segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Novidades em Streaming - A Vida Depois (The Fallout)

De: Megan Park. Com Jena Ortega, Maddie Zigler, Shailene Woodley, Julie Bowen e John Ortiz. Drama, EUA, 2021, 96 minutos.

Lidar com traumas, tentar superá-los, reconhecer os gatilhos que possam vir a dispará-los. Transpor situações emocionalmente desgastantes não é tarefa fácil e, no econômico e surpreendente A Vida Depois (The Fallout), disponível na HBO Max, a jovem diretora Megan Park aborda o tema a partir de um recorte íntimo, mas sem ignorar o todo. O tema aqui são os muitas vezes inexplicáveis e trágicos episódios em que jovens frustrados carregam armas para as escolas para, sem nada que lhes impeça, abrir fogo contra colegas, professores, funcionários. No centro da narrativa, as adolescentes Vada (Jena Ortega) e Mia (Maddie Zigler) presenciam um acontecimento do tipo. Só que como estavam no banheiro do colégio em que estudam, escapam da morte, apenas ouvindo tudo - os disparos, os gritos, o desespero (aliás, aqui vale ressaltar os méritos da realizadora na construção do suspense sem necessariamente mostrar o banho de sangue em si).

De personalidades aparentemente distintas - Vada parece ser mais descontraída (até no modo de se vestir), ao passo que Mia é a patricinha da escola (aquela famosinha que agrega alguns milhares de seguidores com dancinhas no Instagram) -, ambas se deparam com o fato de estarem conectadas pelo evento que as traumatizou. Voltar à escola, retornar ao ambiente em que tudo ocorreu, dar uma simples escapada para o banheiro, nada será fácil nessa tentativa de recomeçar. Ainda assim, as meninas se esforçam para tentar esquecer (como se fosse possível) e vão vivendo a vida como viveria qualquer adolescente de 16 anos: fumam maconha (e até experimentam drogas mais pesadas), passam pelas primeiras relações sexuais, divagam sobre a vida, sobre o futuro, sobre o passado. Só que num olhar que permanece no horizonte, num instante de silêncio, numa mensagem pelo whats que parece um pedido de amparo, parece sempre haver um algo a mais. Algo que lá no fundinho ainda mexe. E mexe, claro.

E vamos combinar que é justamente na ampla gama de sentimentos possíveis - verbalizáveis ou não - que reside a grande força da narrativa. Quantas vezes escondemos o que estamos sentindo por baixo de uma espécie de concha que, supostamente, nos daria uma força que provavelmente não temos? Quantas vezes sorrimos querendo chorar? Ou engolimos palavras que deveriam ter saído? Com abordagem delicada, Megan não se apressa ao evidenciar que no íntimo dos envolvidos, todos sofrem com o trauma do ataque à escola. Preocupados com Vada, os amorosos pais Patricia (Julie Bowen, a nossa querida Claire de The Modern Family em um papel sério) e Carlos (John Ortiz) encaminham a jovem para a terapia, feita com a psicóloga Anna (Shailene Woodley). As conversas parecem não dizer nada, mas dizem tudo. A dor está lá dentro, profunda. Quase secreta. As insatisfações juvenis se tornam maiores. Parecem um edema profundo que percorre as vísceras.

Em linhas gerais trata-se de uma obra bem desenhada, que não tem pressa em acontecer. Superar um trauma é, também um exercício de espera. Saber aguardar. Buscar conforto. Amar e ser amado. Se medicar, fazer terapia. Dar um abraço em quem se ama. Só que, ainda assim, o filme é certeiro ao nos fazer lembrar que o problema de episódios "isolados" como este tem muito mais a ver com os tempos que vivemos. Tempos de ódio, de preconceitos, de intolerância. De jovens que querem fazer parte de algo no mundo e que se veem seduzidos por discursos beligerantes, armamentistas, supremacistas. De governantes, que legitimam a violência. Jovens muitas vezes inseguros, facilmente manipuláveis. Ainda que a diretora não se ocupe em esmiuçar as origens de cada uma dessas tragédias - ou aponte motivos naquela que acompanhamos nesse filme -, a gente sabe que, muito provavelmente, elas ainda ocorrerão. De forma inesperada. Triste. Dolorida. E o trauma? Bom, esse sempre estará pronto pra retornar. Até mesmo porque ele não se vai embora assim tão fácil. Infelizmente.

Nota: 8,0

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Cinema - Roda do Destino (Guzen to Sozo)

De: Ryusuke Hamaguchi. Com Kotone Furukawa, Kiyohiko Shibukawa, Shouma Kai, Katsuki Mori. Drama, Japão, 2021, 121 minutos.

Coincidências. Casuísmos. Encontros inesperados. Acontecimentos aleatórios. Quebras gerais de expectativas. Nada é o que parece nas três narrativas curtas que integram o soberbo Roda do Destino (Guzen to Sozo) - obra dirigida por Ryusuke Hamaguchi (que também é o responsável pelo aguardado Drive My Car). Bom, aqui cada história funciona como um pequeno fragmento que evidencia a complexidade das relações, com ênfase em eventos fortuitos que podem ser transformadores. Trata-se de uma experiência densa, eventualmente enigmática e, invariavelmente, pouco óbvia. A vida, vamos combinar, também é assim: ilógica, imprevisível, capaz de nos levar deste para aquele lugar em segundos. E esse panorama do cotidiano, do quase ordinário, das subidas e descidas em escadas rolantes, da descoberta de um amor onde não se esperava, da decisão meio equivocada, da palavra mal dita, da atitude calculada, Hamaguchi tece com destreza, com sofisticação, apostando em diálogos e em olhares.

Sim, porque em um filme como esse, tudo aquilo que a gente imagina que possa acontecer, talvez não aconteça. "Tudo muda o tempo todo no mundo" já diria Lulu Santos e a nossa existência não seria, ao cabo, um sem fim de imprevistos? Um exemplo bem dado desse expediente está no terceiro curta, que conta a história de uma mulher que, perto dos 40 anos, retorna a sua cidade de origem para participar de um reencontro escolar. Meio deslocada no evento, ela aproveita a estada para um passeio pelo local quando, no caminho para a estação do trem, totalmente por acaso, ela esbarra em uma amiga da juventude. Aliás, uma amiga que parece ser muito mais do que uma amiga. Só que aquilo que soa como uma coincidência inesperada, se torna ainda mais esquisito quando ambas percebem que, na realidade, não se conheciam tanto assim. Destino? Sorte? Arbitrariedade? O caso é que uma volta ao passado que teria tudo para ser melancólica, se torna o motivo para reavivar esperanças, sonhos, anseios.


É claro que nem tudo é otimismo na teia que propõe o realizador. No segundo conto, vale mencionar, ocorre uma frustrada tentativa de sedução de uma jovem chamada Sasaki (Shouma Kai) que, ao menos aparentemente, pretende se vingar de seu professor universitário (Kiyohiko Shibukawa) - um homem mais velho que escreveu um livro em que trechos bastante eróticos servem de isca para fisgar novos leitores. Do equívoco totalmente casuístico, surge um ponto em comum entre os dois - mas que não deixará de lhes levar a pequena ruína. O mesmo vale para a jovem Meiko (Kotone Furukawa) que, na primeira história, descobre que a melhor amiga está interessada em um ex-namorado - e as decisões que ela tomar dali pra frente, diante das informações que têm, podem determinar o futuro de todos. Ou não! Afinal, a vida é camada sobre camada e a gente no meio de tudo, como uma bolinha de pinball de fliperama.

Tecnicamente simples, com aquela fotografia empastaleda típica dos filmes orientais, a obra aposta em longos diálogos e em infinitos planos-sequência, que exigem uma boa "coreografia" dos atores. É uma obra, portanto, de atuações. De atenção aos detalhes. Aos gestos. Aos olhares. O que de forma alguma torna a apreciação cansativa, já que cada história não ultrapassa os 40 minutos. "Vivemos em um mundo em que coincidências acontecem constantemente. [...] Se eu não inserisse as coincidências, não estaria representando o mundo real", afirmou o diretor em entrevista durante a exibição do filme no Festival de Berlim, de onde a obra saiu com o Grande Prêmio do Juri. E, vamos combinar que poder conferir uma obra tão poética, só aumenta a expectativa para Drive My Car - que está na pré-lista do Oscar na categoria Filme em Língua Estrangeira.

Nota: 9,0

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Na Espera - O Insuportável Peso do Enorme Talento (Filme)

Vamos combinar que não tem como dar errado, o Nicolas Cage em um filme todo Nicolas Cagezinho! Aliás, eu não sei de onde surgiu a ideia meio estapafúrdia de produzir uma obra em que o astro de bombas recentes como O Espelho (2018) e Instinto Predador (2019) interpreta a si próprio, na pele de um ator decadente com problemas familiares que, para conseguir escapar das dívidas, aceita uma oferta de US$ 1 milhão de um fã, que deseja que ele compareça a sua festa. Só que o tal fã - vivido por Pedro Pascal - não parece ser lá flor que se cheire, com Cage precisando recriar situações vividas por seus icônicos personagens, na intenção de salvar a própria pele.

Sim, tudo não passa de uma grande desculpa para poder brincar com a completa falta de critério do ator, na hora de escolher papeis - naquele clima aparente de "quanto pior melhor" (e, vá lá, todo mundo precisa honrar os boletos). Mas o caso é que o trailer de O Insuportável Peso do Enorme Talento (The Unbearable Weight of Massive Talent) chama a atenção justamente pelo seu caráter inusitado, excêntrico e metalinguístico. Com estreia prevista para o dia 22 de abril de 2022, a obra é dirigida por Tom Gormican e conta com Neil Patrick Harris, Tiffany Haddish e Sharon Horgan no elenco. Bom, depois do ótimo Pig (2021) a expectativa está lá no alto e, como de praxe, estamos Na Espera!

Novidades em Streaming - A Lenda do Cavaleiro Verde (The Green Knight)

De: David Lowery. Com Dev Patel, Alicia Vikander, Barry Keoghan, Sean Harris e Joel Edgerton. Drama / Fantasia, Canadá / EUA / Irlanda / Reino Unido, 2021, 131 minutos.

A jornada do herói, mas que não é tão heroico assim. Talvez essa seja uma boa maneira de resumir aquilo que propõe a narrativa do envolvente A Lenda do Cavaleiro Verde (The Green Knight) - uma das novidades da semana na plataforma de streaming da Amazon. Dirigido por David Lowery, a partir de uma das tantas lendas que envolvem a Távola Redonda, o filme mantém o tipo de ambientação, de clima a até de velocidade de trabalhos anteriores do realizador, caso do magnífico Sombras da Vida (2018). Aqui, retornamos para os tempos da corte do Rei Arthur (Sean Harris), num contexto em que, às vésperas do Natal, o soberano se vê desafiado pelo Cavaleiro Verde do título - uma criatura em tons esmeralda, meio homem meio "floresta", que emula características da natureza e que parece possuir grande força. Na tentativa de salvar o reino, o irresponsável sobrinho de Arthur, um certo Sir Gawain (Dev Patel), se coloca à frente desse embate. Mas a dúvida que fica: ele terá capacidade para não sucumbir aos temores que envolvem tamanha responsabilidade?

O caso é que Gawain não passa de um sujeito comum, beberrão, frequentador de bordel, que parece cair meio que de paraquedas em uma assembleia do reinado. Inicialmente renegado pelo monarca, Gawain se vê, inesperadamente, nessa sinuca. Que subverterá a crença do cavaleiro medieval como aquela figura dotada de força descomunal, incapaz de falhar e que seguirá seu destino sem maiores abalos. Na busca por completar sua missão, Gawain se deparará com uma série de encontros e desencontros, que colocarão em xeque a sua capacidade de superar dificuldades. Como exemplo, será no meio de um descampado que o protagonista encontrará o solitário Scavenger (o sempre ótimo Barry Keoghan, que rouba a cena em O Sacrifício do Cervo Sagrado, de 2017), um rapaz que lhe arma uma emboscada, roubando seus pertences - entre eles o cavalo e a espada. Depois de quase morrer no meio do mato, Gawain prossegue em seu solitário desafio, encontrando fantasmas, gigantes e outras figuras mitológicas (ou não) em sua jornada.

Ainda que esteticamente irretocável - se o mundo fosse um lugar justo, o Desenho de Produção e a Fotografia seriam lembrados no Oscar -, vale mencionar que a obra talvez não agrade a todos os paladares (aliás, como é de praxe nos filmes produzidos pela A24). Pra começar trata-se de uma experiência que possui um desenvolvimento pouco apressado, que aposta em ângulos de câmera que se repetem, em meio a movimentos vagarosos e cheios de significados. Mesmo as informações vão sendo entregues em pequenas pílulas, o que nos deixa em dúvidas a respeito daquilo que Gawain encontrará pelo caminho. Afinal de contas, trata-se da realidade? Ele estaria sonhando? Estaria projetando uma existência alternativa? E mais, ele conseguirá não sucumbir aos dissabores de sua jornada? Se tornará o homem que se espera que ele se torne? Todos esses questionamentos nos ajudam a ir montando, aos poucos, o quebra-cabeças dessa história sobre amadurecimento, sobre dilemas morais e sobre como a nossa personalidade pode ser complexa.

Assim, veremos muito menos a espada "cantando" ou lutas super bem coreografadas, como costuma ocorrer no cinema de ação. Aqui a experiência é muito mais existencialista, com a aposta na completa desconstrução desse tipo de sujeito - que, sim, terá suas falhas, seus dilemas, suas incertezas. Peça central da narrativa, a mãe de Gawain, a Fada Morgana (Sarita Choudhury) parece contribuir para o caráter fantasioso dos eventos que acompanhamos, ao entregar ao seu filho uma espécie de amuleto da sorte mágico, que permite a ele compreender de forma mais ampla o fardo que carrega. E que ainda estabelece os conflitos religiosos da época, de forma mais evidente. Estilosa, onírica, sombria, essa é daquelas obras que ficam em nosso pensamento após os créditos subirem e que questionam o arquétipo do heroi, que se estende por gerações e que chega a atualidade como, ainda, uma grande influenciadora de atitudes. Enfim, o tipo de subversão, de ousadia, que torna a experiência ainda maior.

Nota: 8,5

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Pérolas da Netflix - A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas (The Mitchells vs the Machines)

De: Jeff Rowe e Michael Rianda. Com Abbi Jacobson, Danny McBride, Maya Rudolph, Mike Rianda e Olivia Colman. Aventura / Animação, EUA, 2021, 110 minutos.

Sério, foram necessários apenas 10 minutos de A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas (The Mitchells vs the Machines) pra que eu já estivesse devidamente mitchelizado! Aliás, sinceramente, fazia bastante tempo que eu não assistia a uma animação que me fizesse gargalhar tanto, mas que também me emocionasse em igual medida. E eu confesso que sou absolutamente fascinado por essa capacidade dos criadores desse tipo de obra, que acerta em cheio na hora de agradar a criançada - com um apelo visual único -, mas que ao mesmo tempo olha com carinho também para os adultos (esses seres nostálgicos e cheios de memórias afetivas). E, nesse sentido, o filme da dupla Jeff Rowe e Michael Rianda oferece a experiência completa, com direito não apenas a reflexões sobre uso da tecnologia no nosso dia a dia (e seus eventuais excessos), mas também sobre relações familiares, anseios juvenis e até sobre nosso comportamento em relação aqueles que amamos.

A trama já inicia vertiginosa e em meio ao caos instalado pela "revolta das máquinas" do título. Voltando algumas semanas no tempo, conhecemos os integrantes da família Mitchell, a começar pela jovem Katie (Abbi Jacobson), uma criativa aspirante a escola de cinema que, de alguma forma, vive em pé de guerra com seu pai Rick (Danny McBride) um sujeito completamente avesso ao uso da tecnologia, daqueles que têm como grande sonho uma existência modesta em meio à natureza e com o uso de ferramentas simples, como uma chave de fenda. Completando o quarteto - ou quinteto se contabilizarmos o simpaticíssimo cãozinho Monchi -, temos o irmão mais novo de Katie, Aaron (Mike Rianda), um jovem obcecado por dinossauros, além de sua mãe Linda (Maya Rudolph), que se empenha em manter a unidade familiar. E será esse grupo completamente disfuncional que terá de se unir depois que um empresário do Vale do Silício de nome Mark Bowman (Eric Andre) é capturado e a revolta em si tem início.

Sim, pode parecer meio impossível que uma traminha tão convencional como essa renda um filme tão agradável, mas o segredo aqui está muito mais nos detalhes que costuram não apenas o roteiro, mas a personalidade dos protagonistas. Um dos melhores exemplos disso é o uso da metalinguagem - ou do filme dentro do filme -, e será justamente o resgate de antigos vídeos familiares, que resultarão em alguns dos momentos mais comoventes. E como Katie simplesmente parece disposta a filmar TUDO, a linguagem cinematográfica retorna a todo instante, seja em referência a outros filmes, seja por meio de novos curtas que estão sempre em construção pelas mãos da jovem. Já a solidão de Aaron, aquele menino nerd típico, é evidenciada em uma hilária cena em que ele liga para todos os números de uma lista telefônica, pra saber se a pessoa do outro lado gostaria de "conversar sobre dinossauros" (o tipo de excentricidade que certamente dialogará com os pimpolhos).

Usando ainda a linguagem da internet a seu favor - o tempo todo somos surpreendidos por emojis, memes e outras imagens que parecem saltar da tela -, o filme ainda faz piada o tempo todo sobre como parecemos ser verdadeiros escravos da tecnologia (e uma das partes que mais gosto é aquela em que Linda debocha, após constatada a pane nos robôs da multimilionária PAL com o consequente sequestro de todos os seres humanos da Terra, de que ela está surpresa "afinal de contas, quem imaginaria que a indústria da tecnologia iria querer nos fazer mal?"). Ainda assim, a obra não é excessivamente moralista nessa análise, nunca deixando de lembrar da importância dos avanços nesse setor para que também a nossa evolução aconteça - e uma cena em especial em que Rick assiste, meio que por acaso, a um dos curtas de sua própria filha, reconhecendo ali uma metáfora para as suas próprias existências, é daquelas de fazer chorar até o mais duro dos corações.


Mas o clima geral é de diversão e mesmo as sequências mais tensas são carimbadas por alguma piadinha ou algum comentário social envolvendo algo relacionado à indústria cultural ou aos tempos que vivemos - seja o visual da máquina utilizada pelos vilões (que parece a capa de um CD do Journey), seja a ocorrência de uma família de vizinhos que parece saída de comercial de margarina (com suas vidas perfeitas virando posts impecáveis no Instagram), seja o maior antagonista da história se revoltando e reagindo da forma mais engraçada possível sobre uma... mesa! Tudo isso com uma trilha sonora maravilhosa e um grupo carismático de personagens. Essa foi a primeira animação com chances reais de ser indicada ao Oscar nessa categoria que assisti nesse ano. Ainda tenho muita coisa pra conferir mas, se depender apenas desse recorte, A Família Mitchell... já tem a minha torcida.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Pitaquinho Musical - Years & Years (Night Call)

A crítica especializada pode reclamar, pode espernear, pode fazer o que quiser: mas o mais recente registro de Olly Alexander com o Years & Years é envolvente, dançante e festivo na medida ideal para o contraponto a esses tempos brutos que vivemos. Trabalhando sozinho desde a separação dos agora ex-colegas Mikey Goldsworthy e Emre Türkmen, o artista converte Night Calls em uma espécie de utopia andrógina em que o pop oitentista se mescla com a eletrônica das pistas, em meio a ousadas referências mitológicas, que se misturam a vocais sofisticados e em falsete e a sintetizadores opulentos - num direcionamento que, em partes, parece se afastar do perfil mais "econômico" do ótimo trabalho anterior, Palo Santo (2018). Um bom exemplo desse expediente está no grudento single Starstruck, com seu refrão esticado e letra hedonista e psicodélica (Eu sinto que todas as pessoas nessa sala / Não brilham como você / Se eu pudesse engarrafar você / Eu tomaria um gole de você /Como suco cósmico). Em outros ótimos momentos, como Sooner or Later e Crave - esta última, uma das melhores canções do ano - a experiência vai no limite entre o escapismo e a celebração. Não tem como resistir.


 

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Cinema - Benedetta (Benedetta)

De: Paul Verhoeven. ComVirginie Efira, Daphne Patakia, Charlote Rampling e Lambert Wilson. Drama / Romance, Bélgica / França / Holanda, 2021, 131 minutos.

Vamos combinar que ao pensarmos em figuras sacralizadas da Igreja Católica, dificilmente imaginamos os componentes mais "humanos" de suas composições. Os santos ou mesmo os canonizados sempre surgem em nossa mente envoltos em uma aura elevada, superior, mística - numa mistura que evoca milagres, fé, atos solenes, veneração. Algo que está acima de tudo e que vai para muito além da organicidade da carne, da materialidade do corpo, dos hábitos, dos comportamentos. Sim, em algum momento de suas existências essas verdadeiras entidades foram pessoas de carne e osso. Que comiam e dormiam. Que, em meio a uma existência de dedicação religiosa, possivelmente tinham necessidades, medos, anseios, frustrações, desejos, fraquezas. Falhas talvez. Dilemas éticos ou morais. Ou será que não? Sim, leitor, pode ter certeza: os santos também tinha defeitos e pecados que podiam ser desde temperamentos fortes ou até uma queda pela teimosia. O que não lhes impediu de buscar o caminho redentor para a santidade.

Eu tô querendo dizer com esse preâmbulo que Benedetta Carlini, a freira católica que viveu no século 17 era uma santa demasiadamente humana? Não. Na verdade, não sei. Mas o que maravilhoso filme do versátil diretor Paul Verhoeven (autor de obras tão distintas como a ação Robocop e o drama Elle) nos faz perceber é que por trás de poderes supostamente superiores, também poderia haver uma simples mulher. Cheia de vontades, de objetivos - vocacionais ou não. Alguém que quisesse uma vida simples em meio às visões perturbadoras que lhe perseguiam. E é nessa ambiguidade permanente de Benedetta (Benedetta) que está uma das maiores forças da narrativa de Verhoeven. O tempo todo, afinal, temos dúvidas a respeito do comportamento enigmático da protagonista (vivida por Virginie Efira) que chega a um convento de Pescia, na Itália, ainda criança, após uma negociação financeira feita com a Madre Superiora Felicita (a sempre ótima Charlote Rampling).

Quando se torna adulta - a trama avança mais de uma década no tempo -, Benedetta, passa a ter visões aleatórias que envolvem ataques e outras violências perpetradas por homens, com ela sempre sendo salva por Jesus Cristo em pessoa (um Jesus sempre angelical, ocidentalizado, de vestes e de olhos claros). A situação se torna mais complicada quando chega ao convento uma certa Bartolomea (Daphne Patakia), uma jovem de origem simples que será designada como auxiliar de Benedetta em seu quarto, socorrendo-a quando ela é acometida de suas visões. Em meio a um contexto em que a peste avança, a protagonista terá a sua fé "testada" ao se apaixonar por Bartolomea - com ambas vivendo um romance proibido, caloroso e cheio de paixão. Em meio a desconfianças da Madre Felicita sobre o comportamento da dupla, o avanço das visões de Benedetta, com direito ao surgimento de estigmas no corpo, será um indicativo da manifestação espiritual de Cristo em seu corpo. O que a converterá em abadessa do local.

Baseada no livro Atos Impuros da historiadora Judith C. Brown, a obra vai no limite entre a elegância e a languidez, sem deixar de lado os componentes mais violentos, que servem para evidenciar não apenas a hipocrisia da Igreja Católica, mas como o patriarcalismo determinava os rumos da sociedade na época. Diante de acusações falsas (ou não), os limites da abnegação religiosa serão testados, em meio à aparente crença de que o misticismo dos beatos não anularia, necessariamente, os paradoxais atos questionáveis, impuros ou luxuriosos (e há, no mínimo, duas sequências envolvendo imagens de santas que considero memoráveis em sua ousadia). Apostando num caráter mais gráfico, o diretor não se furtará em exibir cenas mais fortes - eróticas, sujas, cheias de ambiguidades, de sangue, de pobreza e de doenças. Para os paladares mais conservadores, certamente a obra beirará a blasfêmia. A mesma blasfêmia da qual os superiores de Benedetta a acusariam, enquanto a devota se esforçaria para salvar a comunidade das garras predatórias de uma instituição que, até os dias de hoje, salvo raríssimas exceções, parece ser uma sede infindável de ambição e poder. E, nesse sentido, o trabalho de Verhoeven não poderia ser mais atual.

Nota: 9,0

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Curta Um Curta - Caixa Postal 1142: O Campo Secreto Para Nazistas nos EUA (Camp Confidential: America's Secret Nazis)

Não fosse baseada em relatos reais e a história por trás do curta documental Caixa Postal 1142: O Campo Secreto Para Nazistas nos EUA (Camp Confidential: America's Secret Nazis) quase pareceria difícil de acreditar. Disponível na Netflix, a obra dirigida por Daniel Sivan e Mor Loushy é uma das favoritas a figurar entre as indicadas ao Oscar em sua categoria e narra o curioso caso de refugiados judeus que, em plena Alemanha Nazista, são recrutados para um acampamento nos arredores de Washington, criado com o objetivo de abrigar e interrogar militares nazistas. 

Sobreviventes do período, os veteranos Peter Wiess e Arno Meyer relatam quais eram as intenções por trás desse local - que, na verdade, mais parecia um clube com quadras de esportes e espaços destinados a atividades ao ar livre -, e como as ações perpetradas ali determinariam, anos mais tarde, os rumos da Guerra Fria (e até da corrida espacial). Parece bizarro e até eventualmente complexo, mas o desenrolar é dinâmico, com o documentário de pouco mais de 35 minutos sendo costurado com excelentes imagens de arquivo e um ótimo uso de animação. A gente não costuma dar muita bola para os indicados a curta-metragem. Aqui, temos uma boa oportunidade de conferir um dos melhores.

Tesouros Cinéfilos - Melhor É Impossível (As Good as It Gets)

De: James L. Brooks. Com Jack Nicholson, Helen Hunt, Greg Kinnear e Cuba Gooding Jr. Comédia / Drama / Romance, EUA, 1997, 139 minutos.

Existe uma sequência em Melhor É Impossível (As Good as It Gets) que considero essencial não apenas para compreendermos as motivações das personagens que acompanhamos, mas que talvez também resuma a importância das relações pessoais - do afeto, do carinho - que dão sentido a nossa existência. Nela, o cínico e grosseiro escritor Melvin (o personagem de Jack Nicholson) finalmente conseguiu, depois de muito custo e de muita paciência da garçonete Carol (Helen Hunt), um jantar com ela. Melvin está, aparentemente, enamorado de Carol que, a sua maneira, parece ser a única pessoa no planeta Terra capaz de compreender suas manias, que decorrem de um severo caso de Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC). Só que o sujeito não sabe como demonstrar isso. Ao menos não sem ser sarcástico. Carol pede um elogio que seja, instantes após Melvin destruir o figurino de sua candidata a par romântico - um vestido mais comprido, discreto, mas elegante. "Você me motivou a, enfim, começar a tomar os medicamentos recomendados pelo psiquiatra", responde o escritor, para desânimo de Carol. Mas um desânimo que, pouco depois, será convertido em compreensão.

Pode soar apenas egocêntrico alguém elogiar alguém dizendo que começou a tomar pílulas que, talvez, essa mesma pessoa devesse estar tomando há meses. Talvez há anos. "Você faz com que eu queira ser uma pessoa melhor", completa Melvin em seguida. Sim, é um gesto pequeno, que parece pouco lógico. E Carol parece pronta para ir embora do restaurante em que ambos estão. Mas não demora para que tenhamos clareza de que, aos poucos, aquele sujeito tenebroso, de humor debochado e cheio de preconceitos está se esforçando. De alguma forma, ao assumir que está se medicando, ele admite estar disposto a enfrentar a doença que lhe aflige. Esse transtorno psiquiátrico que faz com que, entre outros ritos, ele chaveie e deschaveie a porta várias vezes, repita incessantes vezes a limpeza das mãos com sabonetes novos e seja incapaz de pisar em cima de linhas quando se desloca na rua. Aliás, o simples ato de caminhar pode representar um sofrimento para quem tem TOC. E Melvin, aqui e ali, está se empenhando em superar suas fobias. À sua maneira. Tentando ser alguém melhor.


Porque para o espectador desavisado desse filmaço de James L. Brooks não é fácil compreender Melvin, nem seus hábitos, sua estupidez rotunda, sua grosseria permanente. Percebê-lo como alguém doente é um desafio para quem assiste a obra e é quase irresistível encará-lo apenas como o velho chato, ranzinza, que implica não apenas com o vizinho gay Simon (Greg Kinnear), mas com o universo que o rodeia. Melvin é um misantropo impaciente. Que não aceita sentar em outra mesa que não seja a "sua" na cafeteria que frequenta - essa mesma em que Carol trabalha. E que testará a paciência de todos a sua volta até o limite. Até o momento em que ele vai desesperado ao psiquiatra que o enxota. Até o momento que ele aceita a sua condição e passa a se medicar. Até o momento em que ele passará a ajudar as pessoas que, de seu jeito meio esquisito, parece amar. Começando pela própria Carol, que possui um filho que precisa de maiores cuidados médicos. Passando pelo vizinho Simon, que sofre um inesperado e violento golpe. Até chegar mais adiante a outras pessoas.

Porque talvez o que muitas pessoas não percebam em Melhor É Impossível é que este é um filme sobre a superação de uma doença (ou ao menos é essa a leitura que faço). E em tempos como os que vivemos - de tantos transtornos (de ansiedade, de pânico, de depressão), a obra nunca me pareceu tão atual. Aliás, mais do que isso, parece estar adiantada em uma temática que dominaria a medicina no atual milênio, com dezenas de milhares de pessoas se esforçando para superar as suas dores, consumindo medicamentos que possam equilibrar as suas biologias e se empenhando em ser pessoas melhores. De quebra, o filme tem aquele DNA anos 90, com fotografia em tons pasteis, trilha sonora primaveril, desenho de produção meio kitsch e um cãozinho que é o mais puro carisma. Um combo que ajudaria a resultar em diversas indicações ao Oscar, rendendo estatuetas para Nicholson e Hunt por suas atuações. Tá disponível gratuitamente no Now e vale a pena revisitar.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Cinema - O Festival do Amor (Rifkin's Festival)

De: Woody Allen. Com Wallace Shawn, Gina Gershon, Louis Garrel e Elena Anaya. Comédia / Romance, EUA / Itália / Espanha, 2020, 92 minutos.

Vamos combinar: as pessoas podem ter os mais variados motivos para não gostar do Woody Allen. Agora, uma coisa não se pode negar: assistir a qualquer das obras do diretor é sempre prazeroso. Especialmente para os fãs do universo das artes. Da literatura. Do cinema. Aos 86 anos, com mais de cinquenta filmes lançados e com uma série de polêmicas em sua vida pessoal - como o suposto caso de abuso sexual de que é acusado tendo ganhado os holofotes no último ano -, Allen parece utilizar o próprio cansaço da indústria que, talvez hoje, lhe vire as costas, como a matéria-prima para o recente O Festival do Amor (Rifkin's Festival), que está em cartaz nas salas do País. Assim como já aconteceu quase uma dezena de vezes, em trabalhos como A Rosa Púrpura do Cairo (1983), Dirigindo no Escuro (2002) e Meia-Noite em Paris (2011) o diretor utiliza a metalinguagem na condução de sua narrativa, ao nos jogar para a Espanha, durante uma semana em que ocorre o Festival de San Sebástian.

E, assim como ocorre também em boa parte de seus filmes, aqui temos como protagonista o intelectual atormentado, em crise existencial, e que acha que pode morrer a qualquer momento - sim, o hipocondríaco também costuma ser uma figura recorrente em suas obras. Nesse caso, esse eventual alter-ego do próprio diretor é encarnado pelo bonachão Wallace Shawn que, como o professor universitário e postulante a escritor tardio Mort Rifkin, aceita acompanhar a sua bela esposa Sue (Gina Gershon) - uma publicitária que agencia várias estrelas do mundo cinema -, ao já citado Festival. Só que será em terras espanholas que Mort perceberá que Sue pode estar muito mais próxima do que deveria de um diretor francês de nome Philippe (Louis Garrel), que a convida para uma série de eventos, que podem ser desde prosaicas coletivas de imprensa ou mesmo luxuosos jantares com figurões da indústria para divulgação de seu mais recente filme.

Enquanto perambula pela cidade tentando escapar de suas angústias, Mort conhecerá a médica Jo Rojas (Elena Anaya), que ele visita após constatar uma persistente dor em seu peito - que, coincidentemente, apareceu já na chegada à Europa. Com certa dificuldade para dormir, o protagonista misturará devaneio com realidade, enquanto sonha com seus diretores preferidos - Fellini, Truffaut, Bergman, Buñuel, Welles, Godard -, com obras clássicas desses mesmos diretores sendo recriadas em seu imaginário. E, será em meio a sequências improvisadas de Morangos Silvestres (1957), O Anjo Exterminador (1962), Cidadão Kane (1941) e Oito e Meio (1963), que Mort acabará juntando as pistas que servirão para que futuras decisões sejam tomadas. E, aqui, vale destacar o maior acerto da narrativa de Allen, que utiliza suas referências de forma, talvez, um tanto exagerada, presenteando os fãs de cinema com a oportunidade de reviver sequências antológicas que se transformam, ao cabo, na mais sincera das homenagens.

Sim, o diretor gosta de uma boa cultura de almanaque e faz questão que o espectador que acompanha seus filmes seja cúmplice nessa paixão, por mais que seus trabalhos soem repetitivos ou, em alguns casos, pareçam dar algumas voltas no mesmo lugar. Como de praxe, a litorânea San Sebastián também se transforma em uma espécie de personagem involuntária, com seus belos cenários servindo de forma perfeita para as divagações tão amorosas quanto filosóficas daqueles que acompanhamos. Sim, não há nada novo aqui e quem acompanha a carreira de Allen de perto sabe exatamente o que vai encontrar: verborragia, melancolia, alguns diálogos inspirados, uma ou outra piada sobre a condição humana (e o absurdo da existência), uma trilha sonora cheia de vigor e de carisma, pessoas simples buscando a felicidade, cenários poéticos, fotografia vibrante. Talvez às vezes a gente não precise de algo tão cabeçudo pra fazer a nossa semana melhor. E, nesse sentido, o diretor entrega tudo.

Nota: 8,0

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Livro do Mês - Hibisco Roxo (Chimamanda Ngozi Adichie)

Livro de estreia de Chimamanda Ngozi Adichie, Hibisco Roxo foi o meu primeiro contato com a obra da autora nigeriana. E, admito que fiquei impactado pelo microcosmo apresentado pela escritora que, ao mesmo tempo que propõe um mergulho lateral em um País pós-colonial militarizado, também evidencia as consequências do sincretismo religioso que coloca frente à frente as tradições mais primitivas dos povos africanos - suas crenças, seu folclore, sua cultura -, em contraste com o catolicismo branco, colonizador e, de alguma forma, opressivo. Sim, pode parecer bastante complexo, mas todos esses componentes são apresentados a partir da história de um pequeno núcleo familiar com a narradora, a adolescente Kambili Achike, sendo confrontada com uma série de eventos que ocorrem no entorno - e que envolvem outras figuras, como o pai Eugene (um empresário conservador/cristão), o padre progressista Amadi e, especialmente, a tia de Kambili, a professora universitária Ifeoma.

Com apenas 15 anos, Kambili ainda não é capaz de compreender a forma como agem os adultos - e o que os move. Educada a ferro e fogo pelo pai, um sujeito tão ortodoxo que não permite que a jovem ouça músicas que não sejam as da Igreja ou que utilizem seu (raro) tempo livre para atividades prosaicas típicas da juventude, Kambili cresce em um universo regido pelo fanatismo religioso que, não tardará, transbordará para a violência doméstica. Eugene não aceita, por exemplo, que Kambili e seu irmão Jajá visitem o avô Papa Nnukwu, já que ele acredita que o idoso poderá influenciar os jovens em suas crenças - como religioso de matriz africana. Da mesma forma, Eugene submeterá a própria esposa Beatrice a uma série de pressões psicológicas e de agressões (inclusive físicas) que, aos poucos, desintegrarão o núcleo familiar. Mas que servirão, paradoxalmente, para uma espécie de amadurecimento meio na marra da jovem protagonista.

Aliás, a respeito disso, será justamente após um evento violento na residência dos Achike, que Kambili e Jajá serão enviados para uma pequena temporada na casa da tia Ifeoma e de seus três filhos Chima, Amaka e Obiora. Lá, se depararão com um contexto em que as crianças são estimuladas para a curiosidade, para as descobertas, em uma rotina de maior liberdade, uma vez que, como professora universitária, Ifeoma surge como uma figura oxigenada, progressista e de uma leveza comovente (com uma gargalhada fácil sempre no rosto). Irmã de Eugene, ela é o seu oposto, ainda que pratiquem a mesma religião - e será esse contraponto entre o anacronismo e o contemporâneo que modificará a personalidade de Kambili para sempre, fazendo-a desabrochar, tal qual os hibiscos roxos que, metaforicamente, são descritos nas páginas. E esse sentimento de "liberdade" será ampliado quando ela conhecer o já citado jovem padre Amadi, por quem a menina se apaixonará.

Em meio a tudo isso, o avanço do Governo Militar também alterará a rotina da família, já que Eugene, além de empresário do ramo de biscoitos e de sucos, é detentor (curiosamente) de um jornal progressista de nome Standard - que não se furtará a fazer, em seus editorias, a crítica ao sistema (especialmente através da figura do editor Ade Coker). E, como não poderia deixar de ser, esse panorama também contribuirá para uma espécie de derrocada familiar - com os conflitos maiores influenciando diretamente no dia a dia dos Akiche. De escrita saborosa, vertiginosa, Hibisco Roxo é uma obra de formação que funciona como uma poética aula de história e de geopolítica da Nigéria - mas sem soar excessivamente acadêmica. E tudo isso nos apresentando uma coleção de personagens complexas, cheias de ambiguidades e nada maniqueístas. Simplesmente essencial.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Novidades em Streaming - King Richard: Criando Campeãs (King Richard)

De: Reinaldo Marcus Green. Com Will Smith, Jon Bernthall, Saniyya Sidney e Demi Singleton. Drama, EUA, 2021, 144 minutos.

Vamos combinar que já estava caindo de madura a ideia de fazer algum filme que, de alguma forma, resgatasse a história das irmãs Venus e Serena Williams. Com trinta títulos de grand slams somados, fora as tantas outras conquistas em quadras de grama, saibro ou piso, elas não apenas marcaram época por se tornarem as primeiras atletas negras a vencerem importantes competições de tênis: elas foram soberanas em um esporte muitas vezes praticado pelos ricos (normalmente em clubes frequentados por essa elite branca). E, de certa forma, o que o candidato ao Oscar King Richard: Criando Campeãs (King Richard) mostra, é como elas viriam a se tornar essas atletas de ponta - algo obtido com muita disciplina e com um planejamento daqueles de deixar aquele coach metido a empreendedor de queixo caído. E o responsável por tanta obstinação na carreira das jovens foi justamente o pai delas, Richard Williams (vivido por Will Smith, com toda aquela pinta de quem quer faturar a estatueta mais desejada do cinema).

Na realidade, é possível afirmar que o filme de Reinaldo Marcus Green é centrado muito mais na figura controversa e de personalidade forte que era Richard, do que nas garotas em si. É claro que o relacionamento com elas - as cobranças, os esforços pessoais, os medos do fracasso, as pequenas e grandes conquistas -, estão no centro da narrativa. Mas é a partir de sua própria história de dor, que o protagonista forjará as futuras jogadoras vitoriosas. Nesse sentido não são poucos os instantes em que Richard traz alguma lição de moral que deverá acertar em cheio os corações mais conservadores e adeptos da meritocracia - com direito até a cartazes que flertam com a autoajuda espalhados pelas quadras em que elas treinavam (que contavam com frases motivacionais ao estilo "se você falha em planejar, então você planeja falhar"). Sim, a ideia da superação de adversidades está em toda a parte. E servirá de combustível para os Williams.

Especialmente para Richard, claro, que empreende uma verdadeira via crúcis para conseguir um treinador para as jovens - que, até uma certa idade, eram treinadas por ele próprio, que acreditava no potencial e Venus (Saniyya Sidneye Serena (Demi Singleton) antes mesmo de elas nascerem. Em certa altura um dos potenciais treinadores recusa o pedido de Richard - que havia rabiscado um elaborado plano de carreira de 78 páginas para as futuras atletas -, lembrando que seria difícil ter uma boa tenista saída de Compton, na Califórnia. Que dirá duas. "Seria como se houvesse dois Mozarts na mesma família", debocha. E, bom, a história prova que havia. Peregrinando de um lado a outro, o persistente pai chegará, inicialmente, no técnico Paul Cohen (Tony Goldwyn), desfazendo mais tarde a parceria, quando Richard se sentirá incomodado com os caminhos dados à carreira das jovens que, mais tarde, viriam a ser treinadas pelo excêntrico Rick Macci (Jon Bernthal, finalmente deixando de lado os papeis de sujeito durão que marcaram sua carreira).

Alternando instantes mais leves - e até engraçados -, como aquele em que Rick elabora uma estratégia que possa convencer Richard a deixar Venus jogar uma importante competição (o pai levava a ferro e fogo a ideia de cuidar da imagem das filhas, jamais expondo-as a eventuais excessos), com outros mais dramáticos e até tensos (o jogo com a espanhola Arantxa Sanchez, em 1994, é daqueles de deixar a plateia no sufoco), King Richard parece ser aquela obra que agradará os entusiastas de histórias mais diretas sobre superação de obstáculos. [MINI-SPOILER A PARTIR DE AGORA] Com mensagens importantes sobre humildade, união familiar, responsabilidade, decoro e disciplina, a obra ainda acerta em cheio ao optar por um final em que Venus é confrontada com uma dura e inesperada derrota, mas que deixará uma importante lição: a de que pequenas batalhas podem até ser perdidas. Mas as grandes vitórias virão nas principais disputas. E aqui não estamos falando, necessariamente, do tênis em si, e sim das questões de raça, de gênero e de representatividade como um todo. E em tempos duros como os que vivemos, estas conquistas devem ser celebradas sempre.

Nota: 7,5

terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Campanha de Financiamento Coletivo do Picanha Cultural

Pessoal, criamos uma campanha de financiamento coletivo no apoia.se para o Picanha Cultural (apoia.se/picanhacultural), com o modesto objetivo de custear as despesas para a manutenção mensal do site, já que não possuímos nenhum patrocínio e tudo o que fazemos por aqui é na paixão, no amor - pelas artes, pela cultura e por tudo que envolve esse universo. Então, queremos pedir aquela ajuda parceira de vocês, para que essa empreitada que já está se aproximando do seu oitavo ano de vida, possa ter o máximo de longevidade possível. E o melhor: com R$ 5 ao mês (é um latão de cerveja a menos!) já é possível contribuir conosco. Pequenas e simbólicas recompensas, como participação no grupo de whats do Picanha, com aquela troca de ideias bacana, além da oportunidade de sugerir pautas mensalmente também são ofertadas nas modalidades.

Abaixo temos todo o descritivo da campanha, que tem como meta inicial alcançar os R$ 500 ao mês.

Acesse o Apoia-se e confira todos os detalhes!

Sobre a campanha

Criada no final de 2014 pelo jornalista Tiago Bald e pelo fisioterapeuta Henrique de Oliveira, a página Picanha Cultural surgiu com o objetivo de ser um veículo para discussão de músicas e de filmes alternativos, que circulam em festivais e que fogem um pouquinho do óbvio - ou do circuito estritamente comercial. Tudo feito com paixão por estes moradores da pacata Lajeado, no Rio Grande do Sul, que encontraram nesse espaço uma forma de depositar suas ideias (e suas sugestões) sem pedantismo.

Por mais que, até aqui, tenham encarado o Picanha como um hobby, sempre se trabalhou nele de forma bastante profissional, divulgando resenhas, análises e listas de obras clássicas ou contemporâneas - numa média de quatro a seis textos por semana. Remodelado em 2021 e com mais de 1,3 mil textos publicados até então, entendeu-se que era a hora de solicitar um apoio a vocês, no sentido de permanecer estimulado a desenvolver o ofício da escrita - com o dinheiro sendo investido em melhorias na própria página, que pretende-se converter em um portal maior, com mais pessoas envolvidas e, vá lá, mais escritores trabalhando no projeto. Além de utilizar os recursos para a aquisição de ingressos, para pagamento do domínio e para investimentos nas plataformas de streaming utilizadas.

Tudo que a gente promete é um bom conteúdo como contrapartida.

Contamos com vocês!

Novidades em Streaming - Bar Doce Lar (The Tender Bar)

De: George Clooney. Com Tye Sheridan, Ben Affleck, Daniel Ranieri, Christopher Lloyd, Lily Rabe e Sondra James. Drama, EUA, 2021, 106 minutos.

Na nossa existência é possível afirmar que existem duas "universidades". A real, pra quem tem a oportunidade, é aquela dos bancos do ensino superior, com anos e anos de aquisição de experiências acadêmicas com colegas e  professores. A outra é a da vida, que envolve a bagagem que carregamos, os aprendizados, as frustrações, as conquistas. O que o simpático filme Bar Loce Lar (The Tender Bar), mais uma daquelas obras sobre amadurecimento, nos mostra, é uma mescla dessas duas realidades, que servirão para formar a personalidade do jovem JR (vivido por Tye Sheridan na fase adulta). Abandonado pelo pai - um locutor de rádio hedonista e com apreço pelo comportamento autodestrutivo (papel de Max Martini) - JR vai morar com os seus avós e com outros parentes, após a sua mãe (Lily Rabe) enfrentar graves problemas financeiros. Sim, ninguém ficará muito feliz com essa rotina mas, é nesse contexto, que um JR ainda criança (Daniel Ranieri) se aproximará do carismático tio Charlie (Ben Affleck).

Em linhas gerais o que George Clooney faz aqui a partir do texto autobiográfico de JR Moehringer, além de recuperar um pouco a mão depois do apenas razoável O Céu da Meia-Noite (2020), é o feel good movie por excelência. Não há nada que não tenhamos visto anteriormente nesse sentido, já que estão lá a família disfuncional (e numerosa), a necessidade de superar uma série de obstáculos, as pequenas experiências que significam muito, o panorama cultural de uma época (no caso o meio dos anos 70) que dialoga com a história. As decepções. As descobertas. As Incertezas. As voltas por cima. E, nesse sentido, o que torna a experiência com Bar Doce Lar encantadora é o fato de nos importarmos um tanto com aqueles que acompanhamos - sensação bem diferente daquela gerada pelo desastroso Era Uma Vez Um Sonho (2020), que utiliza mais ou menos as mesmas ideias (e estrutura), mas com uma coleção de personagens absurdamente irritante, pra não dizer desprezível.

Indo e vindo no tempo, a obra utiliza seus saltos temporais de forma orgânica, intercalando momentos de JR já na faculdade - como estudante de Direito e aspirante a escritor -, com momentos de sua juventude, especialmente no simpático bar The Dickens, mantido pelo tio Charlie. É nesse local convidativo - sim, o nome homenageia o escritor Charles Dickens -, que o pequeno JR conhecerá uma coleção de frequentadores do local que, a sua maneira, "apadrinharão" o jovem, lhe entregando desde pílulas de conhecimento de boteco, até doses inesperadas de chope gelado. E, mesmo sendo um sujeito de personalidade complexa, Charlie funcionará como uma espécie de tutor involuntário do menino, auxiliando em sua criação e estimulando-o para a importância da leitura - e, nesse sentido, não é por acaso que muitas das interações mais emocionantes da obra envolverão o rapaz e o seu tio (como é o caso do instante em que eles recebem a carta da Universidade de Yale, que lhe oferecerá uma bolsa de ensino).

Com uma fluidez narrativa pacata, uma fotografia em tons pasteis que ajudam a criar o clima setentista e uma trilha sonora de nomes como The Isley Brothers, Devo, The Grass Roots, Chic, Steely Dan, Paul Simon e Malcolm McLaren, esse é aquele tipo de filme ideal para ser assistido de maneira despretensiosa num sábado preguiçoso. Não vai mudar o mundo. Não será inesquecível, provavelmente. Mas nos fará rir e se emocionar - e as participações de Christopher Lloyd (sim, o doutor de De Volta Para o Futuro) e Sondra James (em seu último papel) como os avós de JR também são parte disso. É aquela experiência carinhosa, que pega a complexidade da vida e a esmiúça, gerando identificação imediata com o público. Pode parecer pequeno diante da grandiosidade de outras obras. Mas já é o suficiente para valer a pena.

Nota: 7,5

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Novidades em Streaming - A Filha Perdida (The Lost Daughter)

De: Maggie Gyllenhaal. Com Olivia Colman, Dakota Johnson, Ed Harris e Dagmara Dominczyk. Drama, Grécia / EUA, 2021, 123 minutos.

Nos últimos anos não foram poucas as obras que ousaram discutir - ou até desconstruir - o ideal romântico da maternidade. De ensaios literários como Contra os Filhos da chilena Lina Meruane a estudos como Mães Arrependidas da israelense Orna Donath, parece haver, ao menos atualmente, uma maior naturalidade na hora de se debater o papel da mulher na sociedade que, em muitos casos, se vê pressionada a ser mãe, mesmo não sendo esta a sua vontade. Sim, o tema é tabu, é complexo, e certamente vale ser debatido. Afinal de contas, como afirma Leda (Olivia Colman), a protagonista de A Filha Perdida (The Lost Daughter) em certa altura da projeção "as crianças são uma esmagadora responsabilidade". É uma resposta que ela dá a uma personagem chamada Callie (Dagmara Dominczyk) que está achando meio inacreditável o fato de Leda estar em uma bela praia grega sozinha. Sem a família, no caso. Sem outras companhias físicas. Sem marido xarope, em criançada gritando, sem adolescente azucrinando.

Leda parece, afinal, ser daquelas mulheres que apreciam a própria companhia. O que, mesmo em tempos de conquistas, de tantos avanços como os que vivemos, ainda gera certo estranhamento no entorno. Uma jovem senhora de quase cinquenta anos, acompanhada de seus livros, fazendo anotações, saboreando uma boa bebida, desejando usufruir de um pouco de silêncio. "Qual será o problema dela?" é o que parece transparecer o olhar de todos em volta. E é aqui que está a meu ver, mais um dos tantos atrativos da narrativa baseada na obra da (misteriosa) escritora Elena Ferrante. Afinal, ainda parece haver certo preconceito em relação às pessoas que apenas optam por não estarem aglomeradas em família. Como se houvesse algo errado. O que talvez explique o comportamento mesquinho daquela família numerosa que está próxima de Leda, em seus dias de férias. Dias estes que se tornarão um tanto turbulentos quando alguns eventos estranhos começarem a acontecer.


E aqui não quero gerar nenhum tipo de click bait em quem tem dúvidas sobre dar play no filme - que marca a engenhosa estreia da atriz Maggie Gyllenhaal na direção. Por "eventos estranhos" leia-se pequenos acontecimentos que interromperão a rotina de todos ali, que mexerão nas estruturas, que desestabilizarão a todos por alguns momentos, mas que dialogarão com as temáticas propostas pela obra. Há, por exemplo, em certo altura, o desaparecimento de uma criança pequena na praia - o que deixa todos, naturalmente, desesperados. Em outro instante, Leda é afrontada por um grupo de adolescentes que insiste em fazer o máximo de algazarra possível em uma sessão de cinema improvisada. Um inseto que aparece do nada, uma pinha que cai de uma árvore, o farol que faz um persistente e incômodo barulho, as frutas podres que estão no cesto. Silenciosa, envolvente, cheia de sutilezas, a narrativa vai nos dando as pistas sem pressa, nos fazendo digerir temas variados como solitude, memória, afeto, escolhas pessoais, machismo da sociedade e, claro, a maternidade.

Perfeita como uma mulher de personalidade misteriosa, de comportamento ambíguo, Olivia Colman deverá ser figurinha fácil entre as indicadas ao Oscar na categoria Atriz (se não for uma das favoritas). Seu olhar que vai para lá e para cá e que parece provocar reações de ternura, de preocupação e de curiosidade, são capazes de dizer muito, ainda que nunca tenhamos certeza sobre o seu passado - e o que teria acontecido na relação dela mesma com as próprias filhas -, já que seu comportamento é permanentemente evasivo. Orbitando em relação a ela, a jovem mãe Nina (Dakota Johnson), o nativo Lyle (Ed Harris) e o professor Hardy (Peter Sarsgaard) serão a chave para que desvendemos, paulatinamente, quais os traumas, anseios, desejos e frustrações que acompanham a protagonista. Trata-se ao cabo de uma obra elegante, bem conduzida, de fotografia primaveril e de trilha sonora evocativa que retrata a maternidade - e toda a sua complexidade, seu caráter imprevisível, suas nuances - de forma surpreendentemente corajosa.

Nota: 9,0

sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Pitaquinho Musical - The Weeknd (Dawn FM)

Interessante notar como, a cada novo lançamento, Abel Tesfaye - o nome por trás do The Weeknd -, parece se afastar mais das ambientações soturnas e das melodias mais dramáticas que marcaram o início de sua carreira. Assim, como se tivesse sido infectado pelo "vírus" dos anos 80, o artista transforma Dawn FM em um registro de essência festiva, pontuado por sintetizadores que parecem feitos sob medida para embalar as pistas. Nesse sentido, esse quinto trabalho parece ampliar as experiências cheias de vigor comercial do trabalho anterior, After Hours - casos, por exemplo, dos megahits Blinding Lights e Save Your Tears - para além dos limites da música pop. Não significa que não haja espaça para alguma eventual melancolia ou para a profundidade - e há todo um conceito meio metafísico por trás dessa ideia de uma rádio FM que te conduzirá para a luz, como se faixas fluídas e cheias de brilho como Out of Time, I Heard You're Married ou Take My Breath funcionassem como uma espécie de metáfora perfeita para a entrada dessa aura quase mística. O ano musical começou oficialmente. E da forma mais elegante possível.


quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Cinema - A Crônica Francesa (The French Dispatch)

De: Wes Anderson. Com Bill Murray, Frances McDormand, Benicio Del Toro, Tilda Swinton, Adrien Brody e Timothée Chalamet. Comédia / Drama, França, 2021, 107 minutos.

É muito provável que poucos diretores dividam tanto a opinião dos fãs de cinema quanto o Wes Anderson. Dono de uma assinatura própria, de um estilo que pode ser facilmente reconhecido, o realizador é, eventualmente, taxado de presunçoso - especialmente pelo abuso das trucagens técnicas em suas obras. Mas quem gosta - o meu caso - gosta muito. E aguarda cada nova produção com a carteirinha de fã permanentemente atualizada. E, vamos combinar, que em A Crônica Francesa (The French Dispatch), Anderson entrega tudo. Tudo que se espera de suas produções está lá, desde os personagens excêntricos e de comportamento extravagante, passando pela fotografia colorida e cheia de contrastes, até chegar na predileção pelos enquadramentos de câmera que buscam centralizar absolutamente tudo - objetos, figuras -, em uma espécie de arquitetura geometricamente perfeita que, aqui e ali, quase nos fazem ter a impressão de estar diante de uma pintura. De um quadro.

E talvez não seja por acaso que, nessa busca pela perfeição técnica quase matemática, milimetricamente calcudada, o diretor invista na recombinação de tantas artes ao mesmo tempo, em sua mais nova invencionice. Por mais paradoxal que isso soe. Na trama somos arremessados para o pós-Segunda Guerra Mundial, num contexto em que um periódico americano - o French Dispatch Magazine - serve como veículo narrativo para uma série de pequenas (grandes) histórias contadas na modesta Ennui (aliás, eu adoro a piada com o nome da cidade, que significa "tédio" em francês). Só que como em qualquer localidade minúscula a beleza está nos detalhes, nas frestas e o que Anderson faz aqui é uma verdadeira carta de amor ao jornalismo (e talvez isso explique o meu completo envolvimento com a produção), ao narrar três histórias que comporão a última edição da revista após o trágico falecimento do editor Arthur Howitzer Jr. (Bill Murray, e quem mais seria senão ele?).

Cinema, escrita, turismo, artes plásticas, gastronomia, design, ciências políticas, sociologia. Em cada uma das três narrativas há espaço para avançar em temas relevantes culturalmente, mas que não deixam perder de vista a leveza. Ou sem deixar de lado o componente humano das relações. Na primeira dessas histórias, narrada pela exótica J. K. Berensen (Tilda Swinton) o preso Moses Rosenthaler (Benicio Del Toro) se torna um pintor famoso, atraindo a atenção de mecenas Julien Cadazio (Adrien Brody), que fará de tudo para tornar ele e sua "musa inspiradora" Simone (Léa Seydoux) famosos. No segundo segmento, a predileção francesa pelo pioneirismo em protestos políticos e busca por direitos civis ganha um certo tom de deboche no relato da jornalista vivida por Frances McDormand, que acompanha as "disputas" envolvendo os jovens Zefirelli (Timothée Chalamet) e Juliette (Lyna Khoudri). Por fim, acompanhamos o jornalista Roebuck Wright (Jeffrey Wright) que, na intenção de gerar material sobre o trabalho do chef de cozinha Nescafier (Steve Park) se envolve em um incidente de proporções épicas.

Contando ainda com um obituário do editor falecido e de uma espécie de guia turístico que apresenta a cidade (narrado por Owen Wilson), a obra não deixa de ser também, a sua maneira, uma espécie de homenagem meio nostálgica à frança - e o fato de Wilson ter participado do maravilhoso Meia Noite em Paris (2011), de forma tão apaixonada pela cidade no filme de Woody Allen, só me faz crer que essa também é uma daquelas piadas involuntárias recorrentes na filmografia de Anderson. Levando ao limite os tradicionais travellings laterais e circulares, que costumam estabelecer a lógica de enquadramento de seus personagens e que funcionam, inclusive, como recurso narrativo - que nos levam da melancolia ao sorriso em questão de segundos quando, inesperadamente, algum gracejo brota na tela -, Anderson nos entrega uma experiência aberta, autorreferencial, sensorial e absurdamente inventiva. Você talvez não simpatize tanto. Mas não custa tentar. Por aqui, seguimos a cada dia mais apaixonados.

Nota: 9,0

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Na Espera - The Northman

Se tem algo que o diretor Robert Eggers sabe como poucos é criar a ambientação certa para os seus filmes - que o digam os ótimos A Bruxa (2015) e O Farol (2019). Agora, para saber como ele se sairá em um épico que parece beber na fonte de Shakespeare - sendo Hamlet a referência mais óbvia -, será preciso aguardar até o dia 22 de abril, que será a data de estreia oficial por aqui de The Northman. O que já dá pra se dizer sem erro é que o trailer "chegou chegando", o que causou verdadeira comoção nas redes sociais. Isso porque, ao menos aparentemente, a história de vingança de um príncipe nórdico do século X passa a impressão de ser mais movimentada do que os projetos anteriores, mas sem perder aquela aura mística, eventualmente contemplativa, que rege a sua filmografia. Com um elenco de nomes como Anya Taylor-Joy, Alexander Skarsgard, Nicole Kidman, Ethan Hawke, Willem Defoe e até a islandesa Björk, a produção já aparece como uma das apostas praticamente certas para a temporada de premiações do 2023. É aguardar!

Novidades em Streaming - A Mão de Deus (È Stata la Mano di Dio)

De: Paolo Sorrentino. Com Filippo Scotti, Toni Servillo, Luiza Ranieri e Teresa Saponangelo. Drama, Itália, 2021, 130 minutos.

Foi aos seis minutos do segundo tempo no Estádio Azteca, no México, que o zagueiro da Inglaterra Hodge tentou afastar a bola dando uma rosca pra dentro da própria área. Esperto, ágil e ardiloso, o craque Maradona perceberia, numa fração de segundos, a oportunidade, saltando junto ao goleiro Peter Shilton para tocar "de cabeça", fazendo o primeiro gol da Argentina. Seria que assim que o dia 22 de junho de 1986 entraria para a história não apenas das Copas do Mundo, mas do futebol. Afinal, o instante decisivo, controverso - um gol de mão em uma disputa de quartas de final da competição -, marcaria o bicampeonato de nossos hermanos, enquanto a imprensa estarrecida, tentava compreender o que havia ocorrido. Ao final do jogo, questionado sobre o feito, el pibe de oro comentaria debochado, de que havia sido "la mano de Dios". Nascia o mito, a lenda. Um fato que permaneceria eternizado na memória dos fãs do esporte. E que extrapolaria as quatro linhas do gramado, funcionando como metáfora política perfeita após a Guerra das Malvinas.

E o mais recente filme do diretor italiano Paolo Sorrentino - dos maravilhosos A Grande Beleza (2013) e A Juventude (2015) - não se chama A Mão de Deus (È Stata la Mano di Dio) por acaso. A sequência está lá, em meio a tantas outras da obra autobiográfica, nostálgica e afetiva do realizador, que vasculha as suas memórias da juventude em Nápoles, para nos entregar mais uma de suas narrativas fragmentadas, episódicas, que se organizam e se recombinam para formar uma verdadeira colcha de retalhos sobre experiências pessoais, sobre perdas e sobre amadurecimento. A Mão de Deus - a de Maradona - pode ter sido obra de um daqueles inesperados acasos que acontecem uma vez na vida e outra na morte. Aliás, a nossa vida costuma ser assim. Recheada de desencontros, de fatos aleatórios, de eventualidades que, aqui e ali, formarão a nossa personalidade, nosso caráter. Nos farão crescer, superar obstáculos. Enfim, evoluir.

Na temporada 1986/1987 ninguém poderia prever que o Napoli venceria pela primeira vez na história o campeonato italiano da Série A - com o time movido, claro, pela fúria indomável de Maradona. E quem gosta de futebol sabe a importância do esporte na nossa formação. Quem não riu ou chorou inesperadamente com o Inter ou com o Grêmio nessa vida? Ao mergulhar em seu próprio passado, Sorrentino nos apresenta a uma coleção felliniana de personagens - das tias gordas e de seios enormes, passando pela avó que parece só se comunicar por palavrões e pela vizinha excêntrica e solitária, até chegar ao traficante tão divertido quanto violento e à tia sensualíssima - mas que parece possuir severos problemas psicológicos. Juntar esse amontoado de gente que surge, aqui e ali, em pequenas sequências que podem aparentar certa falta de lógica, e que ficam comprimidas em um sem fim de experiências exóticas, meio realistas meio oníricas, é o que torna a experiência com A Mão de Deus tão satisfatória. 

É claro que, para alguns paladares, essa falta de uma maior consistência narrativa pode reduzir a empolgação - talvez tornando o filme até meio longo e cansativo. Mas a vida, suas tragédias e conquistas, encontros e desencontros, casualidades e imprevistos é relatada aqui com grande apuro técnico - especialmente no que diz respeito aos longos (e belos) planos sequência, à fotografia meio granulada, que parece remeter de forma fiel aos anos 80, e à trilha sonora que ajuda a estabelecer o estado de espírito daqueles que acompanhamos. E há ainda as ótimas interpretações, especialmente do jovem Filippo Scotti, que empresta a seu Fabietto o olhar cheio de incertezas que é uma das tantas marcas da adolescência. Ninguém costuma saber o que vem pela frente. Nem onde tudo vai dar. Nosso time ganhará o campeonato? Será rebaixado? Qual será o assunto do almoço em família? Como lidaremos com as nossas perdas? Ou celebraremos nossas vitórias? Sorrentino não responde tudo. Na realidade ele nem quer isso. À moda de um Marcelo Mastroianni saltando de um evento a outro em meio a burguesia torpe e fútil em A Doce Vida (1960), ele nos faz refletir sobre tudo isso. E, nesse caso, é a trajetória que vale.

Nota: 8,5

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Cinema - O Homem Ideal (Ich bin dein Mensch)

De: Maria Schrader. Com Maren Eggert, Dan Stevens e Sandra Hüller. Drama / Comédia / Ficção científica, Alemanha, 2021, 105 minutos.

Pode parecer meio óbvio afirmar que O Homem Ideal (Ich bin dein Mensch) é algo tipo a Alemanha tentando fazer um episódio de Black Mirror - e por mais reducionista que esse pensamento seja, ele ajuda o fã de cinema a entender o tipo de material que encontrará no filme da diretora Maria Schrader. Aliás, a trama lembra bastante a do episódio Be Right Back, o quarto da primeira temporada da série britânica (e que é aquele que uma jovem participa de um experimento que lhe possibilita trazer de volta à "vida", em uma versão sintética, o namorado morto em um acidente de trânsito). Aqui, a ideia é semelhante e envolve a paleontóloga Alma (Maren Eggert) que, para obter fundos para a pesquisa que está realizando, aceita receber em sua casa um robô humanoide. Esse ciborgue é uma cópia idêntica a um ser humano e tem como único propósito levar à felicidade a seu par, respondendo à absolutamente todos os comandos de seu parceiro - no caso, aqui, a própria Alma -, da forma mais satisfatória possível. Isso não deveria ser algo maravilhoso? Bom, talvez em partes...

Afinal de contas, a química (ou não) de um casal é uma equação complexa, e que invariavelmente envolve uma série de fatores. Uma pessoa bonita pode ser apenas isso, uma pessoa bonita. Especialmente se não houver outros predicados que nos atraiam. E essa discussão que propõe o filme de Schrader - o enviado da Alemanha ao Oscar desse ano -, é o que torna essa experiência cinematográfica tão envolvente. Porque, afinal de contas, é uma obra que conversa com todos nós. Casados, solteiros. Quem tá na fila, quem tá no Tinder. Quem sonha em se apaixonar. Ou mesmo quem está sozinho, focado em outras coisas. Mas que não fechou seu coração para qualquer investimento do tipo. Alma parece fazer o perfil mais niilista, quase misantropa. Alguém que não acredita muito no sucesso das relações - ao menos não num padrão muito convencional -, o que faz com que se foque em seus esforços no em que atua. Tanto que só aceita em participar do experimento com a intenção de levantar recursos para dar continuidade às suas pesquisas sobre a escrita cuneiforme muito antes de Cristo.


Cética, ela aceita receber o robô meio a contragosto - ainda que fique um tanto quanto maravilhada na empresa de tecnologia que produz o humanoide (e que também é capaz de criar hologramas). Em tempos de total ausência de responsabilidade afetiva e de uma descrença meio generalizada na solidez de relacionamentos, logo fica claro o fato de Alma não acreditar no fato de um robô ser a sua solução secreta para uma união saudável. O resultado disso é o fato de a protagonista não apenas humilhar o seu novo hóspede sempre que pode, mas também de lembrá-lo o tempo todo de que ele é apenas uma máquina. E uma máquina feita apenas para satisfazer seus desejos. E, não por acaso, a obra nos possibilita uma série de reflexões sobre o tema - e, particularmente gosto muito da sequência em que Alma protesta contra aquilo que ela considera uma relação de "faz de conta" entre eles. E quem nunca viveu algo assim na vida real? Um amor de faz de conta, de aparências, inconsistente?

Nos pegando o tempo todo no contrapé, a obra busca analisar a complexidade da química das relações - seus anseios, frustrações, medos, necessidades, desejos -, sem chegar a um veredicto definitivo. As coisas são como são e podem depender dos acasos, do imprevisível, do inesperado (e aqui reside uma das forças da narrativa). Perfeito com um robô, Dan Stevens sustenta os modos maquínicos de um ciborgue, ao mesmo tempo que faz com que nos importemos com os seus sentimentos, ao passo que Eggert, como de praxe, é competente na caracterização de uma mulher de personalidade forte, que sabe o que deseja, mas que não esconde as tristezas, quando elas são catalisadas. Sim, talvez não haja grandes novidades aqui - nada que ficções existencialistas como Ela (2013) e Ex-Machina: Instinto Artificial (2014) ainda não tenham abordado. Mas a meu ver, com o avanço permanente da tecnologia, das revoluções proporcionadas cotidianamente nesse setor, esse tipo de assunto nunca se esgota. E, aqui, o resultado é um filme sensível, abstrato e convincente.

Nota: 8,5