que o fará, movido pela ambição, dar um passo além em seus truques.

Baseada no livro de William Gresham, essa história já havia sido adaptada para o cinema em 1947, por Edmund Goulding. E vamos combinar que se havia um diretor indicado para reinterpretar esse texto era Guillermo Del Toro, que não apenas modificou algumas das ideias da obra anterior - inclusive seu final -, como ainda ampliou o espectro sombrio e misterioso do enredo que acompanhamos. Com um pouco menos de senso de humor do que o filme dos anos 40 - e até um otimismo menor -, a narrativa nos conduz a uma espiral de acontecimentos que se transforma em um verdadeiro jogo de gato e rato em que o vigarista Stan levará até o limite o seu truque - que envolve adivinhações relativas a vida pessoal dos participantes, a partir de um ardiloso jogo de palavras. Se a sua partner Molly (Rooney Mara) solicita que ele "preste atenção", talvez ela esteja com um relógio à mão, enquanto Stan, de olhos vendados, tenta adivinhar. Um truque meio barato que atrairá a atenção da psiquiatra Lilith Ritter (Cate Blanchett) que se aproximará do ilusionista.

Como afirmei no começa da resenha, a roda gigante vai rodando, vai subindo, vai subindo, com Stan cada vez mais animado com a ideia de levar as suas façanhas até o limite. No meio do caminho há uma morte meio inesperada, do veterano Pete (David Strathairn), em um aparente acidente envolvendo sua predisposição ao alcoolismo. Ou ele teria tirado a própria vida? Stan, em meio a seus jogos de poder, estaria envolvido? E o que desejará a viúva Zeena (Toni Colette), uma cartomante que parece sempre rondar o espectro do protagonista. Parece meio complicado mas é tudo bem amarrado, tecnicamente bem executado, o que explica as indicações ao Oscar em Desenho de Produção (Tamara Deverell), Figurino (Luis Sequeira) e Fotografia (Dan Lautsen), além da protocolar nominação a Melhor Filme. Já o elenco estelar é complementado por nomes como Willem Dafoe, Ron Perlman, Richard Jenkins, Mary Steenburgen e Tim Blake Nelson.

Ao cabo trata-se de um bom filme, que mescla drama, suspense, fantasia e até romance de forma equilibrada e bem à moda dos anos 40. O pano de fundo da Segunda Guerra Mundial, que estava às portas de acontecer, não ganha tanta profundidade, sendo o foco principal a mesquinharia daqueles sujeitos - ainda que a mera existência de um vigarista disposto a enganar meia dúzia de ricaços possa também ser um bom reflexo dos tempos (e nunca é demais lembrar que os EUA mal se recuperava da traumática quebra da Bolsa de Valores de 1929). Em linhas gerais eu confesso que nem sempre sou favorável ao processo de reimaginar histórias já visitadas anteriormente - especialmente se o resultado da versão antiga tem qualidade. Mas, aqui, como forma de apresentar essa trama para as novas gerações, parece haver um sentido nisso tudo. O cinema, afinal, também é uma espécie de roda gigante. Que sobe, desce, e às vezes estaciona no mesmo lugar de onde partiu sendo que, o que vale, é a jornada.

Nota: 8,0

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Pitaquinho Musical - Big Thief (Dragon New Warm Mountain I Believe In You)

Existe algo mágico na hora de ouvir os discos do Big Thief que torna a experiência com a banda meio celestial, quase mística. E não é que haja grande elaboração nos arranjos ou nas melodias - ainda que estas sejam executadas de forma soberba. Ou que as letras sejam concebidas como se estivéssemos diante de uma espécie de Walt Whitman da nova geração. Não. Mas ainda assim a força de um trabalho como Dragon New Warm Mountain I Believe In You - o quinto de estúdio - parece estar na simplicidade semi-acústica de quase tudo, no instrumental econômico e direto e na perfumaria nostálgica encontrada nesse roteiro meio bucólico, meio transcendental. Sim, porque de alguma forma não deixa de ser impressionante a forma bastante descritiva que Adrianne Lenker e companhia promovem uma viagem que divaga sobre recordações de infância, amores mal resolvidos, ciência de almanaque, ETs, riachos, átomos, cachoeiras, criaturas aladas, luas e estrelas, sangue, febre, árvores, prismas, cavalos e anjos. Durante as 20 faixas o que encontramos é uma enxurrada que verte de forma tão aleatória quanto calorosa, enquanto o vocal excêntrico e quase no limite da desafinação da vocalista nos envolve, nos abraça. Em meio a tudo parece que nos reencontramos com algo meio sem saber direito o quê. Se está na dúvida experimente Red Moon, Wake Me Up to Drive ou No Reason. Você vai querer ouvir o resto, pode ter certeza.



Novidades em Streaming - Greta

De: Armando Praça. Com Marco Nanini, Denise Weinberg e Demick Lopes. Drama, Brasil, 2019, 97 minutos.

Vamos combinar: um filme como Greta ter sido concluído em pleno andamento do (des)governo Bolsonaro - aliás, com uma gestão que não tem medido esforços para destruir a cultura brasileira, especialmente a mais popular -, é quase um milagre a ser comemorado. É a arte que respira, que provoca. Que ousa discutir temas eventualmente mais transgressores e que fogem da lógica estabelecida pelo status quo. E que disputa espaço em editais quadrados, que vetam esta ou aquela temática para que a família de bem não fique chocada em ver a realidade na tela. Sim, a realidade. Aquela que não é tão bonita. Não tão formosa. Que é dura, árida, desalentadora. E que na estreia de Armando Praça ganha o corpo do ator Marco Nanini - o nosso eterno Lineu de A Grande Família -, um senhor de 70 anos, com alguns quilos a mais. Que é gay. Que mora sozinho. E que passa seu tempo assistindo a obras clássicas estreladas por Greta Garbo.

Pedro, o homossexual de Nanini, não é aquela gay luxuosa, histriônica ou afetada que nos acostumamos a ver em produções mundo afora - e que servem perfeitamente para a afeição (e para o palato) dos conservadores que costumam dizer que não tem nada contra, mas... né? Pedro toma decisões eticamente questionáveis, mora em um cubículo em permanente estado de penumbra, não tem o melhor gosto para se vestir. Fuma, bebe. É até excessivamente ranzinza em alguns momentos. O próprio Nanini em entrevistas afirmou que não é um personagem para ser amado: ele carrega uma dor provavelmente histórica, de quem nunca pôde, em toda a sua trajetória, viver a vida como gostaria de ter vivido. O que talvez explique seu hedonismo tardio. E sua metodologia, uma vez que converte o hospital público em que atua em um ambiente de luxúria, em que troca favores sexuais com figuras marginalizadas.

Aliás, é justamente quando sua melhor amiga Daniela (Denise Weinberg) chega ao hospital com um severo problema renal - ela tem poucos dias de vida -, que Pedro se vê em um impasse. Sem leito na ala feminina para abrigar uma pessoa trans, ele vê a oportunidade de alocar a amiga no setor dos pacientes homens quando um recém-chegado jovem baleado de nome Jean (Demick Lopes), praticamente implora para não ficar ali. A alternativa? Levar o rapaz para a sua casa, oportunizando à Daniela uma cama. Uma decisão estranha, excêntrica, especialmente pelo fato de Jean ter toda a pinta de ser alguém que está envolvido em crimes mais pesados. Oferecendo uma cama, comida, banho, curativos para os ferimentos, Pedro se aproximará de Jean, encontrando nele um fiapo de afeto e alguma dose de sexo. Uma amizade meio inesperada. Uma paixão que aplaca, de alguma forma, a solidão mútua.

Porque o filme, que está disponível na plataforma Mubi, é, no fim das contas, uma experiência única sobre a solidão na terceira idade. Que parece alcançar níveis quase insuportáveis para os gays, pobres, trabalhadores da periferia. Nanini encarna esse sujeito ordinário que é Pedro de forma convincente e comovente - ainda que a sua predição por Garbo soe eventualmente exagerada ou meio caricata. Apostando no hospital e no pequeno apartamento de Pedro como ambientes pequenos, úmidos, claustrofóbicos, Praça parece ampliar a sensação de sufocamento. Há um desconforto meio generalizado que vai da palavra meio entortada, passando pela nudez corajosa até chegar na beleza paradoxal - como no instante em que Daniela entoa o clássico Bate Coração, de Cecéu, que ficaria eternizada na voz de Elba Ramalho. É uma experiência nunca fácil, dolorosa, cheia de camadas e que vai fundo nos temas que pretende discutir. Mas sem perder a ternura.

Nota: 8,5

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Cinema - A Felicidade das Pequenas Coisas (Lunana: A Yak in the Classroom)

De: Pawo Choyning Dorji. Com Sherab Jorji, Pem Zam, Ugyen Norbu Lhendup e Kelden Lhamo Gurung. Drama, Butão / China, 2019, 110 minutos.

Sinceramente eu terminei esse magnífico e afetuoso A Felicidade das Pequenas Coisas (Lunana: A Yak in the Classroom) já achando uma pena o fato de que, muito provavelmente, poucas pessoas se interessarão pela obra - ainda que a indicação ao Oscar (é o representante do Butão na categoria Filme em Língua Estrangeira) talvez possa dar um upgrade. Por que o caso é que esse é o tipo de experiência que ilumina, que aconchega, que olha para as coisas simples da vida com ternura, com reverência. Para a natureza. Para as artes. Para a cultura e para o ensino. Para o poder do aprendizado. Ou para a mera importância do professor. O que em um mundo tão impessoal, tão individualista, tão tecnológico, tão conectado mas tão distante, parece tornar tudo ainda mais paradoxal. Hoje em dia parece que o olho no olho perdeu espaço. Tudo é tecla, bit, aplicativo, rede social. O resultado desse contexto é um coletivo insatisfeito, intolerante, consumista. Esses somos todos nós - eu também estou nesse bloco. Onde foi que erramos esse passo?

Vocês que, assim como eu, moram na cidade, se lembram quando visitavam os parentes do interior na juventude? Ou talvez essa era a vida real de vocês, ao lado dos pais, dos avós, dos bichos, da horta. Pois o filme do diretor Payo Choyning Dorji nos faz lembrar desse tipo de existência: bucólica, em meio a natureza e em comunhão com ela. Sim, cheia de dificuldades, com uma necessidade enorme de uma boa dose de improvisos. Mas com um espírito comunitário elevado, em que todos ajudam todos. E todos se apoiam. Só que quando Ugyen (Sherab Jorji), um professor do serviço público de ensino é enviado pelo Governo para Lunana, uma aldeia do Butão que talvez seja a mais remota do planeta, o jovem educador não sabe o que vai encontrar. E de quebra ele ainda vai meio à contragosto, já que o seu sonho verdadeiro é obter um visto para a Austrália, onde pretende investir na carreira de músico. Em resumo, ele está insatisfeito e ainda precisa ministrar aula em um lugar que, definitivamente, não quer estar.

Bom, não é preciso conhecer muito de estrutura clássica de narrativas em filmes para saber o que, mais ou menos vai acontecer nessa joia do cinema asiático. E não tem nenhum problema que o arco narrativo seja convencional, porque as personagens que encontramos são tão cativantes, tão apaixonantes, tão agregadoras, que essa é uma daquelas experiências que não queremos que acabe. Lunana não tem nem 60 moradores na comunidade, estando localizada quase 5 mil metros acima do nível do mar. Aliás, pra alcança-la são necessários seis dias de uma cansativa caminhada morro acima em meio ao verde exuberante - as paisagens são deslumbrantes -, para acessar um lugar sem nenhuma estrutura. Não há luz, salvo em dias ensolarados, por meio de energia solar. A sujeira e a precariedade estão em toda a parte. Na escola improvisada ficam duas ou três mesas de madeira, não há quadro negro, o ambiente é escuro. Mas os alunos são puro amor. Empolgação. Vontade. Generosidade.

Sim, porque ao cabo esse filme é também uma verdadeira ode ao ensino. Tratado com toda a pompa e circunstância já na recepção - feita por um certo Michen (Ugyen Norbu Lhendup) -, Ugyen ganhará status de autoridade, um reconhecimento de sua liderança que, em tempos de desrespeito completo à categoria dos professores, nos faz, no mínimo, repensar. "Eu quero me tornar professor porque o professor toca o futuro", responde um dos alunos, quando questionado pelo protagonista sobre quais os anseios para o futuro. É tudo muito nobre, muito solene, ainda que simples: a música está presente no canto dos povos e vai costurando a narrativa, bem como o desenho de produção e a fotografia belíssima que resulta dos cenários impactantes. Eu já tinha ouvido falar que o Butão era um País bonito - aliás, é conhecido pela felicidade de seu povo. Só que na jornada de Ugyen a gente percebe que ele também estava em busca de felicidade. De um algo a mais. Que lhe retirasse do marasmo. E ele jamais sonhava imaginar onde encontraria tudo isso. É sério, é impossível não se comover.

Nota: 9,0

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Cinema - Sempre em Frente (C'mon C'mon)

De: Mike Mills. Com Joaquin Phoenix, Gaby Hoffmann e Woody Norman. Comédia / Drama, EUA, 2021, 108 minutos.

O que você mudaria em você mesma? Se você pudesse ter um superpoder qual seria? Você considera o mundo justo? Como você imagina a existência após a morte? Se seus pais fossem seus filhos, o que você gostaria de ensinar a eles? O que é ser um adulto? Costurada por estas e outras perguntas, a narrativa fluída do envolvente Sempre em Frente (C'mon C'mon) mais parece uma ampla reflexão sobre temas variados relativos a nossa existência. A realidade é que quase nunca paramos pra avaliar estas e outras questões complexas. E que dificilmente possuem uma resposta fechada, exata, cartesiana. Só que, de alguma forma, Johnny (Joaquin Phoenix) está em busca de explicações. Como jornalista que atua em rádio, ele trabalha em um projeto itinerante em que viaja pelo País entrevistando crianças sobre suas percepções a respeito do mundo, da sociedade, do futuro. Temas eventualmente espinhosos, complexos. Sonhos, anseios e medos. Que retiram os pequenos de sua zona de conforto, pra nos entregar instantes mágicos, quase comoventes.

Sim, o filme mais recente do diretor Mike Mills - do excelente Mulheres do Século 20 (2016) - tem aquele jeitão de pseudodocumentário tão naturalista, que nos dá a impressão de que estamos acompanhando, efetivamente, entrevistas reais (o que é verdade, já que o próprio realizador admitiu em entrevistas que apostou na versatilidade, no carisma e capacidade de improviso de Phoenix para a gravação das conversas, em mais um daqueles papeis em que a sua excêntrica e autêntica persona se mescla com o ator). O resultado vai fornecendo, aqui e ali, pistas do que, ao menos aparentemente, pretende Mills com esse trabalho: no caso estabelecer um panorama desse mundo urgente, imprevisível, tecnológico, alegre e melancólico que vivemos, a partir de pequenos recortes, de divagações. Aliás, o microcosmo do próprio protagonista reflete essas inquietações. Especialmente após ele ser encarregado por sua irmã Viv (Gaby Hoffmann da série Transparent) de cuidar de seu sobrinho Jesse (Woody Norman).

Afinal, de alguma forma, esse também é o filme sobre o adulto solitário e meio desajeitado que precisa improvisar para cuidar de uma criança. E que se depara com um pequeno como é qualquer pequeno de nove anos dos tempos atuais: inteligente, perspicaz, curioso, destemido. Talvez manhoso e infantil. Tagarela. De tudo um pouco. E as interações entre ambos não serão apenas tocantes ou magnéticas: elas também refletirão as dificuldades da "paternidade" (e da maternidade) em um mundo em que tudo acontece ao mesmo tempo e agora. Johnny precisa seguir, afinal, com o seu ofício. E carregará a tiracolo o sobrinho, que lhe auxiliará, trazendo também as suas próprios dúvidas, angústias, vontades. Enquanto Viv tenta resolver a vida que está em frangalhos, após o seu marido ser diagnosticado com um severo problema mental. Mudanças de lugares, de perspectivas. Acontecimentos grandes ou pequenos. A aleatoriedade da vida. A beleza das coisas. A dor que guardamos. Há de tudo um pouco em Sempre em Frente, ainda que aparentemente não ocorra nada.

E tudo é soberbamente filmado, com planos mais fechados se alternando com amplos planos abertos que mostram a grandiosidade das cidades (como Detroit e Nova York), que contrastam com os ambientes fechados, as vidas ordinárias. Já a fotografia em preto e branco é um primor, evocando sentimentos ambíguos que vão do plasticamente bonito ao melancolicamente cinza. O mesmo valendo para a quase onipresente trilha sonora, que às vezes mais parece um som ambiente que nos acompanha o tempo todo, entre notas melodiosas ao piano e orquestrações levemente expansivas. É o tipo de obra que nos faz pensar, sorrir, sentir ternura. E que, de quebra, ainda é entrecortado por trechos de livros que parecem ampliar o significado daquilo que acompanhamos, como no caso da citação à Claire A. Nivola, que lembra que "ao longo dos anos, tentaremos dar sentido a essa vida feliz, triste, cheia, vazia e sempre em mudança. E quando chegar a hora de retornar à nossa estrela, pode ser difícil dizer adeus a esse mundo estranhamente belo". Difícil não se comover.

Nota: 8,5

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Pitaquinho Musical - Mitski (Laurel Hell)

Quem acompanha de perto a carreira da cantora Mitski já sabe que ela sempre se caracterizou pela sutileza e pela economia na hora de expressar seus poéticos versos. Só que no mais recente trabalho, Laurel Hell, ela se solta. Fica muito mais expansiva. Ficam de lado as melodias mais evocativas, empoeiradas, em favor de um flerte com a velocidade, a urgência, num aceno ao pop classudo anos 80 mas cheio de vigor, de personalidade. O resultado é uma coleção de canções memoráveis, como The Only Heartbreaker, Working for the Knife e Love Me More que falam de amor - especialmente de suas inseguranças, suas armadilhas - de forma madura, envolvente. É mais ou menos como aquele meme que cobre as áreas cinzentas com um verniz enérgico, acolhedor. Dá pra dançar. Mas pensar. Em uma alternância que flui de forma homogênea dentro de um pequeno caos. Um bom exemplo desse expediente está na já citada The Only Heartbreaker que lembra que, em muitos casos, seremos nós mesmos os "destruidores de corações" (Eu serei o cara mau na peça / Eu serei o cano de água que está estourando e inundando). Sensacional é pouco.


terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Curta Um Curta - A Sabiá Sabiazinha (Robin Robin)

Eu já falei por aqui mais de uma vez que sou incapaz de analisar as animações em stop-motion com os mesmos critérios de outros filmes. Trata-se, afinal, de um trabalho criterioso de captura e que exige muita paciência dos realizadores - com cenários e personagens ganhando movimento de fotograma em fotograma. Famoso por pequenas joias como Fuga das Galinhas (2000) e Shaun: O Carneiro (2007), os estúdios Aardman são também os responsáveis por A Sabiá Sabiazinha (Robin Robin), filme que foi lembrado entre os indicados ao Oscar na categoria Melhor Curta-Metragem de Animação. 

Disponível na Netflix, o curta pode soar bastante infantil e excessivamente doce para os adultos, mas deverá acertar em cheio o coração dos pequenos. Na trama, dirigida por Daniel Ojari e Michael Please uma pequena passarinha se perde de sua "casa" após o seu ovo rolar rumo ao depósito de lixo. No local, ela é criada por uma família de camundongos, mas tem dificuldade em se adaptar à vida de roedor, que exige um comportamento sorrateiro como habilidade. A mensagem sobre coragem de enfrentar os desafios do mundo e sobre respeito às diferenças é adorável, sendo impossível não abrir um sorriso.

10 Considerações Sobre os Indicados ao Oscar 2022

A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas revelou na manhã desta terça-feira (08/02) os indicados para o Oscar 2022 - premiação que ocorre no dia 27 de março. E ela veio repleta de surpresas, para a alegria de quem ama cinema. De bate pronto segue a nossa lista com 10 Considerações avaliando os nominados, ausências e outros.

1) Acho que a maior surpresa de todas foi a ausência de Lady Gaga na categoria Melhor Atriz por Casa Gucci. Apesar de a obra ter perdido força na reta final da temporada de premiações - aliás, a gente ainda nem conferiu ela no Picanha -, a nomeação da atriz/cantora era dada como praticamente certa! Assim, sobrou uma vaguinha pra Jessica Chastain por The Eyes of Tammy Faye.

2) Ainda nas categorias de atuação, acho que ninguém imaginava que Judi Dench fosse ser lembrada por Belfast - aliás, tirou a vaga de sua colega de elenco Caitríona Balfe, pelo que dizem as bolsas de apostas. Gostei demais da lembrança do multifacetado Jesse Plemons por Ataque dos Cães, o que não tira o favoritismo de seu colega de elenco Kodi Smit-McPhee.



3) O dinamarquês Flee fez história ao ser nominado de uma só vez nas categorias Documentário, Animação e Filme em Língua Estrangeira. Isso nunca havia acontecido antes. Ainda sobre os filmes em Língua Estrangeira, foi uma surpresa o filme do Butão, A Felicidade das Pequenas Coisas, ter entrado, deixando de fora os baladados A Hero, do iraniano Asghar Farhadi e o mexicano Reze Pelas Mulheres Roubadas.

4) Na categoria Documentário houve um grande esnobe, no caso para The Rescue, que teve forte campanha da Disney - aliás, já está sendo exibido na plataforma de streaming. De qualquer forma ficamos felizes com a entrada de Summer of Soul entre os nominados - aliás, é um dos favoritos.

5) Na categoria Melhor Filme não houve grandes surpresas em relação ao que previam as bolsas de apostas. Apresentando os Ricardos até contou com campanha forte da Amazon Prime - o que garantiu nomeações para Atriz, Ator e Ator Coadjuvante (Nicole Kidman, Javier Barden e J.K. Simmons) -, mas não conseguiu aquela que era colocada como a última vaga, que ficou para Drive My Car (para nossa alegria).

6) Aliás, a respeito dos filmes estrangeiros, é possível afirmar que o Oscar tem sido, a cada ano, mais democrático, após a consolidação recente de Parasita, o que faz com que obras em língua não inglesa sejam lembradas em outras categorias que não a estrangeira. O resultado são nomeações meio inesperadas como a de Joachim Trier e Eskil Vogt por A Pior Pessoa do Mundo para Roteiro Original, Ryûsuke Hamaguchi & Takamasa Oe, por Drive My Car em Roteiro Adaptado, Alberto Iglesias por Mães Paralelas em Trilha Sonora. Hamaguchi, vale comentar, também pegou uma indicação para Diretor.

7) Em linhas gerais fiquei muito feliz com as indicações para No Ritmo do Coração, um filme pequeno, que foi ganhando força na reta final da temporada de premiações e que foi lembrado em Filme, Ator Coadjuvante (Troy Kotsur) e Roteiro Adaptado (Sian Heder). Produzido pela Apple e disponível também na Amazon é uma pequena joia que vale ser conferida.



8) Quem esperava que Duna fosse ser lembrado apenas nas categorias técnicas teve uma ótima surpresa - ainda que Denis Villeneuve tenha sido esnobado na categoria Direção.

9) Uma pena que a A24 não sabe fazer campanha - isso á algo que o Dalenogare sempre lembra no seu canal de Youtube. No Oscar não basta o filme apenas ser bom: é preciso muita publicidade em cima. O resultado é que grandes obras como A Lenda do Cavaleiro Verde acabam de fora. O mesmo valendo para Mass, Lamb, C'mon C'mon e outros. No ano passado, grandes (pequenos) filmes como First Cow foram completamente ignorados.

10) A gente ama Ataque dos Cães e ele foi o que recebeu o maior número de indicações - no caso 12. Quantas vitórias virão? É aguardar!

Confira os indicados:

Melhor filme
Belfast
No Ritmo do Coração
Não Olhe Para Cima
Drive My Car
Dune
King Richard: Criando Campeãs
Licorice Pizza
O Beco do Pesadelo
Ataque dos Cães
Amor, Sublime Amor

Melhor diretor
Kenneth Branagh (Belfast)
Paul Thomas Anderson (Licorice Pizza)
Ryûsuke Hamaguchi (Drive My Car)
Jane Campion (Ataque dos Cães)
Steven Spielberg (Amor, Sublime Amor)

Melhor ator
Javier Bardem (Apresentando os Ricardos)
Benedict Cumberbatch (Ataque dos Cães)
Andrew Garfield (Tick, Tick... Boom!)
Will Smith (King Richard: Criando Campeãs)
Denzel Washington (A Tragédia de Macbeth)

Melhor atriz
Jessica Chastain (Os Olhos de Tammy Faye)
Olivia Colman (A Filha Perdida)
Penélope Cruz (Mães Paralelas)
Nicole Kidman (Apresentando os Ricardos)
Kristen Stewart (Spencer)

Melhor Ator Coadjuvante
Ciarán Hinds (Belfast)
Kodi Smit-McPhee (Ataque dos Cães)
Troy Kotsur (No Ritmo do Coração)
Jesse Plemons (Ataque dos Cães)
J.K. Simmons (Apresentando os Ricardos)

Melhor Atriz Coadjuvante
Kirsten Dunst (Ataque dos Cães)
Ariana DeBose (Amor, Sublime Amor)
Judi Dench (Belfast) 
Jessie Buckley (A Filha Perdida)
Aunjanue Ellis (King Richard: Criando Campeãs)

Melhor roteiro original
Kenneth Branagh (Belfast)
Adam McKay (Não Olhe Para Cima)
Zach Baylin (King Richard: Criando Campeãs)
Paul Thomas Anderson (Licorice Pizza)
Eskil Vogt & Joachim Trier (A Pior Pessoa do Mundo)

Melhor roteiro adaptado
Siân Heder (No Ritmo do Coração)
Ryûsuke Hamaguchi & Takamasa Oe (Drive My Car)
Jon Spaiths, Denis Villeneuve & Eric Roth (Duna)
Maggie Gyllenhaal (A Filha Perdida)
Jane Campion (Ataque dos Cães)

Melhor edição
Hank Corwin (Não Olhe Para Cima)
Joe Walker (Duna)
Pamela Martin (King Richard: Criando Campeãs)
Peter Sciberras (Ataque dos Cães)
Myron Kerstein & Andrew Weisblum (Tick, Tick... Boom!)

Melhor fotografia
Greig Fraser (Duna)
Dan Lautsen (O Beco do Pesadelo)
Ari Wegner (Ataque dos Cães)
Bruno Delbonnel (A Tragédia de Macbeth)
Janusz Kominski (Amor, Sublime Amor)

Melhor efeitos visuais
Duna
Free Guy: Assumindo o Controle
007 - Sem Tempo Para Morrer
Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis
Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa

Melhor som
Belfast
Duna
007 - Sem Tempo Para Morrer
Ataque dos Cães
Amor, Sublime Amor

Melhor canção original
Be Alive (King Richard: Criando Campeãs)
Dos Oruguitas (Encanto)
Down to Joy (Belfast)
No Time to Die (007 - Sem Tempo Para Morrer)
Somehow You Do (Four Good Days)

Melhor trilha sonora
Nicholas Britell (Não Olhe Para Cima)
Hans Zimmer (Duna)
Germaine Franco (Encanto)
Alberto Iglesias (Mães Paralelas)
Jonny Greenwood (Ataque dos Cães)

Melhor design de produção
Patrick Vermette (Duna)
Tamara Deverell (O Beco do Pesadelo)
Grant Major (Ataque dos Cães)
Stefan Decbant (A Tragédia de Macbeth)
Adam Stockhausen (Amor, Sublime Amor)

Melhor figurino
Jenny Beavan (Cruella)
Massimo Cantini Parrini & Jacqueline Durran (Cyrano)
Jacqueline West & Robert Morgan (Duna)
Luis Sequeira (O Beco do Pesadelo)
Paul Tazewell (Amor, Sublime Amor)

Melhor cabelo e maquiagem
Um Príncipe em Nova York 2
Cruella
Duna
The Eyes of Tammy Faye
Casa Gucci

Melhor filme internacional 
Drive My Car (Japão)
Flee (Dinamarca)
A Mão de Deus (Itália)
A Felicidade das Pequenas Coisas (Butão)
A Pior Pessoa do Mundo (Noruega)

Melhor documentário em longa-metragem
Ascension
Attica
Flee
Summer of Soul (... ou Quando a Revolução Não Pode Ser Televisionada)
Writing with Fire

Melhor documentário em curta-metragem
Audible
Lead Me Home
The Queen of Basketball
Three Songs for Ben Azir
When We Were Bullies

Melhor animação em longa-metragem
Encanto
Flee
Luca
A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas
Raya e o Último Dragão

Melhor animação em curta-metragem
Affairs of the Art
Bestia
Boxballet
Robin Robin
The Windshield Wiper

Melhor curta-metragem
Ala Kachuu - Take and Run
The Dress
The Long Goodbye
On My Mind
Please Hold


segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Cine Baú - O Discreto Charme da Burguesia (Le Charme Discret de La Bourgeoise)

De: Luis Buñuel. Com Fernando Rey, Delphine Seyrig, Stéphane Audran, Paul Frankeur, Bulle Ogier e Jean-Pierre Cassel. Comédia / Fantasia, França, 1972, 102 minutos.

Uma verdadeira coleção de sequências excêntricas, oníricas, esdrúxulas que, de alguma forma, evidenciam a mesquinharia, a futilidade e até mesmo a estupidez das classes mais abastadas. É isso que, ao menos em partes, acompanhamos no clássico O Discreto Charme da Burguesia (Le Charme Discret de La Bourgeoise), filme do espanhol Luis Buñuel, que completa 50 anos de lançamento em 2022. Aliás, quem acompanha a carreira do realizador - que dirigiu outras obras-primas como Viridiana (1961) e O Anjo Exterminador (1962) - sabe que esse tipo de expediente seria repetido muitas vezes em sua obra. Em seus filmes não faria concessões ao criticar o vazio existencial do ambiente aristocrático que, unido à Igreja Católica e aos arroubos militares, não hesitaria em manter o status quo. O que talvez explique a persistência de Don Rafael Acosta (Fernando Rey) em se autoafirmar como um não reacionário - ainda que não titubeie em simplesmente abrir fogo contra uma jovem que ele acredita ser uma terrorista.

Don Rafael se comporta, como muitas vezes se comporta essa suposta ala pseudo-progressista que trafega nas altas rodas. Defende uma coisa, mas faz outra. Na Europa, é um diplomata que representa uma nação fictícia da América do Sul - chamada apenas de Miranda. Moralista, nacionalista, usa seu diálogo empolado, cheio de afetações para seguir com o seu idílio burguês em seu mundinho à parte - ainda que, nos bastidores, negocie grandes cargas de cocaína com gente igualmente grande. Don Rafael, ao cabo, encarna o homem branco médio que se impacta com as revoluções - e nunca é demais lembrar que os anos 70 recém começavam -, que quer limpar o País da corrupção. Mas que, refestelado em lautas refeições, em roupas chiques, em lençóis de seda e em bebidas elegantes, se enclausura em um universo em que acredita na impunidade dos detentores do poder, de quem faz a economia girar ou de quem se corrompe porque, enfim, é um mal necessário. E talvez não seja por acaso que, em certa altura, ele comente que "a solução para a fome e a pobreza está nas mãos do exército".

Aliás, nesse sentido, não é demais lembrar que as tropas do exército e também a Igreja, claro, andam de mãos dadas com o coletivo de homens e mulheres ricos que andam pra lá e pra cá procurando apenas por uma boa refeição - essa verdadeira marca das classes favorecidas, que se alimentam no Coco Bambu só pra fazer de conta que tem bom gosto. Aliás, o fio condutor é apenas esse: um grupo de pessoas bem de vida tentando jantar. Ou almoçar. Sendo interrompidas por eventos aleatórios, surrealistas, pitorescos. Em um deles é o próprio comando do exército - capitaneado pelo exótico coronel vivido por Claude Piéplu -, que "invade" a casa e Henri (Jean-Pierre Cassell) e de Alice (Stéphane Audran) com tropa e tudo para mais uma interrupção. A desculpa? Algumas manobras militares estão sendo feitas nas redondezas. Tudo é preparado para receber de improviso esses homens de bem, que defendem a Pátria. E que saem sem mais nem menos da mesma forma que chegaram.

Em certa altura do filme é quase impossível não achar tudo estranho, bizarro extravagante. É aquele tipo de obra que, toda vez que revisitamos encontramos um sentido novo, um significado secreto, algo que está nas entrelinhas. Há na cena em que o coronel devolve o convite para um jantar, um apelo a metalinguagem, em que sonho e realidade se mesclam, enquanto os protagonistas se veem, de forma inesperada, sem saber como agir diante de uma plateia. Eles não estudaram aquelas falas. Não sabiam como se portar. Algo saiu do prumo de suas vidinhas luxuosas e ordinárias. Perdeu-se o controle. O controle que eles tinham, por exemplo, na sequência em que humilham um motorista que é empregado de um deles apenas por esporte, convidando-o para sorver um dry martini em sua companhia, apenas para depois constatar que o sujeito de modos simples não sabe tomar aquela bebida (como se houvesse alguma lógica superior, alguma etiqueta inevitável no ato de virar um copo em direção à boca).

É assim que Buñuel converte O Discreto Charme da Burguesia em uma obra completa e complexa, sarcástica e delirante. Um jantar como um objetivo, que é interrompido até por um funeral inesperado. As idas e vindas, as caminhadas persistentes no meio do nada. O sexo improvisado - como exemplo do hedonismo meio torpe. Um bispo que se apresenta em uma propriedade para trabalhar como jardineiro e que passa a conviver com todos ali - a onipresença da Igreja -, para se deparar com a inesperada violência mais adiante. São tantas camadas, tantos episódios, tantos comentários políticos, sociais, culturais, ideológicos, filosóficos e religiosos nas entrelinhas, que seria praticamente impossível não conceder o Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira a esse clássico tão atemporal. Aliás, até na hora de receber a distinção, Buñuel brincou, bem ao seu estilo: "É claro, já paguei os US$ 25 mil dólares que eles queriam para me conceder o prêmio. Eles podem ter até seus pontos fracos, mas não costumam quebrar promessas"

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Pitaquinho Musical - Animal Collective (Time Skiffs)

Quem vê o Animal Collective "jogando" como se fosse um novato cheio de vontade, pode nem acreditar que a banda já tem mais de 20 anos de carreira e 12 álbuns lançados - fora a infinidade de EPs e outros projetos paralelos dos integrantes. Só que os fãs de verdade aguardavam já há algum tempo um disco que misturasse a fúria roqueira e a doçura psicodélica dos velhos tempos. Não que o experimentalismo onírico não siga como uma marca, capaz de nos fazer embarcar em devaneios mundanos e melodias borbulhantes, efervescentes. Mas o caso é que o ótimo Time Skiffs retoma, ao menos em partes, aquilo que foi testado em registros como o magistral Merriweather Post Pavillion, que cruzava emanações etéreas com rock mais direto de uma forma absurdamente fluída. Claro que definir o criativo som de Avey Tare e companhia não é tarefa fácil. Shoegaze? Freak folk? Psicodelia? Na realidade pouco importa, já que é a mistura de tudo que nos arrebata. Um bom exemplo disso tudo está na envolvente Strung With Everything, que evolui a partir de batidas minimalistas, até chegar a uma explosão de cores, enquanto a letra enigmática é repetida quase como um mantra. É um dos tantos momentos deste, que certamente é um dos grandes lançamentos desse começo de 2022.


quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Curta Um Curta - Três Canções Para Benazir (Three Songs for Benazir)

Um curta de apenas 22 minutos que nos permite depreender muito do contexto político, social, cultural e até religioso de um País - no caso o Afeganistão -, a partir de um recorte íntimo da vida de uma família. Esse é o caso de Três Canções Para Benazir (Three Songs for Benazir) - um dos integrantes da pré-lista do Oscar na categoria Documentário em Curta Metragem e que está disponível na Netflix. Na trama, acompanhamos parte da rotina do jovem Shaista, um homem pobre, morador de um campo de refugiados de Cabul que, recém-casado, tenta ganhar a vida vendendo tijolos.

Sem muitas perspectivas, o rapaz acredita poder dar um melhor futuro pra esposa e pro filho, se alistando no exército - o que gera um conflito com o seu pai, que teme as eventuais represálias não apenas do Estado, mas também do talibã. A alternativa acaba sendo o trabalho na lavoura de papoula - uma tradição do País asiático -, com consequências desastrosas. Naturalista, melancólico, árido, o filme de Elizabeth Mirzaei mostra um contexto que evidencia o caráter desalentador da rotina afegã e de sua população, que convive com a miséria e com o desemprego. Dolorido é pouco.

Novidades em Streaming - Reze Pelas Mulheres Roubadas (Noche de Fuego)

De: Tatiana Huezo. Com Ana Cristina Ordóñez González, Mayra Batalla e Guillermo Villegas. Drama, México / Argentina / Alemanha / Brasil / EUA / Qatar / Suiça, 2021, 110 minutos.

Há uma cena aparentemente prosaica em Reze Pelas Mulheres Roubadas (Noche de Fuego), em que mãe e filha fazem uma espécie de jogo em que devem adivinhar os sons que vêm da vizinhança da comunidade rural em que residem. Um cachorro que late, uma vaca que muge distante. Insetos ou sons do mato. Parece apenas um passatempo de final de noite, enfim. Só que não demora para que percebamos o significado maior daquilo. Em um pequeno povoado do interior serrano do México, ocupado por um cartel de tráfico de drogas, saber ouvir é muito importante. Quais carros estão cruzando a estrada, se os gritos e conversas altas que reverberam mais adiante são normais, se houve algum barulho não convencional - de tiro ou qualquer outra coisa. E se o sino tocar? Há algum risco que se avizinha? Essa é uma das formas que a pequena Ana (vivida por Ana Cristina Ordóñez González na infância e por Mayra Membreño na adolescência) aprende a identificar eventuais perigos. Outras envolvem não apenas esconderijos, mas a supressão de qualquer sinal de sua feminilidade.

Aos 13 anos, Ana passa a ser alvo dos grupos dos bandidos que dominam o local - e que parecem ter algum interesse não apenas na jovem, mas em outras, como suas duas amigas Paula (Camila Gaal e Alejandra Camacho) e María (Blanca Itzel Pérez e Giselle Barrera Sánchez). Protegida pela mãe Rita (Mayra Batalla), Ana se torna uma jovem invisível, com o corpo sempre coberto por vestes largas, de cabelo curto e sem qualquer tipo de maquiagem. É preciso esconder a sua existência, num processo de quebra de inocência doloroso e forçado. Como espectadores, no empenhamos em nos colocar no lugar daquelas meninas: meio perdidas, sem saber o por quê de as coisas serem como são. Há a escola, mas mesmo lá o clima de tensão parece estar no ar. Professores ameaçados, militares empunhando armas pelas ruas, as dificuldades de comunicação, o dinheiro que não chega. A pobreza, a sujeira, a vida pouco digna.



Tradicional no cinema latino, esse recorte mais árido vai ganhando sustentação aos poucos, sem pressa. Para a diretora Tatiana Huezo, que adapta aqui o livro de Jennifer Clement, não parece interessar muito o sentido mais direto já que ela pontua, aqui e ali, a narrativa com instantes repletos de significados, de simbolismos que, algumas vezes, parecem saltar da tela. Há, por exemplo, uma estranha sequência em que Ana se esconde embaixo de um lençol vermelhíssimo, em uma casa da vizinhança. Há uma apreensão no ar, uma aflição. Quem a persegue? O estratagema funcionará? As cores fortes, a respiração sufocada, a fotografia claustrofóbica, tudo é feito para gerar desconforto. E ainda que não passasse de um jogo entre as crianças, na nossa mente não deixa de permanecer a ideia de aquilo poderia ser parte do aprendizado, da rotina de camuflagem que Ana, como um não ser, precisa ter. O que forma uma rima visual melancólica, que evidencia a violência a que todos estão expostos, mas sem escancará-la.

Aliás, essa também é uma das marcas da obra, que está na pré-lista do Oscar na categoria Filme em Língua Estrangeira: a de mostrar a dor e o sofrimento sem necessariamente apelar. Um corpo encontrado no mato, um sino que bate no campanário, uma barreira militar, um avião que passa - e que espalha agrotóxicos de forma descontrolada nas lavouras de papoula, cultivadas junto a Serra. Viver assim é estar permanentemente no limite. E talvez não seja por acaso o fato de, em uma das mais tocantes sequências, Ana colocar um escorpião em sua "barriga", no momento em que o cativante professor Leonardo (Guillermo Villegas) estimula os alunos a construírem a representação de um corpo humano apenas com objetos. Um escorpião. Que envenena, que consome as entranhas, que dói. Não há saída fácil em um cenário como esse e Tatiana não faz questão de aliviar - ainda que dê algumas mostras da importância da educação como processo libertador. É uma experiência completa, complexa. Desalentadora. E que merece ser descoberta.

Nota: 9,0

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Picanha.doc - Summer of Soul ...ou, Quando a Revolução Não Pode Ser Televisionada (Summer of Soul)

De: Ahmir Khalib Thompson. Documentário / Musical, EUA, 2021, 117 minutos.

Em uma das tantas passagens marcantes do vigoroso documentário Summer of Soul ...ou, Quando a Revolução Não Pode Ser Televisionada (Summer of Soul) a jornalista Charlayne Hunter-Gault dá um poderoso depoimento a respeito da importância não apenas da música, mas de artistas como a Nina Simone em sua vida. Primeira estudante afro-americana a frequentar a Universidade da Georgia, ainda no começo dos anos 60, Charlyane se viu obrigada por acadêmicos brancos da época - incapazes de aceitar a presença de negros no Ensino Superior -, a uma espécie de existência segregada. Assim, enquanto ela vivia isolada no porão do dormitório destinado aos estudantes, todos os demais moravam no andar de cima. E, como forma de provocá-la por simplesmente ousar estar entre eles (esses seres privilegiados, bem nascidos e ricos), os alunos brancos faziam todo o tipo de barulho que pudesse atrapalhar a residente do andar de baixo. A solução encontrada por Charlyane? Colocar os fones de ouvido para escutar Nina Simone.

Sim, ouvir música enquanto algum barulho externo atrapalha, pode ser apenas uma atitude prosaica. Mas, não nesse caso já que, aqui, esta foi a alternativa encontrada pela acadêmica de jornalismo para tentar afastar o racismo que se avizinhava. O preconceito que persistia em entrar pelas frestas, ecoado por essa massa difusa e alienada que, até os dias de hoje, acredita ter direitos a mais do que certas minorias apenas pela cor de sua pele. E o fato de ouvir Nina Simone, essa grande diva do jazz, tem um peso a mais, já que a artista era uma das maiores representantes da música como veículo de luta pelos direitos civis da população negra dos Estados Unidos. Algo que ela expressava não apenas com a sua poderosa voz, mas também com gestos, com movimentos, com comportamentos, com figurinos que a convertiam em uma entidade quase mística, quase como uma divindade africana. Alguém, enfim, que utilizava sua arte para questionar o status quo, para provocar reflexões, para consolidar ideais políticos, numa mistura de luta e de esperança que costuma mover a comunidade afro até os dias de hoje.


Nina, assim como tantos outros cantores e compositores, foi uma das escaladas para a programação do Harlem Cultural Festival, evento que reuniu quase 300 mil pessoas - a grande maioria negros e hispânicos - em seis finais de semana em Nova York, no verão de 1969 (sim, no mesmo ano do badalado Festival de Woodstock). Em uma década marcada por um verdadeiro turbilhão político, social e cultural nos Estados Unidos, o encontro promoveu o orgulho e a união através da música, em uma celebração que ficaria "engavetada" até, praticamente, os dias de hoje. Rico em imagens de arquivo, o documentário resgata não apenas as apresentações que ocorreram no período - de artistas de renome como Stevie Wonder, Sly & The Family Stone, Mahalia Jackson, The 5th Dimension e The Chambers Brothers, entre outros -, mas o significado do festival em si, que ecoava em suas vozes, em sua poesia, um verdadeiro manifesto cultural pela liberdade e por direitos.

Com entrevistas com participantes, com artistas, com jornalistas, ativistas e outros envolvidos o diretor Ahmir Khalib Thompson - o Questlove da banda The Roots -, reconstrói, a partir de imagens feitas por Hal Tulchin, o panorama do período, o clima vivido à época, em meio a assassinatos de lideranças negras (como Malcolm X e Martin Luther King), perseguições a coletivos como o Panteras Negras, explosão do movimento hippie, presença do homem na Lua e outros. Trata-se de uma obra vibrante, colorida, primaveril, dançante e que nos leva da melancolia ao gracejo em segundos, em meio as histórias que vão se descortinando de forma dinâmica, envolvente. "O poder da música é o de contarmos as nossas próprias histórias", comenta em certa altura da projeção o ator e dramaturgo Lin-Manuel Miranda, um dos convidados. É exatamente esse o sentimento que move todos ali - como se expiassem suas dores, anseios, desejos em meio aos acordes de jazz, de gospel, de soul. Pode anotar no Bolão do Oscar: deve ser um dos lembrados em sua categoria.