quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Cine Baú - A Tortura do Medo (Peeping Tom)

De: Michael Powell. Com Karlheinz Böhm, Moira Shearer, Anna Massey e Maxine Audley. Suspense / Drama, Reino Unido, 1960, 102 minutos.

Vamos combinar: talvez não fosse a existência de um Psicose (1960) no mesmo ano de lançamento de A Tortura do Medo (Peeping Tom) e, muito provavelmente, o filme de Michael Powell teria recebido mais atenção. Em ambos os casos temos um protagonista mentalmente atormentado - um assassino que atrai as suas vítimas de forma quase despretensiosa. Também nos dois filmes o voyeurismo surge no centro da narrativa. Observar, afinal, seja em um buraco improvisado em uma parede, seja através das lentes de uma câmera é parte do que move esses criminosos - o que pode ter a ver com traumas de infância. E há ainda, por fim, o comportamento taciturno, o tom de voz nunca alterado, que une ambos os personagens. A diferença que, arrisco dizer, faz com que essa obra-prima sombria de Powell permaneça viva na mente dos fãs é justamente o certo apelo a atemporalidade: em uma era em que o exibicionismo nunca esteve tão em alta - especialmente por conta das redes sociais - esse tipo de alucinação que mescla desejo, amor, ódio, sexo, hedonismo permanece simbolicamente atual.

Em certa altura da projeção um psiquiatra explica, em partes, o que seria a escoptofilia, distúrbio que explica o prazer estético que deriva de uma pessoa que olha para algo ou alguém - condição que tem a ver também com a observação de algo erótico, pornográfico ou fetichista. Nesse sentido, talvez não seja por acaso que o Mark Lewis de Karlheinz Böhm seja fotógrafo amador do universo pornô no turno inverso em que atua como iluminador em um estúdio de cinema. Para além dessas atividades, o protagonista exercita ainda uma outra "profissão": o de acumulador de imagens em preto e branco dos assassinatos que comete. De prostitutas, de colegas de set e de outras. Atraindo-as para supostas entrevistas que envolveriam um documentário, o homem mata as jovens com uma estaca improvisada na altura do foco da câmera. O resultado são impactantes imagens de terror que, congeladas, revelam a crueldade do ato. Tão brutal quanto esteticamente "belo" (ao menos na mente sádica do sujeito).


Por quê ele faz isso? Conforme o filme avança o espectador vai recebendo pistas que evidenciam uma infância complicada em que um pai perverso filmava praticamente todos os momentos da vida do pequeno Mark. Mais do que isso, de forma desumana, atormentava o menino com fachos de luz em sua cara para despertá-lo do sono ou colocando lagartos sobre a cama pra assustá-lo. A câmera invasiva flagra tudo: o choro, o trauma, o ódio e outras emoções que se fundem. O ciclo de violência é concluído com o pequeno sendo obrigado a posar ao lado da mãe morta - com o pai abandonando-o em favor de uma nova namorada (e a sequência em que todos aparecem borrados nesse instante é um ótimo exemplo do uso técnico da imagem, que ganha um sentido a mais para quem acompanha). Aliás, um outro mérito tenebroso que quase nos escapa: somos todos voyeurs aqui. Paralisados, incapazes de frear a dor presenciada.

Na época de seu lançamento, A Tortura do Medo foi massacrado pela crítica - o que fez com que a obra sofresse boicotes e a carreira de Powell, diretor de clássicos como Os Sapatinhos Vermelhos (1948), fosse praticamente encerrada. Resgatado mais tarde e elogiado por Martin Scorsese - inclusive do ponto de vista da metalinguagem -, a obra ganharia o status de cult por justamente confrontar o espectador em sua sanha tão observacionista quanto secreta. No escurinho da sala, ao cabo, nos sentimos confortáveis para "assistir fascinados, ainda que horrorizados", como diria o crítico Roger Ebert. Talvez por isso instantes como aquele em que Mark conduz uma figurante em meio a passos de dança enquanto se prepara para encenar a sua morte sejam tão inquietantes. Com cada fragmento envolto em cores vivas, saturadas, que formam um contraste macabro em relação a experiência aterradora aqui conferida. Não haverá, por fim, saída fácil para as perturbações da mente. E para que um filme esteja completo, serão necessárias atitudes extremas. Instigante é pouco.


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