quinta-feira, 28 de abril de 2022

Novidades em Streaming - Lingui (Lingui)

De: Mahamet-Saleh Aroun. Com Achouackh Abakar, Rihane Khalil Alio, Youssouf Djaouro. Drama, Chade / Alemanha / Bélgica / França, 2020, 89 minutos.

No ano passado fez burburinho nos meio alternativos o filme Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre (2020), sobre uma jovem adolescente que enfrentava uma verdadeira via crúcis para tentar interromper uma gravidez indesejada - que era resultado de um episódio de violência. E se já era difícil pra protagonista de uma obra que se passa nos Estados Unidos - onde as leis sobre o aborto variam de Estado para Estado, evidenciando uma certa esquizofrenia sobre o assunto -, imagina como não é em um País pobre da África. Especialmente em uma nação fortemente influenciada pela religião muçulmana, como é o caso do Chade. Assim, como no citado hit do cinema independente, em Lingui (Lingui) - o enviado do País ao Oscar desse ano -, o tema descriminalização do aborto está no centro da narrativa, colocando novamente os desígnios (ou os supostos planos) de Deus de um lado e a ciência ou mesmo a capacidade de decisão sobre o corpo de outro.

Sim, no Chade a prática do aborto é crime em qualquer circunstância. Até mesmo médicos que facilitam o processo podem ser incriminados, amargando cinco anos ou mais na cadeia. Assim, quando Amina (Achouackh Abakar) descobre que Maria (Rihane Khalil Alio), sua jovem filha de apenas 15 anos está grávida, resta apenas a clandestinidade como caminho. Aqui e ali, Amina percorre as ruas arenosas do subúrbio de N'Djamena determinada a encontrar quem faça o procedimento. Isso sem que os islâmicos que as rodeiam fiquem sabendo. Inconformada por não poder ir a escola a adolescente esconde, inicialmente, o segredo da própria mãe. Por vergonha, por medo - e a violenta reação da mãe ao saber da gravidez talvez explique o receio. Mas, mais adiante Amina e Maria perceberão que somente a partir da uma grande rede de sororidade conseguirão "enfrentar" a questão.

Amina, assim como Maria foi mãe aos 15 anos. Resultado de uma violência que a retirou do convívio da família e da comunidade religiosa. Taxada como impura por ter tido uma filha fora de um casamento - esse tipo de absurdo misógino que só é possível nos países mais conservadores (pra não dizer reacionários) -, a mulher vive à margem da sociedade, em uma habitação modesta, onde empreende produzindo peças de artesanato com restos de pneus. Caminho seguido também pela filha - e as cenas delas perambulando pelas ruas, tentando comercializar uma peça que seja de suas produções, são devastadoras. Buscando reunir o dinheiro para realizar o procedimento às escondidas, a dupla descobre, a muito custo, uma espécie de enfermeira clandestina que pode fazer o aborto. O medo é constante. As dúvidas permanentes. O surgimento de Fanta (Bryia Gomdique), a irmã de Amina, atrapalha. Mas também ajuda. As mulheres unidas, afinal, são a única possibilidade de mudança nesse cenário patriarcal.

Ao cabo trata-se de uma obra dolorida, mas que mantém um certo otimismo ao mostrar qual o caminho. Ou onde reside uma pontinha de esperança, que seja. Dirigido com maestria pelo sempre ótimo Mahamet-Saleh Aroun (do também excelente Um Homem que Grita, de 2010), é um filme que nos faz refletir sobre o absurdo de, em pleno ano de 2022, ainda haver a completa incapacidade de se discutir esse tema como ele realmente é: uma questão de saúde. Que envolve empatia, respeito ao outro, a seu corpo e suas decisões. Especialmente quando estamos diante de casos de violência - não só física, mas psicológica. Há uma cena em Lingui em que um sacerdote se recusa a um simples aperto de mão a Amina. Obrigando-a ainda a se cobrir (ela apenas estava com vestes de "ficar em casa"). O mundo precisa evoluir. E experiências cinematográficas como esta nos ajudam a, nem que seja, refletir. É um mérito da arte. Provocar, ousar, questionar. Pra alegria de quem curte cinema.

Nota: 8,5

terça-feira, 26 de abril de 2022

Tesouros Cinéfilos - Assassinato em Gosford Park (Gosford Park)

De: Robert Altman. Com Helen Mirren, Maggie Smith, Kristin Scott Thomas, Michael Gambon e Emily Watson. Drama / Suspense, EUA, Reino Unido, Itália, 2001, 138 minutos.

Se Luis Buñuel tivesse filmado alguma obra de Agatha Christie é possível afirmar que o resultado, muito provavelmente, seria algo próximo a Assassinato em Gosford Park (Gosford Park) - clássico moderno de Robert Altman, que está disponível na plataforma Mubi. Altman se caracterizou por suas obras de elencos numerosos, tramas múltiplas, roteiros engenhosos e diálogos riquíssimos. Isso sem contar a predileção por reflexões mais existencialistas, ainda que em meio a pequenos microcosmos sociais - seja num cenário de guerra, como no clássico M.A.S.H. (1970), seja nos bastidores de uma rádio que realiza sua última transmissão, como ocorre no divertidíssimo e derradeiro A Última Noite (2006). Assim, para o diretor, um filme sobre um crime ocorrido em uma elegantíssima casa de campo inglesa no começo dos anos 30 do século passado, não é apenas um suspense pelo suspense, em que cabe ao espectador descobrir o assassino. Aqui tem-se uma experiência que desnovela a mesquinharia da aristocracia, ao mesmo tempo em que faz uma crítica corrosiva a essa elite tão ambiciosa quanto patética.

Sim, porque na casa de Gosford Park, cada convidado para o final de semana em companhia dos anfitriões William (Michael Gambon) e Sylvia McCordle (Kristin Scott Thomas) parece ter seu próprio interesse. E interesse financeiro, de preferência - seja a irmã falida que vive de uma pensão (a sempre ótima Maggie Smith), o cunhado totalmente inseguro que deseja ampliar os seus negócios (Tom Hollander) ou o produtor de filmes de Hollywood vivido por Bob Balaban. Nesse sentido, a reunião para luxuosos almoços e jantares e algumas atividades no campo - caso de uma caçada a faisões - parecem apenas desculpa para comportamentos presunçosos e uma existência de aparências, especialmente no que diz respeito à relação com mordomos, governanta, cozinheira e todos os outros criados. Fofocas, segredos prestes a vir à tona e outras intrigas vão dando movimento à narrativa, que flui de forma bem amarrada, mesmo em um universo de tantos personagens.


Aliás, quando o filme começa é quase impossível não ficar confuso com tantos cômodos, escadas e salões e tantas condessas, lordes, baronesas e comandantes circulando em meio a empregados que parecem tão perdidos em suas atribuições quanto o espectador. Mas Altman vai facilitando o nosso trabalho conforme a trama avança, apresentando cada núcleo aos poucos, nos deixando familiarizados com as figuras - e suas personalidades. É o caso por exemplo da ressentida Constance (Smith), que não hesita em reclamar de absolutamente tudo - da música tocada, ao tipo de geleia oferecida no café da manhã -, e do misterioso criado Henry Denton (Ryan Philippe) que, com seu ousado comportamento, trafega com naturalidade em meio aos ambientes que seriam destinados apenas à burguesia. É nesse contexto meio caótico que relações se misturam, pessoas distintas se encontram, classes lutam e interesses colidem. E um assassinato inesperado acontece. Tornando todos que ali se encontram em potenciais suspeitos.

Sim, esse tipo de narrativa até não chega a ser novidade, mas a personalidade que Altman imprime a sua história não apenas lhe concederia o Oscar na categoria Roteiro Original, na cerimônia de 2002, como lhe renderia outras sete nominações - duas delas para Helen Mirren e para a já citada Maggie Smith. É, ao cabo, uma experiência divertida e sinuosa, cheia de curvas meio imprevisíveis em que, para nós, só resta o deleite. Há um componente metalinguístico que costura a narrativa e que envolve o diretor de Hollywood que está acompanhado do astro de cinema Ivor Novello (Jeremy Northam). O que converte a experiência em um filme dentro do filme sobre um sujeito que deseja realizar uma história envolvendo um grupo de aristocratas em um casarão, que precisam lidar com a ocorrência de um assassinato. É só uma pitada a mais do debochado diretor, que entrega uma série de outras inesperadas piadas e comentários sociais sarcásticos, como na sequência envolvendo um prosaico "copo de leite". A quinta série pira. E o cinéfilo vibra. Vale (re)descobrir.

segunda-feira, 25 de abril de 2022

Novidades em Streaming - A Jornada (Proxima)

De: Alice Winocour. Com Eva Green, Matt Dilon, Zélie Boulant e Sandra Hüller. Ficção científica / Drama, Alemanha / França, 2020, 108 minutos.

"Estamos nos preparando para ir. Mas isso não é o mais difícil. O mais difícil é a volta, quando percebemos que vida continua sem a nossa presença." Quem acompanha o Picanha de perto já sabe que a ficção científica com uma pegada mais existencialista costuma nos tocar. E ainda que em A Jornada (Proxima) - disponível na Amazon Prime - a abordagem não seja assim tão filosófica, aqui temos um filme que funciona como uma boa desculpa não apenas para discutir de forma simbólica o rompimento do cordão umbilical entre mães e filhos, mas também como o mercado de trabalho pode ser muito mais difícil para as mulheres. Independente da profissão. E especialmente para aquelas que desejam ser astronautas. E é esse o caso de Sarah, a protagonista vivida por Eva Green, que é selecionada para se juntar a uma missão espacial em Marte. O que a deixará por um período de um ano longe da filha de apenas oito anos Stella (Zélie Boulant).

Sim, porque quando a gente assiste um filme tradicional de astronauta - com homens -, o ambiente doméstico ou a existência de filhos dificilmente se convertem em uma dificuldade. Imbuídos em suas missões, esses sujeitos não tem medo de olhar pra trás, para encarar o futuro. O que importa é a heroica jornada. E o temor real será pelo desconhecido. Pelo que vem pela frente. É diferente do caso de Sarah - e a meu ver está aí a beleza do que a obra de Alice Winocour propõe: enquanto a astronauta está em treinamento na Agência Espacial Europeia de Colônia, as dificuldades vividas pela filha, à distância, lhe atormentam. Como ela conseguirá se focar no rígido treinamento para sobreviver em Marte se a pequena está indo mal na escola? Se ela está com saudade? Se está magoada com a própria mãe, já que talvez considere a escolha pela profissão como uma espécie de abandono?

E não bastasse todas essas dores intermitentes que carrega - físicas e psicológicas -, Sarah ainda precisa conviver com o machismo do meio, simbolizado pelo astronauta americano Mike Shannon (Matt Dillon) que, ao apresentar a tripulante da missão, a elogia afirmando que será bom ter uma mulher no grupo, já que "dizem que as francesas sabem cozinhar bem". É claro que cada personagem possui muito mais camadas num tipo de rara complexidade, mas assistir as reações sutis e cheias de nuances de Green, enquanto evolui dentro do programa, é um pequeno deleite. As suas dores estão todas lá, em cada olhar melancólico, em cada choro solitário. E como externá-las? Com quem? A presença de uma pedagoga (a sempre ótima Sandra Hüller) pode ajudar. Ou piorar tudo, dependendo do ponto de vista, já que quanto mais a criança se aproxima da profissional e se acostuma com a ausência da mãe, mais distante ela fica.

Excelente em utilizar o próprio contexto da narrativa para discutir seus temas, o filme ainda aposta em metáforas meio óbvias, mas que ajudam a consolidar a proposta da obra. Um bom exemplo disso é a existência de uma ferida na perna de Sarah, ocorrida após um acidente em seu treinamento. Uma ferida que custa a cicatrizar - assim como custará a sarar a dor de sua escolha. Mas uma escolha que é vital para o futuro. Especialmente para o futuro de outras astronautas. Outras mulheres, que também queiram dar prioridade para outros aspectos de sua vida, que não apenas a maternidade. Além disso, é uma obra que explora bem o quão exaustivos são esses treinamentos. Algo que, muitas vezes, passa meio despercebido em algumas produções - e que, aqui, ajuda a reforçar a ideia de que as mulheres são tão capazes quanto os homens, na hora de superar desafios. Enfim, A Jornada é uma experiência com pouquíssima nave espacial ou "closes" de planetas imensos. E muita divagação sobre questões terrenas. E é justamente aí que ele acerta.

Nota: 8,0

 

sexta-feira, 22 de abril de 2022

Pitaquinho Musical - Placebo (Never Let Me Go)

Em uma conversa descompromissada com os amigos Bernardo e Henrique eu tentava explicar o sentimento gerado por The Prodigal, uma das canções do oitavo e mais recente trabalho do Placebo, Never Let Me Go: "é uma música mais Placebo que o Placebo, mas sem que pareça tanto assim com o Placebo". Na hora não sei se me fiz entender, mas isso era uma espécie de elogio à Brian Molko e companhia que, finalmente, deixavam para trás a péssima impressão deixada pelo pouco inspirado Loud Like Love, lançado num agora longínquo 2013. E, vamos combinar que, em tempos tão pesados e sombrios como os que vivemos - de ascensão da extrema direita, de pandemia, de guerra, de espionagem digital e de desastres climáticos, só pra ficar em alguns exemplos - faz todo o sentido os britânicos, que tanto souberam converter as dores do mundo em belas canções, lançarem um novo disco. E ainda oxigenarem ele com criativos instantes melódicos, mas sem deixar de lado a personalidade que foi a marca registrada de hits como Pure Morning, Every You Every Me, Special K e Nancy Boy. "Eu deixo pra este mundo uma canção esperançosa / Sem uma lágrima, vou me prolongar / Minhas dores curadas, minhas cicatrizes não mais ali / E cada batalha me fez forte" canta Molko na citada música que abre esse texto. Enfrentar a paranoia atual se faz também pela arte. E o Placebo fez e muito bem a sua parte.


quarta-feira, 20 de abril de 2022

Tesouros Cinéfilos - Los Angeles: Cidade Proibida (L.A. Confidential)

De: Curtis Hanson. Com Russel Crowe, Kevin Spacey, Guy Pearce, Kim Basinger, Danny DeVito e David Strathairn. Drama / Policial / Suspense, EUA, 1997, 138 minutos.

Policiais corruptos, redes de prostituição, imprensa sensacionalista, crimes misteriosos. Não é por acaso que Los Angeles: Cidade Proibida (L.A Confidential) parece uma grande homenagem aos filmes noir dos anos 50, já que os ingredientes estão todos lá. Dirigida por um Curtis Hanson no auge - é talvez o seu melhor trabalho - a trama é adaptada da obra de James Ellroy, tendo em seu DNA o espírito dos filmes de investigação típicos dos anos 90, daqueles que conduzem o espectador em uma espiral de eventos, muitos deles amparados em reviravoltas surpreendentes. Aqui, a cidade título é muito menos "angelical" do que se imagina que seja a capital mundial do cinema, de Hollywood. A cada possibilidade de diversão, de entretenimento, de encontro com estrelas há todo um submundo dominado por mafiosos, por tráfico, por investigadores de moral duvidosa, por assassinatos de difícil explicação - num tipo de ousadia meio coletiva, um atrevimento que se espalha pelas ruas, pelas calçadas, pelas frestas.

E é nesse complexo ecossistema que entrarão em rota de colisão três policiais que atuam na mesma divisão. O primeiro deles, o detetive Jack Vincennes (Kevin Spacey) é o sujeito corrompido que não tem vergonha de vender informações a céu aberto, sendo um de seus principais contatos um certo Sid Hudgens (Danny DeVito), proprietário do Hush Hush, uma espécie de pequeno tabloide que não resiste a uma capa sensacionalista (de preferência comprada). O segundo é o violento oficial Bud White (Russel Crowe), o tipo de sargento que não hesita em partir para a violência física na hora de obter informações de seus investigados. Entre os dois está o eticamente correto policial Edmund Exley (Guy Pearce) que, com seu cabelo sempre alinhadinho e seu óculos de nerd, tem a pretensão de moralizar uma instituição que parece atolada até o último fio de cabelo em negócios escusos. Isso sem contar a atuação tão violenta que beira o flerte com o fascismo.



E é justamente após uma ação policial truculenta contra um grupo de presos mexicanos, que o bicho pega. Após o acontecido sair na capa dos principais jornais - em mais um episódio desmoralizador para a polícia -, um dos envolvidos no incidente, no caso o policial prestes a se aposentar Dick Stensland (Graham Beckel), acaba morto em um bar no centro da cidade, ao lado de outros clientes, além de garçons e o gerente do local. Com poucas informações, o trio de investigadores tentará, cada um a sua maneira, obter as pistas que possam servir para que o quebra-cabeças possa ser montado. A chave para elucidar o mistério pode estar na elegante Lynn Bracken (Kim Basinger), que trabalha para uma rede de prostituição do submundo, que as converte em sósias de estrelas de Hollywood. Será por meio de Lynn que White chegará a um dos cabeças da rede de operação, um certo Pierce Patchett (David Strathairn), um investidor multimilionário que parece esconder uma série de segredos.

Sim, parece complexo. E talvez seja um pouco. São muitos personagens, idas e vindas, pistas sendo disponibilizadas aos poucos. Mas não deixa de ser absurdamente saboroso conferir um grupo de atores tão talentoso, destrinchando um roteiro tão afiado e tão repleto de diálogos inteligentes e virtuosos. É um deleite que é ampliado pelo charme noventista dos cenários - sejam os cubículos da delegacia, seja os pátios elegantes das casas -, que recriam o período de forma fervilhante, viva. Nesse sentido vale ficar atento aos detalhes, seja o nome de um filme que está em cartaz, seja um objeto cênico qualquer que possa dialogar de forma metafórica com aquilo que acompanhamos (como é o caso do arranha-céu absurdamente fálico que surge no decorrer da narrativa, em meio a mais uma das discussões envolvendo aqueles homens tão masculinizados). Talvez não fosse um fenômeno cultural chamado Titanic e esse clássico moderno teria tido mais "sorte" no Oscar de 1998. Restaram os prêmios de Roteiro Adaptado e Atriz Coadjuvante (para Basinger). O que não chega a ser pouco.


terça-feira, 19 de abril de 2022

Na Espera - Elvis (Filme)

Preciso confessar a vocês: o trailer de Elvis (Elvis) me deixou totalmente empolgado. Sim, eu sei que muitas vezes o trailer é pra isso mesmo, mas em se tratando da filmografia do diretor Baz Luhrmann - de Moulin Rouge: Amor em Vermelho (2001) e O Grande Gatsby (2013) - é possível esperar por uma experiência ainda mais fervilhante quando o assunto é o Rei do Rock. E acho que dá pra afirmar sem medo de errar que estava faltando um filme desse tamanho, que honrasse o legado do morador mais famoso da cidade de Tupelo, no Mississipi. Para os fãs da obra musical de Presley, a jornada será, claramente, um prato cheio. E pra quem curte grandes cinebiografias, também.



Com lançamento previsto, inicialmente, para o dia 14 de julho de 2022, o filme contará a história de Elvis (interpretado por Austin Butler) desde a sua infância como um completo desconhecido, passando pelo estrelato, até chegar ao seu precoce ocaso. Como uma espécie de antagonista/rival, o empresário Tom Parker (Tom Hanks) será o narrador da trama, juntando as peças dentro dos contextos histórico, político e cultural que incluem a jornada do astro na Terra. O trailer, como já disse, empolga, havendo uma grande chance de indicações ao Oscar, especialmente nas categorias técnicas. Claro, ainda é cedo. Mas, por aqui, estamos Na Espera!


Pérolas da Netflix - O Patrão: Radiografia de Um Crime (El Patrón, Radiografía de un Crimen)

De: Sebastián Schindel. Com Joaquin Furriel, Luis Ziembrowski, Guillermo Pfening e Mónica Lairana. Drama, Argentina / Venezuela, 2014, 99 minutos.

Quem assistiu e gostou do nacional 7 Prisioneiros (2021) vai encontrar em O Patrão: Radiografia de Um Crime (El Patrón, Radiografía de un Crimen) uma experiência semelhante sobre condições de trabalho degradantes e decisões extremas movidas pela violência. Se no filme brasileiro tínhamos o ambiente acinzentado de um ferro-velho como cenário - um espaço insalubre, sujo -, aqui temos um açougue como microcosmo, o que permite uma série de metáforas bastante gráficas que envolvem o manuseio de carnes de procedência duvidosa (pra não dizer podres mesmo). Na trama, o peão interiorano Hermógenes (Joaquin Furriel) encontra emprego numa rede de açougues de Buenos Aires. Semi-analfabeto e sem muito conhecimento sobre direitos e deveres envolvendo esse universo, o protagonista se sujeita a uma série de pressões e extorsões vindas de seu chefe, um certo Don Latuada (Luis Ziembrowski), que age na base da coerção com seus funcionários, quase no limite do comportamento miliciano.

Ocorre que no decorrer da narrativa não demoramos a saber que ocorreu um crime envolvendo os dois homens - com a trama derivando para uma espécie de drama de tribunal a respeito de injustiças relacionadas ao trabalho análogo à escravidão e a ineficiência do Estado na hora de analisar casos como esse. Interessado no caso, o advogado humanista Marcelo Di Giovanni (Guillermo Pfening) passará a investigar os motivos que teriam levado Hermógenes a assassinar o próprio chefe tentando, assim, atenuar sua pena. Voltando no tempo, também descobriremos detalhes da relação conturbada, que levariam o sujeito ao limite da tolerância - o que envolvia maus tratos também a sua esposa Gladys (Mónica Lairana), que passará a trabalhar como doméstica na residência de Latuada. O que ampliará a sensação de degradação já que, por não ter condições financeiras, o casal passará a habitar os fundos do açougue em que trabalham - um espaço pequeno, pouco higiênico, sem ventilação alguma.


Hábil na construção desse cenário um tanto caótico, o diretor Sebastian Schindel (do recente Crimes em Família, 2020) converte o diminuto local do açougue em um ambiente que beira a claustrofobia - sensação ampliada pelo hábito do patrão de receber carne deteriorada, aplicando na matéria-prima uma série de ingredientes e de produtos químicos (inclusive água sanitária) como forma de revitaliza-la para utilização em bifes empanados ou em carnes moídas. Não demora para que os clientes reajam e que a Vigilância Sanitária feche o local, o que só piora tudo, com Latuada cobrando do empregado não apenas os valores relativos a prejuízos financeiros, mas mantendo-o assim preso, enjaulado nesse contexto geral de precariedade. A presença de um açougueiro mais experiente, de nome Armando (German de Silva), não ajuda muito, já que é ele que ensina a Hermógenes as maracutaias do setor, o que naturaliza o processo como algo que, bom, enfim, acontece.

Baseado em fatos reais, o filme tem como grande destaque as atuações, e Furriel está tão bem na pele de Hermógenes que é quase difícil separa-lo do personagem, numa caracterização naturalista e absurdamente convincente (e se alguém me dissesse que se tratava mesmo de um empregado de açougue e não de um ator eu não hesitaria em acreditar). Tecnicamente bem executada, a obra também se utiliza da própria cenografia para uma série de rimas visuais, com a podridão sendo literalmente evidenciada a partir da carne recebida que parece, a cada dia, mais fétida, mais estragada, mais decomposta, numa alegoria perfeita para tudo o que se encontra naquele local em matéria de maus tratos e condições sub-humanas de sobrevivência. É uma experiência difícil, amarga, dolorida, quase para estômagos mais fortes. Mas quem se aventurar pela narrativa encontrará uma experiência que discute exploração no trabalho, contrastes sociais, pressões psicológicas, relações de dependência e, claro, os limites que levam o oprimido a reagir com brutalidade às violências impostas pelo opressor. Em tempos em que direitos trabalhistas e o sonho do retorno à escravidão parecem mover parte da elite, não é demais lembrar ao trabalhador a importância de lutar por aquilo que lhe pertence.


segunda-feira, 18 de abril de 2022

Grandes Filmes Nacionais - O Que É isso, Companheiro?

De: Bruno Barreto. Com Alan Arkin, Fernanda Torres, Pedro Cardoso, Luiz Fernando Guimarães e Mathes Nachtergaele. Drama / Suspense, Brasil, 1997, 111 minutos.

"É um argumento dos aristocratas, esse dos crimes que uma revolução implica. Eles esquecem-se sempre dos que se cometiam em silêncio antes da revolução". Na semana em que áudios inéditos do Superior Tribunal Militar confirmam a prática de tortura durante a Ditadura Militar (1964-1985), a frase atribuída ao escritor francês Stendhal, reproduzida acima, parece ganhar ainda mais significado. Uma revolução, afinal, não se faz com palavras - ou "com luvas de seda", como dizia Stalin. Para o bem ou para o mal os eventos vistos no clássico moderno O Que É Isso, Companheiro? - adaptação de Bruno Barreto para o livro de Fernando Gabeira e que está disponível no Mubi - possuem essa dose de idealismo de que para combater governos autoritários é preciso pegar em armas e lutar. Durante os 21 anos de opressão no Brasil não são poucos os documentos que revelam abusos praticados por órgãos de repressão ligados ao exército e que violavam um sem fim de direitos humanos.

Não se tratavam apenas de violências físicas e psicológicas contra adversários políticos dos militares. Qualquer pessoa que se colocasse contra o regime, que os questionasse, especialmente a partir da promulgação do famigerado Ato Institucional Número 5 - decreto publicado em dezembro de 1968, durante o governo Costa e Silva - estava sujeito a ser preso e punido. Não havia mais espaço para protestos. A imprensa e os artistas sofriam censura. Dissidentes era punidos. Direitos políticos eram suspensos. Uma simples reunião com pauta política poderia não ser autorizada. Era a derrocada da democracia brasileira que, ao cabo, precisava ser, de alguma forma, parada. Que foi exatamente o que aconteceu quando um grupo de estudantes abraçou a causa e se aliou a luta armada - e a coletivos como o Movimentos Revolucionário Oito de Outubro (MR8) e a Ação Libertadora Nacional (ABL), grupos organizados e mais radicalizados, que operavam na base do "olho por olho e dente por dente".


Foi nesse cenário, já em 1969, que um grupo ligado a esses movimentos perpetrou um plano que visava libertar 15 presos políticos que estavam trancafiados nos porões da ditadura. A ação tinha o objetivo de sequestrar o embaixador dos Estados Unidos Charles Burke Elbrick (Alan Arkin), chamando a atenção do mundo para os abusos que vinham ocorrendo no Brasil. Liderados pelo guerrilheiro Jonas (Matheus Nachtergaele), o coletivo que mesclava estudantes, jornalistas e intelectuais, com líderes políticos de esquerda e outros revolucionários, elaborou a estratégia que conduziria a operação. No filme, toda a tensão envolvendo o momento político brasileiro é recriada por meio de um excelente desenho de produção e com uma fotografia levemente acinzentada, que acentua o sentimento de desolação permanente vivido naquele período. Ao cabo trata-se de uma experiência que funciona muito bem no limite entre o thriller policial e o drama político.

Já o elenco é um verdadeiro show a parte, com nomes como Fernanda Torres, Luiz Fernando Guimarães, Pedro Cardoso, Cláudia Abreu, Marco Ricca e Selton Mello interpretando papeis relevantes na trama - isso sem citar as participações especiais de Othon Bastos, Fernanda Montenegro, Alessandra Negrini, Milton Gonçalves, Eduardo Moscovis, Nelson Dantas e até Lulu Santos. O resultado de tanta grandiosidade seria não apenas uma experiência que ganharia projeção internacional, como ainda figuraria na cerimônia do Oscar de 1998 - sendo lembrado na categoria Filme em Língua Estrangeira. Em tempos tão beligerantes como os que vivemos, com parte da população sonhando de forma quase delirante com uma "intervenção militar", obras como O Que É Isso, Companheiro? servem para nos lembrar do quão dolorido é um governo ditatorial. Sim, em um cenário tão bizarro como o atual, o filme soa quase datado - e até excessivamente romântico em sua abordagem. Mas a trama - bem como a necessidade de questionar - segue atemporal.


quinta-feira, 14 de abril de 2022

A Volta ao Mundo em Oitenta Filmes - White Building (Camboja)

De: Kavich Neang. Com Piseth Chhun, Hout Sithorn, Ok Sokha e Chinnaro Soem. Drama, Camboja / China / França / Qatar, 2020, 91 minutos.

Existe algo na atmosfera de filmes como White Building (Bodeng Sar) - o enviado do Camboja pra última edição do Oscar e que está disponível na plataforma Mubi - que faz com que fiquemos meio que desconfortáveis o tempo todo. Não há muito espaço pra respiro em um contexto de miséria, de doenças, de abusos de poder e de contrastes sociais, como os que vemos na estreia do jovem diretor Kavich Neang. A obra abre, por exemplo, com uma bela tomada aérea da capital Phnom Penh. Nela vemos um conglomerado de edifícios dispostos de forma meio caótica - uma confusão de cores, de objetos, de retalhos aleatórios, de fios de luz emaranhados, de cinza de reboco desorganizado, de restos de entulho que se acumulam. Aquela é a realidade dos moradores do "prédio branco" - vá lá, talvez ele já tenha sido branco em algum momento da vida - e que acompanharemos na próxima uma hora e meia.

Entre os moradores está o jovem Samnang (Piseth Chhun) que, ao lado de outros dois amigos sonha em ser dançarino de hip hop - a arte poderá ser um caminho para ganhar a vida, já que seu pai (Hout Sithorn) é um escultor aposentado, que trabalhava para o Estado. Só que essa é uma história de perdas. E de perdas permanentes. Quando um dos amigos de Samnang tem a oportunidade de se mudar para a França - há um familiar que reside lá -, a ideia de dançar é abandonada. A pobreza faz com que as necessidades mais básicas também deixem de ser atendidas: interessado no terreno em que está o prédio, o Estado oferece um valor patético de subsídios aos moradores para a compra. O que gerará longas discussões entre os habitantes do local, que dificilmente chegarão a um consenso. Em meio a tudo, o prédio parece apodrecer a olhos vistos. Falta infraestrutura, limpeza, água.

Pródigo em utilizar rimas visuais, o diretor esbanja uma eficiência quase exagerada na persistência em mostrar paredes embolorados, tetos com infiltrações, lixo acumulado. É a metáfora perfeita para uma sociedade desorganizada e cheia de disparidades, que mantém uma elite encastelada, enquanto o povão permanece na miséria. Aliás, qualquer semelhança com outros países de Terceiro Mundo não é mera coincidência. Enquanto os empresários de construtoras ligados ao Estado visitam o condomínio em seus carrões, Samnang vê se pai sucumbir aos poucos, vitimado por um quadro avançado de diabetes - e, admito que poucas vezes vi um filme tão realista na hora de abordar as dificuldades relacionadas à doença. Ter sido empregado do Estado não ajuda o idoso em nada. Indo pra lá e pra cá, precisará de uma cirurgia para a qual a família não possui a capacidade de arcar.

Nesse sentido, trata-se de uma experiência que é sutil na hora de apresentar os problemas políticos, sociais, culturais - não se esfrega na cara o absurdo de um País regido por uma monarquia, que ainda sofre os efeitos de uma série de conflitos internos. Ou mesmo o processo de gentrificação vivido pela população cambojana - especialmente aquela que está nos grandes centros. E a meu ver aí está uma das mágicas de experimentar filmes de outros países, não tão óbvios. É um processo de descoberta em que vamos tateando, inferindo. Exibida no Festival de Veneza, a obra fez sucesso em outras premiações mundo afora. E deu visibilidade para uma série de dramas domésticos que ecoam dores muito maiores. Daquelas que desestimulam o lado mais fraco a seguir lutando. Por qualquer pedaço que seja. De casa, de carne, de vida. Sem soluções. Sem heróis imediatos. Sem um Deus ex-machina que salve o dia.

quarta-feira, 13 de abril de 2022

Pitaquinho Musical - Jack White (Fear of the Dawn)

Quem acompanha de perto a carreira do Jack White sabe que, geralmente, ele não é muito de invencionices. Salvo um ou outro flerte com algum estilo musical que não seja o rock e alguns barulhinhos e plinplóns mais experimentais - como no caso do anterior Boarding House Reach (2018), o que pega mesmo é a guitarreira, que normalmente vem acompanhada de uma bateria que dita o ritmo de forma direta. Já era assim na época do White Stripes. Não mudou muito na carreira solo. E, bom, muito provavelmente não iria ser em 2022 que o artista iria reinventar a roda. Ao cabo, Fear of the Dawn é tudo aquilo que os fãs poderiam esperar desse novo trabalho do músico. É jogo em casa, com a torcida do lado, apoiando o tempo todo. Estão lá as letras verborrágicas, enigmáticas e cheias de divagações, uma certa selvageria (ainda que relativamente bem comportada) da sonoridade e um imediatismo que parece combinar com esse pós-pandemia em que a gente só deseja sentar em um barzão descolado pra tomar aquele chope gelado. Sim, talvez os detratores já estejam meio cansados. Mas músicas como That Was Then, This is Now provam que o guitarrista ainda tem lenha pra queimar. O que talvez explique a ideia de lançar um segundo registro ainda em 2022 - no caso Entering Heaven Alive, que chega as plataformas no dia 22 de julho.




Novidades em Streaming - Zola (Zola)

De: Janicza Bravo. Com Taylour Paige, Riley Keough, Colman Domingo e Nicholas Braun. Drama, EUA, 2020, 90 minutos.

O primeiro filme da história com um roteiro baseado numa thread do Twitter. Esse é Zola (Zola), obra dirigida por Janicza Bravo que parte de um relato real - no caso um longo fio de 148 twits sobre uma noite insana, repleta de situações inesperadas e inusitadas envolvendo uma stripper e um convite para um trabalho que, bem, não era bem o que a dançarina esperava. A história verdadeira ocorreu em 2015 quando uma jovem chamada A'Ziah King fez uma sequência de postagens a respeito de um final de semana maluco na Flórida, com uma garota que ela tinha acabado de conhecer no restaurante em que trabalhava como garçonete. A ideia era viajar para o Estado na intenção de fazer dinheiro dançando em boates de strip. Só que não demora pra que a coisa saia do controle e passe a envolver cafetões, criminosos, clientes bizarros, tiros, mortes e uma série de plots que tornam tudo ainda mais estranho.

Produzido pela A24 - o que me atraiu para o projeto que está disponível na HBO Max -, o filme tem a marca das obras ligadas ao estúdio, como é o caso da trilha sonora pitoresca, da fotografia desbotada e de outras escolhas técnicas pouco óbvias, como os ângulos de câmera ostensivamente próximos e os detalhes cênicos criativos (seja uma proteção de celular, um componente dos figurinos ou um objeto qualquer que se sobressai). Sexy, suja, extravagante, debochada, a história é capaz de ir do histrionismo aleatório ao silêncio sepulcral em segundos - e sem se perder pelo caminho. Na trama, a protagonista é a Zola do título original (papel de Taylour Paige), que é convidada por Stefani (Riley Keough) para essa temporada no inferno do extremo sudeste dos Estados Unidos. À dupla se junta o submisso namorado de Stefani, Derrek (Nicholas Braun) e o violento cafetão X (Colman Domingo).

E o que começa como uma divertida viagem, com brincadeiras safadas dentro do carro, pouco a pouco avançará para uma vertiginosa narrativa tensa, de suspense, com o perigo podendo emergir de formas variadas. O caso é que Zola queria apenas dançar e ganhar dinheiro com isso. Exibir o corpo e arrancar uns trocados de uns perdedores que frequentam alguma boate decadente. Mas Stefani engana a protagonista. Bom, não apenas isso: cadastra ela e a si própria em um site de encontros, o que, não demora, atrai interessados (para desgosto de Zola). Só que como se livrar disso, uma vez que ela se sentirá aprisionada nesse microcosmo violento e ameaçador? A sua maneira, Zola vai se embrenhando por essa espiral, tentando achar uma brecha para o respiro. Com o espectador indo a tiracolo e sem saber direito o que pode acontecer no segundo seguinte.

Sim, talvez não seja assim tão criativo ou inovador - são muitos, afinal, os filmes nessa pegada que misturam Striptease (1996) com Se Beber Não Case (2009), com algumas boas pitadas de Tangerine (2015). Mas há alguns detalhes que adicionam personalidade ao projeto, como o uso constante dos barulhinhos de mensagens no Twitter (que podem até deixar alguns desavisados meio confusos), ou a opção por usar a "linguagem falada" mesmo quando esta retira uma boa dose de verossimilhança do roteiro. Talvez tenha faltado um pouco mais de contexto, com as nuances políticas, sociais e culturais da atualidade surgindo de forma tímida. No mais, é uma obra que tem intensidade mas que sabe recuar na hora certa, apostando ainda nas ótimas interpretações de todo o elenco - e as diversas nomeações no Independent Spirit Awards atestam a qualidade do projeto.

Nota: 7,5

terça-feira, 12 de abril de 2022

Novidades em Streaming - Azor (Azor)

De: Andreas Fontana. Com Fabrizio Rongione, Stéphanie Cléau, Juan Trench, Ignacio Vila e Pablo Torre Nilson. Drama, Argentina / França / Suiça, 2021, 100 minutos.

"Essa cidade conheceu o caos meu amigo. Desde então, estamos passando por uma fase de purificação. Agora devemos reeducar todos os jovens. Mas, há certos elementos lamentavelmente irrecuperáveis. Há que se erradicar os parasitas, até mesmo nas melhores famílias, não concorda?" Dita pelo monsenhor Tatoski (Pablo Torre Nilson) ao banqueiro suíço Ivan de Wiel (Fabrizio Rongione) com voz plácida, de forma pouco apressada, talvez a frase pudesse passar um pouco mais batida em um outro contexto, que não o do auge da última Ditadura Militar argentina - que foi de 1976 a 1983. Tatoski, assim como tantos outros integrantes de um prestigioso clube de esgrima, é membro da elite do País vizinho. Aquele coletivo que vive em uma bolha de riqueza, em meio a mansões luxuosíssimas, festas pomposas, piscinas, gastronomia farta, boa bebida. E discussões vagas sobre o futuro do País - e sobre como o contexto político, econômico, social e cultural de dominação imposto por eles, garante a manutenção de privilégios e, consequentemente, o aumento da pobreza, dos contrastes, da miséria.

Sim, Azor (Azor), o ótimo filme do diretor Andreas Fontana - uma das novidades da plataforma Mubi -, mergulha de cabeça no regime militar dos hermanos, mas sem mostrar uma cena sequer que seja mais clara em termos de opressão, de perseguições a opositores políticos, de cassação de direitos, de violência escancarada ou de implosão das instituições. Encastelados em suas belas propriedades, os burgueses de Fontana são retratados como um grupo preocupado com seus próprios interesses - mas sem deixar isso necessariamente claro para o espectador. A nós, caberá ir juntando uma ou outra pista daquilo que vai nos sendo entregue na econômica narrativa - recheada por silêncios, composta muito mais por olhares (ou pelo não dito do que pelo dito) -, para montar o quebra-cabeças que, ao cabo, tornará tudo cristalino. E que é o fato de que, em qualquer País do mundo dominado por grandes empresários, banqueiros, políticos corruptos, representantes da Igreja e militares, quem se dá mal mesmo é quem ocupa a base dessa pirâmide.

Retirado da tranquilidade do País nórdico europeu, Wiel vai parar na argentina depois de, misteriosamente, o seu sócio no banco privado - um certo René Keys (Alain Gegenchatz) - desaparecer em meio a circunstâncias desconhecidas. Acompanhado da esposa Inés (Stéphanie Cléau), o protagonista precisa utilizar uma boa dose de jogo de cintura para manter os seus clientes - e na verdade retirar deles qualquer preocupação financeira que possa surgir dali pra frente -, ao mesmo tempo em que tenta descobrir o que possa ter ocorrido com Keys. E tudo piora quando ele vai a antiga casa do sócio e, sem obter muitas respostas, tem acesso apenas a alguns documentos que, talvez, possam lhe auxiliar a desvendar o caso. É tudo muito elegante, executado sem pressa, com Wiel trafegando de uma casa a outra, em campos, haras e outras luxuosas habitações, como uma espécie de Mastroiani em A Doce Vida (1960) - mas sem o senso de humor e o deboche perpetrados por Federico Fellini em seu clássico.

Nesse sentido, trata-se de um filme que não tem absolutamente nenhuma pressa em acontecer - e que se vale muito de seus diálogos que parecem não dizer muito, mas são reveladores (e, nesse sentido, vale ficar atento a cada trecho de conversa onde, por trás de alguma manifestação aleatória sobre a vida familiar, pode haver algum sinal que indique o rumo que Wiel para o sucesso de sua jornada). E será dessa forma, articulando aqui, se aproximando ali, recuando acolá que ele estabelecerá as bases de sua ação na Argentina. É como um jogo de xadrez executado em meio a jantares e conversas de gabinete, com a ditadura sendo explicitada de forma metafórica em ambientes claustrofóbicos (e sombrios) e ausências insinuantes. Em certa altura, em uma dessas conversas, a esposa de um negociante revela que ela e o marido são um só: "no caso, ele". O que também explicita o machismo dos ambientes autoritários, com homens que não hesitam em empunhar revólveres, ainda que o tom de voz possa sugerir o contrário. Em tempos que flertam com o autoritarismo como os que vivemos, vale ficar atento.

Nota: 8,5

segunda-feira, 11 de abril de 2022

Cinema - Tre Piani

De: Nanni Moretti. Com Ricardo Scamarcio, Alba Rohrwacher, Nanni Moretti e Margherita Buy. Drama, Itália / França, 2021, 116 minutos.

Quem acompanha de perto a carreira de Nanni Moretti sabe que o diretor italiano trafega muito bem entre a comédia de costumes e o drama familiar - ás vezes na mesma obra, como no caso do recente Mia Madre (2015). Em Tre Piani, mais recente trabalho do realizador e que está em cartaz nas salas do País, a narrativa é dominada muito mais pelas situações dolorosas do que por aquelas que envolvam algum tipo de "respiro". Centrada na história de três famílias que vivem no mesmo condomínio de classe alta, a trama parte de um evento traumático para todos ali: dirigindo alcoolizado, o jovem Andréa (Alessandro Sperduti) atropela uma mulher ao tentar desviar de Monica (Alba Rohrwacher), uma grávida que pedia socorro na rua após a sua bolsa ter estourado. Como se a catástrofe não fosse suficiente, o rapaz ainda bate o carro na sala de Lúcio (Ricardo Scamarcio), gerando uma série de outros prejuízos - financeiros e emocionais.

Sim, porque o acidente faz com que Lúcio e a esposa Sara (Elena Lietti) passem a precisar muito mais da ajuda do vizinho idoso Renato (Paolo Graziosi) para que este cuide da pequena filha Francesca (Chiara Abalsamo). Só que, próximo dos 80 anos, o homem está passando por crises de demência aparente - e quando ele desaparece junto com Francesca, Lúcio passa a ter a convicção de estar diante de um crime sexual envolvendo a filha. Em um primeiro momento pode parecer tudo meio embaralhado, mas a intenção de Moretti, ao nos apresentar esse microcosmo social tão conectado, parece ser exatamente esse: a vida é feita de uma coleção de situações complexas, eventualmente inusitadas, com decisões nem sempre acertadas - e que poderão influenciar (e transformar) decisivamente a vida de todos os envolvidos. Parentes, vizinhos, amigos.

Andréa, por exemplo, se sente abandonado pela própria família, a partir da decisão de seu pai Vittorio (Nanni Moretti), um renomado juiz de Roma, em não abusar de seu poder para ajudar o filho - o que acarretará o afastamento do jovem, que é julgado e preso de acordo com o que prevê a Lei. Já Lúcio é seduzido pela bela adolescente Charlotte (Denise Tantucci), que é neta de Renato - vendo-se ele mesmo envolvido em episódio de suposto estupro. No filme de Moretti não parece haver muito espaço para olhar para trás e reavaliar a trajetória feita até ali. A vida é para frente e será necessário para todos ali encarar seus próprios traumas, amadurecer a partir deles, aprender a perdoar (ou não). Ter empatia quando necessário. E outras habilidades sociais em meio a um contexto em que as crises pessoais são encaminhadas de forma solitária, com abnegação.

Nessa teia em que as relações entre os personagens vão no limite do amor e do ódio é possível fazer um recorte que envolve o nosso próprio tecido social - cheio de pessoas, de ocorrências, de imprevisibilidades. Hábil, Moretti utiliza a sua câmera para "eviscerar" aquele contexto de vizinhanças desconfiadas, de familiares desagradáveis, de olhares de lado, de paranoias generalizadas. Muitas são cenas internas no condomínio, com moradores batendo a porta uns dos outros, ocupando espaços, dialogando. E envelhecendo também - o que é evidenciado pelos diversos saltos temporais, em que as feridas são enfim saradas e que as voltas dadas tornam a reequilibrar tudo. No mesmo ano em que mundo viu Titane (2021) faturar a Palma de Ouro em Cannes, Moretti apresentou a sua visão singular da sociedade que avança, nesse novelão que foi adaptado do livro do israelense Eshkol Nevo. Não chega a ter o impacto de um O Quarto do Filho (2001). Mas nunca há desperdício na filmografia de Moretti.

Nota: 8,0

 

sexta-feira, 8 de abril de 2022

Pitaquinho Musical - Father John Misty (Chloë and the Next 20th Century)

Não sei explicar muito bem qual o efeito causado pelo Father John Misty, mas quase sempre começo não gostando tanto assim de seus novos trabalhos. Ouço uma vez, duas. Lá pela terceira já estou sendo absorvido pelo seu experimentalismo nunca óbvio, pelas curvas sinuosas de seus arranjos e pelas sempre ambiciosas e bem-humoradas letras. Ao cabo, Chloë and the Next 20th Century é, assim como seus outros registros, um disco que vai te ganhando aos poucos, meio que na persistência. Sim, em tempos tão acelerados de Tik Tok parece um contrassenso ouvir um álbum de mais de 50 minutos com melodias que evocam standards tocados em filmes antigos dos anos 40, que se mesclam a um pop que vai no limite entre a bossa nova e a fantasia lúdica e orquestral. Bem menos sério do que no ironicamente pessimista God's Favorite Customer (2018), Josh Tilman entrega aqui uma coleção de narrativas de amor meio tortas, de cotidianos inventados e de indulgência espalhafatosa. Um bom exemplo de todos esses recursos está na saborosa Goodbye Mr. Blues (Esta pode ser a última, a última vez que coloco meus sapatos / Desço até a esquina e compro para o maldito gato a ração mais cara). Mas há mais, muito mais. Quem se aventurar, certamente será recompensado!


quinta-feira, 7 de abril de 2022

Tesouros Cinéfilos - Os Amantes do Círculo Polar (Los Amantes del Circulo Polar)

De: Julio Medem. Com Fele Martinez, Kristel Diaz, Peru Medem, Najwa Nimri, Nancho Novo e Beate Jensen. Drama / Romance, Espanha, 1998, 112 minutos.

Coincidências, acontecimentos aleatórios, situações inesperadas. O mundo que parece às vezes dar uma volta inteira pra retornar ao mesmo lugar. O tempo que dá a impressão de andar mais devagar nos dias frios. Em Os Amantes do Círculo Polar (Los Amantes del Circulo Polar), pequena joia disponível no Mubi, a região ártica surge frequentemente como uma metáfora para esse ciclo eterno que intercala inverno e verão, tristeza e felicidade, vida e morte. A imprevisibilidade, afinal, faz parte de nossa existência. Alguém que a gente conhece sem querer. Um desconhecido que passa pelo nosso dia e, ao final dele, é um novo amigo. Um interesse amoroso que, mesmo sem saber muito, já nos encanta. E é justamente isso o que ocorre com Otto (Peru Medem), um menino de apenas oito anos que é impactado pelo olhar de Ana (Najwa Nimri), após correr atrás de uma bola, em uma despretensiosa partida de futebol no pátio da escola.

Aquela bola que sobe e desce, esférica. Com três dimensões. Assim como o globo terrestre, o sol e muitos outros objetos que rimam perfeitamente com a ideia de volta, de ciclo, de completude. Enquanto cresce, Otto não entende porque seu pai Álvaro (Nancho Novo) deixou de amar a sua bela mãe (Beate Jensen). Só que quando um Otto já adolescente (Fele Martinez) vê seu amor por Ana consumado ele, de certa forma, também corta o laço que o unia a sua mãe. Com o desfecho dessa espécie de abandono involuntário sendo não menos do que trágico. Para a Ana adolescente (Kristel Diaz) também há um rompimento: Otto não é mais tido como uma figura masculina que substitui o pai. Ele tem voz própria. Que ecoará. Por anos, por mais de uma década. Em uma série de idas e vindas, de encontros e desencontros (ou de quase encontros, vá lá) em que tudo que parece ter sobrevivido é a memória do acontecido, a lembrança de algo arrebatador, a persistência de algo que nunca parece concluído de fato.

Otto e Ana. Ana e Otto. Dois nomes que podem ser lidos de trás pra frente como se lê de frente pra trás. Dois palíndromos. Dois fins que são começos, dois começos que são fins. Ou o contrário? Essa divagação filosófica que existe ali no andar de baixo da narrativa construída por Julio Medem se soma a outras extravagâncias visualmente metafóricas como o sol que, nos polos, nunca se põe, ou mesmo a ideia que a morte de alguém - mesmo de um ente querido - pode significar uma espécie de recomeço. Em outro local. Geográfico. Ou não. Enigmático, mas nunca pretensioso, o filme nos leva de lá pra cá como se estivéssemos diante de um filme de ficção científica dirigido por Pedro Almodóvar. Mas uma ficção discreta, não muito histriônica. Mas vibrante, ainda que a fotografia empalidecida, quase desbotada, possa sugerir o contrário.

Há, por exemplo, uma série de intervenções naturais ou não - seja de um vento forte e inesperado que aparece em um instante em que o coração acelera ou mesmo uma batida de carro meio boba, mas com enormes consequências -, que vão nos guiando de forma vertiginosa, em meio a instantes que flertam com o realismo fantástico (como no momento em que Otto, alucinando, tem a impressão de subir uma montanha gelada com esquis). Em outros segmentos a história de desenrola com uma fluidez plácida, com paciência, para que as coincidências possam ser melhor apreciadas pelo espectador - em meio a aviões de papel que, ali adiante, se converterão em um vôo real. Talvez não seja para todos os paladares, mas aqueles que se aventurarem encontrarão uma obra que fala de amor de uma forma nunca óbvia. E nos lembrando o tempo todo de que a vida, ao final, é essa grande coleção de fragmentos colados uns nos outros, recheados por situações inesperadas, caóticas, doces e amargas. tudo aquilo que converte a vida em uma experiência não menos do que mágica.

quarta-feira, 6 de abril de 2022

Pitaquinho Musical - Red Hot Chili Peppers (Unlimited Love)

Eu tentei, eu juro que tentei. Várias vezes, inclusive. Mas existe algo no novo disco do Red Hot Chili Peppers que faz com que tenhamos a impressão de que ele não ORNA com 2022. Sim, sabemos que a nostalgia vende, que há todo um clima "familiar" no retorno de John Frusciante depois de 15 anos longe da banda. Mas essa aura anos 90 de rádio rock em meio à fila de abastecimento no posto de gasolina (o combustível só aumenta, afinal) só parece meio deslocada no tempo. Até é muito provável que Unlimited Love, por mais inchado que seja com suas 17 faixas e 73 minutos de duração, não seja um trabalho desprezível - os fãs certamente se sentirão contemplados em bons hits como Aquatic Mouth Dance, Black Summer e These Are The Ways. Mas esse é o ano em que a gente assiste a Rosalía misturando música flamenca com jazz. Que o Big Thief converte o dream pop em uma espécie de mantra sobrenatural. E até que veteranos como o Tears for Fears se oxigenam para adentrar aos novos tempos. Assim, mesmo com quase 40 anos de existência, o RHCP soa apenas pálido com seu novo registro. Uma experiência que, por vezes, beira o marasmo. Por melhores que sejam as intenções.




Novidades em Streaming - Drive My Car (Doraibu Mai Ka)

De: Ryusuke Hamaguchi. Com Hidetoshi Nishijima, Reika Kirishima, Masaki Okada e Toko Miura. Drama, Japão, 2021, 179 minutos.

Se Drive My Car (Doraibu Mai Ka) fosse uma torta daquelas bem vistosas que vemos nos balcões de padarias, certamente poderíamos compara-la com aquele doce coberto de merengue. E por mais que a gente não saiba exatamente o quê vai encontrar no recheio, vai saboreando com gosto cada garfada. Com calma, sem pressa. Sentindo a textura, tentando desvendar os ingredientes ou quais os sabores que aquela mistura evoca. Nas aparências, a obra do diretor Ryusuke Hamaguchi - vencedora do Oscar na categoria Filme em Língua Estrangeira nesse ano e que está disponível na plataforma Mubi -, é "apenas" mais uma grande reflexão existencialista que é salpicada por temas que envolvem arrependimentos, memórias, luto, persistência, destino e envelhecimento. Já em seu cerne, em suas vísceras, trata-se de um amplo tratado sobre a complexidade humana, sobre dores, anseios, desejos e frustrações. É, ao cabo, uma experiência cheia de nuances, de detalhes e de encaixes que mal parecem caber nas suas elásticas três horas de duração.

Como fio condutor temos a história de Yusuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima) um ator e diretor de teatro que, após uma bem sucedida temporada encenando o clássico de Beckett Esperando Godot, se prepara para as audições de uma adaptação de Tio Vânia, de Anton Tchekov (e aqui, na arrancada, só nos aspectos metalinguísticos dessas duas clássicas obras, já temos um sem fim de possibilidades intertextuais relacionadas à espera, paciência e desejo pelo desconhecido, banhadas em angústias, dúvidas e almas devastadas). Não por acaso, as longas e persistentes viagens de Yusufe à bordo de seu Saab 900, enquanto recria as falas da peça russa funcionam como uma espécie não apenas de expiação, mas também de manter a falecida esposa Oto (Reika Kirishima), como uma presença viva, palpável, diante da total impossibilidade de avançar para além do sentimento de culpa diante de decisões que podem ter contribuído para a morte da própria mulher.

Sim, Oto morre ainda no primeiro terço, quando os créditos iniciais ainda nem surgiram na tela, em decorrência de um aneurisma cerebral. Yusuke havia descoberto dias antes uma traição envolvendo um estagiário de Oto, que atuava em um dos programas de TV de grande sucesso roteirizado por ela. Ao optar por esconder o segredo que estava em seu conhecimento, o protagonista decide não confrontar esse passado que, invariavelmente, dialoga com o futuro de ambos. E ao retardar até o limite a possibilidade de diálogo, Yusuke enterra não apenas a esposa, mas também uma série de dúvidas e de questionamentos que, agora, serão praticamente impossíveis de serem acessados. Ou não. Já que quando o jovem Koji (Masaki Okada) ressurge na vida de Yusuke pleiteando uma vaga no elenco de Tio Vânia, esta poderá ser uma oportunidade de superar o luto e tentar entender o que pode ter acontecido dois anos antes.

Em paralelo a tudo isso, Yusuku precisa lidar ainda com a sua nova motorista - no caso a jovem Misaki (Toko Miura) - de quem, aos poucos, se aproximará. Dali, do inesperado, em meio as idas e vindas de carro entre o hotel e o local de trabalho, brotarão confissões a respeito de dores, de segredos e de uma série de outros sentimentos mútuos, que serão explorados sem pressa, de forma bastante sutil, estabelecendo a intimidade aos poucos, de maneira tópica. Aliás, assim como é a vida real. Assim como as mazelas não são arremessadas instantaneamente na nossa cara, as pequenas reconstruções de cacos envolvendo todos ali também não são - e é por isso que instantes comoventes como o do jantar mexem tanto conosco. São pequenas frações, detalhes minúsculos, que funcionam como uma grande colagem, montada em formato de quebra-cabeça. E é desse conjunto de sentimentos reprimidos, de sombras do passado que, aos poucos, vai se erguendo a força necessária para seguir adiante.

A vida, afinal, não é fácil. Ela é complexa, cheia de dores, de perdas, de conquistas, de acontecimentos aleatórios, inesperados, felizes e tristes. Cabe a nós todos termos a capacidade de elaborar em meio a tudo isso para uma convivência minimamente aceitável em sociedade. Segredos? Todos temos. Questões que nos invadem, nos incomodam, nos fazem sofrer. Mas como fazemos para prosseguir? Nas entrelinhas essas perguntas parecem martelar o tempo todo em Drive My Car e talvez seja por isso que sua metragem estendida pareça ainda mais longa do que o normal: é doloroso, mas magnífico, difícil mas libertador. Ao cabo trata-se de um filme monumental, gigante, que não alivia. Um road movie torto, sem muito espaço para exageros estilísticos. Que fica martelando dias depois. Direto, seco, mas saboroso. Assim como é aquele pedaço de torta que se revela por debaixo do merengue. Os prêmios não são por acaso. É um dos filmes do ano.

Nota: 9,5

segunda-feira, 4 de abril de 2022

Novidades em Streaming - Turma da Mônica: Lições

De: Daniel Rezende. Com Giulia Benitte, Kevin Vechiatto, Gabriel Moreira, Laura Rauseo, Monica Iozzi, Isabelle Drumond e Paulo Vilhena. Comédia / Aventura, Brasil, 2021, 90 minutos.

Vamos combinar que, pra galera que tá na faixa dos 40 anos - caso do jornalista aqui -, o que pega com a franquia Turma da Mônica, no cinema, é a nostalgia. Pura e simples. E isso torna praticamente impossível analisar esse Lições como analisaria qualquer outra obra. Porque aqui sou afetado por outro sentimento. Aliás, um sentimento que me faz abrir um sorriso de cinco em cinco minutos ao ser surpreendido pelo surgimento de algum personagem inesperado, por um easter egg ou por qualquer outro acontecimento que me faça retornar pra infância por alguns instantes. Poucas pessoas sabem, mas eu cresci acompanhado das revistinhas da Mônica, do Cebolinha, do Cascão, da Magali. Talvez o Picanha só exista por causa deles, vai saber. O profissional de assessoria de imprensa sem dúvida que sim. Ler e, consequentemente, escrever, teve muito a ver com as histórias criadas por Mauricio de Souza.

Então, pessoal, entendam. É diferente. Já era no antecessor Laços. Segue sendo agora. O filme de Daniel Rezende é, afinal, só mais uma desculpinha qualquer pra reencontremos o carismático e inseparável quarteto formado por Mônica (Giulia Benitte), Cebolinha (Kevin Vechiatto), Cascão (Gabriel Moreira) e Magali (Laura Rauseo). Na trama, em meio a ensaios de uma peça baseada em Romeu e Julieta, os amigos se veem em maus lençóis quando, numa tentativa de escapar do escola, a Mônica tem uma queda de um muro alto, o que faz com que ela quebre o braço. O evento é o estopim para que os pais deles tomem uma drástica decisão que faz com que a dona do Sansão troque de colégio. É uma forma de tentar afastá-los um pouco, o que evitaria outras situações caóticas. Aos amigos que ficam resta a resignação - por mais que o Cebolinha agora tenha, efetivamente conquistado, o posto de "dono da lua". Quer dizer, isso quando ele não está sendo importunado pelo Tonhão da rua de cima.

Já para a Mônica em meio a uma tentativa e outra de amizade ela também é confrontada pelo valentão local, um certo Pedrão (Vitor Queiroz). Tudo piora quando o sujeito se apodera do Sansão e, bom, isso desperta sentimentos ambíguos no Cebolinha que, ao saber do caso, se vê impelido a resgatar o coelho de pelúcia da protagonista. Claro que tudo não passa de um belo pretexto pra uma série de mensagens sobre amizade, companheirismo, amadurecimento, respeito às diferenças. Em uma nova escola, Mônica precisa reaprender a se relacionar - já que está longe dos amigos de coração. Já no outro colégio, os demais tentam seguir em frente sem a liderança de Mônica. E conforme o filme se desenrola há um sem fim de situações que servem de desculpa para a inserção de outros personagens queridos pelo público - casos do Humberto, do Do Contra, da Marina, do Nimbus e até do Chico Bento (em uma inesperada aparição).

Contando com o apoio de rostos famosos no elenco adulto, como Monica Iozzi (Dona Luisa), Paulo Vilhena (Seu Cebola) e Felipe Castanhari (fotógrafo do bairro do Limoeiro), a obra também conta com a participação de Isabelle Drumond, que dá vida à Tina, em um dos segmentos mais simpáticos do filme - aliás, ela surge acompanhada do Rolo (com direito a cabelo azul e tudo), da Pipa e do Zecão, como um coletivo de hippies que primam pela sustentabilidade (outra mensagem). No mais, trata-se de uma obra que esbanja carisma e que é tratada por todos ali com muito carinho - inclusive pelo próprio Maurico de Souza que, do alto dos seus 86 anos, surge em uma ponta como o Tio da Cantina (e ver ele dizendo pra Magali, diante de sua inescapável voracidade, "quem foi que inventou essa menina?" é o tipo de piadinha tão boba quanto simpática). Pode reunir a família e dar o play sem erro. Tá disponível na Amazon Prime e todo o mundo vai curtir.

Nota: 8,0

sexta-feira, 1 de abril de 2022

Pitaquinho Musical - Rosalía (Motomami)

Falar de relações de forma dramática, sexy, bem humorada, misturando reggaetown, jazz, samba, trap, flamenco e até canções de ninar. Parece tanta coisa ao mesmo tempo que, afirmar que Rosalía meio que reinventa a música pop com o elogiado Motomami, seu terceiro trabalho, não é exagero. Avançando um passo em relação ao já ótimo El Mal Querer - nosso 19º melhor na lista de 2018 -, a artista espanhola converte o registro em um amálgama de canções que se conectam ainda que, muitas vezes, pareçam tão diferentes entre si. Enquanto G3 N15 é uma pequena homenagem ao seu sobrinho - e sobre o mundo que ele enfrentará ao entrar na adolescência -, a envolvente Hentai fala de sexo de uma forma tão inesperadamente elegante (eu quero andar em você como ando na minha bicicleta [...] Eu quero te fazer hentai) que não é difícil entender porque ela é saudada como a vanguarda da música eletrônica. Ousado, classudo, global, esse é um disco que vai no limite entre a homenagem ao passado (Delirio de Grandeza) e o passeio pelo futuro (Saoko). Com uma parada exatamente aqui onde estamos: nesse mundo caótico, urgente e que clama por boa música.


Novidades em Streaming - Pequena Mamãe (Petite Maman)

De: Céline Sciamma. Com Joséphine Sanz, Nina Meurisse, Gabrielle Sanz e Margot Abascal. Drama, França, 2021, 72 minutos.

Existe uma cena no comecinho de Pequena Mamãe (Petite Maman), filme disponível na plataforma Amazon Prime, que dá o tom daquilo que encontraremos no novo filme da diretora Céline Sciamma (do incensado Retrato de Uma Jovem em Chamas). Nela, a pequena Nelly (Joséphine Sanz), de apenas oito anos, está no banco de trás do carro dirigido pela mãe (Nina Meurisse). Ambas estão retornando do funeral da avó da garota (Margot Abascal). Um momento de luto, portanto, para ambas. Como forma de tentar afagar a entristecida mãe, Nelly oferece a ela algumas unidades de salgadinho enquanto ela dirige. Lhe estica também até a sua boca, um gole de suco em caixinha. Um abraço envolve o pescoço da motorista, que esboça um sorriso. A forma ao mesmo tempo generosa e cheia de ternura com que Nelly se empenha em acarinhar a própria mãe comove. E estabelece um vínculo que permanecerá durante toda a narrativa.

Ao cabo, Pequena Mamãe é um filme, com o perdão do trocadilho, pequeno. São pouco mais de 70 minutos de uma jornada encantadora e lúdica sobre luto na infância, memória e formas de prosseguir. Após o falecimento da avó, Nelly vai com a sua mãe e o seu pai para a casa onde a primeira morou na juventude. Um local cheio de lembranças. Físicas, nostálgicas, em algum recanto do cérebro. Assim que chegam ao local, os adultos começam a arredar moveis, a mexer em objetos. Reconhecem uma pintura desgastada na parede que tinha algum significado. Riem. Quando vão dormir, a mãe comenta com a filha sobre os medos que tinha quando era pequena. De coisas desconhecidas, de aparições na beira da cama - ela cita uma pantera que surgiria aos seus pés. A menina adormece ao lado da mãe. Que no dia seguinte desaparece. A nós espectadores a incerteza. A mãe morreu? Ou apenas saiu dali?

Quem nunca passou, quando criança, pela curiosa situação de conviver com uma "mentirinha de adulto". Especialmente quando o assunto é a morte, alguém doente, um assunto qualquer que seja mais sério, mais duro. Ainda que necessário. Após o desaparecimento da mãe, Nelly vai para o mato ao redor da propriedade, onde pretende descobrir o local em que fica uma espécie de cabana junto a uma árvore, que havia sido construída por sua mãe na juventude. Quando identifica essa casa improvisada, Nelly encontra também a jovem Marion (Gabrielle Sanz), também uma menina de oito anos bastante parecida com ela. Ambas estabelecem uma amizade, brincam juntas, riem enquanto fazem panquecas ou ensaiam uma peça de teatro. Vida e arte se misturam, assim como passado, presente e futuro. Na imaginação das crianças não há muita lógica. Há apenas os caminhos percorridos que as permitem sobreviver nesse mundo tão cheio de dor.

Com sutileza, com elegância Céline Sciamma constroi uma obra de fotografia granulada, que se aproveita dos cômodos da casa para a criação de um ambiente labiríntico, mas que funciona como espaço físico que evoca memórias. O "segredo" talvez não seja assim tão complicado de se desvendar, mas isso é o de menos, já que o que importa aqui é a visão juvenil para suportar a dor, a doença, o luto. Pra nós nunca fica claro se Nelly está sonhando uma fantasia onírica, com Marion sendo uma espécie de amiga invisível que lhe permite a expiação. E os adultos, nessa equação, não ajudam muito, com seu comportamento discreto, pouco evidente. No final, Pequena Mamãe é um filme não tão fácil, mas que fica em nossa mente no momento em que os créditos sobem. A vida é complicada, afinal. E a forma como elaboramos as nossas mazelas é o que faz com que tenhamos motivação pra seguir em frente.

Nota: 8,5