quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Picanha em Série - Anne With An E

A gente sabe que a Netflix produz mais ou menos umas 50 séries por SEGUNDO e que nem sempre é fácil escolher aquilo que vamos assistir na plataforma de streaming. Mas se tem uma série que tem sido unanimidade e que tem ganho adeptos a cada dia, está é a graciosa Anne With An E. Baseada no livro Anne de Green Gables, da escritora canadense L. M. Montgomery, conta a história de uma jovem órfã que é adotada por engano por um casal de irmãos, que na verdade preferia um rapaz que lhes pudesse ser útil nos afazeres da fazenda em que ambos residem. Só que Anne não é uma garota qualquer: tem personalidade forte e uma esplêndida eloquência, que ela transforma em frases absolutamente inspiradoras e que mais parecem saídas de algum livro romântico de algum escritor erudito. O que faz com que os irmãos, a despeito da desconfiança inicial, se encantem com a garota. E fiquem com ela.

A propósito, o entusiasmo que Anne tem pela vida é algo absolutamente apaixonante. Quase comovente. Não são poucas as sequências em que ela se vê contemplando a paisagem idílica - sem deixar de professar o seu encanto, claro - ou recordando alguma passagem da literatura que, para ela, seja fascinante, vívida, plena de sentido. Exímia oradora, a jovem está o tempo todo surpreendendo o espectador com frases deslumbrantes, como, "amigos verdadeiros sempre estão junto em espírito", "a vida vale a pena de ser vivida desde que haja risada nela" ou ainda "não é maravilhoso que cada dia possa ser uma nova aventura?". Anne fala muito. E, invariavelmente são frases cheias de significados, complexas, ricas. Assistir a Anne With An E é, no fim das contas, redescobrir o prazer pelas coisas simples da vida. (e ter uma pequena aula de literatura)



O que não quer dizer que não haja problemas. As dúvidas sobre a permanência em Green Gables, a maturidade que se aproxima (bem como as paixões), as amizades que podem ser interrompidas por algum comportamento inadequado... mesmo os assuntos mais prosaicos são tratados de forma tão solene quanto divertida (e quando você perceber já estará rindo junto com as garotas em digressões sobre temas como menstruação). E, ainda assim, por mais que o formato (e até os lindos cenários e fotografia) remeta a algum tipo de fábula que não sabemos qual, lá estarão temas relevantes como o papel da mulher na sociedade, o preconceito com gays, órfãos, negros e outras minorias, as diferenças sociais e a importância das artes e da cultura no caráter e na formação do sujeito. No fim das contas é uma série tão bonita que as palavras - tão caras à própria Anne - jamais parecem ser suficientes.

E há ainda os apaixonantes atores que interpretam cada uma das figuras que vemos em cena. A começar pela atriz Amybeth McNullty, que interpreta a protagonista e que, sabe-se lá saída de onde (com seus cabelos ruivos, sardas e olhar decidido) não poderia ser mais perfeita para o papel. Já Geraldine James e R. H. Thomson são os irmãos com personalidades diametralmente opostas mas que, ali adiante, dispensarão o mesmo zelo, pela carismática e romântica protagonista. E há um grande grupo de jovens que interpretam os amigos e colegas e que, dotados de personalidades complexas, apenas enriquecem a trama. A gente não costuma pedir para que vocês assistam as séries que indicamos aqui no Picanha em Série. Mas em um mundo tão cheio de ódio, de preconceito e de intolerância, façam um favor a si mesmos: assistam Anne With An E com o coração leve e deixem aflorar aquilo que de melhor há dentro de vocês. Temos a certeza de que vocês não se arrependerão.

terça-feira, 25 de setembro de 2018

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - O Homem Sem Passado (Finlândia)

De: Aki Kaurismäki. Com Markku Peltola, Kati Outinen, Sakari Kuosmanen e Esko Nikkari. Comédia / Drama, Finlândia / França / Alemanha, 2002, 97 minutos.

Todos nós já vimos reportagens sobre o fato de a Finlândia ser um dos melhores países do mundo para se viver, afinal, conta com um Estado forte, que garante educação (gratuita) para a população, além de acesso a saúde e a condições igualitárias, que proporcionam conforto para todos. Mas o cinema do diretor Aki Kaurismäki costuma voltar o seu olhar para uma outra Finlândia que, sim, também existe. No caso, sai de cena o País reconhecido pela qualidade de vida, para surgir na tela a população que luta para sobreviver, que depende (ainda mais) de políticas públicas, que procura emprego e que necessita de amparo de programas sociais ou mesmo do apoio comunitário. E é exatamente esse o caso do ótimo O Homem Sem Passado (Mies Vailla Menneisyyttä) - obra que foi indicada ao Oscar na categoria Filme em Língua Estrangeira, além de ter vencido vários prêmios em festivais mundo afora.

Na verdade trata-se de uma curiosa comédia, a despeito da tragédia que abre a película, quando acompanhamos um homem (Markku Peltola) ser brutalmente espancado por um bando, até perder a memória, no momento em que chegava de trem à capital Helsinque. Além de sumir com a sua carteira, os agressores levam o seu dinheiro e outros objetos de valor. Sim, há violência (até) na Finlândia. Após alguns dias no hospital, o homem, que todos achavam que fosse morrer, foge e é encontrado por uma família pobre de ribeirinhos, ao lado de um rio. Resgatado, ele vai aos poucos restabelecendo a saúde - ainda que não se lembre de nada relativo ao seu passado. Com a ajuda da mesma família, vai morar em um precário container alugado. A comida, inicialmente, vem de projetos sociais. Mais tarde, com algum custo, ele arrumará emprego e reiniciará a sua vida. Ainda que o mistério sobre a sua identidade permaneça.



É um filme sobre recomeços que, metaforicamente, fala da nossa capacidade de se reinventar, em meio a contextos adversos. Fosse uma obra hollywoodiana e talvez acompanhássemos um sujeito em busca de vingança de seus algozes. Mas não. De forma contemplativa e com um indelével ceticismo, o homem procura se reencontrar na sociedade. Assim, se apaixona desajeitadamente por uma assistente social, considera uma grande conquista a "aquisição" de um velho tocador de discos e até se arrisca a plantar batatas, com vistas a ter o que comer futuramente. O humor quase involuntário vem dos inacreditáveis diálogos e das sequências levemente nonsense, que são cheias de simbolismos, de trocadilhos, de pequenas surpresas, que dão conta de preencher as lacunas e nos fazer rir. A cena em que o senhorio vem cobrar o aluguel atrasado, pretendendo ameaçar o devedor com um cachorro claramente dócil, de nome Hannibal, é um desses exemplos. Um tipo de graça mais sutil, visual, que era muito presente nas obras do francês Jacques Tati, por exemplo.

O próprio protagonista, muitas vezes, nos coloca em dúvida sobre sua real condição de saúde, já que brinca com a situação mais de uma vez - como quando ele diz ter ido a lua e voltado, sem ter encontrado nada de mais ou finge confundir o nome de objetos. São desses pequenos momentos, ora satíricos, ora bizarros, que o diretor também constrói uma verdadeira fábula sobre a compaixão. Sobre pessoas se ajudando para fazer da sociedade um lugar melhor para se viver. Sentimento que é complementado pelas interpretações absolutamente naturalistas, pela fotografia dessaturada - os objetos parecem saltar pra fora da tela -, pela câmera grudada em cada personagem e até mesmo pela trilha sonora, que fornece um contraponto ilógico e caótico. Uma obra que, no fim das contas, joga algum "calor" para uma região tão tradicionalmente fria.

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Cinema - Uma Questão Pessoal (Una Questione Privata)

De Paolo e Vittorio Taviani. Com Luca Marinelli, Valentina Bellè e Lorenzo Richelmy. Guerra / Drama, Itália, 2017, 85 minutos.

Uma Questão Pessoal (Una Questione Privata) ficará para sempre na memória dos cinéfilos como a obra derradeira dos Irmãos Taviani, já que Vittorio faleceu no último mês de abril, cabendo a Paolo a conclusão da película. E, ainda que o filme não seja nenhum Pai Patrão (1977) - clássico que rendeu à dupla a Palma de Ouro no Festival de Cannes -, pode-se dizer que trata-se de uma obra de grande sensibilidade estética e que discute, como é de praxe na filmografia dos Taviani, temas relevantes em meio a algum cenário de opressão. Aqui, a narrativa nos joga de volta para a Itália da Segunda Guerra Mundial para contar a história de Milton (Luca Marinelli), jovem membro da Resistência Italiana, que luta clandestinamente contra o avanço do fascismo.

Só que ao parar na casa da antiga namorada, de nome Fulvia (Valentina Bellè), Milton descobre não apenas que ela se mudou para longe para fugir dos horrores da guerra, mas que ela pode também ter se envolvido com o seu melhor amigo, Giorgio (Lorenzo Richelmy). Decidido inicialmente a ir atrás de Fulvia, Milton muda de ideia no meio caminho ao saber que Giorgio foi capturado pelas tropas inimigas após uma emboscada. Sua intenção agora é localizar o paradeiro do amigo. Para isso ele cruza literalmente de um lado para atrás de grupos de partisans - que lutam, paradoxalmente, contra a Guerra -, que possam estar de posse de algum fascista, que lhe servirá de "moeda de troca". E é aí que entra a tal "questão pessoal" do título original, já que não sabemos se Milton deseja apenas reencontrar o melhor amigo ou se ele quer mesmo é tirar a história a limpo.



Nesse sentido o filme guarda uma grande beleza, já que a guerra fica em segundo plano, em prol da resolução de questões particulares. Para cada tentativa frustrada de Milton no front de batalha, há um (elegante) flashback que volta no tempo para mostrar como era a relação do trio, antes do começo de tudo. Como um contraponto as paisagens frias da guerra - há sempre um incômodo nevoeiro no cenário - há as cores quentes e primaveris do passado, quando o trio ouvia música, fazia aulas de dança e conversava em inglês. Fulvia parecia realmente dividida entre alguém mais sensível e extrovertido e alguém mais carismático e introspectivo e, é preciso que se diga, a obra utiliza a canção Over The Rainbow, de Judy Garland (trilha do filme O Mágico de Oz), de forma eficiente e absolutamente fluída.

A propósito do som, a edição e a mixagem também merecem destaque e a utilização de rimas sonoras - como aquela que envolve um soldado que simula tocar bateria fazendo os barulhos da percussão com a boca para, em seguida, ser fuzilado, sem que saibamos onde terminou um som e começou outro - conferem um toque especial a narrativa. Aliás, sobre essa cena, ela também tem importância por evidenciar os absurdos da guerra, já que os jovens que lutam uns contra os outros parecem não ter o real entendimento do que está por trás da brutalidade da batalha (e uma cena em um paredão de fuzilamento, no terço final, parece consolidar essa ideia). Condição reforçada por uma câmera que não hesita em realizar closes - e assim reforçar as angústias. É evidente que o legado dos Irmãos Taviani é maior do que a sua obra final. Mas como filme derradeiro, Uma Questão Pessoal é mais um exemplo do cinema levemente provocador, surpreendentemente nonsense e totalmente relevante da dupla.

Nota: 7,5

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Lançamento de Videoclipe - Xenia França (Pra Que Me Chamas?)

A cantora Xenia França disponibilizou, nesta semana, o primeiro clipe de divulgação para o seu homônimo disco de estreia - que foi o quarto colocado na lista de melhores do ano passado em relação divulgada aqui no Picanha. A canção escolhida como single foi a já conhecida Pra Que Me Chamas?, que teve o vídeo dirigido por Fred Ouro Preto. Bastante representativo do estilo da artista - que mistura em seus ritmos a percussão tribal, a eletrônica minimalista e os arranjos de cordas bem pontados - o clipe se aproveita do vocal potente e limpo de Xenia para discutir igualdade de gênero e racismo, em um trabalho recheado de referências regionalistas e de elementos da cultura afro. É o R&B classudo da artista encontrando a brasilidade em um vídeo simplesmente imperdível, uma verdadeira obra de arte. Vale clicar e conferir!

Lado B Classe A - Mercury Rev (Desester's Songs)

Em uma análise mais "fria" do ponto de vista musical, o ano de 1998 pode ser considerado um tanto quanto curioso. Enquanto Celine Dion e Mariah Carey exauriam o mundo com as chatíssimas My Heart Will Go On e My All - que não paravam de tocar nas rádios - coletivos bacanas como o Mercury Rev se ocupavam de lançar as suas obras-primas. A banda capitaneada pelo faz tudo Jonathan Donahue andava meio sumida quando lançou o clássico Deserter's Songs. Até aquele momento eram apenas três discretos discos - Yerself Is Steam (1991), Boces (1993) e See You On the Other Side (1995) - em que se sobressaia uma espécie de rock alternativo levemente rural, que emulava Neil Young em uma viagem de ácido, e que pouco empolgava (ainda que canções como Chasing A Bee sejam até hoje lembradas com carinho pela maioria dos fãs). Aliás, havia uma certa depressão que quase fez a banda terminar, após uma turnê em 1995.

Tudo mudou com Deserter's, até hoje tido como um dos melhores álbuns daquele final de milênio - que via as boy bands ocuparem as paradas e o nu metal surgir como uma novidade plastificada. O clima onírico, de um certo misticismo, aliado ao o instrumental expansivo que promovia um cruzamento absolutamente saboroso de psicodelia com grandiloquência épica, transformava a audição do registro em um mergulho transcendental, sinistro, divertidamente macabro, como se estivéssemos em meio a algum filme do Tim Burton com trilha sonora do Beach Boys (como definiu na época a Revista Q). A sensação era de devaneio palpável - condição reforçada pela voz enfumaçada e de soprano de Donahue - como se estivéssemos pisando em terreno desconhecido, lúgubre, mas que, aqui e ali, em cada curva imprevista, em cada efeito ou camada surpreendente, desse espaço ao lúdico ou jocoso. O vocalista havia escutado antigos discos infantis. Coletâneas de contos de fadas que, agora, recebiam a sua versão particular.



A abertura com a pastosa Holes, é daquelas capaz de nos fazer imergir na madrugada de surpresas por aquilo que não conhecemos. Há uma riqueza orquestral por trás - que vai para além da guitarra, do baixo e da bateria - e que alcança em instrumentos como clavinete, flauta, órgão, trombone, piano e teclado a complexidade necessária para transformar cada instante em um episódio dessa espécie de conto de fadas obscuro que é o álbum. Aliás, em meio a tantos convidados especiais - no total são quase quinze participantes creditados no registro - há até um tocador de serrote com arco (Joel Eckhouse), no meio. Holes, dug by little moles / Angry jealous spies / Got telephones for eyes / Come t' you as / Friends (Buracos, cavados por pequenas toupeiras / Espiões raivosos e ciumentos / Que tem telefones como olhos / Que vem até você como / Amigos), canta Donahue na viagem literal que recém começa.

O disco segue o seu desfile com outras grandes canções, como Tonite It Shows, Hudson Line e Goddes On A Hiway, cada uma delas levando o percurso para algum lado diferente, como se fosse possível o cérebro fazer saltos deste para aquele ponto em um registro heterogêneo mas ao mesmo tempo bagunçado, capaz de ir no limite da música alternativa e do comercial. Se Endlessly desacelera um tanto com um clima levemente insolente, obras primas de arranjos saborosamente enérgicos e de refrões grudentos como Opus 40 levam o registro para um outro patamar. Não fosse o Deserter's Songs e bandas como Arcade Fire, MGMT, Dirty Projectors e outras tantas que misturam épico e rock psicodélico talvez nem existissem. Aliás, os próprios comandados por Donahue nunca mais conseguiram alcançar o efeito atingido esse disco - eleito melhor do ano pelo semanário NME naquele ano de 1998 -, anda que All Is Dream (2001) também tenha o seu valor.

quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Pérolas da Netflix - O Autor (El Autor)

De: Manuel Martín Cuenca. Com Javier Gutierrez, María Leon e Antonio De La Torre. Comédia / Suspense, Espanha / México, 2017, 112 minutos.

Ainda que não tenha necessariamente uma boa ideia em mente, o sonho de Álvaro (Javier Gutierrez) é ser escritor. Mas não qualquer escritor e sim um escritor de alta literatura - longe da picaretagem que é oferecida nas vitrines de pomposas livrarias de shoppings nos dias de hoje. Para tentar alcançar o seu objetivo, o sujeito frequenta aulas de técnica e estilo literários já faz três anos. Nesse meio tempo, assiste ao repentino sucesso da esposa Amanda (María Leon), que está vendendo o "melhor livro de todos os tempos da última semana". Como se já não bastasse estar com o ego ferido pelo fato, ele ainda precisará lidar com a traição de Amanda e com um emprego burocrático que lhe consome e lhe deixa infeliz. É ao sair do emprego, se separar e se mudar para um condomínio, que o protagonista de O Autor (El Autor) - boa surpresa da Netflix - tentará ir atrás do seu sonho. Tentará pois, todos sabemos, o mercado editorial talvez seja uma das coisas mais difíceis do mundo.

Os primeiros manuscritos apresentados ao seu professor (Antônio De La Torre) após os fatos ocorridos, receberão uma humilhante"crítica construtiva". Esbravejando, o docente não apenas considerará a escrita de Álvaro falsa, vazia e pretensiosa, como praticamente suplicará a ele que escreva com alma. Com coração. E que procure sua escrita na realidade. Lá fora. Vivendo a vida! "Se for preciso, escreva sobre o último bife que comeu! E se tiver com bloqueio faça como Hemingway: escreva pelado e com as bolas dispostas sobre a mesa". Não é preciso dizer que esta é uma das cenas mais divertidas da película. Mas que representará para o protagonista o início de uma reviravolta. Sim, ainda não há ideias concretas e vigorosas. Mas elas surgirão imediatamente após Álvaro começar a interagir com os seus vizinhos, influenciando diretamente em suas vidas. Assim, perceberá que os conflitos reais envolvendo alguns deles, poderão ser importantes para o desenvolvimento da narrativa.



Interessante notar como, a despeito desta ser uma despretensiosa comédia espanhola, o diretor Manuel Martín Cuenca utiliza as cores e os sons de forma simbólica dentro do contexto da narrativa. Se o apartamento absolutamente branco e despido de móveis do postulante a autor são a metáfora quase óbvia para as páginas alvas que começarão a ser preenchidas, a paleta de cores sombria do banheiro em que ele espiona um suspeito casal de vizinhos equatoriano, indicará a formulação de uma trama com alguma dose de surpresa e suspense. A gravação das conversas dos mesmos vizinhos, como se as vozes pudessem ser ouvidas DENTRO do apartamento de Álvaro também poderão significar o fato de que a história finalmente ganha vida em seu ambiente de trabalho. Um tipo de barulho bem diferente do zumbido impertinente de um velho ventilador, escutado no começo do filme, e que servia, invariavelmente, como um atestado do caos interior vivido por Álvaro naquele momento.

Sim, provavelmente O Autor não será aquele tipo de filme que renderá gloriosos debates ao final da sessão - apesar das boas, surpreendentes (e divertidas) reviravoltas -, mas esses pequenos cuidados no que dizem respeito a mise-en-scène, a composição dos quadros ou mesmo do estilo, é que valorizarão a experiência. Estamos falando, afinal de contas, sobre uma obra que versa sobre o fazer artístico. E sobre um "livro" que está em andamento e que poderá ser mudado, inesperadamente, de acordo com os eventos que acontecem com cada personagem. Há o casal de vizinhos equatoriano. Há um idoso que guarda uma boa quantidade de dinheiro. Há a síndica que se apaixona por Álvaro. S´que o mais legal é que nem todos poderão ser manipulados a seu bel prazer, afinal de contas, todos sabemos que as histórias, fictícias (ou reais), podem ter finais surpreendentes!

terça-feira, 18 de setembro de 2018

Novidades em DVD - É Apenas O Fim do Mundo (Juste La Fin Du Monde)

De: Xavier Dolan. Com Gaspard Ulliel, Nathalie Baye, Vincent Cassel, Léa Seydoux e Marion Cotillard. Drama, Canadá / França, 2016, 99 minutos.

Quem acompanha a carreira do jovem diretor canadense Xavier Dolan - dos ótimos Eu Matei Minha Mãe (2009) e Mommy (2014) - sabe que ele utiliza os seus filmes para contar histórias bastante pessoais, muitas delas com ares autobiográficos. Não é diferente com o recém lançado em DVD É Apenas O Fim do Mundo (Juste La Fin Du Monde), em que reúne elenco estelar para narrar a história do escritor de peças de teatro Louis (Gaspard Ulliel) que, longe de casa há 12 anos, resolve visitar a mãe, o irmão mais velho, a cunhada e a irmã mais nova para lhes contar um segredo. Só que a tarefa não será tão simples já que, como manda o figurino das obras envolvendo famílias disfuncionais que trazem à tona memórias e mágoas do passado, Louis praticamente não encontrará espaço (e nem ânimo) para informar a todos a respeito do fato de que está com uma doença terminal. (o que o roteiro nunca deixa claro, mas que supomos ao ligar alguns pontos dentro da narrativa)

A história toda se passa em um único dia, com todos enfurnados na casa da matriarca da família (a veterana Nathalie Baye), que tenta impressionar o filho aparecendo sempre bem vestida e com maquiagem carregada - "ele é uma pessoa das artes, ele gosta disso", ela argumenta. O irmão mais velho Antoine (Vincent Cassel) parece ter, com seus modos rabugentos e intolerantes, algum tipo de mágoa do irmão, talvez relacionada ao fato de ele, ainda jovem, ter saído de casa (o que talvez representasse algum tipo de abandono). A irmã mais nova, Suzanne (Léa Seydoux), tolera a intransigência do irmão mais velho e orbita a mãe, ainda que pareça desejar o quanto antes "se livrar" daquele núcleo familiar. E há ainda a cunhada Catherine (Marion Cotillard) que, com seu olhar doce e modos educados, é capaz de comover a cada instante em que surge em cena, sendo impossível não se emocionar em passagens como aquelas em que ela agradece Louis pelos cartões postais enviados.



É um filme sobre pessoas absolutamente distintas, convivendo em um mesmo ambiente, fazendo valer a velha máxima de que "família não se escolhe". Antoine é pragmático, cartesiano e conservador, ao passo que Louis é sonhador, sensível e humanista. A mãe deles parece padecer de algum tipo de tormento da alma, de difícil definição. E a caçula vive em um mundo paralelo, encontrando refúgio nos cigarros de maconha. Será dessas (pequenas) diferenças, somadas ao natural distanciamento de quem está há muito sem se ver, que emergirão brigas e mágoas, que remeterão a um tempo tão nostálgico quanto distante. A mãe super protetora talvez tenha cerceado a liberdade de Antoine e de Suzanne, agindo de forma complacente com Louis. As diferenças de tratamento podem estar no centro dessas feridas abertas que parecem ser tão difíceis de serem curadas. Ainda que haja mais lacunas para que o espectador preencha.

Com domínio de técnica, Dolan praticamente "cola" a câmera no rosto de cada personagem, o que intensifica a sensação de claustrofobia - ampliada pelo calor escaldante -, já que o tempo todo eles parecem presos a algum tipo de subjetividade mental que até nos escapa. Da mesma forma, dificilmente nos vemos diante de um cenário, ou de algum plano médio (ou americano), sendo o fundo quase sempre um borrão escurecido que remete aos móveis velhos dos pesados ambientes da casa. Já a trilha sonora, que traz nomes diversos como Grimes, Blink 182 e Moby, serve à perfeição para ilustrar, com suas letras, o estado de espírito daqueles que assistimos em cena. Com grandes interpretações - Cassel, em especial, que não faria feio no rol dos grandes violões do milênio - o filme ainda reserva para o seu final a metáfora perfeita para o sentimento vivido pelo protagonista, que saiu de casa para morrer (deixando algum tipo de rastro pelo caminho).

Nota: 8,0


segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Cine Baú - Gente Como a Gente (Ordinary People)

De: Robert Redford. Com Donald Sutherland, Mary Tyler Moore, Timothy Hutton e Judd Hirsch. Drama, EUA, 1980, 124 minutos.

No começo dos anos 80 a chegada à maturidade dos baby boomers, aliada a eleição do republicano Ronald Reagan e ao clima de otimismo diplomático que culminou com o fim da Guerra Fria, fez com que os americanos passassem a, nas artes, voltar o seu olhar mais para si, para o seu íntimo. Não foi por acaso que, no cinema, os dramas familiares com pessoas buscando superar traumas do passado com a intenção de seguir em frente, funcionaram como a metáfora perfeita para a exorcização de alguns demônios, que se encontravam nas vísceras daqueles que viviam o sonho americano. Nesse sentido, não foi por acaso o sucesso de filmes, como Quando os Jovens se Tornam Adultos (1982), de Barry Levinson, Laços de Ternura (1983), de James L. Brooks e também do clássico vencedor do Oscar Gente Como a Gente (Ordinary People). No fim das contas eram obras sobre americanos, para americanos.

Primeiro filme de Robert Redford como diretor - ele também viria a ser agraciado com a estatueta dourada na categoria de Direção - Gente Como a Gente já inicia mostrando uma enseada em que as águas se movimentam de forma plácida, enquanto árvores multicoloridas e outros cenários idílicos sugerem a calmaria - sensação ampliada pela interpretação em estilo coral da música Canon In D Major, do compositor Pachelbel. Mas, por baixo dessa tranquilidade, há dolorosas feridas que não se apagarão tão simplesmente. Um sonho agitado faz o jovem Conrad (Timothy Hutton) acordar, mas não da realidade: o rapaz está em tratamento psiquiátrico após tentar o suicídio, já que ele se considera o principal culpado pela morte do irmão mais velho - um menino aparentemente querido por todos -, em um acidente de barco.



Não bastasse a dor (e o fardo) que Conrad carrega por não ter conseguido salvar o irmão - as imagens em flashback surgem volta e meia para esclarecer o ocorrido - ele ainda tem de lidar com uma mãe emocionalmente distante e amargurada, que está preocupada apenas em manter as aparências (Mary Tyler Moore) e com um pai que se esforça para tentar entender o filho, mas que tem dificuldade em se aproximar deste (papel de Donald Sutherland). Assim, com uma família tão distante, o jovem encontra refúgio nas aulas de natação e nas sessões com o pragmático doutor Tyrone (Judd Hirsch), que visam a estimular o jovem, que vive um estado quase catatônico, a catalisar as emoções tão reprimidas. Não é um processo fácil de superação e, inevitavelmente, haverá muita dor pelo caminho - ainda que a existência de figuras como a jovem carismática Jeanine (Elizbeth McGovern), possam representar algum tipo de respiro.

Gente Como a Gente é, no final das contas, o drama familiar típico. Cheio de grandes interpretações - Hutton, de apenas 19 anos, é até hoje o ator mais jovem da história a ganhar um Oscar de atuação (na categoria Coadjuvante) e Mary Tyler Moore transforma Beth na mais abominável das criaturas - o filme ainda marcou época pela sensibilidade com que dramatiza as situações. Nesse sentido, não são poucos os momentos comoventes da película - sendo um dos mais emocionantes aquele em que Calvin (o pai) lembra da preocupação de Beth em relação aos sapatos que usaria no funeral do filho. O final "feliz" (e doloroso) - após uma espécie de catarse vivida por Conrad - é a prova que pode ser mais fácil seguir em frente se estivermos distantes daqueles que amamos. Ou ao menos que pensamos que amamos.

terça-feira, 11 de setembro de 2018

Tesouros Cinéfilos - Sangue Negro (There Will Be Blood)

De Paulo Thomas Anderson. Com Daniel Day-Lewis, Paulo Dano e Russel Harvard. Drama, EUA, 2007, 158 minutos.

Parece haver um permanente clima de tensão no ar, conforme se descortinam os eventos vistos no ótimo Sangue Negro (There Will Bem Blood). É como se algo estivesse sempre prestes a explodir - o que, metaforicamente, pode ser simbolizado pelo petróleo que jorra a cada nova escavação encenada. Talvez seja o deserto palpavelmente escaldante. Ou a trilha sonora caótica e dissonante (cortesia do guitarrista Johnny Greenwood, do Radiohead). Ou mesmo as personagens de modos duros, secos e que se mostram o tempo todo individualistas, inescrupulosos e, invariavelmente, ambiciosas. O caso é que a película de Paul Thomas Anderson (Magnólia) - baseada no livro Oil, de Upton Sinclair - é daquelas que deixa um gosto amargo na boca. E que reúne uma coleção de figuras que, para nós espectadores, é muito mais fácil odiar do que qualquer outra coisa. Em resumo: é um filme capaz de nos deixar exaustos ao final da projeção.

A narrativa nos joga para a fronteira da Califórnia, na virada do século 19 para o século 20. É lá que somos apresentados a Daniel Plainview (Daniel Day-Lewis), um rico empresário do ramo da mineração, que fica sabendo da possível existência de petróleo na pequena cidade de Little Boston. Como forma de persuadir a comunidade local para que possa iniciar as escavações que beneficiarão a matéria-prima, ele apresenta um projeto digno de político em período de campanha eleitoral: construirá estradas e escolas no local, fortalecerá a agricultura e gerará emprego e renda. Em troca, os proprietários das terras em que estão os minérios lhe darão as concessões para que os investimentos possam ser feitos - recebendo também uma boa quantia de dinheiro na jogada. É claro que nem todos os moradores aceitarão a história numa boa - especialmente o pastor Eli Sunday (Paul Dano), sujeito ganancioso e mesquinho que utilizará a religião como uma espécie de "moeda de troca".



Nesse sentido, um dos maiores prazeres de Sangue Negro será o de assistir o embate entre Daniel e Eli - que nada mais será do que o confronto entre a tecnologia e o capitalismo e o conservadorismo e a fé. Day-Lewis e Dano estão especialmente inspirados, e entregam caracterizações que vão no limite do cinismo, do deboche e da hipocrisia para as figuras que interpretam. Se Plainview não hesitará em, literalmente, utilizar uma criança (que ele finge ser seu filho, mas não é) como desculpa para comover aqueles que ele busca persuadir, Eli se aproveitará de seus agitados sermões para expurgar o "mal" e os demônios que rondam a comunidade - e que a perfuram em busca de petróleo. Todos conhecem afinal o valor daquele líquido que jorra por baixo de seus pés e todos desejam tirar proveito daquilo de alguma forma, num contexto em que não há vitoriosos, especialmente em um universo em que a cobiça é o sentimento reinante.

Alternando sequências longas e mais contemplativas, com outras mais movimentadas e cheias de ação, o diretor ainda consegue explorar as paisagens desérticas de forma perfeita, transformando-as, também, em uma espécie de personagem sempre presente na vida daqueles que assistimos em tela - e que formam o combo perfeito para um retrato da ganância (e até da paranoia) daqueles que viriam a antecipar o modelo conhecido como american way of life. Se hoje em dia não surpreendem discursos meritocráticos que costumam valorizar excessivamente os vitoriosos de espírito essencialmente empreendedor, o filme de Anderson se ocupa em mostrar parte da origem desse sentimento, capaz de fazer com que se ignorem até mesmo as mortes decorrentes de severas condições de trabalho, já que está em vista um "bem maior". Em meio a cenas engraçadas e inacreditavelmente nonsense - como aquela que vemos em uma pista de boliche em uma mansão - há também uma crítica a um modelo que se aplica até hoje e que, no fim das contas, prejudica apenas um lado.

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Pérolas da Netflix - Catfight (Catfight)

De: Onur Tukel. Com Sandra Oh, Anne Heche, Alícia Silverstone e Amy Hill. Comédia / Drama, EUA, 2016, 99 minutos.

Catfight (Catfight) é aquele tipo de comédia que foge do comum, especialmente pelo fato de extrair humor do inusitado. Aliás, não são poucas as sequências em que não sabemos se estamos rindo de nervoso ou por achar aquilo que assistimos verdadeiramente engraçado! A trama nos apresenta a duas pessoas completamente distintas que têm em comum o fato de terem sido colegas de faculdade. Veronica Salt (Sandra Oh) é a "esposa troféu" casada com um magnata, que é empresário do ramo de recolhimento de lixo e que acaba de fechar um contrato no Oriente. Já Ashley Miller (Anne Heche) é uma artista plástica em ascensão, que utiliza as suas obras para fazer a crítica à sociedade e ao american way of life. Duas figuras diametralmente opostas que se reencontrarão em meio a um aniversário. E as feridas abertas pelas diferenças entre elas serão o catalisador para algumas das mais surpreendentes cenas de luta (!) do cinema recente.

Basicamente o diretor Onur Tukel utiliza a briga entre as protagonistas para fazer a crítica a este mundo de extremos que vivemos, em que somos incapazes de aceitar ou conviver com aqueles que são ou que pensam de uma forma diferente da nossa. Veronica, muito provavelmente uma republicana, é a favor da guerra e da defesa do "cidadão de bem", especialmente pelo fato de o seu marido ganhar rios de dinheiro com a política armamentista americana. Já Ashley, certamente uma democrata, utiliza seus quadros cheios de cores vivas e de iconoclastia para fazer o provocativo contraponto. Quando estes pensamentos tão antagônicos batem de frente, há o choque, o conflito. E, como tudo na vida, o roteiro nos mostra que nem sempre os culpados pelos nossos problemas são os outros e que, sim, as coisas podem mudar inesperadamente de uma hora para outra.



A despeito do pano de fundo político/social é um filme absolutamente leve e despretensioso de se assistir. Mas que está o tempo todo tecendo bem-humorados comentários a respeito do sentimento de alienação generalizada que vivemos nos dias de hoje - algo reforçado pelo estúpido programa de televisão que mostra um sujeito peidando e que perdura pelos mais de quatro anos em que a história se desenrola. Com personagens secundários como a (ex) empregada doméstica de Veronica, a película também se ocupa de lembrar que, como dizia Paulo Freire, "se a educação não for libertadora, o sonho do oprimido será o de ser o opressor" - e certamente os anos de convivência com a família burguesa de Veronica fazem a mulher ser a favor da guerra e de outras políticas anacrônicas. Por outro lado a tia Charlie (Amy Hill), com sua existência pacata e riponga em meio as árvores, parece ser a única personagem lúcida da história. E há ainda a Alícia Silverstone como a namorada de Ashley e, confesso, fazia anos que não a via em um filme.

Cheio de idas e vindas o filme ainda utiliza a trilha sonora cheia de composições clássicas - de Beethoven, Bach, Mozart - de forma criativa e eficiente. Um dos melhores exemplos desse uso ocorre durante uma vernissage de Ashley que, inevitavelmente, acabará mal. Na sequência a trilha escolhida é a conhecida suíte In The Hall Of The Mountain King, de Edvard Grieg, que com seu baixo crescente e explosão orquestral forma o combo perfeito para uma das mais engraçadas cenas do filme, que culminará em uma disputa em uma borracharia. Ainda que haja ecos de outros diretores - impossível não pensar em Tarantino ou nos Irmãos Coen - e uma verdadeira homenagem a um elenco lembrado apenas por séries (ou até mesmo esquecido), o caso é que o filme de Tukel tem personalidade e injeta certo frescor a um gênero que, normalmente, é visto com desconfiança.

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Na Espera - Nasce Uma Estrela (Filme)

Ainda é cedo para afirmarmos quais serão as obras que estarão entre as indicadas na próxima edição do Oscar, mas, ainda assim, uma coisa é certa: o lobby para que o primeiro filme dirigido pelo ator Bradley Cooper esteja entre eles é grande. A trama de Nasce Uma Estrela (A Star Is Born) - refilmagem da película de mesmo nome lançada em 1976 - é convidativa e narra a história da jovem cantora Ally (Lady Gaga), que ascende ao estrelato ao mesmo tempo em que o seu parceiro Jackson Maine (o próprio Cooper), um renomado artista de carreira consolidada, cai no esquecimento devido aos problemas relacionados ao consumo de álcool. E é claro que os momentos opostos na carreira acabarão por minar o relacionamento amoroso dos dois.



O trailer equilibra bem as cenas de bastidores envolvendo as apresentações de ambos com outras do relacionamento deles - ainda que não se aprofunde mais na história em si e sobre como o contraponto entre os momentos vividos por ambos afetará a vida dos dois. O elenco tem como atrativo a presença de outras figuras interessantes, como o comediante Dave Chapelle e o veterano Sam Neill. Mas confesso que a curiosidade mesmo é ver Gaga atuando e, levando-se em conta somente aquilo que vemos no teaser, não será surpresa uma indicação para a premiação máxima do cinema. Bom, a obra estréia por aqui no próximo mês, no dia 11 de outubro, e, por aqui, estamos Na Espera!

Cinema - As Herdeiras (Las Herederas)

De: Marcelo Martinerssi. Com Ana Brun, Margarita Irún, Ana Ivanova e Maria Martins. Drama, Paraguai / Alemanha / Noruega / Brasil / França / Uruguai, 2018, 98 minutos.

As Herdeiras (Las Herederas) é um filme que aposta na sutileza para apresentar a jornada de transformação de sua protagonista. Ao invés da janela escancarada, a fresta. Ao contrário da gargalhada farta, o sorriso de canto de boca. Sai a luz ostensiva entra a penumbra melancólica. Há muita sugestão e pouca obviedade - sensação reforçada pelo contexto em que todas as personagens estão inseridas. A trama, dirigida por Marcelo Martinessi, gira em torno de Chela (Ana Brun) e Chiquita (Margarita Irún) que vivem em uma casa opulenta (ainda que decadente) de um bairro rico no Paraguai. Herdeiras de famílias abastadas, vendem seus bens como forma de equilibrar as finanças. Tudo muda quando Chiquita é presa por sonegação fiscal e Chela se vê sozinha, sem a companheira de muitos anos (aliás, é nos detalhes que percebemos que ambas são um casal, já que parece haver um claro distanciamento emocional entre elas).

Diante dessa "novidade" em sua vida, Chela é surpreendida, certo dia, por um pedido da vizinha Pituca (Maria Martins): lhe conduzir até o subúrbio para um jogo de cartas envolvendo senhoras ricas e mais preocupadas com a vida dos outros do que com as suas próprias. Será nessas idas e vindas - como uma espécie de Uber da terceira idade - que Chela conhecerá a interessante Angy (Ana Ivanova). Angy é mais nova e é um espírito livre. Tem relacionamentos fracassados, mas tem personalidade forte. E isto tudo interessará Chela, que projetará nela a vida que, certamente, nunca teve. A cada carona para Angy auxiliar a sua mãe em um tratamento de saúde em um bairro localizado fora da cidade, a intimidade entre elas aumentará. Ao passo que cada visita torta a Chiquita, na prisão feminina em que esta se encontra, lhe distanciará cada vez mais da parceira.



O filme utiliza algumas metáforas que podem parecer até óbvias mas que, dentro da narrativa, funcionam de forma eficiente. A casa decrépita que vai perdendo os seus objetos - mesas, quadros, aparelhos de jantar -, vai dando lugar a um ambiente vazio mas surpreendentemente novo, como se também no íntimo da protagonista ela fosse impelida a se desfazer daquela vida que não lhe é mais suficiente, saindo da zona de conforto. Nesse caso a mansão vazia funcionando como uma representação da renovação. Da mesma forma, as roupas discretas e sem vida da Chela casada (e acomodada) vão dando lugar as vestimentas mais coloridas, leves e primaveris, que dão conta do estado de espírito da mulher, a cada novo encontro com Angy. O carro que circula pela cidade (e sai da garagem em certa altura da película) também reforça a ideia de que estamos diante de alguém que está mudando sua forma de pensar, seus interesses e prioridades - e, vamos combinar, nunca é tarde pra viver a vida.

Como um filme paraguaio - aliás, já falamos por aqui sobre a escassez de películas vindas desse País - as diferenças sociais e os contrastes entre as famílias mais abastadas e as mais pobres beiram o constrangimento (e, nesse sentido, ponto para a atriz Maria Martins, que transforma a sua Pituca em uma figura absolutamente escabrosa). Por outro lado, todas essas nuances - o homossexualismo, as políticas que privilegiam ricos - são apresentadas de forma discreta, oblíqua, quase de canto de olho (como ocorre em alguns enquadramentos). Dramático e divertido em igual medida, As Herdeiras reúne ainda uma verdadeira coleção de prêmios mundo afora - em Gramado foi Melhor Filme do Jurí Oficial, além de ter faturado os prêmios do Público e da Crítica e em Berlim Ana Brun foi agraciada com o Urso de Prata na categoria Melhor Atriz. O que definitivamente, não é pouco.

Nota: 8,0

terça-feira, 4 de setembro de 2018

Grandes Cenas do Cinema - O Iluminado (The Shining)

Filme: O Iluminado
Cena: Heeeere's Johnny!!

Uma revisão em O Iluminado (The Shining) nos faz perceber que, sim, este é um filme menor na carreira do diretor Stanley Kubrick - e não é por acaso que a obra, à época, recebeu duas indicações para o Framboesa de Ouro (nas categorias Pior Filme e Pior Atriz, para Shelley Duvall). Aliás, atualmente, é público e notório que o próprio Stephen King não gostou do resultado final e nem da atuação de Jack Nicholson que, com a sua falta de sutileza, transforma o seu Jack Torrance em um psicopata em potencial desde os primeiros minutos da película. Mas, mesmo com tantos problemas, o filme é adorado por muitos, contando com uma série de cenas icônicas - entre elas a do garotinho que percorre com um triciclo os corredores do hotel Overlook (local em que a trama acontece), a da máquina de escrever com a frase all work and no play makes Jack a dull boy e a da perseguição em uma espécie de labirinto feito com arbustos, na parte externa do local.



Mas é provável que poucas cenas do filme (e talvez até da história do cinema) sejam tão lembradas e parodiadas quando aquela em que Jack, perseguindo a esposa Wendy (Duvall), abre a machadadas a porta de um banheiro para, em seguida, colocar a cabeça por entre a abertura, gritando a inesquecível frase "heeeeeere's Johnny!". A sequência em questão ocorre no terceiro ato do filme e ocorre no momento em que a personagem de Jack Nicholson está no auge da paranoia provocada pelo isolamento e pela pressão de escrever um novo livro (o que leva a família ao hotel). Conforme os dias passam no local, Jack vai se tornando mais agressivo, ao passo que o seu filho (Danny Lloyd) passa a ter visões apavorantes de acontecimentos ocorridos no passado e que também teriam sido causados pela opressão provocada pela sensação de isolamento.

Improvisada por Nicholson, a cena faz alusão a um bordão usado pelo ator Ed McMahon no programa The Tonight Show - Starring Johnny Carson, que era exibido no começo dos anos 80. De lá para cá, a despeito dos problemas apresentados pela película - que vão da péssima interpretação de Duvall ao roteiro que não deixa margem para qualquer sugestão - a obra é permanentemente lembrada pela opulenta face de Nicholson que espreita através da porta, com seu olhar psicótico e sorriso idem. Macabra e capaz de fazer gelar o sangue de qualquer espectador - a trilha sonora e a edição apavorantes também contribuem para essa sensação -, a cena é imitada em programas de humor, videoclipes e jogos de videogame, tendo um peso semiótico (e de suspense e pavor) que só é capaz de ser superado pela cena do chuveiro, em Psicose (1960). Nesse sentido, é o complemento perfeito para uma das mais claustrofóbicas obras sobre "bloqueio criativo" que se tem notícia.

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Tesouros Cinéfilos - O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (Le Fabuleux Destin d'Amélie Poulain)

De Jean Pierre Jeunet. Com Audrey Tautou, Robert Gendreu e Mathieu Kassovitz. Fantasia / Comédia / Romance, França, 2001, 121 minutos.

Na categoria dos feel good movies é provável que poucas obras sejam tão queridas pelo público quanto O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (Le Fabuleux Destin d'Amélie Poulain) - fábula fantasiosa do diretor Jean Pierre Jeunet, que conta com uma carismática protagonista que não hesita em ajudar os outros, ao mesmo tempo que busca encontrar o grande amor de sua vida. É um filme colorido, leve e absolutamente gostoso de assistir, daqueles que transitam por gêneros diversos, nos fazendo rir e chorar em igual medida. Sua trilha sonora inesquecível (e indicada ao Oscar) encontra o equilíbrio perfeito na fotografia primaveril e de cores quentes (que também foi nominada pela Academia), capaz de denotar um estado de espírito generalizado de otimismo que, em tempos de ódio, preconceito e intolerância, é mais do que bem-vindo. E há o roteiro, cheio de frases de efeito espirituosas e diálogos excitantes que se harmonizam com uma montagem didática e cheia de charme.

Sim, é difícil resenhar uma obra-prima moderna como esta, sem enchê-la de elogios. Sem considerá-la diferente e cheia de personalidade, com uma vivacidade que salta a tela. E que nos envolve de maneira quase comovente. A Amélie do título é vivida por Audrey Tautou como uma garota curiosa, de olhar maroto e sorriso esperto - a despeito do distanciamento afetivo do pai e da trágica morte da mãe, quando ela ainda era jovem. No bairro em que mora, encontra uma caixa escondida no banheiro de sua casa - cheia de relíquias de infância que provavelmente pertenceu a algum antigo morador. Decidida a encontrar o dono da caixa, Amélie chega até Dominique (Maurice Bénichou), que chora de alegria ao tomar contato com tantos objetos que lhe trazem boas (e nostálgicas) memórias do passado. Embevecida por um certo sentimento de euforia por ter "feito o bem", a protagonista decide ajudar, com pequenos gestos, aqueles que a rodeiam. Sim, acredite, a trama é essa.



Em sua volta estão uma série de personagens excêntricos, que mais parecem saídos de algum tipo de devaneio fantasioso e onírico. Entre eles a colega de trabalho hipocondríaca, o feirante mal humorado, o ex-namorado ciumento, o vizinho que sofre de uma severa doença nos ossos que lhe impede de sair para a rua, um escritor fracassado e o próprio pai que, agora aposentado e distante dos prazeres da vida, busca significado em objetos prosaicos, como um anão de jardim (e, diga-se de passagem, a ideia de Amélie para incentivar o pai a viajar pelo mundo, e que envolve a pequena estátua, é uma das melhores partes)! E há também o sujeito que coleciona fotografias descartadas e rasgadas de uma cabine de fotos e que despertará grande curiosidade em Amélie, sendo peça chave da história. Nesse sentido, consiste-se em uma obra de personagens e de personalidades que, por mais expansiva que possa parecer, também vai no íntimo de cada um deles para revelar suas fraquezas, anseios e necessidades. Necessidades que todos têm, inclusive a protagonista.

Como uma coleção de retalhos sobre diversas vidas, a obra aposta no poder da edição - do som e da imagem - para transformar o filme em uma experiência (também) sensorial. Não é por acaso que, ao assistirmos um homem ao estourar um plástico bolha ou a protagonista colocar a mão dentro de um saco de grãos, imediatamente pensamos naquilo que gostamos ou não ou que nos dá prazer (por mais simples que as coisas sejam). É claro que na busca de Amélie pela felicidade haverá percalços, angústias e decepções. Mas assim é a vida e será fazendo o bem que ela também encontrará a felicidade. Indicada ao Oscar na categoria Melhor Filme Estrangeiro na cerimônia de 2002, a película perderia o prêmio para o bósnio Terra de Ninguém (2001). Ainda assim o seu universo enigmático e delirante - que amplia as experiências testadas anteriormente por Jeunet nos igualmente divertidos Delicatessen (1991) e Ladrão de Sonhos (1993) - permanece vivo na mente de qualquer cinéfilo.