segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Novidades no Now/VOD - Alguém Avisa? (Happiest Season)

De Clea Duvall. Com Kristen Stewart, Mackenzie Davis, Alison Brie, Dan Lavy, Mary Steenburgen e Victor Garber. Comédia romântica, EUA, 2020, 101 minutos.

Podemos dizer que já temos, oficialmente, o filme fofinho de Natal - aquele que chega pra dar o famoso "calorzinho" no coração. E o melhor de tudo: Alguém Avisa? (Happiest Season) acrescenta uma boa dose de complexidade ao tema das relações humanas, investindo em camadas que tornam a obra muito mais do que a simples comédia escapista para toda a família. Na trama, Kristen Stewart e Mackenzie Davis são o casal Abby e Harper que resolve viajar para a casa dos pais da segunda para passar o feriado de final de ano em família. Mas há um problema: Harper revela, no meio do caminho, que ainda está no "armário": não contou para os pais que possui uma namorada e deseja que Abby se comporte, durante os cinco dias de estada, apenas como a amiga que divide o apartamento com ela. Meio a contragosto, Abby aceita a tarefa e, bom, conhecendo os clichês do gênero a gente sabe que será questão de tempo para que tudo, muito provavelmente, saia do controle.

Na chegada as coisas já se mostram bastante esquisitas e, é preciso reconhecer que a personagem da Kristen Stewart mereceria certamente um prêmio de namorada mais paciente da história. Não bastasse ter de se comportar ao lado de seu grande amor como sendo apenas uma amiga, ainda é relegada a um quarto no porão da casa, sem nenhum privacidade e isolada de tudo. Bastante conservadora, a família está em plena campanha política para que o pai de Harper, Ted (Victor Garber), se torne prefeito, o que o tornará obcecado pela manutenção da reputação familiar (e uma filha lésbica poderia ser um "gol contra" na campanha eleitoral, especialmente em uma cidade provinciana cheia de famílias de bem). E a cereja do bolo é a mãe de Harper, Tipper (a sempre ótima e engraçada Mary Steenburgen). Preocupadíssima com as aparências, "vende" na recém criada conta do Instagram a imagem da perfeição, o que inclui as irritantes fotos em família e adoção de todas as convenções sociais possíveis como um propósito de vida.

No meio disso tudo é ÓBVIO que Abby ficará insatisfeita, mas é aí que o arco dramático amplia as possibilidades de interpretação daquilo que vemos, especialmente a partir da hilária contribuição de John (o ótimo Dan Levy, de Schitt's Creek). Como o amigo gay de Abby, ele ficará responsável por cuidar dos bichos de estimação desta, enquanto da estada da amiga na casa da namorada. Mas, monitorando-a a distância, virá ao seu resgate quando a coisa apertar não para julgá-la (ou para julgar Harper) e sim para lembrá-la sobre o quão difíceis podem ser algumas decisões relativas à sexualidade, especialmente em uma sociedade machista, patriarcal, intolerante, reacionária e cheia de preconceitos. Em alguns momentos é simplesmente impossível conter as lágrimas e o fato de a gente torcer para que tudo se encaixe de alguma forma, no final, é a deixa para que a gente entenda que, como comédia romântica natalina, tudo fecha direitinho.

É claro que a coisa funciona também pelo carisma do elenco - que é completado por Alison Brie e Mary Holland, que interpretam as irmãs de Harper, que também parecem ter os seus problemas e segredos. Com ótimas piadas - a cena em que John se apresenta como um ex-namorado de Abby é absurdamente hilária -, o filme da diretora Clea Duvall analisa as relações humanas sem simplificar, misturando leveza e profundidade em igual medida. Ao cabo o que fica é a importância de superar o "entorno" para que se possa permanecer com aquela pessoa que amamos. O que nem sempre será fácil. O Natal já proporcionou grandes e divertidas obras para o cinema - de Esqueceram de Mim (1990), passando por clássicos como A Felicidade Não Se Compra (1946) até chegar ao doce e delicioso Simplesmente Amor (2003). Disponível na plataforma de streaming Hulu, Alguém Avisa? se soma a todos estes outros como uma grande obra que atualiza e oxigena as histórias da época do Papai Noel, com relevância e inteligência. Vale conferir.

Nota: 8,0

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Podcast do Picanha Cultural #30 - 15 Melhores Discos Internacionais de 2020

Quem acompanha o Picanha de perto já viu no post aqui de baixo que divulgamos os nossos Melhores Discos Internacionais de 2020. E foi pensando nisso que resolvemos trazer o mesmo tema para o Podcast, mas com uma pequena diferença: no episódio dessa semana, o Henrique, o Bernardo e eu aprofundamos a discussão sobre os destaques do ano, modificamos posições na relação e até incluímos trabalhos DIFERENTES na lista final. Então é um pouco a lista oficial, mas... nem tanto! Fora o fato de que, no Podcast, tivemos a oportunidade de discordar MUITO um do outro, o que tornou toda a experiência mais divertida - e eu posso adiantar a vocês que eu fui uma voz solitária na defesa do Travis, ao passo que o Bernardo trouxe um inexplicável álbum de METAL pro episódio. A ideia será, daqui pra frente, repetir o expediente, destacando os grandes filmes, os principais discos nacionais, as músicas e até os livros que tornaram o nosso 2020 mais suportável. Então, bora dar play?


quarta-feira, 25 de novembro de 2020

25 Melhores Discos Internacionais de 2020 (+15 Menções Honrosas)

Faz mais ou menos uma meia década que a gente tá naquelas de "no próximo ano vai ser melhor", "daqui pra frente tudo vai ser diferente", "vamos recuperar" e, vamos falar a verdade, a coisa só piora. E 2020 surgiu de forma avassaladora pra comprovar essa tese. Pandemia, ascensão da extrema direita, preconceito, ódio, intolerância, violência, desemprego, desamparo. Falta de perspectivas para o futuro, dor, doença, assassinato. Fake news, descrença generalizada, ansiedade, paranoia, opressão, mídia seletiva, péssimo uso da tecnologia. E, nessa hora, você deve estar se perguntando o que tudo isso tem a ver com a nossa primeira lista de melhores do ano? Bom, as artes, a gente já cansou de falar por aqui, nos ajudam a enfrentar esse cotidiano tão desesperador. O cinema, o livro, uma série, uma música. Um bom disco daquele artista que amamos. Nietzsche já dizia que "a arte existe para que a realidade não nos destrua". E a minha experiência nesse ano que mais parece saído de uma distopia do George Orwell (ou do Ignácio de Loyola Brandão) foi mais ou menos essa. Encontrar na arte - essa pequena "mentira" produzida por alguma mente brilhante - uma fuga da realidade (mas de preferência, que seja tão real quanto a vida). Eis a nossa seleção de 25 Melhores Discos Internacionais de 2020, com mais quinze menções honrosas. Tem muita coisa boa aí no meio - de Fiona Apple à The Weeknd, passando por Bruce Springsteen e Taylor Swift. Boa leitura!

Menções honrosas:

40) PVRIS (Use Me)

39) Fleet Foxes (Shore)

38) Adrianne Lenker (Songs)

37) Sufjan Stevens (The Ascension)

36) Megan Thee Stallion (Good News)

35) Rolling Blackouts Coastal Fever (Sideways to New Italy)

34) Jessy Lanza (All The Time)

33) Real Estate (The Main Thing)

32) Matt Berninger (Serpentine Prison)

31) U.S. Girls (Heavy Light)

30) Porridge Radio (Every Bad) 

29) Lomelda (Hannah)

28) Yves Tumor (Heaven To a Tortured Mind)

27) Soccer Mommy (Color Theory)

26) Moses Sumney (Græ)

25) The Strokes (The New Abnormal): já vamos começar com um pedido: não deem bola pra crítica musical especializada, que coçou os dedinhos pra escrever aquela resenha cheia de má vontade sobre o novo do Strokes. Ocorre que The New Abnormal é o melhor registro de Julian Casablancas e companhia em mais de uma década. Aliás, com este trabalho eles definitivamente passam uma borracha nas bobajadas experimentais Angles (2011) e Comedown Machine (2013), para fazer aquilo que eles sabem de verdade: aquele rock enfumaçado, cheio de guitarrinhas bacanas e, agora, com efeitos eletrônicos divertidos. É um disco oxigenado, que olha com carinho para o início da carreira, para entregar músicas perfumadas, cheias de vigor e personalidade como Brooklyn Bridge to Chorus, The Adults Are Talking e At The Door. Nesse sentido, o álbum fica, para os fãs, no limite entre o nostálgico e o inovador, como se promovêssemos um reencontro com aquela banda que, num longínquo 2011, nos ajudou na nossa "formação musical". Se esse é ser o "novo anormal", bem-vindos de volta, gurizada!

24) Jessie Ware (What's Your Pleasure?): devo confessar a vocês que tive um pouco de dificuldade de "adaptação" a esta nova fase testada pela cantora. Mas depois que me habituei, gostei muito - e esse se tornou mais um dos favoritos do ano. Acostumada a um pop de ambientações mais etéreas, eventualmente evocativas, a artista inglesa mergulhou de cabeça, em seu quarto álbum, no revival da disco music - aquele mesmo que presta tributo as pistas de dança, com seus globos espelhados, ambientes enfumaçados e luxo hipnótico. Dos sintetizadores setentistas de Ooh La La - que não faria feio em algum musical do Abba -, até a elegância classuda de Read My Lips, com sua batida harmoniosamente encaixada, o que se vê é um verdadeiro desfile em meio a bebidas destiladas, romances hedonistas e luzes neon. Leve, divertido, noturno, dançante, o álbum é a companhia perfeita para a festa caseira dos tempos de pandemia. Talvez seja a forma mais adequada de manter a madrugada efervescente.

23) Pretenders (Hate For Sale): podem deixar o ranço de lado porque o décimo primeiro álbum do Pretenders é muito bom! Composto por uma série de rocks bem resolvidos, diretos, sem muitas firulas, o álbum faz um aceno ao material entregue lá no começo da carreira, quando a banda deu ao mundo hits como Brass In Pocket, Message Of Love e Back On The Chain Gang. Do início blueseiro com a faixa-título, ao final contemplativo com Crying In Public, Chrissie Hynde e companhia se afastam bastante da petulância de Alone (2016), o disco anterior, para entregar a melhor e mais divertida combinação de guitarra, baixo e bateria. Juro que fui dar o play meio desconfiado, mas o trabalho produzido por Stephen Street me ganhou tão rapidamente quanto os 30 minutos que ele dura. Não há reparos aqui: o material é limpo, cheio de personalidade, com um frescor que o faz dialogar com aquilo que outros artistas, como Courtney Barnett - pra ficar apenas em um exemplo -, fazem nos dias de hoje. Num universo de escassez de bom e velho rock and roll, esse retorno é mais do que bem-vindo! Ouça You Can't Hurt a Fool, I Didn't Know When to Stop e Didn't Want to Be This Lonely e comprove. 

22) Waxahatchee (Saint Cloud): uma análise da carreira de cinco discos e dois EPs do Waxahatchee nos permite constatar que pouco restou daquela banda que surgiu no começo dessa década e que parecia apenas uma curiosa experiência musical que emulava as bandas alternativas dos anos 90. Capitaneada pela vocalista Katie Crutchfield, a banda tem passado, a cada álbum, por uma espécie de "polimento" - uma limpeza em suas melodias, em seus arranjos e no vocal, o que deixa para trás o caráter experimental e eventualmente enfumaçado dos trabalhos anteriores. Nas letras, a situação não é diferente: o amadurecimento modifica a nossa percepção, faz com que os ângulos se alterem, mesmo quando os assuntos são parecidos. Exemplo disso é o absurdamente grudento single Hell. Peça central do álbum, equilibra com perfeição o refinamento instrumental com a letra (E eu pairo acima, como uma divindade / Mas você não me adora, você não me adora). Mas há outros instantes sublimes - casos de St. Cloud e Arkadelphia, que acenam para o folk e para o country de sua Alabama Natal. Mas sem perder o vigor e a personalidade, claro.
 
21) Hayley Williams (Petals for Armor): Toda manhã eu acordo / De um sonho com você me segurando / Debaixo da água (Isso é um sonho ou uma lembrança?) / Prendi minha respiração por uma década. Quem acompanha de perto a carreira da vocalista do Paramore sabe o quão traumática foi a separação da artista com Chad Gilbert, do New Found Glory, num relacionamento de quase dez anos marcado por discussões, traições e outros escândalos. Bom, se há uma boa notícia a respeito disso, é Petals for Armor, primeiro disco solo de Williams, e que serve direitinho como um veículo que busca exorcizar os demônios. Um belo exercício disso está na irretocável Dead Horse, cujo trecho abre esse pequeno texto. Em linhas gerais o tema do "relacionamento com prazo de validade vencido" é meio que o fio condutor de belas canções como Simmer, Sudden Desire e, especialmente Roses/Lotus/Violet/Iris, que propõe uma curiosa mistura entre os escoceses do Travis e a islandesa Björk. Já a otimista Over Yet parece algo que a Madonna poderia ter feito em algum lugar de sua carreira. Bom, as referências são diversas. E o resultado é lindo.
 
20) The 1975 (Notes on a Conditional Form): acho que a crítica foi meio unânime quando o assunto foi a megalomania e a autoindulgência do quarto disco dos ingleses. Sim, se a hypada banda de Matty Healy tivesse optado por uma abordagem mais enxuta, talvez tivéssemos diante do grande álbum desse estranho 2020 - e não esse disco meio ambicioso e inchado, composto por 22 músicas e 120 minutos de duração, cheio de penduricalhos excessivos e instantes desnecessários, ainda que o componente político seja vital nesse caso. Só que o "problema" do trabalho é que os momentos bons não são apenas bons: são sublimes. Guys, por exemplo, uma rara carta de amor aos amigos em formato de canção, talvez seja a melhor e mais melodiosa música do ano - isso sem falar na letra (No momento em que começamos uma banda / Foi a melhor coisa que já me aconteceu). Outras músicas como a solene e intimista Jesus Christ 2005 God Bless America, a noventista e curvilínea Tonight (I Wish Was Your Boy) e o hardcore melódico Me & You Togheter Song, fazem valer o investimento. Tem mais joias lá no meio. Quem se prestar a escavar, será recompensado.

19) Neil Young (Homegrown): finalmente um disco do Neil Young para os fãs chamarem de "seu". Sim, porque por mais que as intenções de trabalhos recentes como The Monsanto Years (2015) ou Colorado (2019) fossem nobres, o que se sobressaia era um artista que parecia repetir fórmulas num country excessivamente autocomiserativo e cansado. Aqui, não. A diferença é que este pode ser considerado um tipo de registro "perdido" do canadense que, em 1974, foi praticamente abandonado após a gravadora Reprise ter se mostrado bastante insatisfeita com os resultados alcançados pelo melancólico e sombrio On The Beach (1974). Resgatado das cinzas - foi gravado em um chatô em algumas noites bêbadas de Los Angeles -, o álbum se revela como uma experiência taciturna e ensolarada em igual medida, capaz de equilibrar momentos mais introspectivos, como na abertura com Separate Ways, com outros mais otimistas, caso de Try. É um Neil Young que evoca tempos de Zuma (1974) e de Comes a Time (1978), duas das obras-primas que estão entre as favoritas, para lembrar que o veterano de 74 anos ainda sabe brincar de fazer clássico. 

18) The Cribs (Night Network): vamos combinar, o Cribs nunca lançou um disco ruim ou que não ficasse pelo menos na média. Só que o que coloca esse oitavo registro uma nota acima dos demais, parece ser não apenas o amadurecimento - da sonoridade, das letras -, mas também uma sofisticação que parece os aproximar muito mais de um Animal Collective do que de um Weezer. Não que o rock direto, cheio de ganchos, de paisagens pop, de falsetes e de melodias grudentas não esteja lá, mas o caso é que o registro parece se espalhar de forma menos apressada, mas nunca morosa, taciturna. É como aquele sujeito que está beirando os 40 anos - caso dos integrantes da banda -, mas não deixa de se divertir. Exemplo disso está na ótima I Don't Know Who I Am, com seu refrão que mergulha em meio a ambientações barulhentas de guitarras e efeitos eletrônicos. O expediente é repetido em outros momentos, como no caso da abertura com Goodbye, nas reflexões românticas e cotidianas de Under The Bus Station Clock e mesmo nos instantes mais urgentes, caso de Siren Sing-Along e, especialmente, Never Thought I'd Feel Again, talvez a melhor canção do registro. Vale cada segundo!

17) Dua Lipa (Future Nostalgia): Don't show up / Don't come out / Don't start caring me about now. Sim, a gente sabe que o megahit Don't Start Now tocou à exaustão em tudo quanto é lugar, mas é preciso reconhecer que o segundo trabalho de Dua Lipa vai muito além da grudenta canção. Especialmente pelo fato de ele simbolizar uma espécie de movimento que ganhou força em 2020 e que dá uma repaginada na onda retrô/disco, injetando personalidade ao estilo, perfumando-o com pinceladas de modernidade, como se a era dos memes (e do Tiktok) também pudesse ser dançante à moda das lantejoulas, das pantalonas e de outras extravagâncias oitentistas. Aqui e ali é possível encontrar ecos de artistas variadas, como Madonna e Olivia Newton John que, a seu tempo, também quebraram regras, sem esquecer da diversão. Levitating, por exemplo, parece saída daquele set que o DJ invoca pra agradar todo mundo na pista - do tiozão à própria formanda. "Espero que esse disco traga felicidade, faça sorrir, faça dançar", disse em seu Instagram quando do lançamento, no final de março, quando a pandemia recém dava as caras. Certamente ajudou.

16) Caribou (Suddenly): vamos combinar que se tem alguém que lança disco BOM é o canadense Daniel Snaith - que responde pelo nome artístico de Caribou. Não é por acaso que cada um de seus registros, cheios de curvas eletrônicas sinuosas e efeitos multicoloridos e psicodélicos, é aguardado com carinho pelos fãs - e não é diferente com este Suddenly, o oitavo trabalho da carreira. Deixando um pouco para trás a urgência do anterior Our Love (2014), Caribou investe agora um pouco mais na economia e nas ambientações oitentistas e até primaveris - como comprova o ótimo single You and I. Claro que o espectro eletrônico sempre bem produzido, polido, não é deixado de lado e o disco conta com uma série de efeitos, loops e barulhinhos que divertem ao mesmo tempo que funcionam organicamente. É um disco que não é hermético, fechado ou homogêneo. Aliás, em alguns instantes chega a ser docemente pop - como na irresistível New Jade -, ainda que flerte o tempo todo com estilos variados como hip hop, EDM, soul e até rock. Mais um daqueles que vale ser descoberto.

15) The Weeknd (After Hours): os tempos de coronavírus são tão estranhos que, em meio à pandemia, o The Weeknd lançou APENAS o seu melhor disco. Como se juntasse todas as referências e experiências testadas anteriormente em uma coisa só, o artista parece alcançar a maturidade com este After Hours. Hedonista, soturno, dançante, quente... o trabalho que dá sequência ao mediano Starboy (2016), impressiona pela facilidade com que trafega entre um estilo e outro, convidando o ouvinte para acalentar o coração com gemas pop como Hardest to Love, que mistura R&B e música romântica dos anos 80 com inacreditável sofisticação, ou mesmo In Your Eyes, que parece prontinha pra se expandir em um tipo de psicodelia à moda de um Michael Jackson. Mas absolutamente NADA se compara à Save Your Tears: com sua letra abusadamente melancólica (Você poderia ter me perguntado por que eu parti seu coração / Você poderia ter me dito que desabou / Mas você passou por mim como se eu não estivesse lá), produção limpíssima e sintetizador vibrante, é uma das grandes músicas do ano, resumindo o espírito que rege o ótimo registro. Vale ouvir!

14) Amaarae (The Angel You Don't Know): se tem algo que me deixa fascinado na música moderna é a capacidade que algumas bandas/artistas têm de se apropriarem de algum estilo já clássico para reconfigurá-lo em algo "novo", injetando personalidade e frescor àquilo que nos acostumamos a ouvir. Tendo como base o R&B de batidas econômicas, vocais sussurrados e efeitos limpos, essa artista que nasceu em em Nova York mas tem origem ganesa, faz o intercâmbio perfeito entre América e África - o que dá força a sua estreia. De hip hop ao soul, passando pelo trap e pelo afropop, o disco é tão sedutor quanto iluminado. Peça central desse amálgama, a espetacular JUMPING SHIP fala de relacionamentos de forma metafórica e crua, enquanto um dos refrãos mais grudentos e coloridos do ano nos faz mergulhar em algum ponto da África Central. Outras canções como SAD GIRLZ LUV MONEY, FANCY, CÉLINE e HELLZ ANGEL, repetem o expediente, transformando The Angel You Don't Know numa mistura divertida bem adequada a quem curte artistas como SZA, Vampire Weekend ou Miguel.

13) The Killers (Imploding The Mirage): de saída vamos deixa uma coisa bem clara e estabelecida: fora o equivocado Battleborn (2012), o The Killers só lançou coisa boa. E não sei se vocês estão preparados pra essa conversa. Não por acaso em todos os demais registros o pop oitentista de arena, com algumas dúzias de sintetizadores e aquele estilinho retrô/cool/sofisticado meio guitarreiro, foi o que nos fez amar canções variadas como Mr. Brightside, When You Were Young, Bones, This Is Your Life e Spaceman. E a boa notícia é que nada mudou neste novo trabalho, cheio de canções melodiosas, incandescentes, festivas. O que para os fãs é uma baita notícia! Mais experiente, a banda atualiza seu modus operandi - e suas letras, mais maduras -, conferindo personalidade até em canções que parecem claramente "surrupiadas" de outras épocas - caso por exemplo de Fire In Bone, que não faria feio num álbum como Lodger, do David Bowie. No mais é o Killers de sempre, que aprendemos a amar em 2004 e que, mais de quinze anos depois, seguimos amando como se a paixão estivesse apenas começando. Manda mais que tá pouco.

12) Bruce Springsteen (Letter To You): é impossível não pensar em "nostalgia" como uma palavra-chave quando escutamos o vigésimo disco da carreira do boss. Aos 71 anos e em plena pandemia ele fez um álbum de rock direto, sem firulas, classudão, que funciona quase como um carinho aos fãs do começo da carreira - que se acostumaram a cantar seus maiores hits em estádios mundo afora. Não é por acaso que maravilhas roqueiras como House Of a Thousand Guitars, Rainmaker, Ghosts e Burnin' Train mais parecem saídas de algo que poderia se situar entre discos clássicos como Darkness On The Edge of Town (1978) e Tunnel Of Love (1987). "Apenas tento encontrar a energia para tornar minha música atual e relevante neste momento. Acho que, se você mantiver o foco e o espírito no que está fazendo, continuará relevante", afirmou em entrevista ao NY Times. Morte, memória, fantasmas do passado, esperança por dias melhores, legado, dores e incertezas. Está tudo lá, formatado em 12 canções tão grandiosas quanto pegajosas. A crítica tem celebrado o registro como o melhor dos últimos 20 anos de carreira. Estamos tentados a concordar.

11) Chloe x Halle (Ungodly Hour): se tem um tipo de música meio irresistível pra mim é o R&B classudo, algo que a dupla Chloe e Halle Bailey faz de forma destemida, enquanto busca o seu lugar ao sol. Um pouco diferente daquilo que haviam feito no inaugural The Kids Are Alright (2018) - um pouco mais ensolarado, espontâneo -, aqui, as artistas acenam para o soul, para o hip hop e para o blues como uma espécie de atestado de maturidade prévia, de algum tipo de evolução que as desloca para além do rótulo de "apadrinhadas da Beyoncé". Exemplo dessa evolução está na assombrosamente deliciosa Wonder What She Thinks Of Me, que tem melodia elegante, batida limpa e um refrão que já entra direto na categoria "mais pegajosos do ano". No limite entre aquilo que as Supremes faziam nos anos 60 e o que Brandy & Monica reproduziriam nos anos 90, a dupla oxigena o estilo, como comprovam verdadeiras gemas pop, como ROYL, Forgive Me e a faixa-título, além da espetacular Don't Make It Harder On Me, mais uma candidata para a lista de músicas do ano.

10) Creeper (Sex, Death & The Infinite Void): sim, é lugar comum, a gente sabe, mas bandas como o Creeper nos fazem acreditar que o rock respira. Direto, com pouco espaço para firulas, o segundo álbum do coletivo inglês faz um aceno para a ceninha hardcore melódico dos anos 90, ao mesmo tempo que injeta personalidade a um estilo que pouco tem surgido nos últimos anos. E confesso que fui ouvir não dando muito, mas quando vi já tava cantando junto o refrãozinho pegajoso de Annabelle e me divertindo com a consistência melódica e a letra romanticamente niilista de Napalm Girls - Deus está morto (e nos conhecemos em um momento estranho de minha vida). Admitido pela própria banda, o novo projeto é bem menos sombrio que o anterior, ainda que as referências do gótico, do punk e do emo surjam, aqui e ali, em cada curva, seja ela mais movimentada (Be My End) ou mais introspectiva (All My Friends). "Gravamos esse disco em Hollywood, não numa garagem qualquer", admitiu o vocalista Will Gould, em entrevista ao semanário New Musical Express. O resultado vale a pena.

9) Rina Sawayama (SAWAYAMA): a mistura curiosa de nü metal com R&B dos anos 90 pontuado pela mais moderna música eletrônica faz com que SAWAYAMA seja um álbum que demore um pouquinho pra te conquistar. O que não chega a ser exatamente um problema. Do estranhamento inicial - especialmente pelo excesso de barulhos, guitarras distorcidas, efeitos, tensões -, até à familiaridade das batidas que serviriam perfeitamente aos inferninhos mais descolados, o passeio é divertido, excêntrico, curioso. Peça central dessa mistura, o single STFU se equilibra em algum limite capaz de misturar Evanescence com algo tipo uma Britney Spears furiosa - condição que é complementada pela autoexplicativa letra (Você já pensou em calar a boca como faço tantas vezes?). E mesmo em momentos mais "doces" (como na ensolarada Paradisin') há espaço para peso, empoderamento e as mais variadas experimentações. Se ainda houver desconfiança, experimente Bad Friend, Tokyo Love Hotel e, especialmente, a pegajosa Chosen Family, talvez a música do ano. Não haverá arrependimentos.

8) Perfume Genius (Set My Heart On Fire Immediately): vamos combinar que, a despeito da pandemia (ou talvez até mesmo por causa dela), o ano musical foi espetacular. Foram muitos os "discos do ano", quase toda a semana, repetidamente - os mais chegados sabem da brincadeira que faço, sobre isso, nos histories do meu Instagram pessoal. E o quinto registro do Perfume Genius - o nome por trás dela é o do artista Mike Hadreas -, entrou nessa leva, com um trabalho que parece condensar o que de melhor o cantor sabe fazer: músicas climáticas, que se alternam entre momentos grandiosos, soturnos, delicados e alegres em igual medida. É possível, por exemplo, se aprofundar em divagações contemplativas, como na sublime Moonbend, para no instante seguinte se divertir com o balanço curvilíneo de On The Floor. Trata-se de um álbum que cresce a cada audição, feito pra ser degustado com calma, sem pressa, que vai se desnudando (e nos surpreendendo) aos poucos, conforme se alternam os instantes mais econômicos, com outros mais expansivos. Comece escutando Without You. E depois vá pra Your Body Changes Everything. Não haverá arrependimentos.

7) Travis (10 Songs): os detratores do Travis costumam dizer que não gostam da banda porque eles lançam sempre o "mesmo disco" - e eu como fã de Fran Healy e companhia só posso dizer: QUE BOM. O ano de 2020 já teve coisa estranha o suficiente e não pode haver nada mais aconchegante do que encontrar conforto naquele tipo de álbum que a gente sabe exatamente como vai ser: calmo, com um tipo de placidez evocativa, com o instrumental e os arranjos flutuando de forma harmônica, leve, convidativa. Aliás, até o nome do registro é econômico. Não parece, mas os escoceses já estão há mais de 25 anos na estrada e nove discos depois a última coisa que eles querem é grandes invencionices. Assim, o resultado é um conjunto de músicas mais Travis do que o próprio Travis. Butterflies, por exemplo, equilibra a doçura da melodia com o melhor refrão do trabalho, ao passo que A Million Hearts tem pianinho à moda The Man Who. Há ainda outras gemas: Waving at the Window, Nina's Song, A Ghost... é só dar play. Quem gosta dificilmente se decepcionará. 

6) Phoebe Bridgers (Punisher): As farmácias ficam abertas a noite toda / A única razão verdadeira que fez eu me mudar para o lado Leste. É uma contadora de histórias maravilhosa essa americana e, talvez, num primeiro momento, a gente não perceba o potencial arrebatador existente por trás de sua voz sussurrada e de seu violão de pulsações econômicas. E, sim, por mais que isso não seja tão convencional nos dias de hoje - nesses dias corridos que vivemos - a apreciação completa desse segundo álbum da compositora se dá com as letras a tiracolo. O trechinho que abre esse pequeno texto, por exemplo, está na lindíssima faixa-título, e resume de forma bastante metafórica a maneira encontrada para tentar amenizar as dores do mundo. Sim, os temas não são novidade: romances inadequados, frustrações de jovens adultos, sentimentos que parecem querer gritar. Talvez nem a forma seja algo necessariamente inédito. Mas Bridgers brinca com as palavras, cruza referências, amontoa citações, conecta geografias e fala de temas tão comuns a todos nós de uma forma divertidamente melancólica. Um trabalho autêntico, hipnótico e (quase) cinematográfico.

5) Laura Marling (Song For Our Daughter): em toda a sua carreira, Laura Marling sempre teve a capacidade de "aconchegar" o ouvinte em sua música. O tom de voz um pouco mais baixo, o dedilhado nas cordas, um efeito sutil encaixado aqui, outro ali: mesmo quando o tema de suas canções é mais áspero, mais duro, ela parece sempre disposta a transformar seus versos (e melodias) em peças que confortam e que pareçam acenar para a estabilidade, mesmo em um cenário caótico. Já havia sido assim com discaços como I Speak Because I Can (2010) e Semper Femina (2017). É assim com este maduro sétimo álbum de estúdio. Funcionando como uma espécie de carta para uma suposta filha que ainda não existe, a artista canta sobre abandono (Held Down), capacidade de resignação (Only The Strong) e sobre memórias e ações que nos moldam (na faixa título). "Esse álbum é essencialmente um pedaço de mim", afirmou a cantora em entrevista ao semanário New Musical Express. Bom, agora é também um pedaço de todos nós.

4) Boniface (Boniface): em tempos amargos como os que vivemos - de pandemia, de avanço de uma agenda reacionária, de escassez de recursos e de paranoia - é sempre bom descobrir um artista novo que ainda nos faça sorrir e é esse o caso desse canadense que, vamos combinar, chegou chegando. Seu homônimo álbum de estreia é uma daquelas belezuras pop que carregam nos sintetizadores, nas tintas otimistas e nos refrões pra cantar junto. Lembrando uma variação do The Killers misturado com o M83, o artista - cujo nome é Micah Visser -, injeta uma boa dose de personalidade naquilo que a gente já viu muita gente fazer: uma coleção de músicas dançantes, líricas, catárticas. Nas letras se sobressai o tema geral do abandono da vida frugal nas pequenas cidades para a busca por novos horizontes em outros espaços, que representarão maturidade, crescimento - como comprova a ótima Stay Home (I dream about you in that old home / It's been forever since I forgot you / They say that Jesus has a plan for us / But it seems sloppy to me), uma das prováveis melhores músicas do ano. Vale demais.

3) Taylor Swift (Folklore): foi totalmente de surpresa que a artista lançou seu oitavo disco - e já tá ficando meio repetitivo dizer que cada álbum dela é uma verdadeira coleção de grandes canções pop. Cheio de músicas maduras e bem arranjadas, o trabalho foi todo composto durante a pandemia e contou com a colaboração de Aaron Dessner do The National - a ambientação soturna está lá, naqueles pianinhos bem encaixados, melancólicos, que resultam em uma estética mais introspectiva, que parece deixar pra trás os tempos movimentados de Blank Space ou Shake It Off. É claro que isso não significa falta de energia: olhar para si próprio numa nota mais baixa, avaliar o entorno, tatear o desconhecido, também pode ser reflexo dos tempos duros que vivemos, condição ecoada por letras como a da dolorida e bela My Tears Ricochet - E eu posso ir a qualquer lugar que eu quiser / Qualquer lugar que eu quiser, apenas não em casa  -, que surge logo depois de um dueto com Justin Vernon (o Bon Iver), na belíssima Exile. Bom, credenciais não faltam. É só você aceitar a grandiosidade de uma artista que, aos 30 e poucos anos, só melhora a cada lançamento.

2) Fiona Apple (Fetch the Bolt Cutters): desde que foi lançado o quinto disco da norte-americana, a crítica foi praticamente unânime em celebrar Fetch the Bolt Cutters como o álbum do ano (e só não foi também aqui no Picanha, porque o registro das meninas do HAIM consegue ser ainda mais foda!)! Sobre o trabalho de Fiona, trata-se de um tipo de material raro, que condensa todas as experimentações testadas pela artista anteriormente, em uma coleção de músicas caóticas mas divertidas, experimentais mas acessíveis. Anárquica, Fiona adota a entropia como modus operandi, nos fazendo navegar por paisagens sonoras que saltam do piano delicado para a percussão nervosa em segundos - com o seu vocal (e o de seus cachorros) também servindo para a criação de melodias únicas, nunca óbvias, mas sempre instigantes. É aquele tipo de disco para ouvir, ouvir e ouvir e ir descobrindo, a cada nova audição, algum novo elemento, algum outro encaixe, uma diferente quebra de lógica - sendo o todo complementado pelas letras sarcásticas, debochadas, que tornam tudo ainda melhor. Quem quiser testar pode começar por Cosmonauts, Shameika ou Ladies. Vai ser uma bela porta de entrada. 

1) HAIM (Women In Music Pt. III): acho que se fosse possível definir o mais recente disco das meninas do HAIM com apenas uma palavra, esta poderia ser "primoroso". Por que não se trata apenas de um trabalho com produção ainda mais caprichada do que aquela vista nos dois registros anteriores - Days Are Gone (2013) e Something to Tell (2017) -, há também as arestas sendo aparadas, com o trio mais a vontade para trafegar em meio as influências diversas, que podem ir do rock and roll perfumado (The Steps), passando pelos anos 80 classudo (Another Try), até chegar no pop de emanações country mais ensolaradas de gemas como Leaning On You. Nas letras, em meio a curvas imprevisíveis que trafegam entre o jazz e a percussão africana - pode pintar até um barulho aleatório de despertador ou alguma outra trucagem eletrônica lá no meio -, os temas variam de paternalismo no mundo da música e relacionamentos abusivos até chegar, obviamente, à importância da sororidade. É música com personalidade, madura, ousada e absurdamente divertida de se ouvir. Não tinha como não ser, com justiça, o nosso disco do ano.

Gostaram da lista? Ou faltou alguém? Sim, a gente tem certeza de que deve ter faltado porque este foi um ano espetacular em lançamentos internacionais. Então não deixe de nos dizer quais os seus preferidos! E se vocês curtem listas, não deixem de conferir as dos anos anteriores - 2019, 2018, 2017, 2016 e 2015. Boa leitura!

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Na Espera - One Night In Miami (Filme)

A próxima edição do Oscar está se desenhando para, oficialmente, ser a premiação da representatividade. São muitos os filmes que, por exemplo, discutirão o racismo - e este é o caso também de One Night In Miami, obra adquirida pela plataforma de streaming da Amazon Prime e que tem a sua estreia, inicialmente, prevista para o dia 15 de janeiro de 2021 (haverá sessões prévias nos Estados Unidos, a partir do dia 25 de dezembro). Estreia na direção da atriz Regina King (Se a Rua Beale Falasse), o filme é inspirado em fatos reais e retrata o encontro de quatro ícones dos anos 60 - o ativista Malcom X (Kingsley Ben-Adir), o boxeador Muhammad Ali (Eli Goore), o cantor de blues Sam Cooke (Leslie Odom Jr.) e o astro de futebol americano Jim Brown (Aldis Hodge) - em uma noite de fevereiro de 1964, após Cassius Clay derrotar Sonny Liston contra todas as possibilidades. Em meio a conversas prosaicas sobre temas do dia a dia, emerge um importante debate sobre o papel desempenhado por eles no contexto do movimento por direitos civis em um período de forte segregação racial - pauta que avançaria no decorrer da década.

Exibida nos festivais de Veneza e Toronto, a obra tem recebido elogios da crítica e é dada como praticamente certa na principal categoria do Oscar 2021 - a cerimônia está marcada para o dia 25 de abril. Com um trailer que mostra de forma equilibrada a relevância das figuras retratadas em tela num contraponto com os momentos mais "íntimos" entre elas, One Night In Miami também poderá oportunizar à Regina King a nominação como diretora. Sobre os protagonistas, a Amazon deverá intensificar a campanha nos próximos meses, para que Leslie Odom Jr. possa ser lembrado na categoria Ator Coadjuvante, o mesmo valendo para o Roteiro Adaptado. O que sabemos é que ainda é cedo para qualquer aposta, mas já estamos aguardando ansiosamente pelo filme!

Novidades no Now/VOD - Fuja (Run)

De Aneesh Chaganty. Com Kiera Allen, Sarah Paulson e Pat Healy. Suspense / Terror, EUA, 2020, 89 minutos.

A Síndrome de Münchhausen por Procuração - distúrbio mental em que o genitor (geralmente a mãe) provoca abuso infantil ferindo a criança, gerando sintomas de forma intencional ou mesmo causando a doença -, já foi retratada em pelo menos duas ótimas séries recentes - no caso Sharp Objects e The Act, ambas da HBO. Em Fuja (Run), recente filme da plataforma Hulu, o tema volta em um suspense que começa muito bem, mas termina de forma apenas ok. Na trama, a mãe excessivamente "protetora" é Diane (Sarah Paulson, ativando o modo macabro), que criou a sua filha Chloe (Kiera Allen) em uma cadeira de rodas, completamente isolada do mundo exterior. Em um primeiro momento somos apresentados a uma dupla que interage de forma aparentemente saudável, até o momento em que a jovem passa a desconfiar das atitudes da mãe. E, bom, assim como ocorre na série The Act, alguns segredos vêm a tona e tudo aquilo que parecia a realidade, no entorno, começa a desmoronar.

Dirigido por Aneesh Chaganty - do razoável Buscando... (2018) -, o primeiro ato do filme é bastante instigante. Chloe está com 17 anos e, as vésperas de ir para a faculdade, aguarda ansiosamente a carta de aprovação de alguma instituição de ensino superior, o que representará a saída oficial da casa da mãe. Já Diane parece tranquila com este fato - e a sequência inicial dá conta disso: enquanto monitora a caixa de correio, cuida da filha, fazendo alimentando-a, ajudando em sua locomoção, lhe dando os remédios, fazendo fisioterapia. Parece tudo normal. Parece. Lá pelas tantas Chloe descobre em meio aos pacotes de supermercado, um desconhecido medicamento que está em nome de sua mãe. Na tentativa de investigá-lo, será surpreendida com o fato de que os comprimidos não correspondem à descrição da embalagem. Mais a fundo, perceberá a gravidade dos fatos, conforme segredos forem sendo revelados e, mais do que isso, não vale a pena contar para não revelar algumas das surpresas.

De forma engenhosa, o roteiro nos fornece algumas informações que nos dão a chave para aquilo que está acontecendo - como o próprio fato de a garota NUNCA poder acessar a caixa de correio, ou ter qualquer tipo de autonomia. Ao mesmo tempo, utiliza sequências prosaicas para gerar suspense - e uma das que mais gostei é aquela em que Chloe se esforça para acessar o Google em meio a madrugada na tentativa de descobrir alguma coisa sobre o princípio ativo do misterioso medicamento, ocasião em que se depara com uma "estranha" queda na internet. Será a partir desses episódios que a jovem montará o seu quebra cabeças, o que culminará em uma sequência em que ambas saem de casa e Chloe tem a oportunidade de descobrir um pouco mais sobre aquilo que ela considerava a sua vida - e que era apenas uma prisão particular. O que, nas aparências, era carinho, zelo e cuidado excessivos, era no final das contas uma severa doença psicológica que, apenas nas aparências, soava normal.

E, pra mim, aqui, entra o principal problema do projeto [ALERTA DE SPOILER], que é quando o filme envereda para a perseguição de gato e rato, o que quebra um tanto do componente psicológico visto nos dois primeiros atos. Vista imediatamente como a vilã oficial da história - e não como uma figura doente, que também prescindiria de cuidados médicos - Diane passará a ser caçada por agentes da lei porque, todos sabemos, espectador de Hollywood que se preze adora a vingança como elemento narrativo. E, a meu ver, isso deixa um gosto amargo na conclusão, o que é piorado pela lamentável última cena da obra, que se passa sete anos depois dos eventos que culminam na "prisão" da mãe perturbada. Ainda assim, como suspense, considero Fuja bastante "honesto", a despeito da repetição meio inexplicável de temas. Sarah Paulson empresta o seu rosto bastante expressivo e seu gestual "duro" para a composição da mãe perturbada, e se ela não chega a ser uma Patricia Arquette (de The Act) no desvario, cumpre bem o seu papel. Já Kiera está discreta em sua composição, ainda que mereça todo o crédito por ser cadeirante na vida real (o que por si só, já é um mérito).

Nota: 7,5

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Novidades no Now/VOD - Rosa e Momo (La Vita Davanti a Sé)

De: Edoardo Ponti. Com Sophia Loren, Ibrahima Gueye, Renato Carpentieri e Abril Zamora. Drama, Itália, 2020, 94 minutos.

Personagens em espectros opostos que se aproximarão por algo em comum, vivenciando uma jornada de autoconhecimento que poderá resultar numa amizade que os afastará das adversidades ou dos dissabores iniciais. Ainda que esse tipo de arco dramático não seja necessariamente uma novidade, ele sempre poderá nos surpreender - e é exatamente esse o caso do sensível e elegante Rosa e Momo (La Vita Davanti a Sé), obra protagonizada por Sophia Loren e baseada no livro A Vida Pela Frente de Romain Gary. Aos 85 anos, a estrela encarna Madame Rosa, uma judia sobrevivente do holocausto, ex prostituta que se ocupa cuidando de crianças pequenas, filhas de outras meretrizes do litoral italiano. Com muitas contas a pagar - e pouco dinheiro a receber -, Rosa aceita, meio a contragosto, uma tarefa: cuidar do jovem senegalense Momo (Ibrahima Gueye) a pedido do doutor Cohen (Renato Carpentieri). Só que o caso é que a relação entre Rosa e Momo começa atribulada, com o pequeno furtando objetos de valor da idosa, com a intenção de tentar contrabandeá-los.

Não bastasse isso, Momo é atraído para o tráfico, onde encontrará uma fonte de renda (e de problemas). Enquanto tenta "domar" o jovem, Rosa precisa lidar com os próprios demônios: com Auschwitz martelando em seu inconsciente, acaba por ter uma espécie de paralisia recorrente, resultado do trauma de guerra. Aliás, não só isso: mantém do porão de sua casa um "esconderijo" que funciona como um refúgio para quando ocorrem as crises que lhe abalam. Rosa sofreu o preconceito na pele, no passado, e passará aos poucos a compreender Momo - que, como imigrante e órfão, também vive a margem. Completando o time de "desajustados", há a transexual Lola (Abril Zamora), que tem um filho e sonha em poder encontrar o seu pai. Será no intercâmbio dessas almas tão desalentadas quanto parecidas - há no meio de todos o comerciante Hamil (Babak Karimi) - que residirá o poder do filme. 

Aliás, sem medo de dizer: me emocionei em vários momentos. Vários! E muito da comoção vem da entrega comovente de Loren. Eu sempre acho lindo quando vejo um ator/atriz de idade tão avançada encarna um papel com tanta naturalidade. Optando por uma abordagem mais sutil, a atriz nos faz perceber que a maior diferença entre ela e Momo é a idade. A cena em que ela "desvia" Momo da violência policial (uma mãe está sendo separada do filho) é um bom exemplo. Ao cabo, trata-se de uma obra sobre superação de obstáculos, de resistência e de amizade. Há, aqui e ali, uma série de subtextos a respeito dos horrores dos sistemas totalitários, da xenofobia, de preconceitos diversos e de contrastes sociais como um todo. Com poucos recursos, a dupla central se esforça para sobreviver em meio a um Estado que lhes parece observar o tempo todo: e que parece sempre pronto a agir com algum tipo de violência. E não é por acaso o fato de ambos perceberem a fortaleza existente eu sua relação. Essa não se quebra. Haja o que houver.

Pesquisando sobre o filme descobri que existe uma versão anterior para o cinema, que foi filmada em 1977 e que leva o nome de Madame Rosa - A Vida à Sua Frente , que viria a ganhar o Oscar na categoria Filme em Língua Estrangeira (que eu não assisti até mesmo porque ele não está disponível em nenhuma plataforma). A nova versão foi dirigida por Edoardo Ponti, que é filho de Loren. Sobre esse fato, aliás, ela brincou em recente entrevista ao jornal italiano La Repubblica: "comecei com Vitorio De Sica e trabalhei com diversos diretores norte americanos para retornar, ao final de minha carreira à... Itália. Esse diretor é italiano, né? Parece muito com meu filho". E o retorno foi tão celebrado que Loren já está sendo cotada inclusive para o Oscar - na categoria Atriz. A câmera está o tempo todo em seu rosto, em seu gestual. Não há espaço para grandes angulações. Apenas para o íntimo. E sua comovente entrega - tão doce quanto feroz - não deixa por menos.. A campanha da Netflix já começou. É aguardar.

Nota: 8,0

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Podcast do Picanha #29 - 10 Grandes Trilhas Sonoras do Cinema

"Girl, tãntãntãntãn, you'll be a wooooman soon". Vamos combinar que é simplesmente impossível ouvir a clássica música do Urge Overkill - na realidade uma regravação do Neil Diamond -, sem pensar no clássico Pulp Fiction: Tempo de Violência (1994) e na icônica cena em que Vincent Vega (John Travolta) vai "visitar" Mia Wallace (Uma Thurman). Porque, na realidade, a música, no cinema, faz um pouco isso: marca presença, contribui para a condução da história, mexe com a nossa memória afetiva e, em muitos, casos, se torna tão inesquecível como o filme em si (Tarantino que o diga)! E foi pensando nisso que o Bernardo e eu - o Henrique estava de folga no episódio dessa semana - realizamos um resgate com 10 Grandes Trilhas Sonoras do Cinema. Como forma de triagem, optamos por escolher apenas canções do pop, do rock, eletrônicas e outras já existentes ou que foram concebidas para o projeto - deixando de fora as trilhas orquestrais, os musicais e os filmes sobre bandas ou músicos (assim, obras como Psicose e Mamma Mia!, por exemplo, ficaram de fora). Bora dar o play nesse sextou musical?


quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Novidades no Now/VOD - Devorar (Swallow)

De: Carlo Mirabella-Davis. Com Haley Benett, Austin Stowell, Elizabeth Marvel e Denis O'Hare. Suspense / Drama, EUA, França, 2019, 94 minutos.

Vamos combinar que a premissa curiosa de Devorar (Swallow), por si só, é um atrativo a parte: no filme que estreou recentemente na plataforma Mubi somos apresentados a protagonista Hunter (Haley Benett), uma jovem dona de casa que tem o estranho hábito de ingerir itens não alimentícios. Conhecida como Alotriofagia - ou Síndrome da Pica (sim, o nome é esse mesmo) -, a rara afecção gera uma vontade anormal de ingerir moedas, bolinhas de gude, pilhas, clipes, terra ou quaisquer outros objetos variados. No caso de Hunter, o "gatilho" vem com a descoberta de uma gravidez: ela é casada com Ritchie (Austin Stowell), um rico herdeiro de uma empresa de tecnologia e passa os dias em casa, ocupada com afazeres domésticos ou com jogos de celular. Funcionando como uma espécie de "esposa troféu", espera o marido em casa, bem vestida e com a janta no capricho. Em sua vida há pouco espaço para seus desejos. Aliás, eu tô sendo generoso chamando de "vida" uma existência apagada, repetitiva e completamente submissa.

Não fosse o capricho da produção, o apuro técnico e o bom desenvolvimento da premissa e talvez Devorar pudesse ser apenas uma excêntrica experiência cinematográfica - algo que talvez Todd Solondz dirigisse. Mas não: o que temos é um drama com boas doses de suspense, que aproveita a sua temática para discutir assuntos como traumas de infância, papel da mulher na sociedade (e nos relacionamentos) e até preconceitos diante de condições psicológicas de difícil identificação. Desde o instante em que o filme começa o estranhamento está em tudo - na composição dos quadros, no contraste entre as cores utilizadas (nos cenários e nos figurinos), nos closes fechados, na geometria dos ambientes da ampla casa envidraçada e até na sua trilha sonora. O silêncio quase permanente de Hunter em seu isolamento diário - numa espécie de prisão particular -, parece o tempo todo nos comunicar algo a respeito de "demônios interiores" prontos para vir à tona.

O espectador mais desavisado, talvez se sinta incomodado com a naturalidade com que sua temática é descortinada na tela. Mas cinema é, TAMBÉM, pra isso: incomodar. Hunter está claramente insatisfeita com seu casamento mas parece lutar contra isso, já que tem uma casa absolutamente perfeita, um marido bonito e uma existência que, talvez, muitas pessoas desejassem, cheia de conforto, de luxo, de festas e de roupas e sapatos exuberantes. Mas, a que custo? Em certa altura, Ritchie lhe promete um colar na volta para casa do trabalho, mas não hesitará em explodir quando souber do problemas enfrentado pela protagonista. Ou o que o ocasiona. Devorar também nos mostra que, nós, humanos, possuímos uma série de camadas, de muitas complexidades, que misturam consciente e inconsciente, traumas, anseios, frustrações e oscilações de humor. E que dificilmente será fácil lidar com tudo isso. Ou ao menos compreender a lógica exata das coisas.

A presença de uma psicóloga ajudará a descortinar, aos poucos, algumas questões relacionadas ao passado (e a infância) que nos farão compreender as dores de Hunter. Há problemas familiares mal resolvidos que podem estar na origem de sua condição, o que poderá ser solucionado com terapia, conversa e confronto com os esqueletos no armário. Inteligente, o filme utiliza o seu título original como uma metáfora: talvez seja preciso, afinal, "engolir" muita coisa nessa vida, pra tentar se encaixar numa sociedade machista e patriarcal. Mas, em algum momento, aquilo que está lá dentro precisará sair. Nem que seja na marra. Por que incomoda, força, machuca. Talvez a opressão alcance até uma gravidez não tão desejada e que tinha o objetivo de apenas cumprir o seu papel em uma sociedade em que a transparência - tal qual a casa requintada cheia de vidros e espelhos da família -, pareça sempre pronta a ser rompida. No mínimo instigante.

Nota: 8,0

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Na Espera - Judas e o Messias Negro (Filme)

Definitivamente a próxima edição do Oscar se desenha com forte tendência para a discussão de temas relacionados ao racismo, especialmente entre as principais obras que deverão figurar na premiação. Nesse sentido, filmes como Destacamento Blood, A Voz Suprema do Blues e One Night In Miami provavelmente devem encabeçar a disputa pelo mais famoso "carecão dourado" da sétima arte. Ainda sem data de estreia, Judas e o Messias Negro (Judah and the Black Messias) é outro que se junta a relação de obras com um forte componente político e social ao trazer a história de Fred Hampton (Daniel Kaluuya), um carismático líder dos Panteras Negras que passa a ser "monitorado" pelo pelo FBI. Como forma de tentar descobrir mais sobre o ativista, o FBI coage um pequeno criminoso de nome William O'Neal (Lakeith Stanfield) para que se infiltre na organização e obtenha informações diretamente na fonte. A contrapartida: a redução de sua pena na cadeia.

Vibrante e enérgico, o trailer mostra parte desse contexto e é natural imaginar o processo de transformação que vivenciará a personagem de Stanfield, quando perceber qual o lado real em que se encontra nesse espectro político. A obra, dirigida por Shaka King (é seu filme de estreia) é dada como praticamente certa na principal categoria do Oscar e não chegará a ser surpresa se algum dos atores pintar nas categorias de atuação - dependerá a forma como os estúdios trabalharão por estas nomeações. Nas bolsas de apostas, Lakeith Stanfield (que integrou junto com Kaluuya o elenco de Corra!) salta na frente, devendo ser um dos nominados na categoria Ator Coadjuvante. Por aqui estamos na maior expectativa!

Cinemúsica - Alta Fidelidade (High Fidelity)

De Stephen Frears. Com John Cusack, Jack Black, Iben Hjejle, Catherine Zeta-Jones e Lisa Bonet. Comédia dramática / Romance, EUA, 2000, 113 minutos.

Acho que um dos aspectos que mais gosto a respeito da trilha sonora de Alta Fidelidade (High Fidelity) é o fato de ela estar diretamente conectada a história. E quando eu falo conectada, quero dizer que muitas das canções surgem como peças "ativas" da narrativa, o que lhes dá fluência, sugere intertextos e amplia a nossa percepção a respeito daquilo (ou daqueles) que acompanhamos. Como exemplo disso, cito a sequência em que Marie De Salle (Lisa Bonet) faz uma bela interpretação de Baby I Love Your Way, do Peter Frampton, obrigando o cínico e mau humorado protagonista Rob Gordon (John Cusack) a reconhecer o potencial por trás de uma música que ele, aparentemente, não gosta. Em outro momento - este mais divertido - o folgado Barry (Jack Black) reclama do fato de estar tocando uma canção do Belle & Sebastian na loja de discos do protagonista, sugerindo que esta seja substituída por algum material mais visceral, mais enérgico e menos monótono do que o som dos escoceses.

Sim, porque no filme baseado na obra de Nick Hornby, a música não é apenas um elemento que servirá para ilustrar certa passagem da narrativa, ou que servirá para evidenciar, com sua letra, aquilo que está sentindo (ou pensando) este ou aquele personagem. Em Alta Fidelidade a trilha sonora quebra JUNTO a quarta parede, sendo inserida de forma orgânica, praticamente o tempo todo, se misturando as muitas sequências, possibilitando caminhos, sugerindo estados de espírito. Assim, não é por acaso o fato de a movimentada Crocodile Rock de Elton John surgir em um momento em que Rob relata as alegrias de uma paixão da adolescência. O mesmo valendo para o momento em que o introspectivo Dick (Todd Louiso) explica para uma cliente da loja de discos sobre o fato de o Green Day ter se inspirado no hardcore do Stiff Little Fingers para gestar os seus primeiros álbuns. A música tá ali. O tempo todo. A toda hora insinuando caminhos, demarcando territórios.

No livro A Música Pop no Cinema do precocemente falecido Rodrigo Rodrigues (morreu de Covid-19, diga-se), o autor explica que a lista final de 12 canções, que viria a compor a trilha sonora, partiria de cerca de duas mil músicas, o que dá conta do cuidado dos produtores - entre eles John Cusack, que se envolveu nessa empreitada. Isto resultaria em uma coletânea classuda de clássicos do Velvet Underground, do Bob Dylan, do Stevie Wonder e até do Stereolab, sendo o próprio Jack Black, responsável por uma releitura de Let's Get It On, do Marvin Gaye. Aliás, Barry foi escrito pensando em Black e é ele que garante algumas das sequências mais divertidas da película, com seu comportamento abusadamente petulante, presunçoso - o que, de alguma forma, não deixa de ser uma forte crítica àquelas pessoas que se acreditam num plano superior por seu gosto musical (alô, roqueiros!).

Sobre o filme em si, ele vale cada segundo. Tão divertido quanto melancólico, funciona direitinho tanto como feel good movie quanto como romance escapista, com Rob fazendo uma revisão dos principais relacionamentos (frustrados, claro), de sua vida, depois da namorada Laura (Iben Hjejle) lhe dar o fora. Enquanto repassa os acontecimentos para tentar compreender onde as coisas degringolaram em cada um dos cinco namoros - e as listas de "cinco" são um clássico dentro da narrativa -, é acompanhado por reflexões, medos e inseguranças comuns a qualquer um de nós. Não por acaso, uma das sequências mais bacanas é aquela em que Bruce Springsteen em pessoa surge interpretando ele mesmo, na tentativa de "iluminar" os pensamentos do protagonista. Leve, fluído e absurdamente musical, Alta Fidelidade completa 20 anos de lançamento neste 2020, sendo impossível não associar a sua trilha sonora à qualidade - e a capa do disco, que vendeu milhões de cópias mundo afora e que "imitava" o clássico A Hard Days Night dos Beatles, segue como uma das mais memoráveis de todos os tempos. Bom demais!

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Cinema - A Febre

De: Maya Da-Rin. Com Regis Myrupu, Rosa Peixoto e Lourinelson Vladimir. Suspense / Drama, Brasil, 2019, 96 minutos.

Vencedor do Festival de Brasília no ano passado, A Febre, filme de estreia da diretora Maya Da-Rin discute o sincretismo cultural em nosso País, a partir da história do índio Justino (Regis Myrupu). Integrante da tribo indígena Desana, ele saiu de sua aldeia nos arredores de Manaus há mais de vinte anos para trabalhar como vigilante na estação portuária da capital do Amazonas. É lá que ele tem uma rotina monótona, enfadonha, em meio a enormes guindastes e pesados contêineres que entram e saem diariamente. Viúvo e morador da periferia - precisa pegar ônibus diariamente e caminhar mais um outro tanto -, terá o tédio quebrado pelo anúncio feito pela sua amorosa filha Vanessa (Rosa Peixoto), que está indo para Brasília estudar medicina. Enquanto assimila a novidade, Justino passa a ser tomado por uma febre forte, de origem meio inexplicável. Em seu trabalho, tem dificuldade em se manter acordado. No dia a dia, sofre com o calor escaldante e com as chuvas tropicais e torrenciais. No noticiário, o assunto é um animal selvagem, sem origem determinada, que estaria rondando o bairro. Em resumo: acontece bastante coisa enquanto se espalha a letargia dos dias.

Quem já assistiu qualquer filme do diretor tailandês Apichatpong Weerasethakul (Mal dos Trópicos), se identificará imediatamente com o cinema que mescla misticismo, folclore, bucolismo e crítica social. Distante de seu lugar de origem, Justino acredita estar adaptado à vida urbana, esquemática, cheia de horários, compromissos e compras no mercado. Zanzando em meio as estruturas faraônicas do porto, oferece o óbvio contraste do sujeito que está deslocado - e que, doente, tem dificuldade de expressar efetivamente o que sente. "Você está cada vez mais como os brancos. Talvez o pajé da nossa aldeia pudesse lhe curar!", clama o seu irmão, em uma visita. Distante dos ritos, dos hábitos, dos costumes de sua aldeia, o protagonista é o lógico "animal ferido", numa metáfora quase recorrente durante os pouco mais de 90 minutos de projeção. "Você é um índio já 'domesticado', diferente dos que eu encontrava lá na fazenda em que era capataz", provoca um colega de trabalho. A doença do ódio avança, abate, desola. E Justino não sabe bem explicar qual o caminho para a cura.


Nesse sentido, A Febre é um bem vindo exercício de reflexão sobre os tempos que vivemos, em formato de filme. Em um momento em que são praticamente diárias as notícias sobre massacre a tribos indígenas e descaso generalizado com estas famílias - especialmente em tempos de pandemia -, não é difícil encontrar paralelo entre a persistência de Justino em tentar se adequar ao meio em que vive e o sofrimento diário a que ele é submetido. Em uma cena tão triste quanto constrangedora, sua chefe o cobra sobre o fato de ter sido flagrado dormindo no trabalho. Lhe dará uma advertência que, mais adiante, poderá resultar em uma justa causa se ele não se "corrigir". Sobre a doença misteriosa que lhe acomete, as febres que vem e vão meio sem explicação, as visões sobre o animal selvagem que ladeiam o mato, há pouco interesse. É nessa hora que pesa a diferença cultural. O contraste entre os povos. E o desrespeito generalizado a hábitos, costumes, tradições. Justino talvez esteja doente por se sentir distante daquilo que lhe é caro: seu povo, família. O cheiro do mato, o contato com a terra. Sem perspectivas, se vê obrigado a trabalhar em serviço de "branco". E se sente abandonado.

Tecnicamente bem executada a obra, que também está disponível no Now, se ocupa de silêncios e de sons diegéticos para estabelecer o contraponto natural entre a floresta que aparece nos flancos de Manaus - densa, quente, úmida - e a urbanização geométrica, dura, desinteressante. Trafegando nesses dois universos, Justino é a representação genuína do "peixe fora da água" sem jamais soar caricatural. Ao contrário, sua interpretação naturalista, sóbria, se valendo de olhares e de sutilezas (nos gestos, na voz), comove e funciona muito bem, estando bem adequada ao que a obra propõe. Já a filha Vanessa é o respiro de um mundo que se abre, enquanto outro se fecha e a forte conexão com o pai garante alguns dos mais bonitos momentos. No fim das contas, A Febre é obra política, ideológica, mas sem necessariamente esfregar a sua "bandeira" na cara do espectador. É óbvio, ao final, que é preciso refletir sobre a questão indígena no Brasil. Trabalhar por políticas públicas que garantam, minimamente, a manutenção de suas existências. E que possam amenizar a "doença" diária a que estes povos estão submetidos.

Nota: 8,5

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Podcast do Picanha Cultural #28 - Bandas Brasileiras com Um Único Sucesso

Aserehe rá de re, de hebe tu de hebere / Seibiunouba mahabi, an de bugui an de buididipi. / Aserehe rá de re, de hebe tu de hebere / Seibiunouba mahabi, an de bugui an de buididipi. Se você não está retornando NESTE MOMENTO de Marte, é muito provável que você não apenas tenha reconhecido o trecho acima, como já esteja possuído pelo ritmo Ragatanga - o que o fará cantarolar em loop mental infinito até o final do dia o refrão do único sucesso das meninas do Rouge. Único? Bom, talvez os fãs tentem nos provar que a banda não foi um caso nacional de One Hit Wonder, mas, é preciso que se diga: elas serão lembradas eternamente pela maluca música sobre Diego, o sujeito que "dobrava a esquina com toda a alegria, festejando". E foi animado pelas bandas de "um sucesso só", que o Bernardo, o Henrique e eu resolvemos fazer, no episódio desta semana, a edição nacional sobre o tema - a dos artistas estrangeiros você procurar dois episódios atrás. Akundum, O Surto, Vanessa Rangel, Ritchie, Virguloides... embarque conosco nessa playlist nostálgica. A gente garante: vai ser divertido!


quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Cine Baú - Se Meu Apartamento Falasse (The Apartment)

DE: Billy Wilder. Com Jack Lemmon, Shirley McLaine e Fred MacMurray. Comédia dramática / Romance, EUA, 1960, 125 minutos.

Acho que um dos tantos predicados de Se Meu Apartamento Falasse (The Apartment), de Billy Wilder, é ter envelhecido muito bem. Por suas temáticas - adultério, suicídio, papel da mulher na sociedade e até a selvageria do mundo capitalista -, era uma obra a frente do seu tempo. Meio visionária até - inclusive pelo fato do protagonista C. C. Baxter (o sempre ótimo Jack Lemmon) ter praticamente "inventado" o conceito de Airbnb, que veríamos mais tarde. Sim, ele é o solteirão sem muita pressa pra arrumar um casamento, que está muito mais preocupado com a ascensão profissional na gigantesca companhia de seguros em que trabalha, em Nova York. Assim, como forma de incrementar renda e se aproximar mais do alto escalão da empresa, passa a emprestar o seu apartamento para que os seus colegas executivos possam manter os seus casos extraconjugais em "segurança". E sem atrair a atenção de ninguém. A contrapartida se dará futuramente, com possíveis promoções e outras evoluções na folha de pagamento.

Só que esse procedimento pode gerar alguns inconvenientes para Baxter que, em alguns casos, se vê impossibilitado de retornar para a sua casa no momento em que deseja. E, conforme os empréstimos vão se ampliando, a rede de interessados nos aluguéis aumenta - chegando a quatro, cinco executivos da companhia. E tudo piora quando ele se vê apaixonado por uma colega de trabalho, no caso a ascensorista Fran Kubelik (Shirley McLaine), que mantém um caso com o chefe de ambos, um certo Jeff Sheldrake (Fred MacMurray). E, como desgraça pouca é bobagem, Jeff pedirá o apartamento do protagonista emprestado, levará Fran para lá e... terminará com ela lá mesmo, já que ele é um sujeito casado. Desesperada, a jovem tentará tirar a própria vida tomando dúzias de medicamentos indutores de sono. E a tragédia só não se confirmará por causa da chegada de Baxter em sua própria casa, após uma festa na empresa. Aliás, numa sequência tão trágica quanto cômica, já que ele também tinha conseguido uma companhia para aquela noite.

Sim, descrevendo assim pode parecer meio confuso, mas Se Meu Apartamento Falasse é uma obra que funciona como uma montanha russa de emoções (e de estilos), começando como uma escrachada comédia, que migra para um pesado drama, até chegar a um desfecho romântico. Com tudo absurdamente bem conduzido por Wilder, que utiliza cada uma de suas sequências e diálogos, para ir fazendo pequenos comentários sociais a respeito do universo que acompanhamos. Os vizinhos de Baxter, por exemplo, acreditam que o sujeito é um hedonista de marca maior, apesar de ele dificilmente ter um comportamento indecente. Da mesma forma, o diretor não parece muito empenhado em amenizar a mesquinharia e o vazio que envolve as relações humanas, tão frágeis já naqueles tempos (e, aparentemente, piores nos dias de hoje). E tudo isso não nos impede de torcer com todas as forças por um final feliz, por piores que os ambiciosos Baxter e Fran possam ser - e, ao cabo, eles são apenas humanos, afinal. Cheios de qualidades e defeitos como qualquer um de nós.

Vencedora do Oscar de Melhor Filme na cerimônia de 1961, a obra-prima ainda premiaria Wilder (Roteiro e Direção), bem como a Edição e a Fotografia em Preto e Branco. Na lista do American Film Institute (AFI) de 2007, aparece em um honroso 80º lugar na relação de Melhores Filmes Estadunidenses, sendo também mencionada como a 20ª Melhor Comédia da História. Leve e divertido, o filme encanta não apenas pelos seus momentos engraçados (você nunca mais verá uma raquete de tênis da mesma forma), como por aqueles com maior profundidade - como nos deliciosos diálogos entre Baxter e Fran. Wilder já tinha uma carreira consagrada quando fez este filme - vinha de outros clássicos como Pacto de Sangue (1944), Farrapo Humano (1945), Crepúsculo dos Deuses (1950) e O Pecado Mora ao Lado (1955). E, de alguma forma, pode-se dizer que esta foi uma de suas últimas grandes obras e que segue sendo querida tanto pela crítica quanto pelo público.

terça-feira, 10 de novembro de 2020

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - A Jaula de Ouro (Guatemala)

De: Diego Quemada-Diez. Com Rodolfo Dominguez, Karen Martínez e Brandon López. Drama, Guatemala / México / Espanha, 2013, 108 minutos.

Quando a gente assiste a uma obra dolorida e arrebatadora como A Jaula de Ouro (La Jaula de Oro) é simplesmente impossível não lembrar da imagem das crianças, filhas de imigrantes mexicanos, que foram presas em grandes jaulas, ao tentar atravessar a fronteira com os Estados Unidos durante o Governo Trump. Foram várias fotos e vídeos que correram o mundo durante a política de Tolerância Zero do republicano e que envolvia, inclusive, a construção do famigerado muro na divisa entre os dois países. Ocorre que, quando pensamos nesses imigrantes, dificilmente os "humanizamos". Raramente pensamos nessas milhares de pessoas como... pessoas. Que tem seus sonhos, seus desejos, seus anseios. Seus medos e frustrações. E que buscam, nos Estados Unidos, o encontro idílico com o "sonho americano". Um sonho que lhes retire da pobreza extrema, da vulnerabilidade. Que lhes permita um trabalho ou, minimamente, a dignidade. Ter o que comer, tentar ser feliz. Sobreviver.

Exibido em 2013 na mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes, e vencedor de vários prêmios mundo afora, o filme guatemalteco é um áspero road movie do Terceiro Mundo em que acompanhamos a verdadeira via crucis de três jovens - dois rapazes e uma garota -, para tentar cruzar a fronteira a partir da Guatemala. A intenção clara é escapar da vida miserável do País da América Central - em alguns aspectos, bastante parecido com o Brasil -, tarefa em que são muito maiores as incertezas do que as evidências. Para onde exatamente se está indo? E com qual objetivo? O que se encontrará pelo caminho? Todos sairão vivos? De alguma forma, a película do diretor Diego Quemada-Diez até começa razoavelmente leve, com o trio principal ocupado com pequenas brigas entre si (boa parte delas por ciúmes), enquanto inicia a peregrinação que os leva do trem para a floresta e de volta para o trem e de volta para a floresta, numa caminhada longa que, facilmente, alcança os milhares de quilômetros.

Na construção narrativa também se consolidará uma história de amizade e de descobertas entre os jovens - especialmente pelo fato de Chauk (Rodolfo Dominguez) ser de uma tribo indígena que sequer fala a mesma língua dos "urbanos" Juán (Brandon López) e Sara (Karen Martínez). De forma meio involuntária o trio se aproximará, enquanto investe em sua longa jornada rumo ao desconhecido, tentando ganhar algum dinheiro (com apresentações de rua), se esforçando para escapar de grupos milicianos (e de outros bandidos) e permanecendo longos minutos sobre vagões de trem, que os levam para lugares aleatórios próximos da fronteira. Aliás, a fluidez um pouco mais lenta talvez incomode alguns espectadores, ainda que encontre nela um sentido que dialoga com aquilo que assistimos: a viagem é realmente longa e torná-la, aparentemente, ainda mais longa, é o que faz com que nos exasperemos junto com os protagonistas. Ao mesmo tempo em que a sensação de perigo, como não poderia deixar de ser, parece ser sempre iminente.

Sem encontrar solução fácil, o filme ainda nos joga na cara o absurdo do tratamento dado aos imigrantes que, ao fim, conseguem mal e porcamente atravessar a fronteira - o que ocorre com um sem fim de subornos e milhares de perdas pelo caminho. Recheada por ótimas metáforas, a película ainda utiliza uma sequência em um frigorífico para, visualmente, estabelecer uma rima para aquilo que assistimos: quem afinal são os animais? E o que será necessário para sobreviver nesse contexto em que não ser "enjaulado" é uma vitória? Donald Trump não se reelegeu, mas como amenizar os traumas de milhares de pessoas que são presas na Fronteira, apenas por serem de outro País? Como equacionar o problema da xenofobia, do preconceito, do racismo? Quando olharemos para o outro com mais empatia, com menos violência, de forma mais humana? Com menos crueldade? O gosto amargo na conclusão do filme parece apontar para um caminho que nem a placidez da neve, que cai mansamente, consegue aplacar.