quarta-feira, 26 de agosto de 2020

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - Mal dos Trópicos (Tailândia)

De: Apichatpong Weerasethakul. Com Banlop Lomnoi e Sakda Kaewbuadee. Drama / Fantasia, Tailândia / França / Itália / Alemanha, 2004, 118 minutos.

Cinema hermético, cheio de simbolismos, que exigem do espectador não apenas uma dose a mais de atenção, mas também uma ampla capacidade de abstração, a obra do diretor tailandês Apichatpong Weerasethakul costuma se caracterizar também pela fuga das convenções, como comprovam os premiados Tio Boonme, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010) e Cemitério do Esplendor (2015). E, bom, por mais que de alguma forma possamos afirmar que Mal dos Trópicos (Sud Pralad) vá mais "direto ao ponto", isso não significa necessariamente um cinema óbvio ou mais palatável. Na realidade é preciso um pouco de paciência para digerir um pouco melhor aquilo que pretende o realizador - sinônimo de cinema de qualidade na Tailândia. Trata-se, como habitual, de um filme de justaposições e de contrastes, capaz de colocar em lados opostos (ainda que unidos) a civilidade e a selvageria, o urbano e o rural, o sol e chuva, o movimento e a contemplação e, até, vá lá, a tristeza e a felicidade.

Pra falar a verdade é uma experiência sempre prazerosa assistir a qualquer filme do tailandês, já que ele nos joga em um outro lugar que não é o nosso. Nos arremessa em outra cultura em que o misticismo, o folclore, as lendas e a religião encontram o mundano, o palpável, o cotidiano. Tudo plasticamente bem construído, com trilha sonora, fotografia esmaecida e belas paisagens, evocando sentimentos diversos, que se misturam com os mesmos sentimentos daqueles que assistimos em tela. No caso de Mal dos Trópicos a trama também é ousada, daquelas que desafia as sociedades mais fechadas a enxergarem para além das bordas, para além das convenções. Nela somos apresentados ao soldado Keng (Banlop Lomnoi) e ao jovem trabalhador rural Tong (Sakda Kaewbuadee) que, em meio a atividades cotidianas prosaicas - uma ida ao cinema, um jogo de futebol, uns minutos na lan house, reuniões na casa da família de Tong - fazem mais do que uma simples "amizade". A gente não demora a perceber que o que tem ali é amor mesmo.


Na realidade a primeira parte do filme funciona quase como se fosse uma bela colagem da vida em "casal" - um casal discreto, em uma sociedade fechada. Há cenas divertidas como aquela envolvendo uma cantora brega em algum barzinho aleatório de Bangkok e outras mais sérias, como a ida ao veterinário para tratar do cachorro de Tong. Tudo costurado por sequências que mostram soldados a campo, o trabalho, a rotina, o ônibus, a luta cotidiana. Já a segunda parte já tem se tornado quase uma tradição de Weerasethakul: ao narrar a história de um monstro da floresta que pode se transformar em qualquer criatura, atraindo-a para a mata, o diretor insere as formidáveis lendas locais (quase fantasmagóricas, sufocantes) como alternativas para uma vida possível, de escolha, em que a natureza encontra o mundano, reequilibrando-o. É tudo ao mesmo tempo silencioso e instigante, levando o espectador até o limite da angústia diante de uma verdadeira caçada mata adentro.

Vencedor do Grande Prêmio do Juri no Festival de Cannes daquele ano - além de outras premiações -, a obra consolidaria o diretor tailandês como um dos principais nomes de sua geração, o que geraria burburinho em relação à produção do País asiático e de outros diretores, como Yongyoot Thongkongtoon (autor do badalado Best Of Times). Saudado pelos críticos - e também odiado, como é o caso do crítico Pablo Villaça que chegou a falar sobre Tio Boonme, de que se tratava de uma "obra vazia em seu centro, como se buscasse se beneficiar justamente de sua falta de conteúdo" -, o diretor utiliza o audiovisual em seu favor, construindo narrativas experimentais, nunca óbvias, mas sempre envolventes. É um cinema que, em seu cerne, pode parecer complexo demais. Mas no fim das contas está falando de temas caros a todos nós, caso das crenças, da natureza e do amor.

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