segunda-feira, 31 de julho de 2023

Livro do Mês - Solitária (Eliana Alves Cruz)

Quartinho da empregada. Esse tipo de espaço que alude a um Brasil pós-abolicionismo e que funcionou por muito tempo como um cômodo reservado aos trabalhadores domésticos - em muitos casos posicionado em um ambiente apartado da "casa grande" ou dos locais de circulação da família - é um dos principais cenários do ótimo Solitária, obra mais recente da escritora Eliana Alves Cruz. Ainda assim, por mais que o título sugira, este é um livro que narra, à sua maneira, uma história de libertação. De luta para se livrar dos grilhões em um País que ainda parece experimentar um orgulho mesquinho relacionado à classe social. A senzala atual, afinal, é simbolizada por aquele cômodo pequeno, precário, naturalmente distante, isolado. É nesse cubículo mal iluminado, sem janelas, que vivem Eunice e sua filha, Mabel.

Essa "solitária" improvisada dá na cozinha, junto à lavanderia do apartamento gigante de dona Lúcia, a patroa que, ao lado do marido Tiago, tenta conferir certo ar de normalidade àquela rotina de segregação. Em um microcosmo em que Eunice atua numa espécie de invisibilidade constante - lavando, passando, cuidando da filha da patroa em uma rotina excruciante e permanente -, o que se tem nesse condomínio é a metáfora arquitetônica perfeita de um Brasil de retrocessos. No entorno de Eunice, uma série de outros serviçais fazem o conjunto funcionar à contento das elites - do carismático e abnegado porteiro Jurandir, passando pela auxiliar de enfermagem dona Hilda, até chegar ao eletricista Marcolino, todos ali coabitam em um universo de distinções em que tecem suas redes de sociabilidade, com os empregados preservando a solidariedade e o apoio coletivo como forma de não sucumbir a esse controle.



Só que esse tecido tão bem estruturado - ao menos nas aparências - começará a ruir quando um crime horrendo ocorre: a morte de uma criança que, de forma inexplicável, cai de um dos andares mais altos. Um lapso cotidiano, que poderia passar batido? Talvez, se não fosse o fato de que o caso ocorre justamente no apartamento de dona Eunice. Entrelaçando histórias, Eliana separa o livro em dois longos capítulos, que são narrados de acordo com as percepções e memórias de Eunice e de Mabel, com cada uma das histórias, ainda que parecidas, sendo percebidas de maneira distinta. "Mãe, a senhora precisa se libertar dessas pessoas", implora a filha que, já na fase adulta, adquirirá uma consciência que extrapolará os limites do condomínio de luxo. Como estudante cotista que pôde chegar a um curso de Medicina, Mabel será o balizador para a quebra dessa estrutura tão enraizada do racismo sistemático.

Com uma prosa ágil, intensa, fluída e assertiva, a autora nos convida a uma série de reflexões sobre esses contrastes ainda vivos em um País que mal recolhe os cacos de um governo de extrema direita. Olhando com resignação para o passado, Eunice é a força em combustão que ensinará Mabel e não se dobrar para esse sistema. O que fará com que a jovem compreenda a lição e olhe com audácia para o futuro o que, num movimento inverso, também poderá mobilizar a própria mãe. Com perspicácia, Eliana entrelaça as histórias para revolver o imaginário do trabalho doméstico no Brasil, ainda tão apegado ao seu passado escravocrata, fazendo nos lembrar o tempo todo de que há pressa: o amanhã é para ontem. Questões urgentes como a pandemia, o debate sobre ações alternativas e a luta por direitos reprodutivos acentuam o sabor contemporâneo da trama. Como diz a orelha da publicação, Solitária dá provas do quão incontornável se tornou reelaborar não apenas a história, mas as sobrevidas do Brasil colonial. "E ao fazê-lo mostra como é possível enfrentar o desafio moral e ético de abordar essas experiências de vida sem replicar gratuitamente a violência que as sustenta, nem reencarnar um pacto oculto de subalternidade. [...] Um romance de libertação".

Novidades em Streaming - Regra 34

De: Julia Murat. Com Sol Miranda, Lorena Comparato, Lucas Andrade, MC Carol e Babu Santana. Drama, Brasil, 2022, 99 minutos.

Regra 34 é o tipo de filme que te faz pensar sobre uma infinidade de temas. Questões de gênero, violência contra a mulher, racismo, patriarcado, fetiches sexuais e os limites para o uso da internet, além do aparato jurídico em meio a tudo isso. E se, por um lado, esta diversidade é satisfatória por fazer ecoar, nem que seja minimamente, cada um desses assuntos, por outro, os eventuais excessos podem, aqui e ali, diluir a importância (e a relevância) de certos debates. E em tempos em que as pessoas têm dificuldade em focar há sempre o risco dos discursos mais prolixos serem mal compreendidos ou mesmo percebidos como mera militância ou, como gostam de dizer alguns, lacração (sim, essa palavrinha). Por quê, vamos combinar que pensar dá trabalho e, em uma uma obra mais didática, que adota uma retórica quase acadêmica, o conjunto pode soar presunçoso. Ou esquemático. Quase com um "olha aqui, estamos falando disso aqui, perceberam?".

Isso significa que é um filme hermético ou de difícil digestão? Jamais. Quer dizer, talvez em partes, já que, pesquisando em fóruns da internet percebi que os "cidadãos de bem" ficaram relativamente chocados com o que eles consideraram exposições desnecessárias - de corpos e de ideias. Mas na produção de Julia Murat (de Pendular, 2016), o corpo é essencialmente político - ao cabo, ele é um instrumento que permeia todas as temáticas. E tudo isso estabelece diálogo com a protagonista Simone (Sol Miranda), uma jovem que acaba de se formar em Direito e que passa boa parte dos seus dias em uma espécie de estágio supervisionado, que lhe tornará defensora pública. Nos momentos em que não está discutindo juridiquês em sala de aula, Simone atua como camgirl onde exibe o corpo para um público que, do outro lado, lhe envia dinheiro para que ela se masturbe ou conceda outras recompensas.


Nesse sentido, uma das melhores discussões emerge justamente desses universos contrastantes experimentados por Simone. Se por um lado, ela estuda para, entre outros, prestar atendimento jurídico à mulheres que sofrem todo o tipo de violência - não necessariamente apenas física, mas psicológica, financeira e outras -, por outro ela mesmo avança para o campo do fetichismo sexual, aceitando pagamentos para sessões de asfixiofilia (uma prática perigosa, que ela insiste em testar), de agressões consentidas e de outras violências, como cortes na pele. Tomando por base a Regra 34 - uma máxima da internet que afirma que a pornografia online existe em todos os tópicos concebíveis - a diretora nos convida a refletir sobre esses temas, seus limites e mesmo sobre o que pode ou não ser considerado abuso. Afinal, quando o assunto é o sexo, numa sociedade conservadora ainda há muitos tabus.

Em certa altura do filme, por exemplo, Simone e seus colegas divagam longamente sobre o fato de que as mulheres que entram para a prostituição, escolhem esse caminho por não ter outro em seus horizontes. Mas será mesmo? Não há uma chance mínima, que seja, de haver algum apreço por esse "ofício"? "E o que dizer das empregadas domésticas?", retruca alguém, que completa com uma provocação: "elas não vão também por essa área quando não parece haver outra alternativa?" Por quê, afinal, somente quando o assunto é o sexo há esse tipo de barreira? Com idas e vindas entre um universo e outro, Julia organiza uma teia de relações que estabelece um potente, ousado, desafiador e moderno diálogo sobre desejo, feminilidades, tecnologia, direitos e liberdades. Grande vencedor do Leopardo de Ouro do Festival de Locarno, esse é daqueles projetos que convidam a um debate. Jamais se encerrando quando sobem os créditos.

Nota: 8,0


quarta-feira, 26 de julho de 2023

Cinema - Barbie

De: Greta Gerwig. Com Margot Robbie, Ryan Gosling, America Ferrera, Michael Cera e Will Ferrel. Comédia / Fantasia, EUA / Canadá, 2023, 114 minutos.

Ao concluir a sessão de Barbie, a sensação que ficou foi a de que esse era o único filme possível para a boneca mais famosa do mundo. Estamos em 2023 e ainda parece meio incrível que pautas feministas ou que envolvam questões ligadas à importância da igualdade de gênero precisem ser permanentemente lembradas, marteladas. Mas o caso é que o óbvio, em muitos casos, precisa ser dito. Reiterado. Reforçado. Que isso seja feito justamente (e paradoxalmente) por meio de um brinquedo que funcionaria, por décadas, como o exemplar máximo do estereótipo feminino fetichizado é algo digno de aplausos. "Ãin, porque a Mattel vai ganhar rios de dinheiro com o hype em cima da obra". Sim, vai. E ela ri meio que na nossa cara dessa contradição. Mas é também preciso elogiar a percepção de que o mundo evoluiu e, vá lá, talvez nos dias de hoje já não faça mais sentido uma comédia agridoce com a Barbie e o Ken feita somente para agradar adolescentes vestidas de rosa - e suas mães totalmente desatentas no que diz respeito à classificação indicativa de um filme.

Sim, a gente poderia questionar muita coisa aqui - dos eventuais exageros expositivos do discurso ou mesmo a história que vai para além dos limites de um realismo fantástico em um mundo surrealmente rosa. Mas jamais de que a obra não cumpre seu papel. Minha esposa e eu temos 42 anos e nos divertimos demais com essa experiência. E ficamos muito felizes em ver a sala repleta de jovens rindo junto, reconhecendo padrões absurdos na tela - especialmente aqueles que dão conta do quão patético pode ser o macho escroto (ou o boy lixo, como costumam dizer as meninas mais jovens) quando age em bando, quando se sente reafirmado em sua masculinidade (tóxica, naturalmente) ou quando escuta algum mesacast com redpilados fazendo um esforço enorme para (tentar) gostar de mulher. A misoginia e o machismo, ao cabo, estão por todo o lado e a cada novo instante da projeção era possível reconhecer na tela aquele seu tio tosco do churrasco dominical, o colega de trabalho intragável ou o comediante de stand up que parece saído da Idade Média. 

 


Forçado? Temeroso para as novas e empoderadas (ui) gerações de mulheres do porvir? Nunca. Nunquinha. Até mesmo porque certamente elas já tão muito a frente nesse debate, do que supõe a cabeça torpe do homem normie, que acha que abala as estruturas falando em mercado financeiro, em bitcoins, em literatura rasa de coach do abstrato, na HB20 recém comprada ou sobre o quão incrível vai ser o seu novo barber shop (voltado à machões que se empolgarão em falar dos treinos da academia do bairro e dos jogos insuperáveis do imortal tricolor). Essa obra é uma aula que mais parece uma sequência de esquetes sobre a persistência da mulher hétero e, na boa, é simplesmente impossível não gargalhar alto quando vemos em cena uma sequência em que o Ken (Ryan Gosling) encarna o Zé Violão para tocar a música mais pálida possível do tiozão roqueiro dos anos 90 - no caso Push, dos queridos (sim) hiperamericanos, do Matchbox Twenty. Nessa hora eu perdi tudo. Aliás, eu já tinha perdido. Ou ganhado, dependendo do ponto de vista.

E se não bastassem todos os predicados no que diz respeito às temáticas, a obra dirigida por Greta Gerwig (alô Oscar, uma indicação pra moça na categoria Diretora por favor) ainda é um primor do ponto de vista técnico. O desenho de produção é impecável. A fotografia e os figurinos idem. A trilha sonora tá bem encaixada. E as soluções encontradas para "mesclar" os universos da Barbieland e o mundo real são engraçadas, inusitadas e hiperbólicas. Na Terra da Barbie são as mulheres que ditam o rumo das coisas, com o coletivo de Kens - aquele bando de homem médio apenas bonito (vocês veem bastante por aí) - sendo submisso a elas. Só que quando a coisa desanda com a Barbie Estereotipada (Margot Robbie, como vocês já tão carecas de saber) dessa outra dimensão, pondo em risco esse universo aparentemente perfeito, caberá a ela ir ao encontro dos humanos de carne e osso para tentar consertar as coisas. E, claro, esse choque de realidades em um espaço povoado pelo patriarcalismo, resultará em uma coleção de grandes instantes. É filme pra ver e rever. E que ajudará, como sempre fazem as artes, a retirar muita gente da zona de conforto. Não, não se trata de um tratado filosófico sobre o feminismo no Século 21. É apenas um filme que empunha sua bandeira sem se envergonhar disso. E que faz lembrar, inclusive de forma literal, que muitas vezes o discurso precisa ser repetido. Mais e mais vezes. Quase infinitamente. Até mesmo para que não haja mais retrocessos. De aplaudir de pé.

Nota: 10


terça-feira, 25 de julho de 2023

Novidades em Streaming - A Felicidade das Coisas

De: Thais Fujinaga. Com Patrícia Saravy, Magali Biff, Messias Gois e Lavinia Castelari. Drama, Brasil, 2021, 87 minutos.

A demorada construção de uma piscina, que parece que nunca vai ser concluída. Poucas vezes no cinema nacional a imagem de uma obra inacabada foi tão bem utilizada como metáfora para uma classe média que achava ia chegar lá - mas não chegou -, como no caso do premiado A Felicidade das Coisas. Dirigida por Thais Fujinaga e inspirada em memórias de infância da própria realizadora, a obra conta a história de Paula (Patrícia Saravy), uma mulher próxima dos 40 anos, que acaba de comprar uma antiga casa de veraneio no litoral paulista. No primeiro verão na casa, Paula se empenha em concluir o projeto da piscina, em meio a longas discussões com os pedreiros, esforços financeiros que parecem impraticáveis e ligações diversas para aquele que parece ser o ex-marido (alguém que, aparentemente, pretendia auxiliá-la na obra mas que, mais adiante, começa a dar pra trás).

Nesse sentido, a piscina poderia ser a alegoria quase óbvia para um recomeço. Ao lado da mãe Antônia (Magali Biff), Magali direciona os esforços para aquilo que, vá lá, talvez servisse como uma espécie de compensação para os filhos Gustavo (Messias Gois) e Gabi (Lavinia Castelari) - que surgem, aqui e ali, como figuras distantes da mãe. O clima geral é acinzentado, frio e úmido - como são aquelas casas de litoral que permanecem meio abandonadas e que carecem de uma série de investimentos pra que a infraestrutura não se arruíne. Todos se esforçam pra tocar a vida naquele lugar em que o rio é sujo e a floresta é fechada, quando a construção da piscina simplesmente paralisa pelo fato de Paula não conseguir arcar com as despesas. Tentando manter algum otimismo, Antônia funciona como a figura maternal que tenta ver o copo meio cheio, mesmo quando as crises parece se espalhar por todos os lados.



Na rotina das crianças há o interesse por uma espécie de clube local - um daqueles espaços luxuosos, com piscinas amplas, que as cidades médias costumam ter e que, num acordo bizarramente tácito, separa os pobres dos ricos. Paula está no meio do caminho: adquiriu uma casa decadente, é incapaz de concluir a piscina e, de quebra, não tem dinheiro para que todos ali possam se associar ao clube. E essa sensação de isolamento, de se sentir apartado de algo, é ampliada em sequências em que Gustavo e Gabi assistem, do lado de fora e separados por uma grade, os demais se divertindo do outro lado. É um Brasil de contrastes sociais que é evidenciado em instantes que nada têm de efêmeros. Em outro momento, Antônia compra para os netos um passeio de pedalinho, sendo alertada de forma constrangedora pelo operador de que, para utilizar o brinquedo, é necessário pagar. E mais do que isso, "jamais eles devem ultrapassar os limites da bandeira".

Em alguma medida, a experiência com A Felicidade das Coisas me fez lembrar outros projetos sul-americanos, como o clássico moderno O Pântano (2001), da argentina Lucrécia Martel. Naquela obra também acompanhamos uma classe média entorpecida, com as famílias se revezando em mesquinharias enquanto apenas aguardam a próxima tragédia que irá acontecer. A próxima piscina que não será concluída. Em entrevista à página Mulher no Cinema, Thaís Fujinaga salientou que quando filmou, em 2019, pensava a piscina como "analogia de um país que quase chegou lá". "A gente teve um período em que parecia que as coisas iam melhorar e avançar, mas chegamos numa espécie de teto de vidro, de ‘daqui você não passa’. Você pode ter essa casa de praia caindo aos pedaços, mas a piscina você não vai ter", explicou. Não é por acaso que esse núcleo familiar funciona como um microcosmo para o Brasil que viveria o boom de consumo da Era Lula, que culminaria na tragédia do governo Bolsonaro. Da euforia substituída pela incerteza. Da excitação que dá lugar ao vazio. Assim como permanecerá vazia a piscina.

Nota: 8,0



Pitaquinho Musical - Blur (The Ballad of Darren)

Vamos combinar que o efeito causado pelo Blur é meio curioso. Se por um lado, Damon Albarn e companhia são capazes de lotar estádios - como vinham fazendo em apresentações recentes e pós-pandêmicas -, por outro, parecem ser aquela banda ideal pra festa indie alternativa promovida por aquele bar descolado. E talvez seja justamente essa capilaridade - na falta de uma palavra melhor -, que os torne tão interessantes. Porque se, por um lado, eles são melhores do que ninguém na hora de conceber canções que olham com certo cinismo pra sua Inglaterra natal - aliás, algo que era bastante literal em álbuns como Parklife (1994) e The Great Escape (1995) -, por outro eles sempre foram muito hábeis em investigar sentimentos bastante humanos, colocando no "papel" suas dores, incertezas e temores. Com tudo estabelecendo relação direta com a vida moderna e a mesmice ordinária do cotidiano.



Agora, já na casa dos 50 e alguma coisa, os integrantes da banda poderiam ficar de boas, nas suas casas de campo, fazendo shows aqui e ali, engordando as suas contas bancárias e replicando padrões que eram motivo de deboche no passado. Mas e as inquietações? Em alguma medida o mundo já não é mais o mesmo do que era nos anos 90, quando fazia todo o sentido uma certa análise do provincianismo britânico, que resultaria em clássicos como Country House ou Charmless Man. Atualmente, as pessoas precisam lidar com pandemia, extrema direita, guerras, tecnologias e outros temas que, aqui e ali, ganham eco na voz agridoce e melancólica de Albarn. Sim, ele também teve seus demônios particulares revolvendo suas entranhas - como foi o caso do término de um longo relacionamento (com Justine Frischmann). A vida adulta bateu e não faz mais sentido pensar no britpop sendo esmagado por músicas como Song 2. Assim, The Ballad of Darren, o nono álbum, é um projeto maduro, paciente e melódico, como comprovam as ótimas Barbaric, The Narcissist e The Heights. Bem-vindos de volta!

Nota: 8,5


segunda-feira, 24 de julho de 2023

Tesouros Cinéfilos - Boneca Inflável (Kuuki Ningyou)

De: Hirokazu Koreeda. Com Bae Doona, Arata Iura, Itsuji Itao e Joe Odagiri. Drama / Fantasia, Japão, 2009, 125 minutos.

- Sou toda vazia. 
- Que maravilhosa coincidência. Também sou.
- Fico pensando se há outros como nós.
- Atualmente, todos são.
- Todos?
- Sim, todos. Especialmente os que moram nesse tipo de cidade. Você não é a única.

Poucas vezes um filme foi tão eficiente (e alegórico) ao capturar o sentimento de vazio existencial de nossos tempos, como no caso do excelente Boneca Inflável (Kuuki Ningyou), do aclamado diretor Hirokazu Koreeda (de Assunto de Família, 2018). A cada dia que passa, parece que nos habituamos mais a solidão. A uma rotina de ocupações repetitivas, ordinárias. Que muitas vezes se soma a impossibilidade de estabelecer vínculos mais sólidos com outras pessoas. Os relacionamentos parecem fadados ao fracasso - com o excesso de ofertas para todos os lados sendo inversamente proporcional ao senso de responsabilidade afetiva. E não são poucas as obras de arte que adotam alegorias que funcionam à perfeição como divagações de grande sensibilidade e cheias de simbolismos. Aqui, quem afirma estar "vazia" é uma boneca inflável de nome Nozomi (a ótima Bae Doona, vista em Sense 8). Uma boneca que adquire consciência (e um coração).

Só que o vazio alegado por Nozomi era verdadeiro, literal. E que havia sido resultado de um acidente pelo qual ela passou - um ferimento que abriu sua "pele", retirando seu ar interior. A solução encontrada pelo colega de trabalho Junichi (Arata Iura)? Vedar o corte com fita durex e inflar novamente a boneca, assoprando-a em seu ventil. Sim, será o vento produzido pela boca de Junichi que fará com que Nozomi se recupere. Havia uma paixonite inesperada entre os dois. E não poderia haver melhor acerto em mais essa metáfora cheia de ambiguidades a respeito dimportância do outro para nos "preencher", para dar cor aos nossos dias, para nos possibilitar a vida, a troca, o laço. Nesse sentido, o filme de Koreeda é repleto de divagações poéticas quase sublimes, que são reforçadas pela sua reconfortante trilha sonora. Que acompanha Nozomi como uma espécie de Amelie Poulain feita de borracha.



E, sim, tudo pode parecer meio estranho, excêntrico e certamente há que se ter uma boa dose de suspensão da descrença para que possamos embarcar nessa jornada tão fantasiosa quanto impossível. Quando o filme começa, Nozomi parece ser apenas uma boneca sexual, adquirida pelo solitário Hideo (Itsuji Itao), um homem de meia idade que trabalha em uma lanchonete. Mas, para além do sexo, Hideo a trata como se fosse uma esposa improvisada: conversa animadamente com ela nos jantares, lhe dá banhos, a leva para passear, a veste (se está mais frio a cobre). É um comportamento amável, que concede à boneca um mínimo de dignidade. Só que ainda assim o despertar de Nozomi não demora. Ao abrir a janela e tocar acidentalmente uma goteira que verte água ela "acorda". E, diante do mundo, se maravilha com o sem fim de possibilidades. Inclusive no trabalho.

E será como empregada de uma locadora de vídeo que Nozomi conhecerá Junichi. E será em sua companhia que ela refletirá sobre a beleza das coisas. Com um comportamento digno de uma criança curiosa, que se depara com uma série de inesperadas novidades. "O que significa envelhecer? Por quê o mundo é construído de forma tão solta? O que é um aniversário? É possível preencher a vida sozinho? Aqui é o oceano? E o que tem lá em cima?". A cada novo questionamento de Nozomi, somos convidados a refletir ao seu lado sobre tudo que nos rodeia. Enquanto ela se esforça para manter seu segredo - especialmente de Hideo, seu "proprietário" (por assim dizer). Famoso por elaborar verdadeiras obras-primas centradas na subversão do conceito de família, Koreeda realiza aqui uma experiência meio fora da curva, muito mais melancólica do que sexual, e que de quebra ainda utiliza a sua temática para uma análise mais profunda sobre essa sensação de mal-estar da contemporaneidade. Uma joia.


quarta-feira, 19 de julho de 2023

Novidades em Streaming - Os Fortes (Los Fuertes)

De: Omar Zúñiga. Com Samuel González, Antonio Altamirano, Marcela Salinas e Rafael Contreras. Drama, Chile / Argentina / Brasil, 2019, 99 minutos.

Existe um duplo sentido muito inteligente no título do filme de Omar Zúñiga, Os Fortes (Los Fuertes). Por ser uma história de romance queer entre dois homens de personalidades distintas, que se conhecem por acaso na província, há que se destacar o peso - ou a força - de se levar um relacionamento meio improvisado a frente. Há que ser forte, afinal, pra enfrentar preconceitos de todos os tipos, que podem emergir do entorno (ou até de dentro da própria família, como parece ficar subentendido). Mas há um segundo significado para os fortes e que, aqui, tem mais a ver com a geografia, com o espaço físico onde a história se desenrola. E que, no caso, é o povoado de Niebla, uma espécie de vila de pescadores da região de Valdívia, um local bem ao Sul do Chile, onde está disposto um histórico forte à beira-mar, que teve papel importante durante a Guerra da Independência do País.

Ao cabo, essa é uma alegoria formidável - entre tantas outras que veremos nessa obra de grande sensibilidade -, que resume bem a ideia de enfrentamento ou de quebra do status quo, que representa uma relação de afeto entre dois homens em um espaço dominado pelo conservadorismo. Chegado de uma viagem de Santiago, Lucas (Samuel Gonzalez) resolve fazer uma parada no já citado vilarejo para uma visita a sua irmã Catalina (Marcela Salinas) e a seu cunhado Martin (Rafael Contreras). Isto antes de embarcar para Montreal, no Canadá, onde ele seguirá os estudos após ter obtidos uma bolsa de pós-graduação em Arquitetura. Só que a sensação de isolamento - e até de alguma hostilidade - vivida por Lucas será substituída pelo calor humano, quando ele conhece o jovem Antonio (Antonio Altamirano), um pescador taciturno, que faz um bico como ator de meio período justamente em uma representação sobre a guerra, que costuma atrair a atenção de turistas.



E não demorará para que os dois se aproximem, sob a desconfiança de Catalina - e por mais que os dois irmãos tenham uma relação afetuosa, as dificuldades que envolvem a comunicação com os pais, sugerem que os motivos de Lucas ter abandonado o povoado podem ter a ver não apenas com a intenção de estudar, mas também de ser aceito. Lucas nunca atende os eventuais telefonemas. E a situação entre Catalina, uma dentista local, e seu marido também não parece ser das melhores. E em alguma medida todas as angústias que transbordam dos protagonistas da obra parecem contrastar com a paisagem local, que se alterna entre o ensolarado e o acinzentado, entre o úmido e o quente, como uma representação legítima de almas que persistem, encaram, ainda que diluídas em incertezas, em incômodos, como se afundadas em um pântano. Em certa altura, Lucas recebe uma pedrada pelas costas. Aquele lugar que ele deixou pra trás, assim percebemos, tem outros segredos. E, vai ver, não será e presença de Antonio que modificará essa situação.

Ainda que isso não impeça que eles vivam seu amor. Uma relação cheia de paixão, de mãos pelos cabelos (e pelos corpos). Tudo evidentemente escondido. Longe dos pescadores que acompanham Antonio em sua rotina - ou mesmo dos parceiros de encenação teatral. Já Lucas mal consegue esconder da irmã os sapatos enlameados, quando ele retorna tarde da noite, após o primeiro beijo em Antonio. E sempre haverá algo no olhar condescendente da irmã. Em alguma medida essa é uma experiência de instantes e de rimas visuais e sonoras, que funcionarão também como metáforas para sensações que vertem da alma. Um momento íntimo, por exemplo, é substituído por uma caudalosa onda de mar em uma encontro visual que alude à torrente de paixão, que flui caudalosa, imparável. Em outro momento, o casal de beija enquanto uma chaleira persiste em apitar ao fundo, como que pronta para explodir, em uma pressão crescente que funciona como alegoria para o desejo. Nesse sentido, trata-se de um filme inteligente e sutil, elegante mas lascivo. E que nos faz pensar sobre as dificuldades que envolvem esses amores impossíveis que explodem inesperados. Mas eles explodem. E é isso que fica.

Nota: 8,0


Pitaquinho Musical - Letrux (Letrux Como Mulher Girafa)

O estilo bastante teatral de Letícia Novaes, a Letrux, ganha tintas galhofeiras, coloridas e libidinosas em seu terceiro trabalho em carreira solo, Letrux Como Mulher Girafa. Após o clima sorumbático do anterior - que tinha o título autoexplicativo de Letrux aos Prantos (2020) -, era a hora de, com o perdão do trocadilho, "soltar as feras". Talvez fosse a pandemia chegando ao fim. Ou a simples necessidade de sair da toca e mudar de ares. Mas o caso é que com o novo projeto, produzido por João Brasil, a artista utiliza a alegoria do animalesco pra falar de sentimentos visceralmente humanos. Construindo um projeto ao mesmo tempo divertido, selvagem e poético - numa montanha-russa artística que vai do pop ao psicodélico, com uma parada no rock mais direto e dançante, sem firulas. Literal em alguns momentos, abstrato em outras, o disco parece dar um novo rumo para a carreira da cantora e compositora, ainda que isso não represente necessariamente uma revolução. É pé no chão.



O resultado disso é um passeio na floresta em que músicas de nomes, como Zebra, Crocodilo, Aranha e Hienas se intercalam com pequenas vinhetas sonoras que funcionam quase como um rascunho musical (uma forma de aproximar o público do que acontece no mundo real das produções). Ainda no terço inicial, As Feras, Essas Queridas é uma espécie de fio condutor do que o ouvinte encontrará durante os 42 minutos do álbum, com sua letra metafórica que leva ao limite as tensões "presa/predador". É uma música de guitarra barulhenta, percussão tribal, eletrônica ruidosa e versos cheios de ambiguidades (Te cacei pra mim, te tirei o couro / Tripas pra fora, tratеi com amor / Embora não pareça, foi com amor que eu tе / Destrinchei), que brilha e prepara o terreno para outras gemas. Essa dicotomia entre o comer literal e sexual reaparecerá diversas outras vezes, como no caso da bucólica Formiga (Sou sua caça, bicho do mato / Caçadora querendo contato) e na vigorosa Hienas (Não era pra ter sido assim / Tu me deu um bote quase no fim / Se ainda tivesse me comido tranquilo). É pura personalidade.

Nota: 8,5


segunda-feira, 17 de julho de 2023

Novidades em Streaming - Sem Ursos (Khers Nist)

De: Jafar Panahi. Com Jafar Panahi, Vahid Mobasheri, Mina Kavani e Reza Heydar. Drama, Irã, 2022, 107 minutos.

"Não há ursos. As histórias são inventadas pra amedontrar as pessoas."

Um filme sobre alguém tentando fazer um filme em que as coisas dão muito errado, em meio a um contexto político de opressão, de censura e de proibições. Pode até parecer uma distopia crítica ao totalitarismo, mas é apenas a vida do diretor iraniano Jafar Panahi, que segue em sua luta (quase) solitária no sentido de tentar exercer a sua profissão. Preso em 2010 sob a alegação de "cometer crimes contra a segurança nacional do País e propaganda contra a República Islâmica" (também conhecido como tentativa escancarada de silenciamento por parte do Governo), Panahi também foi proibido pelo Tribunal Revolucionário Islâmico de dirigir qualquer obra, escrever roteiros, dar entrevistas e sair do Irã. Por 20 anos. Em meio a respostas internacionais e apoio de organizações, o realizador se empenha em, às escondidas, dirigir filmes. É desse cenário conturbado que resulta o comovente e provocativo Sem Ursos (Khers Nist), vencedor do Prêmio do Júri do mais recente Festival de Veneza.

Rodado secretamente no Irã e estrelado pelo próprio Panahi, o filme se aproveita da condição do diretor -  e de suas limitações técnicas e geográficas - para um exercício metalinguístico e semidocumental poderoso. Aliás, quem acompanha a carreira do realizador sabe que, desde o prodigioso Isto Não É Um Filme (2011) - que foi enviado para o Festival de Cannes em um pendrive escondido em um bolo - tem sido assim. Fazer filmes é um suplício para Panahi. Mas ele não desiste - o que não deixa de ser um alento. Na trama de Sem Ursos, o vemos em um esforço remoto para a conclusão de uma obra onde, aparentemente, um casal em fuga se empenha em conseguir dois passaportes falsos, que lhes permitam ir para a Europa, para encontrar asilo. A vida, naturalmente, imita a arte e quando a câmera se afasta e um diálogo entre os atores se inicia, percebemos que Panahi os dirige à distância, em uma vila remota na divisa com a Turquia.



E como se não bastasse a perseguição política em si, Panahi perde a conexão com a sua equipe - ele até tenta capturar algum sinal de internet se afastando de sua base, até mesmo subindo no telhado (com uma escada emprestada). Não dá certo. Mas para não perder tempo, o diretor sai para o vilarejo para fazer algumas fotos do entorno. De cenários, de pessoas, da aldeia em um dia normal. Para além disso, incumbe seu senhorio - seu nome é Ghanbar (Vahid Mobasheri) - a obter algumas imagens de um casamento. O que não dá lá muito certo por conta da falta de habilidade do sujeito com o equipamento. E em meio a todas as dificuldades vistas em apenas um dia de trabalho, o assistente de produção de Panahi, Reza (Reza Heydari) o leva para um passeio em que explicita a insatisfação da equipe com a forma com que atuam. O caminho? Talvez uma fuga para a Turquia. E tudo piora quando uma jovem de nome Gozal (Daria Alei) aparece para, em desespero, suplicar para que o diretor apague uma suposta foto comprometedora dela.

Todos esses eventos servem para mostrar como as questões políticas, culturais, sociais e religiosas do País influenciam a vida de todos ali. O governo, sim, é uma barreira. Mas há as tradições entranhadas. Enraizadas. Que estão no tecido estrutural das comunidades iranianas. Não à toa, Panahi parecerá, ali pelas tantas, uma voz meio isolada em meio aquele contexto conservador imerso em superstições - e, aqui, não há nenhum tipo de pedantismo nisso, já que o problema do diretor se conecta, em alguma medida, àquele que envolve um beijo dado em alguém e que não deveria ter sido flagrado. Não por acaso, em um dos instantes mais estranhos, exóticos da projeção, Panahi é instigado a fazer um juramento a Deus de que não tirou nenhuma foto comprometedora. Em uma espécie de tribunal improvisado, o realizador não apenas liga a câmera como resolve dizer, para desespero de todos, que não compreende aquelas tradições. De alguma maneira, esses conflitos aparentemente mesquinhos, apenas preparam o terreno para as tragédias maiores. E que seguem assombrando as comunidades mais fechadas do planeta. Impactante é pouco.

Nota: 9,0


sexta-feira, 14 de julho de 2023

Novidades em Streaming - Paloma

De: Marcelo Gomes. Com Kika Sena, Ridson Reis e Wescla Vasconcelos. Drama, Brasil, 2022, 104 minutos.

"Eu num sei nem por onde começar... [...] Seu Papa. Meu nome é Paloma. Vivo e trabalho aqui em Saloá como agricultora e, às vezes, faço bico de cabeleireira. Vivo amigada com o meu marido Zé. Com ele crio a minha filha Jennifer, o presente mais maravilhoso que Deus me deu. Nasci homem, mas sou mulher. Todo mundo aqui sabe disso. Já errei muito nessa vida, seu Papa, mas depois que eu conheci o Zé, eu vivo uma vida digna e decente como qualquer outra mulher. Me considero fia de Deus como qualquer outra pessoa. Já me batizei, fiz a primeira eucaristia, a crisma, agora só falta realizar o meu maior sonho que é casar na Igreja. E eu sei que só o senhor pode autorizar isso. E é por isso que estou lhe escrevendo essa carta. Pra pedir ao senhor que conceda permissão ao padre João Manuel para que ele possa fazer o meu casamento. E, assim, me tornar a mulher mais feliz do sertão."

Vamos combinar que não poderia ser mais comovente o instante em que Paloma (Kika Sena) dita à sua amiga Kelly (Wescla Vasconcelos) uma carta com esse pedido singelo: o de poder casar. Com véu, grinalda, Igreja decorada e tudo que se tem direito. Como mulher trans, ela já está familiarizada com as barreiras impostas pela própria Igreja e seus dogmas um tanto ultrapassados - e que, em tempos de ódio, de preconceito e de intolerância como os da atualidade (reforçados pelo recente governo de morte de Bolsonaro), parecem mais vivos do que nunca. Só que Paloma é uma mulher devota. Ela sequer pode entrar na Igreja, numa daquelas contradições legítimas do Brasil - esse País conservador e cheio de fé, capaz de converter pessoas periféricas e minorias em admiradores ardorosos da extrema direita, das elites e de outras instituições poderosas. Por quê Paloma, como mulher negra, nordestina, trans, analfabeta e pobre deseja tanto se casar da forma mais tradicional possível? 

 


Talvez o que esteja em jogo para ela seja o processo que a reafirmaria como mulher. Dotada de direitos e capaz de realizar sonhos - como o do casamento. Então, quando a nossa carismática protagonista encosta seu rosto anguloso, de olhar expansivo e de sorriso sonhador, no batente da porta para ditar a sua missiva, a gente apenas está torcendo para que sua intenção seja atendida. É um instante afetuoso, em partes divertido - Kelly reclama da amiga, pede pra que ela não dite tão rápido por que ela "não é uma máquina de escrever". E o poder desse filme de Marcelo Gomes - dos excelentes Cinema, Aspirinas e Urubus (2005) e Estou Me Guardando Pra Quando o Carnaval Chegar (2019) é o de despertar em nós também a empatia. A capacidade de olhar o outro como um ser humano. Que tem sonhos, incertezas, medos, desejos. Que ama. Ama como Paloma ama a sua adorável filha. Seus amigos e amigas - especialmente as gurias do bordel, com que se sente confortável em suas dores. O marido Zé (Ridson Reis). É um filme de Brasil: de terra e de seca, mas também de carne e de alma.

E Paloma permanece o filme inteiro na luta determinada pra tentar juntar dinheiro pra consolidação do matrimônio. Como peoa que trabalha na colheita de mamão, ela parece ser mais cobrada pelos seus empregadores. Os olhares parecem sempre mais voltados à ela. Nas ruas, os comentários debochados ao fundo. No bar local a violência que emerge do nada. Na Igreja, a impossibilidade de sonhar. Em casa, as dúvidas. Pra quem convive com o preconceito, esses elementos parecem apenas integrar a paisagem. O cotidiano. A rotina. Ela vai apenas se acostumando, ainda que a violência pareça sempre se avizinhar. Por isso que talvez ela ceda diante do assédio de um motorista de caminhão. Até que ponto dá pra enfrentar uma série de humilhações e de injustiças e de ainda levantar a cabeça ao ver o direito de simplesmente amar alguém ser negado? Essas incertezas também pairam no entorno. E afligirão outras pessoas. O que comprovará que o casamento em si talvez seja o menor dos problemas. A questão central está em fazer a sociedade compreender. Acolher as diferenças. Sair da hipocrisia e do reacionarismo tacanho. E, assim, evoluir.

Nota: 9,0


quarta-feira, 12 de julho de 2023

Pitaquinho Musical - Ian Ramil (Tetein)

Talvez tenha sido a paternidade. Ou mesmo um fiapo de esperança nesse 2023 que avança. Mas o caso é que com o recente Tetein, o gaúcho Ian Ramil parece menos furioso do que no provocativo e iconoclasta Derivacivilização (2015) - nosso 11º colocado entre os melhores nacionais daquele ano -, o trabalho anterior. Ao cabo, não é só certa delicadeza que parece emergir das melodias mais econômicas ou menos expansivas que parecem influenciadas pelo nascimento da pequena Nina há seis anos. As letras também surgem mais polidas, menos inconsequentes. Não, não é que o pelotense tenha perdido o espírito questionador. Mas como disse a repórter Andressa Leonarczik, do Jornal do Comércio "quando nasce uma filha também nasce um pai". E em um álbum elaborado ainda antes da pandemia não parecia haver mais tanto sentido esse pendor mais urgente para certos debates. "Não é um disco que fala sobre a paternidade. Mas ele é por causa da paternidade", resumiu na mesma entrevista.



O resultado é uma coleção de canções de ambientação mais sutil - como é o caso da própria faixa-título, que parte de uma palavra inventada pela pequena, ou mesmo a graciosa Cantiga de Nina, um samba-canção que presta homenagem à Cartola e que foi concebida quando Nina não tinha nem um mês de vida. "Foi um processo bem diferente, muito mais delicado que o disco anterior e tem a ver muito com o processo criativo que vem desse lugar da delicadeza, do reencontro com coisas da minha própria infância. Quando me tornei pai, tive muito uma viagem no tempo" resumiu em outra conversa, esta com o Estados de Minas. Claro que no mundo nem tudo são flores e o artista não esquece disso, como comprovam instantes menos lúdicos - casos das ótimas Homem-Bomba e a já conhecida Macho-Rey, com sua letra sobre masculinidade tóxica e preconceitos diversos (Lá vem o tiozão, o macho-rei / rastando havaianas pelo chão / Sorriso, asa de avião / Discurso, descarga de caminhão).

Nota: 8,5


Novidades em Streaming - Falsos Milionários (Kajillionaire)

De: Miranda July. Com Evan Rachel Wood, Gina Rodriguez, Ricnard Jenkins e Debra Winger. Comédia / Drama, EUA, 2020, 104 minutos.

Nas aparências uma história sobre uma família de vigaristas que vive de (tentar) aplicar pequenos golpes como forma de sobreviver. No seu âmago um filme sobre uma jovem que convive com pais manipuladores e emocionalmente distantes, que a utilizam apenas como cúmplice de seus trambiques. Assim podemos considerar a comédia dramática Falsos Milionários (Kajillionaire) - obra dirigida por Miranda July (do clássico indie Eu, Você e Todos Nós, de 2005), que acaba de chegar à Netflix. Com aquela carinha de obra que costuma agradar nos festivais alternativos, esse é aquele tipo de experiência que se utiliza de um recorte pequeno para uma análise mais ampla, até mais psicológica. Com uma presença física opressora e constante, Robert (Richard Jenkins) e Theresa (Debra Winger) não poderiam ser mais ausentes em matéria de afeto, quando o assunto é Old Dolio (Evan Rachel Wood), a sua filha já em idade adulta.

E isso talvez explique o seu comportamento bastante reticente quando, ainda no começo do filme, ela sinta um desconforto na alma ao receber uma massagem. Aliás, a massagem havia sido ofertada à família em mais uma de suas falcatruas - que envolvia oferecer na paróquia local um relógio previamente furtado. A ideia era tentar receber alguma compensação financeira, sendo a sessão de massoterapia a moeda de troca. Só que para Old Dolio parece ser estranho ter alguém encostando nela. Passando as mãos de forma carinhosa e terapêutica em seu corpo. Não demora para que percebamos que foi assim que ela foi "criada" em casa (ou no que parece ser uma casa, meio improvisada): sem abraços, sem palavras de afeto ou de incentivo. Sem amparo algum. Old Dolio, com sua pele alva e cabelos loiros, funcionou a vida toda como um simples veículo para colocar em prática estratagemas furadas. Trabalhar? Estudar? Nada. A vida é aos bicos e assim vai ser.



E talvez seja por isso que Old Dolio considere tão estranho o fato de seus pais apadrinharem outra jovem, no caso Melanie (Gina Rodriguez) - que eles conhecem em um vôo para Nova York que, claro, faz parte de um outro esquema. A ida para a Big Apple é conquistada em uma maracutaia em que eles vencem um concurso cujo prêmio era a viagem. O objetivo durante o trajeto era dar sumiço às malas de Old Dolio (sem perdê-las, efetivamente, claro) para tentar obter da companhia aérea um valor de cerca de US$ 1.500 de seguro, e que serviria para quitar três meses de aluguel atrasado. Aliás, detalhe: aluguel de uma suposta casa que funciona em um anexo de uma fábrica de sabão, que exige do trio central um trabalho permanente de contenção de vazamentos de espuma (em uma espécie de alegoria meio aleatória do caráter um tanto abstrato daquele tipo de vida). É preciso enxugar espuma a toda hora. Em uma casa úmida, instável.

Melanie se junta ao grupo sabe-se lá bem por quê e, diante das burocracias para a obtenção do dinheiro da companhia aérea, sugere a eles um novo golpe: visitar clientes idosos da ótica em que ela trabalhava, na intenção de obter futuros roubos. Tudo se aproveitando da boa vontade e da solidão de idosos que, a qualquer custo, anseiam por algum tipo de companhia. Sim, parece uma viagem esquisitona e é, mas não dá pra perder de vista o fato de que os pais de Old Dolio ficam encantados com o carisma irresistível de Melanie. O que talvez os faça se converter em pessoas melhores? Nem tanto. Com tintas otimistas, quase num limite do flerte com o realismo fantástico, a obra nos faz pensar sobre a importância dos bens materiais, do dinheiro, de como ele nos molda e de como muitas pessoas são capazes de qualquer coisa para se dar bem. Nem que para isso seja necessário enganar ou ludibriar pessoas bem próximas. Familiares inclusive. Claro, nunca vai ser tarde pra perceber que na vida há outros valores. Outros elementos que dão cor à nossa existência. É a valiosa lição que fica.

Nota: 8,0


terça-feira, 11 de julho de 2023

Tesouros Cinéfilos - O Trabalho Dela (I Douleia Tis)

De: Nikos Labôt. Com Marisha Triantafyllidou, Maria Filini e Dimitris Imellos. Drama, Grécia / França / Sérvia, 2018, 89 minutos.

"Você já trabalhou com isso alguma vez? Só em casa." A resposta de Panayiota (Marisha Triantafyllidou) à pergunta da colega de trabalho Maria (Maria Filini) é sintomática do que significa uma rotina de afazeres domésticos jamais reconhecidos e, muito menos, remunerados. E isso talvez explique a sua empolgação quando é contratada por uma empresa terceirizada para trabalhar como faxineira em um shopping que está prestes a ser inaugurado. Afinal, o que é passar o dia em meio a baldes, vassouras e panos e ainda poder receber por isso? Para Panayiota não parece haver problemas em realizar horas extras abusivas ou conviver com assédios variados em seu ambiente de trabalho. Ela está satisfeita com aquela que, ao cabo, é a sua primeira experiência do tipo. O cenário é o da crise financeira da Grécia. E, portanto, trabalhar é preciso. O que envolve se submeter a praticamente qualquer coisa pra tentar manter o cargo.

Disponível na plataforma Mubi, O Trabalho Dela (I Douleia Tis) faz lembrar, em alguma medida, o clássico de Élio Petri A Classe Operária Vai ao Paraíso (1971). Tratada de forma cortês e com certa reverência por seus empregadores, Panayiota é uma espécie de "funcionária padrão". Dificilmente diz não para os patrões. Independentemente de qual seja a pedida. Quando um grupo de colegas é sumariamente demitida sem muita explicação, não parece muito disposta a enveredar para o lado da greve ou dos protestos que rondam o "lado de fora". O que importa para a nossa protagonista é o seu mundinho. É a renda que vai entrar no final do mês. É o senso de independência meio tardio de quem pode, finalmente e à beira da meia idade, ter um pouco de autonomia, se livrando das garras autoritárias do marido - um sujeito incapaz de colocar a sua própria comida no prato ou despejar um café em sua xícara (mesmo estando desempregado).


Nesse sentido, a obra do diretor Nikos Labôt gera no espectador um sentimento meio ambíguo. Afinal, há que se valorizar a conquista de espaços da mulher, especialmente quando o assunto é o mercado de trabalho e a consequente fuga de certa dependência de homens em geral. Mas e quando o preço disso é muito alto? Sem experiência, Panayiota começa de baixo. Semianalfabeta, incapaz de operar o equipamento aspirador e inequivocamente submissa, ela se torna, com seu espírito subserviente, a operária ideal. Não questiona. Só baixa a cabeça e faz. Dez, doze, catorze horas diárias. O que faz com que, de forma paradoxal, o ambiente doméstico passe a funcionar melhor já que, sem a esposa para fazer absolutamente todas as funções, seu marido Kostas (Dimitris Imellos) se vê obrigado a trabalhar em casa. E a sua filha adolescente e rebelde a estudar. O único que parece sofrer mais e, genuinamente, é seu filho mais novo, que adoece com a ausência da mãe.

Com um aceno à obra sempre política de Ken Loach, o filme adota um tom naturalista, de planos mais fechados, intimistas, sendo comovente a expressão de permanente desencanto de Panayiota - que dificilmente consegue abrir um sorriso e verdade, ainda que ela vá se soltando aos poucos (como fica bastante explícito na sequência em que ela compra um elegante vestido vermelho). Em geral as intenções da produção são boas e, a despeito da descrença, o final libertador pode ter um sentido um pouco maior do que parece, quando as coisas aparentemente dão errado pra protagonista. Em suma a gente tende a julgar as ações daqueles que acompanhamos. Mas não podemos perder de vista que Panayiota é uma vítima. Alguém vulnerável. Em uma sociedade patriarcal e com profundas fraturas no capitalismo - com aumento da pobreza, políticas de austeridade e desemprego galopante, como foi o caso da Grécia recente. Ao cabo, um emprego é uma necessidade. E o sistema sempre estará pronto à explorar os que menos contestam.


segunda-feira, 10 de julho de 2023

Cinemúsica - Eduardo e Mônica

De: René Sampaio. Com Alice Braga, Gabriel Leone, Otávio Augusto, Juliana Carneiro da Cunha e Bruna Spínola. Comédia romântica / Drama, Brasil, 2022, 119 minutos.

Em uma das tantas sequências bonitas do ótimo Eduardo e Mônica - adaptação de René Sampaio para a clássica canção da Legião Urbana - está o momento em que Eduardo (Gabriel Leone), em meio a uma "festa estranha com gente esquisita", sobe no palco do karaokê para cantar o hino irresistivelmente brega de Bonnie Tyler, Total Eclipse of the Heart. É um recurso bonito da narrativa porque foge das possíveis armadilhas do filme homenagem e da música tema do filme em si, para derivar para outros campos na hora de aproximar o jovem que jogava futebol de botão com seu avô e Mônica (Alice Braga), uma garota mais velha, estudante de medicina mas totalmente conectada com o mundo das artes - e fã de Godard, de Bandeira, de Bauhaus, Caetano e Rimbaud. E a meu ver esse é um dos grandes méritos da produção: o de que não é necessário ficar lembrando o público o tempo todo, por meio de trucagens baratas, que essa é uma obra baseada em uma música de Renato Russo e companhia.

Nesse sentido, há uma fluidez natural. Tão natural que o fã de cinema desavisado talvez nem notasse esse "detalhe" sobre a matéria-prima do filme. De onde ele se origina. Para o desatento, essa talvez fosse apenas uma comédia romântica por excelência, com dois jovens enfrentando as numerosas diferenças na tentativa de ficar juntos. De fazer acontecer, a despeito de todas os poréns. Mônica e Eduardo, a gente sabe, em um mundo como o nosso, de tão pouca responsabilidade afetiva e em um cenário em que encontrar uma tampa de panela para chamar de sua parece cada vez mais difícil, parecem trafegar no campo do improvável. O que não impede a gente de se conectar. E é justamente isso que, muitas vezes, torna uma comédia romântica eficiente: o quanto a gente se importa. De que maneira mergulhamos naquilo. Claro, há o elemento nostálgico. Há os acenos aos fãs inadiáveis da música da Legião. Mas há também um filmão muito bem sucedido naquilo que se propõe.

 

E, acompanhando a jornada dos nossos protagonistas, eu fiquei com a impressão de que parte do brilho tem a ver com as escolhas da trilha sonora. O filme, como não poderia deixar de ser, se passa nos anos 80. Assim não há celulares, não há Spotify ou Deezer. O que há é uma fitinha cassete com as melhores do rock inglês - aquele tipo de coletânea que os 40+ amavam juntar nas estantes e gavetas da juventude e que será a porta de entrada para um novo universo para Eduardo. Um jovem até então acostumado apenas a uma rotina alienante e sem muitas novidades ao lado do avô, o Seu Bira (Otávio Augusto), um militar da reserva que parece mais orgulhoso do que nunca da Ditadura Militar - provavelmente ele seria um adorador de Ustra e votante do inelegível, que está até agora aguardando mais 72 horas. Esses elementos políticos, culturais e sociais são um outro acerto. Dá pra olhar pro passado sem ignorar o futuro. Dá pra reverenciar os artistas de outrora - da música especialmente - sem deixar de lado o poder transformador e de vanguarda das artes, com sua iconoclastia e consequente quebra do status quo.

Mônica, afinal, é tudo aquilo que Eduardo ainda não é - seja pelo excesso de juventude ou pela imaturidade que respinga pelas frestas, como no instante em que ele genuinamente admite não fazer ideia do que diabos é a Nouvelle Vague (novela?). Uma artista plástica determinada que mora em um galpão espaçoso que também funciona como ateliê, ao mesmo tempo em que faz um turno extra como estudante de medicina - sendo vigiada por sua severa mãe (a sempre ótima Juliana Carneiro da Cunha). Em alguma medida há um choque entre o experimentalismo do cotidiano da Mônica - e suas divagações sobre meditação, fotografia, existencialismo e baladas estranhas - e o conservadorismo do entorno de Eduardo, com sua rotina que varia da escola para casa e da casa para a escola. E em meio a isso tudo há a música. As canções que acompanham. De artistas diversos como Soft Cell, A-Ha, The Pretenders, Titãs, B-52's, Clash, Mutantes, Tim Maia... É um filme baseado numa música da Legião? A gente quase esquece. A arte é maior e une tudo isso. Como comprova o comovente ato final.


sexta-feira, 7 de julho de 2023

Pitaquinho Musical - Marcelo D2 (IBORU)

"Agora tem esse caminho sem volta para o samba. É mais sobre a minha carreira do que sobre o disco. Ele tem a ver com o que vem pela frente". Foi dessa maneira que Marcelo D2 resumiu, em entrevista à Carta Capital ainda no começo do ano, como seria a sua experiência com o espetacular IBORU que, a época, ainda estava sendo finalizado. Com uma proposta de ser "mais samba e menos rap", o artista carioca realiza uma retomada de temas ligados à ancestralidade, a resistência e a cultura popular entregando uma coleção de canções que atualizam o samba, ao mesmo tempo em que reverenciam o passado e os expoentes do estilo. Dividido em três atos, o álbum inicia com uma maravilhosa sequência de samba mais tradicional, em que se sobressaem canções como Povo de Fé, Até Clarear e Só Quando Meu Samba Morrer - e sinceramente é impossível não abrir um largo sorriso nessa entrada.



No segundo terço, D2 vai para a Bahia, para um samba mais experimental, saído do terreiro de candomblé, em que ritmos e batidas africanas se juntam a bases eletrônicas modernas e cheias de personalidade - sendo o melhor exemplo a visceral Tambor de Aço, um rap comovente que, de acordo com o artista, ajudou-o a se reconectar com Ogum. Na última parte, a música popular se torna mais festiva, como sugerem músicas de título autoexplicativo como O Samba Falará + Alto e Bundalelê. Com participações de nomes diversos como Zeca Pagodinho, Alcione, Mateus Aleluia, Mumuzinho e BNegão, o projeto acerta em cheio no encontro da arte popular com a religião, sem deixar de lado assuntos políticos. "Eu via o rap, o punk e o rock muito mais como resistência e luta do que o samba. Até o momento que eu comecei a compreender que o samba é resistência pra caramba", resumiu em conversa com o UOL. O resultado: talvez o melhor disco de 2023.

Nota: 10


quinta-feira, 6 de julho de 2023

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - Sick of Myself (Noruega)

De: Kristoffer Borgli. Com Kristine Kujath Thorp, Eirik Sæther e Fanny Vaager. Comédia / Drama, Noruega / Suécia, 2022, 95 minutos.

Uma metáfora perfeita para o transtorno da personalidade narcisista - que parece estar bem em alta em uma era de individualismo, de baixa responsabilidade afetiva e de busca permanente por atenção a qualquer custo (especialmente nas redes sociais). Assim podemos resumir a experiência com o excêntrico Sick of Myself (Syk Pike), filme norueguês dirigido por Kristoffer Borgli e que leva até o limite a ideia de fama e de vaidade a qualquer preço. Misturando a sátira do comportamento mesquinho das classes abastadas à moda Ruben Ostlund com o body horror implacável de David Cronenberg, a obra nos apresenta ao casal Signe (Kristine Kujath Thorp) e Thomas (Eirik Sæther) - ela funcionária de um bar de Oslo, ele um artista plástico especializado em produzir esculturas feitas com móveis e outros materiais roubados. 

Só que o problema é que Signe está ficando com ciúmes da atenção que Thomas tem recebido pelo seu trabalho. E a oportunidade de atrair algum "holofote" pra si surge da forma mais aleatória possível: no caso, em um dia convencional de trabalho no bar, quando uma mulher é atacada por um cachorro sendo a protagonista a primeira a socorrê-la. Com sua roupa manchada de sangue, a jovem vaga pela cidade, enquanto relata aos amigos a história do salvamento épico - uma narrativa que vai ganhando tintas a cada dia mais exageradas, quase folclóricas (para estranhamento de amigos e conhecidos). Em meio a isso, Thomas consegue uma exposição em um renomado ateliê e, para não ficar pra trás, Signe finge estar tendo uma severa reação alérgica motivada pelo consumo de nozes. É nesse cenário que a barista percebe haver uma brecha: ficar doente poderá ser a desculpa perfeita para que ela se torne oficialmente o centro das atenções. Tendo algum tipo de admiração dos demais.



Mas como não é possível adoecer do nada, Signe vai pra internet. E descobre a existência de um medicamento para controle da ansiedade chamado Lidexol - que seria trazido da Rússia, via deep web, com um amigo traficante. Em doses cavalares, a droga tem severos efeitos colaterais que iniciam como manchas vermelhas na pele e avançam para verdadeiras deformidades no corpo. Bom, se a ideia da protagonista era chamar a atenção, talvez a medida drástica ajude? Em partes. O caso é que na atual máquina infinita de informação que vivemos, um assunto é simplesmente atropelado por outro - às vezes no mesmo dia. De nada adianta Signe fotografar a si própria como uma pessoa debilitada, que padece de uma doença desconhecida. Sair em um portal de notícias? De tarde, as manchetes já mudaram. E mesmo quando a jovem obtém um contrato para trabalhar com moda inclusiva, seu segredo parece sempre prestes a vir à tona (na mesma medida em que sua saúde se esfacela).

Em tempos em que influencers fazem de tudo para chamar a atenção - como no caso do youtuber que engordou 100 quilos enquanto era saudado por seus milhões de seguidores - pensar em uma alegoria do tipo nem parece ser um exagero. Uma pesquisa no Google e a gente localiza as mais variadas "personalidade de mídia" com seus comportamentos exóticos travestidos de iconoclastia. Vale tudo pela fama? Por aqueles quinze minutos de holofotes que alimentam o ego? Na produção de Borgli o que percebemos é que o comportamento perturbado de Signe pode ser ao mesmo tempo repugnante e patético em sua busca desenfreada por migalhas em formato de cliques. Com tudo piorando quando a disputa com Thomas se torna algo pessoal - a ponto de ela jamais conseguir celebrar as conquistas do parceiro. Você já viu alguém assim no seu entorno?  Alguém que se acha especial? Que exagera suas conquistas? Que não tem empatia? Que tá sempre atrás de aplausos? Que apenas explora os outros sem nenhuma reciprocidade? Que se vitimiza? Que só fala a linguagem do "eu, eu, eu"? Sim, tem bastante por aí. Talvez até nós mesmos sejamos essa pessoa. Vai saber. 


quarta-feira, 5 de julho de 2023

Livro do Mês - Salvar o Fogo (Itamar Vieira Júnior)

A cada novo livro de Itamar Vieira Júnior uma ideia parece cada vez mais consolidada: a de que seus trabalhos buscam dar voz às minorias, aos vulneráveis sociais, aos marginalizados. Aqui não temos mulheres de classe média em seus dilemas suburbanos ou homens de meia idade em crise existencial - um tipo de literatura que alcançaria talvez sem muita dificuldade uma boa comunidade de leitores. Ao contrário, agindo quase como um Guimarães Rosa da nova geração - guardadas todas as proporções, naturalmente -, o autor baiano aposta no microcosmo que parte de narrativas familiares para uma análise do todo. O texto aqui é o do chão batido, da natureza em simbiose com o homem, dos conflitos territoriais, das instituições poderosas - seja o Estado ou a Igreja - que tentam silenciar o gritos dos excluídos. Das tradições, do folclore, da religião. Da luta. Da política. Do corpo. Foi assim com o elogiadíssimo Torto Arado - nosso livro favorito de 2020. É assim com o recém chegado Salvar o Fogo.

Publicado pela Todavia, Salvar o Fogo é mais uma daquelas tramas de Brasil profundo. Que abraça com carinho a odisseia diária daqueles que não se sentem representados - ainda que isso signifique expor as suas vísceras. O seu íntimo. Em entrevistas de divulgação, o escritor lembrou que os invisibilizados, ao cabo, estão no entorno, no cotidiano. "E estão ’em silêncio’ o tempo todo, nos lugares onde a gente transita. Quem está dirigindo os ônibus? Quem está fazendo aquele trabalho cotidiano de limpeza, muitas vezes, de forma quase mecânica? As pessoas passam por elas e nem as cumprimentam", comentou, salientando ainda que todo mundo tem bagagem, tem história. Em muitos casos ricas histórias. "Se a gente observar as suas vidas, vai descobrir um mundo interior rico, imenso", afirmou ao site Culturadoria. Romper o muro do silêncio e fazer reverberar vozes. Esse parece ser o foco da sua literatura sinuosa, poética, envolvente.



A narrativa caleidoscópica, de idas e vindas e de voltas ao passado - que parecem sempre assombrar o presente - conta com quatro capítulos, com os três primeiros destacando os irmãos Moisés, Luzia e Mariinha, com o último aglutinando todos os pontos a partir de um trágico evento: a morte de seu Mundinho, o patriarca. Numerosa, a família conta com outros irmãos - Joaquim, Zazau, Raimundo. Todos eles já saíram da localidade conhecida como Tapera, pra tentar a vida fora. Invariavelmente todos passam por dificuldades. Não é diferente por exemplo com Luzia, que é motivo de chacota na comunidade por possuir uma corcunda - uma deficiência que é tida como maldita pelos habitantes do local. Sua tragédia se completa quando ela é estuprada e tem um filho que é resultado desse ato de violência. Esse menino irá parar na Igreja, como uma espécie de coroinha - sua mãe é lavadeira no local. 

Tudo vai mais ou menos aos trancos e barrancos dentro desse cenário, até o jovem presenciar um caso de pedofilia envolvendo o abade do mosteiro. O que faz com que ele simplesmente fuja dali e passe também a tentar a vida na cidade.  Ao cabo, trata-se de uma literatura que se vale do mundano ainda que tenha suas complexidades. E que vai se revelando sem pressa para o leitor. A presença de outros personagens, de figuras relevantes - sejam elas vizinhas, uma bisavó, professores, prostitutas e até cobradores de impostos - ajudarão a compreender ou mesmo verbalizar angústias, anseios, sofrimentos, sonhos. A vida é dura, é árdua, mas todos ali parecem estar em busca de algo. De uma vida melhor. De um futuro. De um romance. De trabalho. De terra pra plantar. O fogo se espalha e funciona como metáfora para uma existência que queima - e não é à toa que ele é o catalisador de tragédias. Mas também esse fogaréu parece ecoar a libertação. A reimaginação. De gestos e gritos sufocados. É um livro imperdível.

Cine Baú - Terra de Ninguém (Badlands)

De: Terrence Mallick. Com Martin Sheen, Sissy Spacek, Warren Oates e Ramon Bieri. Drama / Policial, EUA, 1973, 94 minutos.

[ATENÇÃO: ESSE TEXTO TEM SPOILERS]

Muito antes de apostar num cinema mais contemplativo, quase elegíaco, que se tornaria uma espécie de marca registrada, Terrence Mallick filmou, no comecinho de sua carreira, o elogiado Terra de Ninguém (Badlands). É um filme pequeno sobre a violência que brota de forma meio inesperada em regiões inóspitas - nesse caso o meio oeste americano -, se alastra deixando uma trilha de sangue e que funciona como uma alegoria mais do que perfeita para a desesperança e para o niilismo que se espalha pelo terreno arenoso do local. Afinal de contas é esse certo pessimismo de quem não sabe muito bem para onde ir, que parece mover o intempestivo Kit Carruthers (Martin Sheen, fazendo cosplay de James Dean), um lixeiro da Dakota do Sul, metido a machão. Em suas andanças ele cruzará com a jovem Holly Sargis (Sissy Spacek), uma adolescente que tem um relacionamento conturbado com seu pai (Warren Oates).

Como nas mais tradicionais histórias de "amor" - ou algo nesse sentido -, o pai desaprova esse relacionamento, naturalmente. Kit é dez anos mais velho do que Holly. Só que Kit também se parece muito com James Dean - inclusive no estilo sedutor e levemente descompromissado. Quando o pai de Holly descobre que ela está se encontrando com Kit as escondidas, lhe dá uma punição exagerada: mata o cachorro da própria garota com um tiro. Esse é só o primeiro indicativo de que as coisas não serão boas. Na tentativa de buscar uma espécie de compensação, Kit resolve confrontar o pai da adolescente. Após uma discussão e a ameaça de ir a polícia, o rapaz abre fogo contra o homem. Tudo com a conivência de uma desolada Holly. Como forma de tentar acobertar o crime, a dupla coloca fogo na casa. Deixando uma gravação que dá a entender que houve um assassinato seguido de suicídio. Enquanto pegam o carro e fogem para uma região isolada do Estado de Montana.




Terra de Ninguém pode não ter o estilo absorto de filmes como A Árvore da Vida (2011) ou Uma Vida Oculta (2020). Ainda assim as seguidas narrações em off feitas por Holly, combinadas com um estilo meio bucólico do enredo - especialmente na segunda parte, quando a dupla busca abrigo no meio do mato, com direito à construção de uma casa improvisada nas árvores, rodeada por riachos, montanhas, caçadas e pescarias - dão o tom que aproximaria a obra das futuras produções de Mallick. Há um quê de novela policial no contexto todo, já que Kit e Holly, como se fossem uma espécie de Bonnie e Clyde dos anos 70, estão sempre em fuga. Quando são encontrados por acaso na floresta, são ameaçados por um trio de caçadores armados. Só que Kit arma uma emboscada e consegue matar os três. A trilha de sangue segue a pleno. Mesmo quando, em rota de fuga, o casal central se encontra com um antigo colega e amigo de Kit, de nome Cato (Ramon Dieri).

Em sua trama, Mallick não parece muito preocupado em evidenciar de onde vem tanta violência - nem as ligações com política, religião ou outros temas. A brutalidade é apenas... a brutalidade. Pior do que tudo isso é assistir a derrocada da personagem de Spacek que, na busca de um amor paternal (um substituto para o próprio pai), se alia a um sociopata perturbado que, de quebra, ainda parece padecer de uma síndrome narcísica (a sequência do terço final em que ele encanta a polícia que está lhe prendendo é trágica e cômica em igual medida). Árido, desesperançoso, de alguma maneira até perturbador, o filme seria elogiado pela crítica em seu lançamento, aparecendo em listas de melhores como a dos 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer. Mais do que isso, pavimentaria o caminho para que Mallick se tornasse um dos grandes diretores de seu tempo.


segunda-feira, 3 de julho de 2023

Novidades em Streaming - Contratempos (À Plein Temps)

De: Eric Gravel. Com Laure Calamy, Lucie Gallo, Cyril Gueï e Anne Suarez. Drama, França, 2021, 87 minutos.

Em uma das cenas centrais de Contratempos (À Plein Temps), a protagonista Julie (a sempre ótima Laure Calamy) está em uma importante entrevista de emprego. Durante a conversa, a recrutadora estranha o fato de ela morar em um bairro afastado do centro de Paris e, mesmo sendo mãe de duas crianças, estar pleiteando um emprego ali. "Você poderia passar longos dias por semanas por aqui, mesmo morando tão longe?" questiona a funcionária do RH. Julie nem titubeia em afirmar que isso não lhe preocupa. A avaliadora prossegue, tentando compreender uma lacuna existente no currículo da candidata - quatro anos sem trabalhar, o que evidencia também um processo de precarização (já que ela possui um emprego em um hotel, como supervisora de serviços gerais). O que se soma a perguntas sobre ela estar buscando uma vaga que está claramente abaixo das capacidades dela. Ela afirma que não. Que está focada na realização de seus projetos "a longo prazo".

Julie tenta não demonstrar, mas no momento da entrevista ela está devastada por dentro. Está em um trabalho que lhe consome física e psicologicamente - não bastassem as horas e horas dentro de ônibus e trens, ainda precisa lidar com o assédio moral constante de sua chefe e com os caprichos excêntricos dos hóspedes do hotel de luxo em que atua (em uma sequência ela precisa, literalmente, limpar a merda que foi deixada em um dos cômodos por um desses visitantes). Aliás, só mais uma das tantas e ótimas metáforas apresentadas nessa pequena joia dirigida por Eric Gravel - e que foi exibida (e elogiada) no Festival Varilux do ano passado. Depois, há a angústia de, como mãe solo, ter de articular de forma permanente a estada de seus filhos em babás improvisadas - caso de uma vizinha - para que ela consiga cumprir as suas exaustivas jornadas. Julie está sempre correndo. Correndo literalmente. Sem dinheiro, sem ânimo, sem forças, sem vida.

Ao cabo, esse é um filme pequeno mas de grande força sobre como o capitalismo pode destroçar a cabeça do cidadão comum - que acorda de madrugada e retorna já para sua casa noite adentro, depois de andar de condução em condução até desejar apenas a sua cama. Dia após dia, indefinidamente. É uma produção que exaure - um sentimento ampliado pela câmera sempre urgente, meio trôpega, quase documental e pela trilha sonora caótica, invasiva, que acompanham as andanças de Julie entre cômodos do hotel, ruas atabalhoadas, assédios diversos (inclusive sexuais), humilhações recorrentes e a sensação completa de solidão e de desesperança em meio a tudo. Aqui, não vemos a Paris glamourosa que nos acostumamos a enxergar nos cartões postais. É tudo sufocante, claustrofóbico, cansativo. Quando a protagonista chega em casa já exaurida, precisa encarar o terceiro turno, a janta das crianças, o banho, brincar. Para, de madrugada, reiniciar tudo de novo.

E de alguma forma não deixa de ser meio simbólico o fato de, durante toda a via crúcis de Julie nessa uma hora e meia, ela ser "atrapalhada" por uma greve dos metroviários que parece estar ocorrendo no entorno. O filme nunca se ocupa das reivindicações dos trabalhadores, quais as pautas, por quê estão paralisando os serviços. Para nós, espectadores, talvez seja cômodo pensar que Julie poderia se unir a estes operários. Lutar contra o sistema que lhes oprime (ela está junto nesse combo). Mas ela não tem tempo de pensar nisso. Em política. Em economia. Em caos social. Em disputas de classes. Em governos. Ela tem duas bocas pra alimentar. Uma pensão pra reivindicar - outro ponto que lhe extenua. Um trabalho para manter - em meio a camas pra arrumar, quartos pra limpar, horários a cumprir. É um ciclo infinito, que não parece se encerrar na suposta "boa notícia" que ocorre no instante derradeiro da projeção. A roda seguirá girando. Pode até não parecer, mas o sorriso comovido não simboliza final feliz. E aqui está a grande sacada dessa história toda. Sensacional é pouco.

Nota: 9,0