segunda-feira, 31 de julho de 2023
Livro do Mês - Solitária (Eliana Alves Cruz)
Novidades em Streaming - Regra 34
De: Julia Murat. Com Sol Miranda, Lorena Comparato, Lucas Andrade, MC Carol e Babu Santana. Drama, Brasil, 2022, 99 minutos.
Regra 34 é o tipo de filme que te faz pensar sobre uma infinidade de temas. Questões de gênero, violência contra a mulher, racismo, patriarcado, fetiches sexuais e os limites para o uso da internet, além do aparato jurídico em meio a tudo isso. E se, por um lado, esta diversidade é satisfatória por fazer ecoar, nem que seja minimamente, cada um desses assuntos, por outro, os eventuais excessos podem, aqui e ali, diluir a importância (e a relevância) de certos debates. E em tempos em que as pessoas têm dificuldade em focar há sempre o risco dos discursos mais prolixos serem mal compreendidos ou mesmo percebidos como mera militância ou, como gostam de dizer alguns, lacração (sim, essa palavrinha). Por quê, vamos combinar que pensar dá trabalho e, em uma uma obra mais didática, que adota uma retórica quase acadêmica, o conjunto pode soar presunçoso. Ou esquemático. Quase com um "olha aqui, estamos falando disso aqui, perceberam?".
Isso significa que é um filme hermético ou de difícil digestão? Jamais. Quer dizer, talvez em partes, já que, pesquisando em fóruns da internet percebi que os "cidadãos de bem" ficaram relativamente chocados com o que eles consideraram exposições desnecessárias - de corpos e de ideias. Mas na produção de Julia Murat (de Pendular, 2016), o corpo é essencialmente político - ao cabo, ele é um instrumento que permeia todas as temáticas. E tudo isso estabelece diálogo com a protagonista Simone (Sol Miranda), uma jovem que acaba de se formar em Direito e que passa boa parte dos seus dias em uma espécie de estágio supervisionado, que lhe tornará defensora pública. Nos momentos em que não está discutindo juridiquês em sala de aula, Simone atua como camgirl onde exibe o corpo para um público que, do outro lado, lhe envia dinheiro para que ela se masturbe ou conceda outras recompensas.
Nesse sentido, uma das melhores discussões emerge justamente desses universos contrastantes experimentados por Simone. Se por um lado, ela estuda para, entre outros, prestar atendimento jurídico à mulheres que sofrem todo o tipo de violência - não necessariamente apenas física, mas psicológica, financeira e outras -, por outro ela mesmo avança para o campo do fetichismo sexual, aceitando pagamentos para sessões de asfixiofilia (uma prática perigosa, que ela insiste em testar), de agressões consentidas e de outras violências, como cortes na pele. Tomando por base a Regra 34 - uma máxima da internet que afirma que a pornografia online existe em todos os tópicos concebíveis - a diretora nos convida a refletir sobre esses temas, seus limites e mesmo sobre o que pode ou não ser considerado abuso. Afinal, quando o assunto é o sexo, numa sociedade conservadora ainda há muitos tabus.
Em certa altura do filme, por exemplo, Simone e seus colegas divagam longamente sobre o fato de que as mulheres que entram para a prostituição, escolhem esse caminho por não ter outro em seus horizontes. Mas será mesmo? Não há uma chance mínima, que seja, de haver algum apreço por esse "ofício"? "E o que dizer das empregadas domésticas?", retruca alguém, que completa com uma provocação: "elas não vão também por essa área quando não parece haver outra alternativa?" Por quê, afinal, somente quando o assunto é o sexo há esse tipo de barreira? Com idas e vindas entre um universo e outro, Julia organiza uma teia de relações que estabelece um potente, ousado, desafiador e moderno diálogo sobre desejo, feminilidades, tecnologia, direitos e liberdades. Grande vencedor do Leopardo de Ouro do Festival de Locarno, esse é daqueles projetos que convidam a um debate. Jamais se encerrando quando sobem os créditos.
Nota: 8,0
quarta-feira, 26 de julho de 2023
Cinema - Barbie
De: Greta Gerwig. Com Margot Robbie, Ryan Gosling, America Ferrera, Michael Cera e Will Ferrel. Comédia / Fantasia, EUA / Canadá, 2023, 114 minutos.
Ao concluir a sessão de Barbie, a sensação que ficou foi a de que esse era o único filme possível para a boneca mais famosa do mundo. Estamos em 2023 e ainda parece meio incrível que pautas feministas ou que envolvam questões ligadas à importância da igualdade de gênero precisem ser permanentemente lembradas, marteladas. Mas o caso é que o óbvio, em muitos casos, precisa ser dito. Reiterado. Reforçado. Que isso seja feito justamente (e paradoxalmente) por meio de um brinquedo que funcionaria, por décadas, como o exemplar máximo do estereótipo feminino fetichizado é algo digno de aplausos. "Ãin, porque a Mattel vai ganhar rios de dinheiro com o hype em cima da obra". Sim, vai. E ela ri meio que na nossa cara dessa contradição. Mas é também preciso elogiar a percepção de que o mundo evoluiu e, vá lá, talvez nos dias de hoje já não faça mais sentido uma comédia agridoce com a Barbie e o Ken feita somente para agradar adolescentes vestidas de rosa - e suas mães totalmente desatentas no que diz respeito à classificação indicativa de um filme.
Sim, a gente poderia questionar muita coisa aqui - dos eventuais exageros expositivos do discurso ou mesmo a história que vai para além dos limites de um realismo fantástico em um mundo surrealmente rosa. Mas jamais de que a obra não cumpre seu papel. Minha esposa e eu temos 42 anos e nos divertimos demais com essa experiência. E ficamos muito felizes em ver a sala repleta de jovens rindo junto, reconhecendo padrões absurdos na tela - especialmente aqueles que dão conta do quão patético pode ser o macho escroto (ou o boy lixo, como costumam dizer as meninas mais jovens) quando age em bando, quando se sente reafirmado em sua masculinidade (tóxica, naturalmente) ou quando escuta algum mesacast com redpilados fazendo um esforço enorme para (tentar) gostar de mulher. A misoginia e o machismo, ao cabo, estão por todo o lado e a cada novo instante da projeção era possível reconhecer na tela aquele seu tio tosco do churrasco dominical, o colega de trabalho intragável ou o comediante de stand up que parece saído da Idade Média.
Forçado? Temeroso para as novas e empoderadas (ui) gerações de mulheres do porvir? Nunca. Nunquinha. Até mesmo porque certamente elas já tão muito a frente nesse debate, do que supõe a cabeça torpe do homem normie, que acha que abala as estruturas falando em mercado financeiro, em bitcoins, em literatura rasa de coach do abstrato, na HB20 recém comprada ou sobre o quão incrível vai ser o seu novo barber shop (voltado à machões que se empolgarão em falar dos treinos da academia do bairro e dos jogos insuperáveis do imortal tricolor). Essa obra é uma aula que mais parece uma sequência de esquetes sobre a persistência da mulher hétero e, na boa, é simplesmente impossível não gargalhar alto quando vemos em cena uma sequência em que o Ken (Ryan Gosling) encarna o Zé Violão para tocar a música mais pálida possível do tiozão roqueiro dos anos 90 - no caso Push, dos queridos (sim) hiperamericanos, do Matchbox Twenty. Nessa hora eu perdi tudo. Aliás, eu já tinha perdido. Ou ganhado, dependendo do ponto de vista.
E se não bastassem todos os predicados no que diz respeito às temáticas, a obra dirigida por Greta Gerwig (alô Oscar, uma indicação pra moça na categoria Diretora por favor) ainda é um primor do ponto de vista técnico. O desenho de produção é impecável. A fotografia e os figurinos idem. A trilha sonora tá bem encaixada. E as soluções encontradas para "mesclar" os universos da Barbieland e o mundo real são engraçadas, inusitadas e hiperbólicas. Na Terra da Barbie são as mulheres que ditam o rumo das coisas, com o coletivo de Kens - aquele bando de homem médio apenas bonito (vocês veem bastante por aí) - sendo submisso a elas. Só que quando a coisa desanda com a Barbie Estereotipada (Margot Robbie, como vocês já tão carecas de saber) dessa outra dimensão, pondo em risco esse universo aparentemente perfeito, caberá a ela ir ao encontro dos humanos de carne e osso para tentar consertar as coisas. E, claro, esse choque de realidades em um espaço povoado pelo patriarcalismo, resultará em uma coleção de grandes instantes. É filme pra ver e rever. E que ajudará, como sempre fazem as artes, a retirar muita gente da zona de conforto. Não, não se trata de um tratado filosófico sobre o feminismo no Século 21. É apenas um filme que empunha sua bandeira sem se envergonhar disso. E que faz lembrar, inclusive de forma literal, que muitas vezes o discurso precisa ser repetido. Mais e mais vezes. Quase infinitamente. Até mesmo para que não haja mais retrocessos. De aplaudir de pé.
Nota: 10
terça-feira, 25 de julho de 2023
Novidades em Streaming - A Felicidade das Coisas
Pitaquinho Musical - Blur (The Ballad of Darren)
segunda-feira, 24 de julho de 2023
Tesouros Cinéfilos - Boneca Inflável (Kuuki Ningyou)
quarta-feira, 19 de julho de 2023
Novidades em Streaming - Os Fortes (Los Fuertes)
Pitaquinho Musical - Letrux (Letrux Como Mulher Girafa)
segunda-feira, 17 de julho de 2023
Novidades em Streaming - Sem Ursos (Khers Nist)
sexta-feira, 14 de julho de 2023
Novidades em Streaming - Paloma
De: Marcelo Gomes. Com Kika Sena, Ridson Reis e Wescla Vasconcelos. Drama, Brasil, 2022, 104 minutos.
"Eu num sei nem por onde começar... [...] Seu Papa. Meu nome é Paloma. Vivo e trabalho aqui em Saloá como agricultora e, às vezes, faço bico de cabeleireira. Vivo amigada com o meu marido Zé. Com ele crio a minha filha Jennifer, o presente mais maravilhoso que Deus me deu. Nasci homem, mas sou mulher. Todo mundo aqui sabe disso. Já errei muito nessa vida, seu Papa, mas depois que eu conheci o Zé, eu vivo uma vida digna e decente como qualquer outra mulher. Me considero fia de Deus como qualquer outra pessoa. Já me batizei, fiz a primeira eucaristia, a crisma, agora só falta realizar o meu maior sonho que é casar na Igreja. E eu sei que só o senhor pode autorizar isso. E é por isso que estou lhe escrevendo essa carta. Pra pedir ao senhor que conceda permissão ao padre João Manuel para que ele possa fazer o meu casamento. E, assim, me tornar a mulher mais feliz do sertão."
Vamos combinar que não poderia ser mais comovente o instante em que Paloma (Kika Sena) dita à sua amiga Kelly (Wescla Vasconcelos) uma carta com esse pedido singelo: o de poder casar. Com véu, grinalda, Igreja decorada e tudo que se tem direito. Como mulher trans, ela já está familiarizada com as barreiras impostas pela própria Igreja e seus dogmas um tanto ultrapassados - e que, em tempos de ódio, de preconceito e de intolerância como os da atualidade (reforçados pelo recente governo de morte de Bolsonaro), parecem mais vivos do que nunca. Só que Paloma é uma mulher devota. Ela sequer pode entrar na Igreja, numa daquelas contradições legítimas do Brasil - esse País conservador e cheio de fé, capaz de converter pessoas periféricas e minorias em admiradores ardorosos da extrema direita, das elites e de outras instituições poderosas. Por quê Paloma, como mulher negra, nordestina, trans, analfabeta e pobre deseja tanto se casar da forma mais tradicional possível?
Talvez o que esteja em jogo para ela seja o processo que a reafirmaria como mulher. Dotada de direitos e capaz de realizar sonhos - como o do casamento. Então, quando a nossa carismática protagonista encosta seu rosto anguloso, de olhar expansivo e de sorriso sonhador, no batente da porta para ditar a sua missiva, a gente apenas está torcendo para que sua intenção seja atendida. É um instante afetuoso, em partes divertido - Kelly reclama da amiga, pede pra que ela não dite tão rápido por que ela "não é uma máquina de escrever". E o poder desse filme de Marcelo Gomes - dos excelentes Cinema, Aspirinas e Urubus (2005) e Estou Me Guardando Pra Quando o Carnaval Chegar (2019) é o de despertar em nós também a empatia. A capacidade de olhar o outro como um ser humano. Que tem sonhos, incertezas, medos, desejos. Que ama. Ama como Paloma ama a sua adorável filha. Seus amigos e amigas - especialmente as gurias do bordel, com que se sente confortável em suas dores. O marido Zé (Ridson Reis). É um filme de Brasil: de terra e de seca, mas também de carne e de alma.
E Paloma permanece o filme inteiro na luta determinada pra tentar juntar dinheiro pra consolidação do matrimônio. Como peoa que trabalha na colheita de mamão, ela parece ser mais cobrada pelos seus empregadores. Os olhares parecem sempre mais voltados à ela. Nas ruas, os comentários debochados ao fundo. No bar local a violência que emerge do nada. Na Igreja, a impossibilidade de sonhar. Em casa, as dúvidas. Pra quem convive com o preconceito, esses elementos parecem apenas integrar a paisagem. O cotidiano. A rotina. Ela vai apenas se acostumando, ainda que a violência pareça sempre se avizinhar. Por isso que talvez ela ceda diante do assédio de um motorista de caminhão. Até que ponto dá pra enfrentar uma série de humilhações e de injustiças e de ainda levantar a cabeça ao ver o direito de simplesmente amar alguém ser negado? Essas incertezas também pairam no entorno. E afligirão outras pessoas. O que comprovará que o casamento em si talvez seja o menor dos problemas. A questão central está em fazer a sociedade compreender. Acolher as diferenças. Sair da hipocrisia e do reacionarismo tacanho. E, assim, evoluir.
Nota: 9,0
quarta-feira, 12 de julho de 2023
Pitaquinho Musical - Ian Ramil (Tetein)
Novidades em Streaming - Falsos Milionários (Kajillionaire)
terça-feira, 11 de julho de 2023
Tesouros Cinéfilos - O Trabalho Dela (I Douleia Tis)
De: Nikos Labôt. Com Marisha Triantafyllidou, Maria Filini e Dimitris Imellos. Drama, Grécia / França / Sérvia, 2018, 89 minutos.
"Você já trabalhou com isso alguma vez? Só em casa." A resposta de Panayiota (Marisha Triantafyllidou) à pergunta da colega de trabalho Maria (Maria Filini) é sintomática do que significa uma rotina de afazeres domésticos jamais reconhecidos e, muito menos, remunerados. E isso talvez explique a sua empolgação quando é contratada por uma empresa terceirizada para trabalhar como faxineira em um shopping que está prestes a ser inaugurado. Afinal, o que é passar o dia em meio a baldes, vassouras e panos e ainda poder receber por isso? Para Panayiota não parece haver problemas em realizar horas extras abusivas ou conviver com assédios variados em seu ambiente de trabalho. Ela está satisfeita com aquela que, ao cabo, é a sua primeira experiência do tipo. O cenário é o da crise financeira da Grécia. E, portanto, trabalhar é preciso. O que envolve se submeter a praticamente qualquer coisa pra tentar manter o cargo.
Disponível na plataforma Mubi, O Trabalho Dela (I Douleia Tis) faz lembrar, em alguma medida, o clássico de Élio Petri A Classe Operária Vai ao Paraíso (1971). Tratada de forma cortês e com certa reverência por seus empregadores, Panayiota é uma espécie de "funcionária padrão". Dificilmente diz não para os patrões. Independentemente de qual seja a pedida. Quando um grupo de colegas é sumariamente demitida sem muita explicação, não parece muito disposta a enveredar para o lado da greve ou dos protestos que rondam o "lado de fora". O que importa para a nossa protagonista é o seu mundinho. É a renda que vai entrar no final do mês. É o senso de independência meio tardio de quem pode, finalmente e à beira da meia idade, ter um pouco de autonomia, se livrando das garras autoritárias do marido - um sujeito incapaz de colocar a sua própria comida no prato ou despejar um café em sua xícara (mesmo estando desempregado).
Nesse sentido, a obra do diretor Nikos Labôt gera no espectador um sentimento meio ambíguo. Afinal, há que se valorizar a conquista de espaços da mulher, especialmente quando o assunto é o mercado de trabalho e a consequente fuga de certa dependência de homens em geral. Mas e quando o preço disso é muito alto? Sem experiência, Panayiota começa de baixo. Semianalfabeta, incapaz de operar o equipamento aspirador e inequivocamente submissa, ela se torna, com seu espírito subserviente, a operária ideal. Não questiona. Só baixa a cabeça e faz. Dez, doze, catorze horas diárias. O que faz com que, de forma paradoxal, o ambiente doméstico passe a funcionar melhor já que, sem a esposa para fazer absolutamente todas as funções, seu marido Kostas (Dimitris Imellos) se vê obrigado a trabalhar em casa. E a sua filha adolescente e rebelde a estudar. O único que parece sofrer mais e, genuinamente, é seu filho mais novo, que adoece com a ausência da mãe.
Com um aceno à obra sempre política de Ken Loach, o filme adota um tom naturalista, de planos mais fechados, intimistas, sendo comovente a expressão de permanente desencanto de Panayiota - que dificilmente consegue abrir um sorriso e verdade, ainda que ela vá se soltando aos poucos (como fica bastante explícito na sequência em que ela compra um elegante vestido vermelho). Em geral as intenções da produção são boas e, a despeito da descrença, o final libertador pode ter um sentido um pouco maior do que parece, quando as coisas aparentemente dão errado pra protagonista. Em suma a gente tende a julgar as ações daqueles que acompanhamos. Mas não podemos perder de vista que Panayiota é uma vítima. Alguém vulnerável. Em uma sociedade patriarcal e com profundas fraturas no capitalismo - com aumento da pobreza, políticas de austeridade e desemprego galopante, como foi o caso da Grécia recente. Ao cabo, um emprego é uma necessidade. E o sistema sempre estará pronto à explorar os que menos contestam.
segunda-feira, 10 de julho de 2023
Cinemúsica - Eduardo e Mônica
De: René Sampaio. Com Alice Braga, Gabriel Leone, Otávio Augusto, Juliana Carneiro da Cunha e Bruna Spínola. Comédia romântica / Drama, Brasil, 2022, 119 minutos.
Em uma das tantas sequências bonitas do ótimo Eduardo e Mônica - adaptação de René Sampaio para a clássica canção da Legião Urbana - está o momento em que Eduardo (Gabriel Leone), em meio a uma "festa estranha com gente esquisita", sobe no palco do karaokê para cantar o hino irresistivelmente brega de Bonnie Tyler, Total Eclipse of the Heart. É um recurso bonito da narrativa porque foge das possíveis armadilhas do filme homenagem e da música tema do filme em si, para derivar para outros campos na hora de aproximar o jovem que jogava futebol de botão com seu avô e Mônica (Alice Braga), uma garota mais velha, estudante de medicina mas totalmente conectada com o mundo das artes - e fã de Godard, de Bandeira, de Bauhaus, Caetano e Rimbaud. E a meu ver esse é um dos grandes méritos da produção: o de que não é necessário ficar lembrando o público o tempo todo, por meio de trucagens baratas, que essa é uma obra baseada em uma música de Renato Russo e companhia.
Nesse sentido, há uma fluidez natural. Tão natural que o fã de cinema desavisado talvez nem notasse esse "detalhe" sobre a matéria-prima do filme. De onde ele se origina. Para o desatento, essa talvez fosse apenas uma comédia romântica por excelência, com dois jovens enfrentando as numerosas diferenças na tentativa de ficar juntos. De fazer acontecer, a despeito de todas os poréns. Mônica e Eduardo, a gente sabe, em um mundo como o nosso, de tão pouca responsabilidade afetiva e em um cenário em que encontrar uma tampa de panela para chamar de sua parece cada vez mais difícil, parecem trafegar no campo do improvável. O que não impede a gente de se conectar. E é justamente isso que, muitas vezes, torna uma comédia romântica eficiente: o quanto a gente se importa. De que maneira mergulhamos naquilo. Claro, há o elemento nostálgico. Há os acenos aos fãs inadiáveis da música da Legião. Mas há também um filmão muito bem sucedido naquilo que se propõe.
E, acompanhando a jornada dos nossos protagonistas, eu fiquei com a impressão de que parte do brilho tem a ver com as escolhas da trilha sonora. O filme, como não poderia deixar de ser, se passa nos anos 80. Assim não há celulares, não há Spotify ou Deezer. O que há é uma fitinha cassete com as melhores do rock inglês - aquele tipo de coletânea que os 40+ amavam juntar nas estantes e gavetas da juventude e que será a porta de entrada para um novo universo para Eduardo. Um jovem até então acostumado apenas a uma rotina alienante e sem muitas novidades ao lado do avô, o Seu Bira (Otávio Augusto), um militar da reserva que parece mais orgulhoso do que nunca da Ditadura Militar - provavelmente ele seria um adorador de Ustra e votante do inelegível, que está até agora aguardando mais 72 horas. Esses elementos políticos, culturais e sociais são um outro acerto. Dá pra olhar pro passado sem ignorar o futuro. Dá pra reverenciar os artistas de outrora - da música especialmente - sem deixar de lado o poder transformador e de vanguarda das artes, com sua iconoclastia e consequente quebra do status quo.
Mônica, afinal, é tudo aquilo que Eduardo ainda não é - seja pelo excesso de juventude ou pela imaturidade que respinga pelas frestas, como no instante em que ele genuinamente admite não fazer ideia do que diabos é a Nouvelle Vague (novela?). Uma artista plástica determinada que mora em um galpão espaçoso que também funciona como ateliê, ao mesmo tempo em que faz um turno extra como estudante de medicina - sendo vigiada por sua severa mãe (a sempre ótima Juliana Carneiro da Cunha). Em alguma medida há um choque entre o experimentalismo do cotidiano da Mônica - e suas divagações sobre meditação, fotografia, existencialismo e baladas estranhas - e o conservadorismo do entorno de Eduardo, com sua rotina que varia da escola para casa e da casa para a escola. E em meio a isso tudo há a música. As canções que acompanham. De artistas diversos como Soft Cell, A-Ha, The Pretenders, Titãs, B-52's, Clash, Mutantes, Tim Maia... É um filme baseado numa música da Legião? A gente quase esquece. A arte é maior e une tudo isso. Como comprova o comovente ato final.
sexta-feira, 7 de julho de 2023
Pitaquinho Musical - Marcelo D2 (IBORU)
quinta-feira, 6 de julho de 2023
A Volta ao Mundo em 80 Filmes - Sick of Myself (Noruega)
quarta-feira, 5 de julho de 2023
Livro do Mês - Salvar o Fogo (Itamar Vieira Júnior)
Cine Baú - Terra de Ninguém (Badlands)
segunda-feira, 3 de julho de 2023
Novidades em Streaming - Contratempos (À Plein Temps)
De: Eric Gravel. Com Laure Calamy, Lucie Gallo, Cyril Gueï e Anne Suarez. Drama, França, 2021, 87 minutos.
Em uma das cenas centrais de Contratempos (À Plein Temps), a protagonista Julie (a sempre ótima Laure Calamy) está em uma importante entrevista de emprego. Durante a conversa, a recrutadora estranha o fato de ela morar em um bairro afastado do centro de Paris e, mesmo sendo mãe de duas crianças, estar pleiteando um emprego ali. "Você poderia passar longos dias por semanas por aqui, mesmo morando tão longe?" questiona a funcionária do RH. Julie nem titubeia em afirmar que isso não lhe preocupa. A avaliadora prossegue, tentando compreender uma lacuna existente no currículo da candidata - quatro anos sem trabalhar, o que evidencia também um processo de precarização (já que ela possui um emprego em um hotel, como supervisora de serviços gerais). O que se soma a perguntas sobre ela estar buscando uma vaga que está claramente abaixo das capacidades dela. Ela afirma que não. Que está focada na realização de seus projetos "a longo prazo".
Julie tenta não demonstrar, mas no momento da entrevista ela está devastada por dentro. Está em um trabalho que lhe consome física e psicologicamente - não bastassem as horas e horas dentro de ônibus e trens, ainda precisa lidar com o assédio moral constante de sua chefe e com os caprichos excêntricos dos hóspedes do hotel de luxo em que atua (em uma sequência ela precisa, literalmente, limpar a merda que foi deixada em um dos cômodos por um desses visitantes). Aliás, só mais uma das tantas e ótimas metáforas apresentadas nessa pequena joia dirigida por Eric Gravel - e que foi exibida (e elogiada) no Festival Varilux do ano passado. Depois, há a angústia de, como mãe solo, ter de articular de forma permanente a estada de seus filhos em babás improvisadas - caso de uma vizinha - para que ela consiga cumprir as suas exaustivas jornadas. Julie está sempre correndo. Correndo literalmente. Sem dinheiro, sem ânimo, sem forças, sem vida.
Ao cabo, esse é um filme pequeno mas de grande força sobre como o capitalismo pode destroçar a cabeça do cidadão comum - que acorda de madrugada e retorna já para sua casa noite adentro, depois de andar de condução em condução até desejar apenas a sua cama. Dia após dia, indefinidamente. É uma produção que exaure - um sentimento ampliado pela câmera sempre urgente, meio trôpega, quase documental e pela trilha sonora caótica, invasiva, que acompanham as andanças de Julie entre cômodos do hotel, ruas atabalhoadas, assédios diversos (inclusive sexuais), humilhações recorrentes e a sensação completa de solidão e de desesperança em meio a tudo. Aqui, não vemos a Paris glamourosa que nos acostumamos a enxergar nos cartões postais. É tudo sufocante, claustrofóbico, cansativo. Quando a protagonista chega em casa já exaurida, precisa encarar o terceiro turno, a janta das crianças, o banho, brincar. Para, de madrugada, reiniciar tudo de novo.
E de alguma forma não deixa de ser meio simbólico o fato de, durante toda a via crúcis de Julie nessa uma hora e meia, ela ser "atrapalhada" por uma greve dos metroviários que parece estar ocorrendo no entorno. O filme nunca se ocupa das reivindicações dos trabalhadores, quais as pautas, por quê estão paralisando os serviços. Para nós, espectadores, talvez seja cômodo pensar que Julie poderia se unir a estes operários. Lutar contra o sistema que lhes oprime (ela está junto nesse combo). Mas ela não tem tempo de pensar nisso. Em política. Em economia. Em caos social. Em disputas de classes. Em governos. Ela tem duas bocas pra alimentar. Uma pensão pra reivindicar - outro ponto que lhe extenua. Um trabalho para manter - em meio a camas pra arrumar, quartos pra limpar, horários a cumprir. É um ciclo infinito, que não parece se encerrar na suposta "boa notícia" que ocorre no instante derradeiro da projeção. A roda seguirá girando. Pode até não parecer, mas o sorriso comovido não simboliza final feliz. E aqui está a grande sacada dessa história toda. Sensacional é pouco.
Nota: 9,0