"Pode acreditar / Nem tudo é deserto / Depois da noite escura / Outro dia vai nascer / E quando acontecer / O sol brilhará". A janela abriu e o sol entrou. E tudo está mais aquecido, vivo. E não é que Fenda (2019), a estreia em disco da cantora paulista Rita Oliva, a Papisa, fosse excessivamente melancólico ou sombrio. Talvez ele fosse mais íntimo, com uma sonoridade mais densa, que unia misticismo e introspecção - aliás, a própria capa já entregava esse componente mais ritualístico (nas vestes, nas cores, nos adereços e maquiagens). Só que tudo isso foi há cinco anos, antes da covid-19 e de uma inesperada interrupção de tudo aquilo que estava programado. "Fiquei em um momento de luto pela pandemia – pelo mundo inteiro, pela música que tinha parado. Depois disso, percebi que eu queria realmente a música como um recurso para trazer encantamento para a vida, trazer sol, e foi essa a minha busca", explicou a artista em entrevista ao Scream Yell, a respeito de Amor Delírio, o recém-chegado segundo registro.
E esse aspecto mais ensolarado pode ser percebido não apenas na sonoridade das faixas que, aqui e ali, mesclam psicodelia moderna com o dream pop noventista, mas também nas letras, mais otimistas, com um maior destaque para a voz, que forma um conjunto harmonioso no todo - o que pode ser constatado em canções como Vai Passar (do trecho que abre essa pequena resenha) que, a despeito de certa melancolia nos arranjos, possui versos otimistas sobre volta por cima. Já no indie rockDores no Varal - música sobre a transitoriedade do amor que, por mais intenso que seja, pode resultar em dor -, o sol que raia reaparece formando o cenário para uma alegoria óbvia a respeito do renascimento e do aspecto cíclico das paixões (Eu plantei flores no quintal / Amores no verão / Dores virarão / Roupas no varal). Mais expansivo, com mais elementos, instrumentos e efeitos eletrônicos - o que pode ser observado em outros instantes, como na movimentada Melhor Assim e na oitentista Corte -, esse é um álbum mais complexo, e que tem produção de Felipe Puperi, do coletivo Tagua Tagua. Vale conferir.
De: Céline Devaux. Com Blanche Gardin, Laurent Lafitte e Nuno Lopes. Comédia / Drama, França / Portugal, 2022, 97 minutos.
Vamos combinar que com Todo Mundo Ama Jeanne (Tout Le Monde Aime Jeanne) talvez tenhamos atingido o auge do carisma quando o assunto são as "vozes na cabeça". Sim, todo mundo possui aquele pensamento meio intrusivo que nos invade em diversos momentos do nosso dia. Só que as criaturas animadas que acompanham Jeanne (Blanche Gardin) são absolutamente zombeteiras, debochadas, irônicas. A ponto de tirar sarro dela quando ela resolve simplesmente fumar, após um momento de estresse. "Câncer, enfisema, câncer, enfisema" cantam de forma enternecedora - com uma voz quase infantilizada - esses pequenos trolls do inconsciente. Aliás, como se já não bastasse se sentir humilhada por uma série de fatores mundanos - o mais recente envolvendo a perda da reputação no trabalho, após um projeto científico que visava a coleta de partículas de plástico do oceano sair totalmente errado -, ela ainda precisa lidar com a irreverência desses demônios interiores.
Estreia em longas da diretora Céline Devaux, essa é uma obra carismática, que diverte sem nenhum esforço - ainda que, aqui e ali, aborde também assuntos mais sérios e que envolvem desde a necessidade de lidar com as próprias inseguranças, até a superação do luto. Jeanne é uma figura arrogante, presunçosa, que poderia ser situada como aquele tipo de progressita acadêmica - que se sente moralmente acima a alguém porque, simplesmente, trabalha em projetos ambientais. Seu ar é superior, seu nariz está sempre empinado, os sapatos de salto ecoam pelas ruas - no seu íntimo talvez haja um problema de autoestima que grita, e que é justamente evidenciado pelos pensamentos intrusivos. Depois que a engenhoca para coleta de fragmentos de entulho marítimo não vinga, ela viraliza em um vídeo patético em que mergulha no mar para tentar salvar o equipamento. Pior do que isso, sem credibilidade, o único caminho para não falir totalmente (e até ser presa por dívidas com o Estado), talvez seja vender o antigo apartamento da mãe, que fica em Lisboa.
E será retornando à Portugal que a gente perceberá, aos poucos, que parte dos traumas tem - novidade! -, justamente a ver com a relação complexa com a sua genitora. Uma pessoa amarga, que se suicidou fazendo recair a culpa sobre Jeanne, e que sempre lhe julgava - seu comportamento, hábitos, peso corporal. O que faria a protagonista desenvolver uma série de inseguranças - e que respingaria na conturbada relação com os homens. Sempre desconfiada, amedrontada, distante. No aeroporto, aguardando o voo para a capital portuguesa, ela conhece o carismático Jean (Laurent Lafitte), um cleptomaníaco charmoso, que se aproxima em meio a recordações de tempos distantes. "Fomos colegas na French High School, de Lisboa, você é a garota que todos amavam, que todos desejavam", comenta o rapaz. Entre a ansiedade e o meio caminho para a depressão, Jeanne suporta o deboche dos amigos imaginários que habitam seu cérebro. Mais adiante ela pesquisa no Google "cachorros grandes sendo afetuosos com bebês". É a sua forma de sair daquele contexto meio insuportável, que ela recém adentra.
Ágil, a comédia não perde tempo em longas divagações de seus personagens. As tensões, culpas e medos interiores que Jeanne sente, são abraçados a cada olhar cínico, a cada pensamento sarcástico, a cada palavra em tom de chacota que, claramente, ela usa como uma espécie de mecanismo de defesa. Em terras portuguesas, ela encontra um ex-namorado (ou peguete mesmo) de nome Vitor (Nuno Lopes) que, forçando a barra no estereótipo do esquerdomacho, saca um violão para tocar uma música meio insuportável após o sexo. As vozes na cabeça gritam. E ela fica confusa entre Vitor e Jean ou o que quer que seja. Em entrevista à Mubi, a diretora, que também é roteirista e ilustradora, explicou que a ideia do filme partiu daquilo que era uma espécie de diário ficcional. "Eu criei essa super-heroína ecológica, que afirmava a si mesmo que esse era o trabalho mais útil do mundo e que ela não poderia falhar nele", afirmou. Só que somos seres humanos. E somos falhos, evidentemente. Ao escancarar de forma tão criativa e sincera suas reflexões, Devaux estabelece um vínculo irresistível com o espectador. É delicioso e está disponível na Mubi.
De: George Cukor. Com Ingrid Bergman, Charles Boyer e Joseph Cotten. Suspense / Drama, EUA, 1944, 114 minutos.
Luzes que parecem piscar dentro de casa, objetos que desaparecem dos cômodos, barulhos que se originam no sótão, sensação de estar sendo vigiada o tempo todo. Todas as sensações experimentadas pela personagem Paula (Ingrid Bergman), no clássico de 1944 À Meia-Luz (Gaslight), e que decorrem do fato de que ela é vítima de manipulação psicológica sistemática, serviriam de base para que, anos depois, especialistas nomeassem esse tipo de abuso - que distorce a realidade e faz com que as pessoas pensem estar enlouquecendo - com o termo que é título original do filme dirigido por George Cukor. Passada no final do século 19, a obra começa com o assassinato misterioso da mundialmente famosa cantora de ópera Alice Alquist, que residia com Paula, sua sobrinha, em uma ampla mansão em Londres. A jovem é enviada à Itália para tentar seguir seus passos como cantora lírica, mas sem muito sucesso - num salto temporal de quase dez anos.
É nesse contexto que ela conhece um certo Gregory Anton (Charles Boyer), que a pede em casamento algumas semanas depois de iniciarem o relacionamento. E qual o local eles escolhem para seguir as suas vidas? A antiga casa da falecida tia, claro, um ambiente fechado, amplo, mas claustrofóbico, com suas escadarias vertiginosas, portas que darão para ambientes "secretos" e móveis que guardam documentos que podem ser reveladores do passado - como no caso de uma antiga carta, escrita por um suposto fã de Alice, apenas dois dias antes de sua morte. É tudo saborosamente misterioso, com a tensão subindo conforme os dias passam, especialmente quando Gregory passa a isolar Paula na casa. Impossibilitada de sair, a jovem passa a conviver apenas com as empregadas. E com os eventos estranhos que, aqui e ali, se ampliarão, fazendo com que ela passe a questionar sua própria sanidade.
Como forma de sepultar o passado, Gregory sugere colocar o antigo mobiliário da tia no sótão - e não demorará para que a protagonista tenha a impressão de ouvir passos vindos do forro. A luz, ligada a gás, sobe e desce a todo momento. Mas ela não está sozinha no ambiente? Em um dos tantos instantes perturbadores, Paula é acusada por Gregory de ter escondido um quadro - uma pintura - justamente em uma noite em que eles pretendiam sair para uma ida ao teatro. Aliás, as poucas saídas de casa são tensas, com o sujeito desdenhando da própria esposa, e até a humilhando em frente as demais pessoas. "Eu peço perdão, ela está muito doente", alega o chantagista para um grupo de pessoas durante uma festa organizada por um ricaço, quando do desaparecimento de um relógio. Como manipulação emocional pouca é bobagem, Paula passa a acreditar que é cleptomaníaca, que tá ficando doida, que enxerga pessoas que não existem, que escuta sons inexistentes.
Lá pelas tantas, um investigador da Scotland Yard de nome Brian Cameron (Joseph Cotten) percebe o comportamento um tanto ansioso da mulher - ele nota a semelhança dela com sua tia, de quem era admirador. Será a deixa para que o inspetor mexa os pauzinhos para desarquivar o processo de assassinato, que nunca foi solucionado. Tudo é conduzido com elegância e tensão: enquanto Paula mergulha em uma comovente espiral de decadência que é fruto do mais puro abuso emocional, Cameron se aproxima da verdade que envolve o passado obscuro de Gregory. Com uma performance angustiante, daquelas de despedaçar o espectador, Ingrid Bergman venceria o Oscar na categoria Melhor Atriz, na cerimônia de 1945. A obra, que teve inúmeras adaptações para o teatro e para o cinema, receberia outras nominações à premiação máxima do cinema, figurando ainda em uma série de listas de melhores de todos os tempos. Como no caso dos 100 Suspenses fundamentais do American Film Institute (em um honroso 78º lugar). É uma produção que completa 80 anos de lançamento. E que vale resgatar.
"Meu amor / Sou teu companheiro / Pra subir montanhas / E atravessar o mar", "Se tudo mudou / Já não tem mais jeito de voltar / Mas todo movimento é circular", "Toda brincadeira tem um fundo de verdade / O amor me traiu / E me deu o mundo / Me pariu uma gruta, me plantou um vazio". Pode até não haver um conceito definido em O Futuro Já Está Acontecendo, o quarto e mais recente trabalho da adorada Banda Mais Bonita da Cidade. Mas não dá pra negar que quando a gente observa as frases acima, que se espalham em meio as oito canções do disco, não dá pra negar que parece haver uma certa lógica, uma organização. Claro, com quinze anos de estrada, o quinteto de Curitiba já passou por muitas coisas em suas vidas - experiências traumáticas ou não, desafios, anseios, conquistas. E a maturidade parece também aparecer em cada curva do registro, com suas composições sólidas, menos apressadas e que parecem ir na contramão desse mundo tão acelerado que vivemos.
"Acho que é um reflexo de como a gente tem sentido a vida mesmo, de como esses temas são sincronizados espontaneamente com nossos processos pessoais", explicou a vocalista Uyara Torrente em entrevista ao site Marramaque, a respeito da escolha do repertório - e das letras que combinam simplicidade com uma verve mais filosófica, de reflexão sobre o mundo, suas idas e vindas, movimentos de retorno, de chegadas e de partidas. Claro que, num comparativo com o início da carreira, em que sucessos como o clássico moderno Oração pareciam reflexo de tempos mais simples - e talvez fossem mesmo -, as composições feitas por um time de colaboradores podem soar um pouco mais herméticas, daquelas que não pegam de primeira. Ainda assim, os elementos que fazem com que o grupo seja seguido pelos devotos fãs seguem intactos - e basta ouvir uma canção como Promissões para, num encontro entre a doçura e a aspereza, entre os arranjos elegantes e o vocal dramaticamente limpo, percebermos uma coesão natural de influências e sonoridades.
De: Richard Linklater. Com Glen Powell, Adria Arjona e Austin Amelio. Ação / Comédia, EUA, 2023, 115 minutos.
"As pessoas se desapontam em saber que matadores de aluguel não existem. A ideia de que há sujeitos no varejo que são contratados para assassinar alguém é coisa da cultura pop." Vamos combinar que uma das partes mais divertidas de Assassino por Acaso (Hit Man) é justamente essa subversão da lógica do que poderia ser uma produção do gênero. Sim, porque quando o filme inspirado em eventos reais inicia, temos a impressão de estarmos diante de algo meio genérico, bem naquele estilo de comédia de ação sobre o sujeito desengonçado que, do dia para a noite, se vê inesperadamente em uma posição que não é a dele. Ok, de alguma maneira isso até ocorre em partes, já que o protagonista Gary Johnson (Glen Powell) é um mero professor de Psicologia e Filosofia em Nova Orleans que, para complementar a renda, trabalha para uma delegacia de polícia instalando microfones e câmeras na intenção de identificar bandidos em potencial.
Em meio a longas divagações com seus alunos universitários - sobre temas que, aliás, tem a ver com a trama, como no instante em que o professor debate com a turma as diferenças do Superego e o Id (o primeiro sendo a consciência, que nos recompensa pelo bom comportamento e pela adesão às normas sociais e o segundo sendo os impulsos mais primitivos, os desejos baseados na busca do prazer sem levar em conta as consequências) -, o protagonista recebe um convite inusitado em um dia de trabalho na delegacia: o de substituir o colega Jasper (Austin Amelio), que foi suspenso por agredir um grupo de adolescentes, em meio a uma abordagem desastrada. Sim, Gary, com seu cabelo ajeitadinho para o lado, óculos de nerd e rosto de bom moço não parece ser o cara ideal para confrontar pessoas que pretendem contratá-lo como assassino profissional (claro, tudo parte de um estratagema para incriminar essas pessoas, que parecem dispostas a levar um crime a cabo, mas desde que não sujem as mãos).
Só que é nessa hora que entram as verdadeiras habilidades sociais de Gary. Como professor da área de humanas, ele é capaz de forjar uma persona diferente para cada uma de suas vítimas - o que envolve certa pesquisa prévia de personalidade. Tendo, aliás, um resultado muito efetivo na hora de incriminar os mandantes. Tudo vai mais ou menos bem até a hora em que ele é chamado para um encontro com uma jovem mulher de nome Madison (Adria Arjona), que alega sofrer violência doméstica do seu marido, que lhe impede de sair de casa, de viver. Adotando a persona que leva o nome de Ron, um homem sedutor, de modos seguros, fala firme e fã de cachorros, Gary oriente a jovem a abandonar a ideia da encomenda da morte do próprio marido. Mais do que isso, lhe recomenda usar o dinheiro que investiria nisso para sair da cidade e iniciar uma nova vida. Madison aceita a sugestão, só que Gary/Ron se apaixona. E, bom, haverá um novo encontro futuro e, assim, a coisa vai se desenrolar.
Em linhas gerais essa é uma experiência divertida e que mais uma vez evidencia a versatilidade do diretor Richard Linklater - de Antes do Amanhecer (1995) e Boyhood: Da Infância à Juventude (2014) -, que parece usar a trama como um veículo ideal para que Powell, um dos queridinhos do momento em Hollywood, utilize todo o seu carisma para se transformar em quase uma dezena de figuras distintas, bem de acordo com seus contratantes. Em um ótimo momento, ele vai ao encontro de um homem que parece o estereótipo do extremista de direita - um patriota, fã de armas e que tem saudade da América do passado -, se transformando para isso em um sulista meio caipira, que pode ser a isca ideal. Tudo para ganhar a confiança do "freguês". Sobre Madison, ela e Gary viverão altos e baixos, especialmente quando o ex-marido dela entrar na jogada, tentando também contratá-lo pra dar cabo da ex. As reviravoltas tem seu charme e a química do casal central funciona - ainda que algumas decisões gerem estranhamento. Mas quando pensamos no Superego e no Id não podemos esquecer que lá no meio há o Ego: e é ele que faz a ponte entre o instinto e a lógica, entre a lei e a ausência de lei. "Maximizar o prazer e minimizar os custos". É a lição que fica.
"A maneira como eu olho pra música - especialmente a música urbana, das pessoas negras ou como queira chamar - é que estamos todos no zoológico e os ouvintes são as pessoas fora da gaiola". Quem acompanha a carreira do rapperVince Staples sabe que, em meio a momentos mais introspectivos (Summertime '06), dançantes (Big Fish Theory), furiosos (FM!) ou resignados (Ramona Park Broke My Heart), sua produção sempre foi marcada por uma crueza que não romantiza os seus temas. Em mais de uma entrevista - como no caso da citação que abre esse textinho, em conversa com a Pitchfork -, ele mencionou haver alguma desconexão entre certos artistas e quem os consome, especialmente na ânsia de dar um polimento, um certo brilho glamourizante aos problemas da periferia, numa espécie de glorificação do rap (o que se vê muito nos videoclipes, por exemplo). Violência policial, racismo estrutural, tráfico de drogas e crise da masculinidade são assuntos que, aqui e ali, surgem sempre pontuados por um estilo minimalista, sem floreios, com batidas no limite da monotonia, efeitos econômicos e um vocal muito mais falado do que gritado.
Sim, Staples pode ser engraçado nas redes sociais ou totalmente debochado nas entrevistas, que sempre levam os jornalistas à loucura - uma das melhores histórias é ele falando pra um profissional que o disco Big Fish Theory era afrofuturista, só pra depois ir ao Twitter pra afirmar que "gosta de dizer bobagens sobre pessoas negras, para pessoas brancas". Só que quando o assunto é os seus álbuns há uma propensão à levar a coisa mais sério, tanto que o ouvinte desavisado pode se surpreender com a sofisticação crua, as melodias envolventes e a oratória casual e quase desinteressada, com que fluem registros como este Dark Times, o sexto da carreira. A música tem uma turbulência realista, sem maquiagem, com menos palavras ditas por centímetro quadrado, mas muito impacto. Ao cabo, como se já não bastassem esses méritos, ainda é um disco simplesmente bom de ouvir. Agradável, fluído, com refrãos diretos, como no caso da ótima Étouffée e da e tensa Government Cheese (Don't forget to smile, diz o refrão). Aqui e ali, há espaço pra guitarrinhas litorâneas, como nas enevoadas Radio,Shame on the Devil e Children's Song. O que também evidencia a abertura para novos caminhos nas melodias. É um dos melhores do ano.
De: Stanley Kubrick. Com Nicole Kidman, Tom Cruise, Sydney Pollack e Todd Field. Drama / Suspense, EUA / Reino Unido, 1999, 159 minutos.
Pode ter sido apenas uma coincidência, mas o ano de 1999 foi não apenas pródigo em gerar grandes filmes, mas meio que premonitório na hora de levar as tensões da virada do milênio para a telona. Eram tempos de incerteza que levariam Hollywood a investir em obras que jogavam luz em temas diversos, como, avanços tecnológicos (Matrix), corrupção corporativa (O Informante), a hipocrisia e a decadência da sociedade (Beleza Americana), sentimento de vazio na modernidade (Clube da Luta) e até o simples medo da morte (O Sexto Sentido), que pareciam assombrar a população que aguardava os anos 2000 como uma espécie de ponto de ruptura - que, alegoricamente, poderia ser simbolizado pelas tenebrosas perspectivas frente ao Bug do Milênio. Sim, e olhando os títulos que foram exibidos naquele ano, também chamaria a atenção a qualidade das produções. Uma melhor do que a outra, cada uma em seu segmento.
E talvez não seja por acaso o fato de o contexto daquela época ter fornecido a matéria-prima ideal para tantos artigos de imprensa, estudos e outros documentos que apontariam aquele período como um ponto de ruptura para o cinema - resultado do encontro entre os estúdios e sua voluptuosa quantia de dinheiro e uma diversidade de cineastas independentes (ou não), com visão. "O ano mais indisciplinado, influente e impenitentemente prazeroso de todos os tempos, em termos de filmes", como resumiria o jornalista cultural Brian Raftery. E vamos combinar que não deixa de ser uma grande ironia datar de 1999 justamente a última obra de Stanley Kubrick. Era o aguardado retorno após dez anos de hiato, mas o diretor viria a falecer alguns dias antes da conclusão de De Olhos Bem Fechados (Eyes Wide Shut), produção baseada no livro Breve Romance do Sonho, de Arthur Schnitzler. Foi-se o realizador. Ficou o clássico moderno.
Aliás, mais um escárnio perceber como esta é também uma obra representativa das tensões da virada do século. No centro da trama densamente conduzida, acompanhamos o esfacelamento de um casamento burguês, após uma noite de festa em que uma série de acontecimentos parecem burlar alguns limites éticos de um matrimônio. Tudo embalado em uma narrativa hipnótica de paranoia, de conspiração e de segredos guardados a sete chaves por uma parte da classe endinheirada, hipócrita, e, em alguma medida, hedonista, ainda que provavelmente insegura diante das mudanças vindouras. E, vamos combinar que não deixa de ser interessante ver um casal que estava junto na vida real - no caso Nicole Kidman e Tom Cruise que, por sinal, se separaria apenas dois anos depois -, em uma série de diálogos honestos sobre desejos não realizados, vontades sexuais nunca concretizadas ou impulsos primitivos apenas imaginados.
Em alguma medida esse é um filme relativamente simples - ainda mais diante da magnitude de outras obras de Kubrick -, ainda que absolutamente envolvente, que flui sem pressa, em sua medida de tempo, quase em câmera lenta, e que parte de um pequeno instante de surto do médico Bill Harford (Cruise), que fica perplexo quando a sua estonteante esposa, a curadora de arte Alice (Kidman), lhe revela o fato de, por muito pouco, não ter abandonado a ele e sua filha pequena para viver um grande amor, após ter conhecido um oficial da marinha, no passado. Ao mesmo tempo que estas imagens retornam à sua cabeça e lhe atormentam, Bill se vê obrigado a sair de casa para um atendimento à família de um paciente que vêm a óbito. Tendo início uma longa e fervilhante madrugada em que o protagonista salta de um local a outro, chegando a um pub em que um antigo (e discreto) colega, de nome Nick (o diretor Todd Field) toca piano em uma banda de jazz.
Nick fará a ponte para que Bill chegue até uma grande mansão fora da cidade de Nova York, onde um grupo de pessoas mascaradas participa de orgias sexuais, de jogos sensuais e de fantasias eróticas. Bill está lá em segredo, mas não demorará para que ele seja, com o perdão do trocadilho, desmascarado, dando início a uma história de perseguição - especialmente após uma jovem mulher lhe revelar que ele está em perigo. Sexy e misterioso, animalesco e sacro, inquietante e onírico, ousado e complexo, esse é um projeto que debate, nas suas entrelinhas, uma série de tabus sexuais e de fetiches excêntricos que surgem, aqui e ali, como alegorias que quebram certa lógica estabelecida pelos códigos morais de vida em sociedade, com seu recato hediondo, luzes de Natal solenes e realidades encobertas. Um filme que suscita ainda uma série de discussões, seja por conta dos cenários, dos figurinos, das obras de arte ou da trilha sonora - todos elementos que parecem esconder informações a mais, fazendo inclusive a festa dos conspiracionistas. O ocaso de Kubrick não poderia ser melhor. Ajudando a consolidar a passagem de 1999 para 2000 como uma época complexa, vibrante e incerta, que anteciparia uma série de temores decorrentes do mal-estar generalizado que habita a pós-modernidade.
A trilha multicolorida que sai da caixa de som, passa pelos ouvidos de Alfie Templeman e se espalha pelas paredes do ambiente que ilustra a capa de Radiosoul, terceiro registro de inéditas do artista inglês, parece dar a dica: estamos diante de um disco ensolarado, vívido. E basta a primeira audição do registro para que essa impressão mais, digamos, semiótica do projeto gráfico, seja confirmada. Com apenas 21 anos, o compositor chegou com força durante a pandemia e, mesmo em tempos sombrios como os de covid, conseguiu entregar registros de essência festiva, como no caso do ótimo Mellow Moon que, não por acaso, foi o nosso décimo terceiro preferido de 2022. Apostando novamente na mistura de art pop, com rock psicodélico, funk, algumas doses de R&B e disco music, Templeman amplia o caráter maximalista de sua obra, tornando tudo ainda mais enérgico e cativante.
Nesse sentido, é simplesmente impossível ficar alheio a canções como o single Eyes Wide Shut, com seu refrão grudento, pegajoso, que parece algo que o Scissor Scisters faria, da forma mais descarada possível, no começo do milênio. Já a magnética Just a Dance, tem participação de Nile Rogers em pessoa - as inspirações do Chic, diga-se, se espalham a cada curva do trabalho -, em uma música de melodia primaveril e letra simples. Não significa que não haja momentos mais sombrios ou turbulentos - e não por acaso, assuntos como esgotamento mental (Eyes Wide Shut), solidão (Hello Lonely) e problemas relacionados à fama repentina (Vultures) surgem aqui e ali, entre uma música de amor e outra (como no caso da ótima Submarine, feita para a namorada). Ainda assim, o artista explicou no material de divulgação que este é um "registro de verão, que tem a energia espontânea que vem de estar no sol". A gente concorda!
De: Christopher Storer e Joanna Calo. Com Jeremy Allen White, Ebon Moss-Bachrach, Ayo Edebiri e Lionel Boyce. Drama / Comédia, EUA, 2022/2023, duas temporadas.
Um grupo de pessoas neuróticas que vive para o trabalho, que possui pouca (ou nenhuma) vida social, que se frustra com o caos econômico mas que parece acreditar em discurso meritocrático, que reclama do governo e de suas eventuais burocracias, impostos e outras exigências e que, em alguns casos, ainda possui uma família que destroi o teu psicológico - mas ainda assim tu te mantém próximo porque, né, é a família, fazer o quê. Tudo isso ainda meio que embalado em um uma narrativa de autoajuda, que utiliza metáforas do militarismo e alegorias do mundo esportivo para evidenciar que, mesmo em um mundo de adversidades, de individualismo e de problemas generalizados ainda é possível superar tudo isso e prosperar. Apresentação de slides daquele daquele coach messiânico, dissimulado e de índole duvidosa que ganha dinheiro em cima de incautos? Não, apenas a série O Urso (The Bear) que, em suas duas temporadas, conseguiu ganhar não apenas o apreço da crítica, mas também do público.
E quando eu falo de público não cito apenas os homens brancos, héteros, de classe média e conservadores - você já viu esse tipinho meio básico zanzando por aí em agências de publicidade ou em algum escritório apertado onde ele vive o sonho americano (ou brasileiro) de ganhar R$ 5 mil por mês -, que poderiam ser facilmente o alvo de uma série como essa. Há muitas pessoas - amigos meus, inclusive - do campo progressista, que caíram nesse golpe e que a estão propagando como algo muito realista ou mesmo profundo sobre esse ambiente tóxico e caótico (no caso, o do universo dos restaurantes e de suas rotinas eventualmente abjetas), ainda que já haja chefs de cozinha fazendo um contraponto à forma como tudo ali é retratado. Não vou nem citar que os personagens vistos são todos meio que unidimensionais - não há complexidade, o que aumenta a dificuldade de haver empatia. Especialmente pela dupla central, os primos Carmy (Jeremy Allen White) e Richie (Ebon Moss-Bachrach), duas pessoas miseráveis do ponto de vista psicológico e de personalidades bastante parecidas, que não sabem muito bem o que estão fazendo de suas vidas.
Para além dessas figuras que vão no limite entre o carisma meio canastrão e a dor profunda transmitida pelo olhar - especialmente nos raros momentos em que a coisa não tá excessivamente frenética (pra não dizer irritantemente confusa) - há outras personas orbitando a dupla, tendo especial destaque a jovem Sydney (Ayo Edebiri), que funciona direitinho como aquela pessoa meio sem experiência mas que, com muita força de vontade, poderá ajudar a colocar o The Beef, o restaurante herdado por Carmy e Ritchie de seu falecido irmão Michael (Jon Bernthal, absolutamente SEMPRE uma figura interessante) nos eixos. Sim, a série criada por Christopher Storer e produzida por, entre outros, Joanna Calo e Hiro Murai, fará de tudo para nos lembrar o tempo todo de que ter um restaurante, especialmente após a pandemia, parece ser um negócio péssimo. Muitos locais foram fechados na época e eu juro que lá pelas tantas imaginei que apareceria algum personagem aleatório pra dizer "olhaí o resultado do fique em casa".
Bom, posto tudo isso simplesmente pra quê o estresse? Ok, ok, não vou ser tão chato a esse ponto porque se não houvesse um sujeito fudido ferrado da cabeça e que já foi chef de cozinha renomado em outras paragens, que estivesse interessado em reabilitar um espaço gastronômico meio decadente, ainda que tradicional, talvez sequer houvesse série (como naquela brincadeira sobre se Breaking Bad fosse feita no Brasil não existiria Walter White e cinco temporadas porque era só ir até o SUS). Mas volto a dizer, pra quê? Trabalho, ao cabo, não é apenas pra que a gente possa ganhar o nosso dinheiro pra pagar os boletos e, enfim, sobreviver? É preciso mesmo esse massacre que exibe pessoas trabalhando de 14 a 18 horas dia, parecendo ainda ter certo orgulho disso? Em certa cena, por exemplo, Tina (Liza Colón-Zayas) recebe uma faca de presente de Carmy. E, uau, fez lembrar o pseudoinfluencer que ganha um sonho de valsa do chefe e publica no Insta. "Ciência, bebê", diz ela mais adiante, diante de uma panela nova. Oi? Tina, o que mais você faz da vida, além de suportar um bando de jovens instáveis na cozinha de um restaurante?
O auge de tudo é quando Carm, mesmo sendo uma espécie de incel do mundo gourmet, consegue se (re)aproximar de Claire, uma paixão de infância. Que, para a alegria dos cabaços de plantão, é lembrada por Richie e Michael como aquela esquisitinha que no passado era gordinha e de óculos e que, agora, tá a maior gata. É sério isso? O caso é que Claire, lá pelas tantas, tenta lembrar Carmy do que é a vida pra além daquele ambiente. "Eu nunca fui numa festa", diz ele, com uma naturalidade desconcertante, na noite em que ele, supostamente, vai então a sua primeira festa - algo que nem o maior nerdola anarcocapitalista, com pendor pro libertarianismo seria capaz de afirmar. No final dessa mesma noite, Carmy não convida a moça para a sua casa ou para um motel: ele resolve a levar para... o restaurante, claro. Onde mais? E ao chegar lá, depois das 23h, surpresa! A dupla encontra a galera simplesmente TRABALHANDO, discutindo sobre instalações, cabeamentos, equipamentos e qualquer outra coisa. Vida pessoal? Ir prum Bar? Assistir um filme? Esquece. Essa galera é o oposto dos personagens de Friends. Na série dos anos 90, as pessoas não trabalhavam. Aqui elas SÓ trabalham. Aliás, até nos filmes do Ari Kaurismaki, que tanto critica o ambiente de trabalho tóxico, o operário tem direito ao lazer escapista. Mas vejamos pelo lado bom: Carmy consegue beijar Claire pela primeira vez. Tendo o restaurante como cenário de fundo - aliás, o cenário ideal do liberal classe média que tem o sonho de empreender.
Ah, mas a série ao menos entretém, poderá dizer alguém. Sério? Ver um grupo de pessoas adultas gritando o tempo todo, proferindo palavrões no modo infinito e agindo de forma infantilizada mesmo quando próximos dos 40 anos? Às vezes a coisas é tão caótica, tão hiperbólica e maximalista do ponto de vista da BAGUNÇA, que a vontade é de simplesmente abandonar - sendo o auge da experiência nesse sentido, o sexto episódio da segunda temporada, uma das coisas mais intragáveis que já tive o desprazer de assistir. "Ãin, mas é pra ser uma metáfora para a vida, suas dores, medos, incertezas, dúvidas". Sim, mas talvez dê pra fazer isso com um pouco mais de sutileza. Com menos berro e instabilidade. Com menos discurso raso e superficial - sério, foi demais pra mim o Carmy perguntando, como se fosse um adolescente de doze anos, se Claire era "sua namorada". Ou ver o tio Jimmy (Oliver Platt) usando uma analogia com o beisebol pra reforçar um tipo de masculinidade torpe, redpillada e confusa. "Você quer ser o cara? Então seja o cara!". Uau, que diálogo! Pode haver um certo magnetismo sedutor nesse negócio de basicamente entregar seu corpo, sua mente, sua alma, seu sangue e suas vísceras para o seu trabalho. Há uma coisa no cinema de corpo que magnetiza. Mas aqui não. Eu não caio nessa. E espero que mais pessoas possam ser livres para falar a verdade sobre essa série lamentável. Em tempo: vem aí a terceira temporada. A notícia boa é que dá pra passar longe sem remorsos.
De: José Eduardo Belmonte. Com Grazi Massafera e Reynaldo Gianecchini. Suspense / Drama, Brasil, 2024, 117 minutos.
Vamos combinar que a gente já viu muitas vezes esse tipo de filme de família classe média perfeita - ao menos na fachada -, que vê o seu cotidiano ser arruinado a partir de eventos traumáticos. E se esse subgênero não chega a ser exatamente uma novidade, dá pra considerar o esforço do cineasta José Eduardo Belmonte que, a partir do livro popular de Raphael Montes (que também escreve o roteiro), constrói um thriller que envolve e que tem lá seus acertos - a despeito de um ou outro exagero aqui e ali ou alguma falta de lógica acolá. Na trama de Uma Família Feliz, o casal central Eva (Grazi Massafera) e Vicente (Reynaldo Gianecchini) mora em um condomínio fechado de um bairro nobre estando, oficialmente, "grávidos" do primeiro filho juntos - as gêmeas que estão completando dez anos ainda no começo da história são filhas do casamento anterior de Vicente, interrompido por causa da morte de sua ex-esposa, em circunstâncias não muito claras.
E como se não bastasse Eva ter de lidar com a maternidade em si - e com as dificuldades decorrentes de um bebê que se recusa a mamar e que não para de chorar por absolutamente nada no mundo, levando a protagonista a um quadro de aparente depressão -, ela ainda precisará enfrentar um problema outro problema quando, lá pelas tantas, uma das enteadas aparece com hematomas pelo corpo. Eva trabalha em casa - ou tenta trabalhar a partir da mudança de rotina, produzindo um tipo de artesanato meio bizarro que envolve a confecção de bonecos que recriam imagens de crianças reais (o que poderia adicionar, de alguma forma, um componente a mais de suspense) -, e não demora para que ela se torne a principal suspeita de ter machucado a criança. E como se desgraça pouca é bobagem, tudo piorará quando as lesões aparecerem também no bebê, com ela sendo acusada de ser uma agressora negligente (com a coisa escalando para o linchamento virtual, quando fotos vazam em um grupo de whats).
E não vou negar que há uma construção de suspense muito eficiente na primeira metade, o que é ampliado por certa sensação de incerteza o tempo todo. Há, por exemplo, uma câmera permanente em cima do berço do bebê e ver Eva voltando e avançando a fita tentando encontrar alguma pista do que possa ter ocorrido gera um senso de tensão interessante (ainda que a coisa deixe de fazer qualquer sentido quando da reviravolta final). Na mesma medida, uma casa fechada com seus moveis e cortinas impecáveis sempre poderá ser paradoxalmente claustrofóbica em seu silêncio cotidiano, ainda mais quando ocupada em um dos cômodos por bonecas um tanto macabras. O que reforça esse caráter geral de estranheza, ainda que ele nunca evolua para uma alegoria mais ampla sobre os temas abordados, especialmente o da sobrecarga materna - e admito que se houvesse mais sutileza nesse sentido, talvez o resultado fosse mais satisfatório.
Porque o caso é que nem tudo faz muito sentido na reta final. Uma mãe acusada de violência doméstica e nunca um pai (por mais que o roteiro insista em nos direcionar para essa real possibilidade)? Uma campanha de cancelamento sem qualquer prova de nada, ainda mais de uma mãe? Uma criança agredida incapaz de verbalizar qualquer coisa sobre o ocorrido? Um ato violentíssimo que é confrontado com um outro ato ainda mais violento? Ao tentar chocar por chocar, a impressão que temos é a de uma forçadinha na barra na tentativa de emplacar uma história de colapso da vida doméstica, que soa pouco realista em seu universo. Não é necessário ser realista, mas como eu disse antes, se a coisa fosse menos frontal ou se mantivesse mais no campo da sugestão ou da metáfora na abordagem da depressão pós-parto ou do peso que paira nas costas das mães, talvez fosse mais fácil comprar a ideia. Dessa forma, por mais interessante que seja o debate, ele se perde em uma mera conveniência para unir o final com o começo. A Grazi se esforça pra entregar o melhor. Mas fica uma sensação de que dava pra ser melhor.
Talvez o maior disco de estreia do milênio? Ou será que a crítica tinha razão em afirmar, à época, que essa era apenas mais uma banda a se aproveitar do revivalismo dos anos 80 - com seu fácil apelo nostálgico -, pra entregar um punhado de canções óbvias? Eu, sinceramente, não sei como é pra vocês, mas o caso é que o Hot Fuss, o álbum inaugural do The Killers, segue mexendo comigo. Vai ver é só a lembrança juvenil meio falha de uma época em que éramos apenas estudantes universitários do curso de Jornalismo cheios de sonhos, indo pra alguma boate do interior para levar alguns foras de algumas meninas, enquanto cantarolávamos a plenos pulmões Mr. Brightside sem nem saber direito o significado da letra. Aliás, que só fica melhor depois que a gente entende - e quem nunca sofreu ao ver a pessoa que ama nos braços de outro, em um grau de literalidade comovente (Mas ela está tocando o peito dele agora / Ele tira o vestido dela agora / Deixe-me ir), que atire a primeira pedra. Mas o caso é que seguimos num caso de amor.
Sim, hoje em dia a citada canção que ficou não sei quantas dezenas de semanas entre as mais tocadas da Billboard talvez seja a mais batida do planeta Terra entre aquelas de empolgação pós-adolescente - e não existe absolutamente nenhuma bandinha de colégio que investe em uma sonoridade tardiamente alternativa, que já não tenha executado essa música em meio a vocais desafinados e boas intenções. Mas estamos falando de 2004. Do inverno de 2004, mais precisamente. E eu não quero fazer parecer que existe algum tipo de saudade melancólica daqueles dias, porque sinceramente não há. Eu tinha 23 anos, trabalhava na mesma Universidade em que estudava e, naqueles anos de esperança do primeiro Governo Lula, eu ainda não tinha certeza do que ocorreria dali pra frente. Ganhava pouco. Me ferrava inacreditavelmente - na seara amorosa era uma espécie de Mr. Brightside nada surpreendente, sem o charme, o carisma, a beleza, o fashionismo e o estilo de canto à David Bowie de Brandon Flowers. Mas o caso é que escutei e escutei o Hot Fuss - que chegou até mim meio que em tempo real, enviado pelo meu irmão Felipe (o Pi) que, na época, residia na Nova Zelândia.
Em 2004 o Genius (ou o Letras) ainda eram produtos meio incipientes na Internet e, entre um acesso e outro no Orkut, a gente descobria que Jenny Was a Friend of Mine, a música que abre o trabalho, poderia ser sobre um sujeito acusado do assassinato da própria namorada (ou de alguém que o eu lírico estivesse a fim). O que tornava tudo mais pungente - da abertura que emula uma saraivada de hélices de helicóptero à tensão da melodia sombria, soturna, de madrugada que avança enquanto as tragédias acontecem. Ocorre que a cada semana a gente se apaixonava pelo disco por um motivo diferente. Lá pelas tantas, Smile Like You Mean It poderia se tornar a preferida, com a sua melodia ondulante, refrão grudento e letra sobre amadurecer - e (tentar) estar preparado pra isso. No outro mês a paixão migrava, pairava em All These Things That I've Done, com seu coralzinho de Igreja que cai como uma luva em uma canção sobre conflitos internos religiosos. Ali adiante a gente gostava mais de Somebody Told Me ou de Andy You're a Star. Por motivos os mais variados.
Aliás, essa primeira metade segue impecável como uma das maiores primeiras metades daquela década. É tudo absurdamente glorioso - mas uma glória meio empoeirada, que parece emular uma Las Vegas suja, das noitadas dos cassinos ou dos postos de gasolina, das beiras de estrada empoeiradas e iluminadas de final de noite (ainda que o grupo pareça saído da Inglaterra, com sua mistura de sons que vai de Smiths à The Police, passando por New Order e pelo já citado Bowie). Os detratores gostam de dizer que não há coesão no trabalho, que ele atira pra tudo quanto é lado - e não há algo mais coeso do que unir sintetizadores cintilantes, guitarras mais altas que o normal e vocal sofrido. Flowers, naquele momento, tinha 22 anos. E parecia ser capaz de cantar sobre qualquer coisa. De luta contra as drogas e amores gays (On Top, que segue sendo a minha favorita, com seu sintetizadorzinho Erasure e refrão maior que a vida), passando por HIV (Believe Me Natalie), até chegar na insanidade de criar uma balada roqueira meio boba sobre a cena independente quase desgastada naquele começo de década (Glamourous Indie Rock and Roll). Retornar pra esse disco e pra todas essas músicas, me joga de volta à estrada, pro velho Mondeo do meu amigo Carlos Spohr em alguma noite gelada de 2004/2005, cantando Mr. Brightside em meio a uma série de incertezas. Um período em que não tenho exatamente saudade em si. Mas que fazer parte da minha formação. Do meu amadurecimento. Musical, inclusive. E o Killers está no meio disso. Feliz vinte anos.
Um pouco mais de safadeza e menos de sofrência. Talvez seja a maturidade e a confiança de chegar ao terceiro álbum - o primeiro por uma grande gravadora, a Universal Music -, mas a impressão que se tem do novo trabalho de Duda Beat, é a de uma artista disposta a investir em um lado mais vivo, mais dançante, mais sensual, como um contraponto a certa melancolia brega, que marcaria os hits do início da carreira (como era o caso de Bixinho, que integrava o ótimo Sinto Muito, de 2018). Em alguma medida, o título do projeto, Tara e Tal, já evidencia esse processo de transformação, de uma cantora que mergulha em sentimentos mais intensos, mais potentes. "A 'tara' é o desejo de me libertar, de me jogar, e o 'tal' é o que vem depois, seja isso bom ou ruim", explicou em entrevista à Veja São Paulo, sobre aquele que parece ser também o seu disco mais eletrônico, dançante.
Todas essas percepções são reforçadas quando a gente ouve canções como as divertidas e ousadas Preparada e Saudade de Você, que conseguem ser romântica e hedonista em igual medida, esta última culminando naquele que talvez seja um dos grandes refrãos da temporada (Saudade de você aqui agora / De noite vou te ver / Quero rebolar em cima de você / Bem melhor, bem melhor, bem melhor). Duda parece estar mais disposta a verbalizar seus desejos, sem a preocupação de ter de se provar tanto para os outros. Claro que isso não significa romper em definitivo com o passado e a mescla de estilos que unem ritmos nordestinos, com o miami bass, o rock dos anos 80 e o reggaeton é um exemplo das múltiplas possibilidades do registro. O resultado são canções de melodias ricas, complexas, que jogam o ouvinte para o inferninho da pista de dança hipnótica e da noite fervilhante, mas sem ignorar aquele fundinho de melancolia que pode aparecer quando a madrugada avança.
De: Bill e Turner Ross. Com Makai Garza, Nathaly Garcia, Micah Bunch, Nichole Dukes e Tony Abuerto. Aventura / Drama, EUA, 2023, 110 minutos.
"É a minha primeira vez experimentando coisas". É uma frase tão banal, tão corriqueira, aquela dita por um dos cinco jovens protagonistas que acompanhamos no alternativo Gasoline Rainbow, que ela quase passa batida. Mas ela é fundamental. E, em alguma medida, parece resumir parte daquilo que pretende o projeto dos irmãos Bill e Turner Ross. Afinal de contas, quantas "primeiras vezes" não teremos em nossa juventude? Quantos eventos bons ou ruins não se sucederão em cascata? Decisões erradas, incertezas, medos e a sensação de não pertencimento, se alternando com ocorrências que jogarão luz às nossas existências - seja ela assistir o antigo filme de Cheech e Chong ou cantarolar uma música dos Beatles? Todo mundo já foi um adolescente imaturo, que não sabia muito bem que rumo seguir na vida, ao passo em que gostaria de ter tudo ao mesmo tempo e agora e penso que essa pequena obra capta bem essa atmosfera. Ainda mais no interior dos Estados Unidos, com suas longas rodovias, cenários empoeirados, um estilo de vida de sonho que, ali adiante, pode se converter em pesadelo.
Ok, o leitor mais atento poderá dizer que esse tipo de obra - road movie de amadurecimento com jovens americanos da geração Z e fora do padrão, que tentam encontrar seu lugar no mundo -, já foi feita dezenas de vezes. Mas o que seria a arte senão a reciclagem de ideias a partir de novas percepções? Não sei se é o caráter semidocumental da produção -, que alterna narrações em off dos jovens, com os acontecimentos em si. Ou vai ver é o naturalismo de tudo - especialmente das sequências na van, com os diálogos rápidos, espertos, cheios de citações culturais e uma organização meio frenética de ideias. Talvez seja a fotografia dessaturada e granulada, que amplia a sensação de melancolia das tardes e noites que parecem não ter fim e do ideal de viver até as últimas consequências. Ou provavelmente seja apenas a mistura de tudo, que se une a camaradagem do quinteto, as reações de surpresa diante de eventos inesperados, a alegria das descobertas e até o temor da violência repentina.
Na trama simplíssima, cinco jovens estão concluindo o ensino médio e resolvem fazer uma última viagem até a costa Oeste americana, cruzando parte dos Estados Unidos, saindo do Oregon em direção ao Oceano Pacífico. A gente não sabe muito sobre esses adolescentes que não seja o fato de que eles estão muito pilhados com aquilo tudo - o que fica evidente no kit risadaria de qualquer bobajada dita, nas bebidas, na maconha, nas perspectivas. É uma saída da bolha que é simplesmente fundamental, especialmente para quem cresceu na província, com seus problemas mesquinhos e cotidianos, que não cruzam sequer os limites do município. E será depois de uma das noitadas mais épicas, que um dos meninos dirá a frase que abre essa resenha. Todas as novidades do mundo são recebidas com entusiasmo - seja um show de metal improvisado, as tentativas de aprender a andar de skate, uma viagem de barco meio que do nada e até a ideia de dormir ao ar livre, em praça pública.
Só que se engana quem pensa que esse tipo de narrativa descamba para o hedonismo precoce ou para a nostalgia simplista. Afinal de contas, o trabalho dos irmãos Ross nunca parece ter a intenção de fazer parecer com que aqueles adolescentes são mais maduros do que eles são. As inseguranças estão em toda a parte e nem sempre as coisas saem a contento, como no instante em que eles resolvem dar carona para um andarilho que, mais adiante, após uma noitada, lhes aplicará um golpe. A vida nessa idade é feita de altos e de baixos e quando uma desventura ocorre, sempre será a oportunidade de reconfigurar a rota. De ir a pé. Ou de trem. De rir, de gritar ou de chorar. De encontrar uma série de pessoas pelo caminho - algumas delas interessadas nelas, em suas conversas, no que elas têm a dizer. É nesses instantes mais íntimos que o projeto também ganha força: problemas familiares, racismo, sensação de abandono, aquecimento global, choques geracionais, tecnologias - tudo aparece de forma orgânica, fluída, em uma produção honesta, direta, envolvente, com roteiro improvisado e atores amadores. "Crescer é assustador", lembrará alguém em certa altura. Sim, a gente sabe disso desde sempre. E é por isso que nos identificamos.
De: Gastón Duprat e Mariano Cohn. Com Rafael Spregelburd e Daniel Aráoz. Comédia / Drama, Argentina, 2009, 110 minutos.
Em uma das melhores sequências de O Homem ao Lado (El Hombre de al Lado), Leonardo (Rafael Spregelburd) escuta música ao lado de um amigo, que recebeu em sua casa para um jantar. Na cena, ambos estão tediosamente dispostos no sofá, enquanto divagam longamente a respeito do caráter tribal, quase animalesco da melodia que sai das caixas de som - algo que se assemelha a um pós punk meio sombrio, que talvez só a Pitchfork fosse capaz de avaliar de forma positiva (o que já será o suficiente para que caia nas graças de pseudointelectuais afetados e ávidos pelas novidades musicais, especialmente do exterior). Um dos aspectos que chama a atenção nesse projeto de canção é a percussão - algo meio selvagem, uma batida de de tambor meio seca, caótica, que foge da lógica. Leonardo resolve baixar o volume no equipamento de som. E descobre que o tal batuque nada mais é do que o seu vizinho, da casa ao lado, martelando incessantemente na obra que, há dias, executa.
Sim, pode parecer apenas mais um instante turbulento entre dois vizinhos que não conseguem se entender de jeito nenhum. E que, de quebra, evidencia o quão diametralmente opostos eles são, em suas realidades divididas. Leonardo é o designer de produto bem sucedido, a ponto de residir na única casa da argentina projetada pelo arquiteto franco-suiço Le Corbusier. É nesse espaço doméstico confortável, que ele mantém uma rotina cômoda em meio a criação de novos produtos e no atendimento a estudantes interessados em saber mais sobre estes temas. Sua esposa, a terapeuta Ana (Eugenia Alonso) é a sua companheira em eventos sofisticados e em uma rotina de progressismo de sofá (condição reforçada por quadros com imagens de Che Guevara e por um discurso de inclusão lateralizado, que funciona bem entre os pares, normalmente aquela burguesia meio esnobe que, saída das universidades, possui o mínimo de consciência social). Claro, desde que não atrapalhe seu dia a dia, sua rotina, seus vinhos, a gastronomia chique e as pompas do dia a dia.
Só que essa rotina de sofisticação, de refinamento e de uma distância bastante segura dos problemas reais do mundo, será quebrada com a chegada de Victor (Daniel Aráoz), o vizinho - um sujeito meio rústico, talvez xucro, um "troglodita", como define Leonardo em certa altura. Victor está fazendo uma reforma na casa contígua e resolve simplesmente abrir uma janela na medianeira entre as casas, sob a alegação de poder receber um pouco do sol da manhã. Leonardo fica furioso com aquilo que considera uma espécie de invasão de sua privacidade e inicia uma verdadeira guerra particular na tentativa de demover Victor, que só quer um pouco de luz, dessa ideia. O vizinho lhe promete instalar uma cortina ali. Ninguém será invasivo. Só que ao rachar a sua parede, outras fraturas emergirão. Que evidenciarão que Leonardo - um sujeito afetado, presunçoso, individualista e incapaz de se comunicar - tem outros problemas. Que ele mantém encobertos sobre a fachada de normalidade.
Em alguma medida, um dos méritos dessa ótima comédia da dupla Gastón Duprat e Mariano Cohn - dos excelentes O Cidadão Ilustre (2016) e Minha Obra-Prima (2018) que, em alguma medida, replicam esse distanciamento entre a elite intelectual e o provincianismo cotidiano, bem como a incapacidade de diálogo na atualidade -, é o de não tomar partido nesse embate, por mais mesquinho (ou tolo) que este ou aquele lado sejam. Para Leonardo, o golpe simbólico em um prédio tão arquitetonicamente importante talvez seja tão ou mais "agressivo" do que o suposto caráter invasivo de uma janela (por mais que ela seja o portal para toda a desgraça que se iniciará dali pra frente). O que se soma ainda a masculinidade claramente fragilizada de um homem incapaz de lidar com alguém tão mundano, tão autêntico e tão vigoroso como Víctor, com sua voz de trovão, porte assustador e uma leveza paradoxal em termos de sociabilização. Em alguma medida, essa é uma obra simples que respinga na atualidade, afinal, nunca pareceu tão difícil se relacionar com qualquer pessoa que fuja do padrão a que estamos acostumados. Estamos intolerantes e individualistas, mas também invasivos, espaçosos. É a fratura social em formato de metáfora: uma rachadura na parede que resulta no caos inesperado. Vale demais!
De: Georgia Oakley. Com Rosy McEwen, Kerrie Hayes e Lucy Halliday. Drama, Reino Unido, 2022, 97 minutos.
Vamos combinar que se tem uma coisa que a extrema direita é especialista é em vigiar a sexualidade alheia. Resultado de uma provável série de frustrações nesse campo, os reacionários são hábeis em colocar uma suposta decadência social e moral nas costas de gays, lésbicas, trans e outros grupos minoritários, como se fossem estes os responsáveis diretos pela depravação, pelo desvio de padrão e, pasmem, até por uma certa ditadura que visa a normalizar comportamentos que, para eles, são disfuncionais. Você já viu essa pessoa por aí. Na família, no trabalho, na vizinhança, sempre com algum comentário ou piadinha de mau gosto na ponta da língua, o que evidencia a sua completa incapacidade de encarar a sociedade como um organismo em transformação, empenhado em naturalizar toda e qualquer forma de amor. E basta ver o apelo que figuras como Trump, Bolsonaro e, agora, Milei, tem como essa parcela retrógrada e bolorenta da sociedade, pra entendermos que o pânico moral segue em alta como moeda de troca.
Sim, e se hoje em dia o campo progressista ainda tem que gastar longas horas em discussões nas redes sociais afirmando que não vai haver kit gay, que a mamadeira de piroca é só um delírio de zap e que debater sexualidade na juventude não converte educadores em pervertidos pedófilos - aliás, muito pelo contrário -, em décadas passadas a situação era ainda pior. E no ótimo filme Blue Jean, premiada estreia da diretora Georgia Oakley que está disponível na Mubi, o contexto é o final dos anos 80, na Inglaterra ultraconservadora de Margareth Thatcher. Com uma ampla campanha que envolvia peças publicitárias e políticas de supressão de direitos - como a tal Cláusula 28, que visava a reduzir o campo de ação de coletivos e de ativistas das causas LGBTQIA+ -, o que se viu foi um encolhimento do debate. E, como não poderia deixar de ser, o aumento do ódio, da intolerância e da perseguição. É nesse cenário complexo e de controvérsias que tenta sobreviver a professora de educação física Jean (Rosy McEwen).
Ainda que frequente uma boate gay, tenha uma namorada, Viv (a ótima Kerrie Hayes), e esteja habituada aos ambientes mais plurais, Jean tem dificuldade em expressar sua sexualidade mais livremente. Em, efetivamente, sair do armário. É uma situação complexa, inegavelmente, já que a protagonista prefere manter uma vida mais reservada até mesmo para preservar o seu emprego. A sociedade, com todo o seu preconceito, a gente sabe, pode reagir mal ao saber da simples existência de uma professora lésbica atuando em um educandário repleto de filhos das "famílias de bem" inglesas. Que sob o jugo de Thatcher se sentem autorizadas a combater a indecência, a "ditadura gayzista" e a exercer livremente sua homofobia. Para Viv, tudo isso é uma grande decepção. Sensação ampliada pelo comportamento meio alienante de Jean, que ocupa suas noites com programas de TV antiquados em que jovens héteros tentam encontrar um relacionamento. "Nem tudo precisa ser político", argumenta Jean à namorada. "Tudo é político", retruca Viv.
E uma atração televisiva que replica tanto machismo e misoginia certamente é parte da campanha que visa a disseminar o pânico moral - e de ampliar a ideia da homossexualidade (e também do feminismo), como algo em desacordo ao padrão. Para Jean, a coisa muda de figura quando entra em sua vida a jovem Lois (Lucy Halliday), que sofre bullying na escola por preferir o futebol com os meninos ao netball (uma variação do basquete) com as meninas. Em certo dia, Jean encontrará Lois na mesma boate gay que ela frequenta, o que as aproximará, inevitavelmente. Só que o problema é o estilo de luta de Jean: silenciosa, discreta, evitando chamar a atenção em um contexto de opressão. É claro que as coisas, mais adiante, irão descambar no educandário. Verdades virão à tona. E decisões mais complexas precisarão ser tomadas. Ao cabo, esse é um filme em que nada é tão simples e o tempo todo somos convidados a refletir sobre decisões tomadas - especialmente pela protagonista. É uma obra que ecoa nos dias de hoje. E que é bela como um sorriso de alívio - especialmente quando a consciência está tranquila.
Quem ouve o estilo soturno, quase fantasmagórico que emana das canções do primeiro disco solo - sim, acredite - de Beth Gibbons, Lives Outgrown, dificilmente encontrará algum rastro do trip hop sofisticado, que marcou a sua antiga banda, o Portishead. Sim, porque diferentemente do que ocorria nas músicas do grupo - muitas vezes arranjadas em instrumentações que misturavam o onírico com o lúdico -, aqui há uma severidade no todo. Uma beleza rústica, de trovoada, talvez meio bucólica, sensação reforçada pelos tambores potentes, pelas cordas grandiosas e pelo canto montanhoso, comovente. Sim, Gibbons já não é mais uma jovem que canta sobre amores de cafofo e outros devaneios sentimentais, como no clássico Glory Box, que funcionava tanto como trilha sonora de comercial de TV ou como opção aleatória do programa Insomnia, da MTV, na segunda metade da década de 90. A artista agora está ás portas dos 60 anos. E com outras preocupações.
E talvez seja justamente essa capacidade de autoexame a respeito da própria trajetória, da maturidade e das experiências de vida que faça com que ela se sinta tão à vontade para experimentar, para fugir do óbvio. Porque vamos combinar que talvez fosse bastante cômodo entregar para os fãs do Portishead uma boa dose de músicas de eletrônica minimalista e de reflexões amplas. Mas aqui há um olhar para o íntimo. Para aquilo que está lá dentro - mas que salta para fora com naturalidade, de forma fluída. Um bom exemplo de tudo que digo aqui, está no single Love Changes, que propõe um encontro entre Pink Floyd e REM, em uma melodia elaborada, que é completada pela letra sobre envelhecimento (E tudo o que eu quero que você me queira / Do jeito que você costumava fazer). O expediente se repete nas imperdíveis Floating on a Moment, Reching Out e Oceans, esta última um imperdível libelo sobre a menopausa. Ao cabo esse é um disco que cresce a cada nova audição e que dificilmente é absorvido sem uma maior atenção.
De: Paul Schrader. Com Joel Edgerton, Quintessa Swindel e Sigourney Weaver. Suspense / Drama, EUA, 2022, 109 minutos.
[ATENÇÃO: TEXTO COM ALGUNS SPOILERS]
"Nós somos jardineiros. Arrancamos as ervas daninhas." Vamos combinar que a carreira do diretor Paul Schrader - dos ótimos No Coração da Escuridão (2019) e O Contador de Cartas (2021) - pode até ser meio irregular, com altos e baixos. Mas, ainda assim, não dá pra negar a sua habilidade recente em construir personagens complexos, cheios de camadas e demasiadamente humanos. Sim, porque pro espectador é sempre muito cômodo ter os lados bem definidos: aqui está o mocinho, aquele é o bandido. Mas a beleza muitas vezes pode estar na ambiguidade. Na incerteza. Ao cabo, no centro de Jardim dos Desejos (Master Gardener) reside uma pergunta: um nazista pode se redimir? Ser reintegrado à sociedade? Ser colocado novamente no convívio das pessoas - inclusive de minorias, que ele cresceu abominando? Ou deve mofar para sempre na cadeia, por conta de seus crimes de ódio? A resposta talvez pareça óbvia - e talvez nas mãos de um diretor menos habilidoso, tudo saísse apenas maniqueísta.
Pensemos, por exemplo, no clássico moderno A Outra História Americana (1998), que nos apresentava a um dos supremacistas brancos mais repulsivos do cinema atual - personagem interpretado por Edward Norton em um estado de fúria e de violência latentes, resultado de uma educação reacionária, que o ensinou a, desde novo, oprimir qualquer minoria (pretos, gays, pobres, imigrantes). Outros medos abstratos - como o comunismo (sempre ele) -, o convertem em um sádico brutalizado. Um patriota ocasional. Temente a Deus. Profundamente estúpido em sua masculinidade mínima que só é capaz de resolver as coisas na força bruta. E que se arrepende de tudo quando aprende a lição da pior forma. Digamos que a situação de Narvel Roth (Joel Edgerton), o protagonista do filme de Schrader é semelhante: aprendeu a odiar, a ser intolerante ainda na juventude. Se tornando o abominável adepto do white power: um criminoso que supostamente está trabalhando pra limpar a sociedade de suas "ervas daninhas".
Até o momento em que é apartado de sua família, sendo enviado para a propriedade da rica senhora Havervhill (Sigourney Weaver), em um conluio feito com a conivência das forças de segurança locais. Digamos que a ideia é fazer com que ele desapareça do mapa. E inicie uma nova vida. Sem passado. Sem ninguém. Discreto. Como horticultor, cuidando do vistoso jardim da proprietária. Um espaço tão bonito, tão idílico, que não apenas recebe visitantes, mas que também promove um leilão anual para caridade. Evento onde ricaços com calças caqui se engalfinham pelos exemplares mais bonitos de hemerocallis, nandinas, orquídeas e peônias. O próximo leilão está em vias de acontecer e a senhora Haverhill, que também é uma amante ocasional de Narvel, entrega a ele uma missão: fazer com que a bisneta de sua irmã, uma jovem de vinte e poucos anos - seu nome é Maya (Quintessa Swindel) - se torne sua pupila. Que possa aprender a arte da botânica. Uma jovem. Negra. De periferia. Envolvida com o tráfico. E, bom, nesse cenário de imperfeições, temos um filme.
Sem pressa, Schrader entrega uma experiência meticulosa, que se aproveita da beleza e do comportamento cíclico das plantas - suas sementes que germinam e adormecem ao fim da temporada - como uma alegoria até meio óbvia da conduta humana, seus procedimentos, idiossincrasias, hábitos, mudanças, reconfigurações. Norvel é inegavelmente dedicado. Em uma cena comovente convida seus alunos a cheirarem a terra. Beijarem. Fazendo uma conexão direta com a natureza, a vida, seus elementos. "Você não pode planilhar a natureza, ela sempre vai te surpreender", escreve nas páginas de seu diário, atualizado cotidianamente. Muitas vezes o protagonista parece estar falando dele mesmo: de sua conversão, da saída de uma agricultura mais envenenada para outra mais solidamente calcada no respeito ao meio ambiente, na sustentabilidade. Um nazista pode se reformar? Há espaço para isso em tempos de avanço da extrema direita e de grupos que não parecem ter nenhuma vergonha em professar um comportamento reacionário? Ao deixar o espectador em dúvida até o final, o diretor entrega uma obra única, complexa, profunda e repleta de camadas. Como um terreno fértil preparado para o plantio.
De: Alex Garland. Com Cailee Spaeny, Kirsten Dunst, Wagner Moura, Jesse Plemons e Stephen Henderson. Drama / Ação, EUA, 2024, 109 minutos.
Talvez esse tenha sido um dos maiores clickbaits cinematográficos da história recente. Bom, admito não saber se foi proposital ou não o fato de nomear a obra de Guerra Civil (Civil War) pra chamar a atenção, mas em um contexto de avanço da extrema direita, de xenofobia, de crise climática, de conflitos armados e até de pandemia, parecia bastante atrativo imaginar uma produção que agrupasse esses temas - e, em alguma medida, nos fizesse refletir como sociedade. Mas o caso é que o filme mais recente de Alex Garland - dos ótimos Ex-Machina: Instinto Artificial (2014) e Men: Faces do Medo (2022) - consegue a proeza de ser um filme sobre política, mas... sem política. Ao cabo é uma produção meio do centrão que, ao investir em sequências de violência gratuita em um road movie bem americano, parece apenas querer dizer pros espectadores que "olha só, galera, a guerra não é uma coisa muito legal e não tem um lado bom nessa história toda".
Só que o problema em ser tão raso é o risco de enfraquecer o ponto que, vá lá, talvez pudesse ser justamente uma das fortalezas da narrativa. Ok, o caos social está instalado, mas, pra qual o caminho trilhar? E, vamos combinar que quando assistimos a tantas cenas violentas no nosso cotidiano, afinal de contas hoje em dia todo e qualquer sujeito possui uma câmera fotográfica em mãos - elas recebem o nome de smartphones -, essas sequências apelativas e gráficas apenas são apenas banais. Ao cabo, essa parece ser uma experiência importante do ponto de vista da temática, mas meio que deslocada do seu tempo. Pra começar, essa categoria dos fotojornalistas não é que não exista mais em 2024 - mas eu garanto a vocês que a produção de conteúdo nos dias atuais (ou mais ainda em um futuro próximo) é bem diferente do que seria, sei lá, nos anos 70. E talvez esse filme fizesse sentido na Guerra da Secessão, se é que já houvesse daguerreótipos em circulação à época. E talvez assim não me irritasse tanto certo romantismo com que a jovem fotógrafa Jessie (Cailee Spaeny) trata a sua arte. Que talvez ali adiante uma AI faça com mais esmero. Sem nem estar no front pra isso.
Aliás, os fotógrafos em si são um caso a parte, já que são tão estereotipados que beiram a irritação - e acho que nem se o Michael Bay fizesse um filme sobre o tema, de debruçaria tanto em lugares-comuns. Além de Jessie, a jovem deslumbrada de 23 anos que tem na experiente Lee (Kirsten Dunst) a sua heroína (ainda que conheça pouco sobre ela para além da Wikipédia), há um veterano do New York Times que, supostamente, representa um tipo de jornalismo que está sendo suplantado, mas que se for preciso salvará a todos no último momento - papel do experiente Stephen Henderson -, e, por fim, Joel (Wagner Moura), o homem de meia idade e de masculinidade meio frágil, que sente tesão por tiroteios e que, sei lá, talvez funcionasse melhor em um mesacast com machos-alfa abordando as delícias do armamentismo. Lugar-comum fortalecido pelo fato de ele choramingar como uma criança no momento que se depara com a crueza do conflito (o que, de forma paradoxal, adiciona alguma complexidade a sua composição).
Mas o caso é que em linhas gerais não há complexidade alguma. A gente não sabe nada sobre essas pessoas, ou seus passados. Não há motivações mais elaboradas, ou uma construção que torne todo o contexto por trás um pouco mais claro. Ok, há um grupo de insurgentes separatistas que pretende ocupar a Casa Branca e assassinar o presidente em exercício - um ditador extremista que está em seu terceiro mandato. A ideia dos fotojornalistas é chegar à Washington DC, antes dos rebeldes para tentar obter uma entrevista do mandatário. O que envolverá uma viagem de mais de 1.300 quilômetros por um País devastado, com aqueles cenários típicos de produção pós-apocalípitica, com rodovias preenchidas por carros destruídos, cidades fantasmas e cidadãos nem tão "de bem" assim, que empunham armas em posto de gasolina, como se isso fosse apenas a rotina. E, bom, nos Estados Unidos há a chance de isso ser a rotina. "Ãin, mas o personagem do Jesse Plemons deixa claro qual era o ponto da produção". Sim, posso até concordar. Mas ao propor uma obra apenas vingativa e com derramamento de sangue, Garland parece entreter apenas aqueles que ficam de pau duro com filmes de ação esvaziados. Eu achei pouco pra tanto barulho. Caí no bait.
De: Luca Guadagnino. Com Zendaya, Josh O'Connor e Mike Faist. Drama / Romance, EUA, 2024, 131 minutos.
Rivais (Challengers) é um filme moderno em absolutamente todos os seus elementos. Pra começar tem um triângulo amoroso em que absolutamente "todos os lados se tocam" - como definiu o diretor Luca Guadagnino, em entrevistas de divulgação. Depois tem um trio central bastante sexy, formado pelos astros Zendaya, Mike Faist e Josh O'Connor que, de quebra, trafegam nos bastidores de um dos esportes mais excitantes do planeta - sim, o tênis. Há ainda a trilha sonora hipnótica que parece nascida para aparecer em algum corte do Tik Tok - cortesia da dupla Trent Reznor e Atticus Ross -, que se soma ao estilo de filmagem caleidoscópico, de idas e vindas, com raquetadas e bolas e plateias e seus olhares se intercalando de forma inacreditavelmente fluída. E tem ainda o fato de que é uma puta história de amor bem construída, com personagens complexos e algum tipo de aceno às paixões ambiciosas, pautadas pelo sucesso financeiro (e de coachs) e que parecem bem típicas da pós-modernidade.
E, bom, talvez o tiozão conservador da família de bem não seja o público-alvo do projeto e tá tudo bem eles acharem estranho o fato de os tenistas Art Donaldson (Faist) e Patrick Zweig (O'Connor) não disputarem, simplesmente, o coração de Tashi Duncan (Zendaya), como talvez ocorresse em alguma produção de meio século atrás. O mundo evoluiu, é muito mais complexo e é justamente essa abertura de possibilidades que torna a experiência com Rivais tão envolvente. A gente simplesmente não consegue desviar a atenção a cada close no olhar semicerrado de Zendaya, entre a incerteza e a confiança de supostamente estar no controle de todas as situações. Ao mesmo em que as diversas idas e vindas no roteiro tornam a narrativa surpreendente e vibrante ao entregar ao espectador pequenas pílulas que ajudam a entender certas atitudes de todos ali, bem como o que os movimenta. Vinganças pessoais? Traições? Amores não correspondidos? Segredos prestes a serem revelados?
É tudo tão estimulante assim como é uma partida de tênis de quatro horas de duração - e que pode ser decidida no último ponto, em uma jogada ousada e arriscada, já no tie break. Aliás, a alegoria de uma partida em disputa que servirá como pano de fundo decisivo para as situações do roteiro chega a ser quase óbvia, ainda que seja aplicada de forma inteligente e nunca cansativa. O filme começa, aliás, justamente em jogo entre Donaldson e Zweig que, entre suores vertidos e golpes e contragolpes parecem estar fazendo um esforço homérico de superação. Tudo observado por uma Tashi tão ansiosa quanto segura posicionada exatamente no centro da quadra, junto à rede. É a deixa inteligente de Guadagnino para que percebamos que naquele triângulo as pontas, em alguma medida, se equilibram. Ainda que 13 anos antes, quando a trama retorna no tempo, para um torneio juvenil de 2006, sejamos incapazes de prever os eventos ocorridos. E quais os ressentimentos que emergem entre todos ali.
Nesse sentido trata-se de uma obra sensual, mente aberta e direta, que não faz muita firula e nem adiciona complexidade excessiva em seus argumentos. Aqui temos o drama romântico atualíssimo por excelência, com atrações mútuas e acontecimentos imprevistos que mudam o contexto a todo momento. Tashi, por exemplo, sai de uma das mais promissoras tenistas de sua geração à aposentadoria precoce após uma grava lesão no joelho. O que a faz se aproximar do obstinado Donaldson, que deseja ter uma carreira no esporte, diferentemente de Zweig, um sujeito mais descompromissado, ainda que com grande potencial (o que o faz perder o rumo quase à ponto de se humilhar, na tentativa de retornar ao circuito). Os raros encontros entre os três - ou mesmo entre dois -, farão com que saltem faíscas em meio a brincadeiras supostamente singelas (como na cena dos churros), ciúmes obsessivos e sorrisos enigmáticos. Cobiças, desejos, estabilidade - financeira e sexual - está tudo lá. Embalado, de forma paradoxal, entre o sofisticado e o kitsch. Irresistível.