quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Cinema - Aftersun

De: Charlotte Wells. Com Francesca Corio e Paul Mescal. Comédia / Drama, EUA / Reino Unido, 2022, 96 minutos.

Existe uma sequência em Aftersun que, assim como muitas do filme de estreia de Charlotte Wells, parece apenas prosaica. Mas que, ao cabo, é cheia de significados. Significados que estão por trás, fora do quadro, para além daquilo que a gente enxerga de forma mais palpável. Nela, a jovem Sophie (Francesca Corio) convida seu pai Calum (Paul Mescal) para uma sessão de karaokê. Os dois estão em um hotel de baixo orçamento - daqueles meio caóticos, com obras acontecendo ao mesmo tempo em que os hóspedes saboreiam suas bebidas -, para curtir o feriado. Calum fará aniversário dali um ou dois dias - trinta e alguma coisa. O passeio talvez simbolize a busca por algum tipo de celebração - um fiapo de alegria para quem recém se separou e não consegue deixar de dizer "eu te amo" para a ex-mulher ao telefone. Alguém que tem claras limitações financeiras, mas que fará o possível para que a sua filha seja feliz naquele microcosmo. Ainda que, para isso, seja necessário deixar os demônios interiores bem guardados.

E por mais que Sophie - uma graciosa pré-adolescente de 11 anos - argumente com o pai que ele "gostava de fazer isso", Calum nega o convite para entoar Losing My Religion, do R.E.M., de forma improvisada. A canção será entoada sozinha pela menina, enquanto o sujeito, na plateia, se remexe de forma sutil. Há algum incômodo ali e a gente, como espectador, parece que sabe. Que já entendeu. E é exatamente isso que torna a experiência com a obra de Wells tão mágica. Não serão necessários grandes eventos, acontecimentos épicos. Onde parece não haver muito, ocorre tudo. Afinal, o que acompanhamos é apenas Sophie e Calum vivendo um final de semana juntos, no final dos anos 90 - e, aqui, vale ressaltar o desenho de produção caprichado, a fotografia levemente saturada e trilha sonora de nomes como Blur, All Saints e até Chumbawamba. No hotel, em meio a banhos de piscina, jogos de sinuca com adolescentes, fliperama, observação de balões no céu, Macarena e outras amenidades, a dupla ensaiará um descanso, mesmo que a calmaria pareça pronta a ser rompida a qualquer momento.



Com paciência, Wells constroi uma narrativa afetuosa e emocionalmente febril, sem ter nenhuma pressa em apresentar seu argumento. Refletir sobre memória, perda, tensões emocionais e a saudade que fica - de pessoas, de lugares, de eventos -, requer sensibilidade e a diretora é hábil ao utilizar um grande número de instantes capturados com uma câmera caseira e que servirão para essa espécie de transição entre o mundo real e o onírico, o concreto e o abstrato. Pense, por exemplo, naquela lembrança da juventude, uma experiência qualquer e observe como ela virá à mente de forma fragmentada, menos clara do que percebíamos então. É mais ou menos como retornar a um livro que já havíamos lido na adolescência. O quanto não percebemos a mais? Adulta, Sophie recorre a essas mesma fitas gravadas como uma forma de relembrar aquele instante de um mero fim de semana. Mas um fim de semana com mais camadas para além da superfície. Ocorrências que passam despercebidas, assim como um choro escondido em um canto.

Econômico em sua interpretação, Mescal alterna momentos de euforia - como quando convida Sophie para dançar ou para praticar uma espécie de ginástica naturalista - com outros mais contemplativos, como no episódio em que ele apenas sorri ao ouvir da própria filha sobre a sua incapacidade de pagar por algo que ele acabara de ofertar. Essas nuances de comportamento, indo de lá pra cá muitas vezes no mesmo quadro (ou até fora dele, como no instante em que vemos o reflexo da dupla na televisão, com a câmera desligada) impressionam por nos atingir justamente no nosso íntimo. Afinal, nós somos muitas vezes mais do que aquilo que externamos. A alegria sorridente pode eventualmente ser a fachada de um interior escuro. Na juventude, interessada nos meninos, no primeiro beijo, na falta de compromisso natural do pós-infância, talvez Sophie não percebesse isso tão claramente. Talvez não notasse a vibe diferente que havia entre ela e o pai. Mais tarde, já amadurecida, já vivida, com mais experiência ela compreenderá que talvez as férias não possam verdadeiramente ser pra sempre. E que, em algum momento ao final daquele dia de celebração, talvez a realidade nos seja dura demais. É forte. É reflexivo. E é muito, mas muito bonito.

Nota: 9,0


terça-feira, 29 de novembro de 2022

Novidades em Streaming - Another World (Un Autre Monde)

De: Stéphane Brizé. Com Vincent Lindon, Sandrine Kiberlain, Anthony Bajon e Marie Drucker. Drama, França, 2021, 96 minutos.

Se tem um diretor que, em seus mais recentes projetos, praticamente se especializou em analisar o universo do trabalho e a complexidade do capitalismo, este é o francês Stéphane Brizé. E se no excelente O Valor de Um Homem (2015) acompanhamos a luta solitária de um sujeito de meia idade recém desempregado para tentar retornar ao mercado de trabalho, no nervoso Em Guerra (2018) o que se vê é a luta coletiva de um grupo de mais de mil empregados que são demitidos após o fechamento de uma indústria na França. Em comum nos dois projetos, a presença sempre magnética do ator Vincent Lindon que, agora, em Another World (Un Autre Monde) repete a parceria com Brizé. Aliás, esbanjando versatilidade já que, em cada um dos três papeis ele está em um lado diferente nesse campo de disputa. Aqui, ele é Philippe Lemesle, gerente regional de uma fábrica que é orientado a demitir algumas dezenas de funcionários, como parte de um projeto de reestruturação (aquele papinho que vocês conhecem).

Estando do lado dos poderosos - em Em Guerra, Lindon era um transpirante líder sindical - Lemesle deve encontrar certo equilíbrio na tentativa de agradar CEOs da multinacional, acionistas, o mercado e outros interessados que movimentam o dinheiro, ao mesmo tempo em que tentará de todas as formas não sobrecarregar os trabalhadores remanescentes, que serão orientados a produzir mais, com menos (o que poderá gerar certa indisposição com o sindicato e com outros coletivos que apoiam os operários). Sim, exatamente aquela conversa que costumamos ouvir bastante sobre a importância de enxugar e ser ao mesmo tempo eficiente - ainda que essa noção seja muitas vezes mais aplicada quando o assunto são as empresas estatais. E se não bastasse todo esse pepino pra resolver e o estresse decorrente dele, o protagonista ainda está com severos problemas domésticos, já que seu casamento parece estar chegando ao fim justamente pelo fato de o sujeito se dedicar tanto ao trabalho - sendo um pai e marido ausente, que possui pouca ou nenhuma qualidade e vida (ou mesmo qualquer apreço pelos prazeres cotidianos).



Encontrar uma forma de encaixar todas essas melancias em uma carreta, será que o acompanharemos durante a uma hora de meia que a obra - que estreou nessa semana na plataforma Mubi. Assim, veremos Lemesle saindo de uma reunião decisiva sobre o divórcio com a futura ex-esposa Anne (a sempre ótima Sandrine Kiberlain, que também é figura recorrente na filmografia de Brizé), para no instante seguinte estar em uma sala apinhada de supervisores que discutirão os detalhes do projeto de reestruturação e os caminhos para implantá-lo. Em um outro momento, um encontro com líderes do sindicato também contribuirá para esse efeito cascata, que se converterá em uma enorme bola de neve de tensões. E não é por acaso que Brizé inclui aqui e ali algumas cenas prosaicas do cotidiano, como um jogo de bola com o filho deficiente ou uma conversa amistosa dentro do carro com Anne, como se esses fiapos de vida doméstica, vindos desse pequeno microcosmo de calor ou compaixão, servissem para afastá-lo de todas essas angústias. Fazendo-o inclusive repensar algumas de suas decisões (e há uma em especial que ele tentará pôr em prática e que surpreenderá a todos).

Ainda que bastante verborrágico, repleto de conversas infinitas sobre assuntos corporativos, feitos em pequenos gabinetes, o filme jamais se torna enfadonho. Para o público é importante compreender o quão bizarro é esse mecanismo que envolve as grandes corporações da iniciativa privada e como, inevitavelmente, sempre será a ponta mais fraca a que sofrerá mais. "Você sabe, quem manda está em Wall Street", afirma um superior de Lemesle em certa altura. E isso certamente explica o fato de não haver um grande protagonista entre os trabalhadores, afinal, para aqueles homens, os empregados representam apenas números (e se uma funcionária de mais de 50 anos já não tem a agilidade para produzir tanto, por quê mantê-la, né?). Pesado em alguns instantes, comovente em outros, o diretor aposta em tomadas e enquadramentos bastante próximos dos personagens o que, somado a fotografia naturalista, parece nos tornar mais íntimos daquele universo. Assim como na obra de Ken Loach não há muito espaço pra redenção aqui. Nesse mundo que estamos - há outro possível, como sugere o título original? -, se faz o que está ao alcance na tentativa de barrar a destruição promovida pela máquina trituradora do capitalismo. E se tenta seguir a vida.

Nota: 8,5


quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Picanha.doc - Good Night Oppy

De: Ryan White. Com Angela Bassett (narradora). Documentário, EUA, 2022, 104 minutos.

É provável que poucas coisas sejam tão estadunidenses em matéria de cinema do que filmes ou documentários sobre expedições espaciais. Por si só esse tipo de sonho exploratório costuma ser grandioso, desafiador, monumental. E primoroso no que diz respeito à pesquisa, à engenharia, à ciência. Ou a tecnologia. Certamente um resquício da Corrida Espacial que colocaria Estados Unidos e União Soviética frente a frente nessa incansável busca que mobilizaria uma boa quantidade de dinheiro. E, nessa esteira, obras como a recém lançada Good Night Oppy, do diretor Ryan White, podem até não ser assim tão exibicionistas. Ainda que mantenham, aqui e ali nas entrelinhas, uma espécie de "patriotismo estrutural" que se inicia em salas de comando da Nasa e que culminará em foguetes engenhosamente projetados para nos levar ao universo e além.

Aqui temos a história das sondas espaciais Spirit e Opportunity, dois veículos exploradores que foram enviados a Marte em 2003 - e que alcançariam o Planeta Vermelho em 2004, com o objetivo de localizar pistas nas rochas e no solo, que pudessem indicar a presença de água no passado. Água potável, no caso. Que fosse possível beber. O que, por consequência, também poderia sugerir a existência de um ambiente propício à vida. Como documentário, o filme se distancia do ideal acinzentado, frio e maquínico que poderia emergir dos cubículos dos laboratórios da Agência - com engenheiros, mecânicos, cientistas e pesquisadores debruçados sobre planilhas e de olhos atentos a computadores - para entregar uma experiência que tenta, de alguma forma, humanizar os robôs. Convertendo ainda a imensidão e o senso de isolamento em um espaço de exaltação do esforço coletivo.



Projetados para terem uma vida útil de apenas 90 dias por causa das complicadas condições climáticas de Marte, Spirit e Opportunity (este, carinhosamente chamado de Oppy) se tornariam prodígios da longevidade - com o primeiro sendo desligado em 2010 e o segundo em 2019, após mais de 5 mil dias de atividades. E essa história particular de perseverança dos dois equipamentos, que enfrentariam não apenas o terreno acidentado, mas também o frio, o calor, as tempestades de areia e mesmo o desgaste natural de suas estruturas - que operariam todo esse tempo por meio de um sofisticado aparato com instalação de placas de energia solar -, funciona como uma espécie de alegoria para as vidas de vários integrantes das equipes e de seu empenho em colocar o projeto em prática. Indo e vindo no tempo, a obra parte do mero esboço, até chegar a consolidação, para depois avançar para a rotina de contato com os robôs. O que faria com que figuras como o cientista-chefe Steve Squyres e a gerente de missão Jennifer Trosper, passassem a considerar as sondas como se fossem parte da família.

E não é por acaso o esforço de todos para o resgate do ânimo quando ambos os robôs passam por alguma desventura, seja alterando a sua lógica de funcionamento, seja colocando alguma "música de despertar" que dialogue com as situações vividas - caso do momento em que, por exemplo, os integrantes utilizam SOS do Abba, após a Spirit ser afligida por um problema mecânico. O mesmo valendo para Here Comes the Sun dos Beatles que aparece após uma severa tempestade, que quase leva Oppy à "morte". Intercalando imagens de arquivo com o belo trabalho gráfico da equipe de efeitos especiais da Industrial Light & Magic, Boa Noite Oppy pode soar meio anacrônico ou deslocado no tempo, agora que as preocupações mundiais parecem bem outras (com pandemia, guerras, ascensão da extrema direita, colapso ambiental e outros). Mas ainda assim se trata de uma experiência simpática, de narrativa fluída, que ainda acrescenta uma ou outra dose de suspense na trama. Tá na Amazon e poderá ser um dos documentários indicados ao Oscar - premiações não faltam. Resta aguardar.


quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Curta Um Curta - Eu Espero o Dia da Nossa Independência

Parte integrante do Cabíria Festival: Mulheres & Audiovisual - iniciativa que tem o objetivo de incentivar a diversidade e igualdade de gênero na indústria cinematográfica apoiando as contribuições de mulheres tanto à frente quanto atrás das câmeras - o Mubi exibe desde a última semana o curta documental Eu Espero o Dia da Nossa Independência. Co-produção Brasil-Argélia, o filme acompanha duas brasileiras - no caso as diretoras Bruna Carvalho Almeida e Brunna Laboissière - que, em maio de 2019, foram à capital do País africano, Argel, durante as manifestações conhecidas como Hirak, que lutam pela democracia e pela igualdade. No meio da multidão elas conhecem uma garota que se torna uma espécie de porta-voz da luta, em meio ao árido cenário, de prédios acinzentados e de domínio dos homens. Gravado com celular, o projeto mescla poesia com política e visa estimular roteiristas mulheres, ajudando a impulsionar o protagonismo feminino. Ou seja, por todo esse contexto vale demais conferir!



Novidades em Streaming - Marte Um

De: Gabriel Martins. Com Cícero Lucas, Camilla Damião, Carlos Francisco e Rejane Faria. Drama, Brasil, 2022, 115 minutos.

[ATENÇÃO: ESSE TEXTO CONTÉM ALGUNS SPOILERS DE LEVE]

Não sei se fui eu que enxerguei significado demais em Marte Um, mas a meu ver parece haver na narrativa um sentido que vai além da alegoria da habitação, da busca por um lugar pra chamar de seu. Uma casa, um apartamento, um País. Outro planeta, vá lá. E não deixa de ser interessante assistir ao filme - aliás, nosso enviado para tentar uma vaga no Oscar na categoria Filme em Língua Estrangeira - justamente agora, quando Bolsonaro está saindo do poder. O sentimento geral da nação parece ser o de termos sido, nos últimos quatro anos, devassados. Subtraídos. Invadidos. De que tudo piorou e de que esse Brasil que tanto amamos se tornou outro: mais complicado, mais violento, mais individualista. O que talvez explique melhor a metáfora da busca por reestabelecer esse espaço de segurança simbolizado pela moradia, como algo que está ao nosso alcance. Nos perdemos pelo caminho, mas desejamos o tempo todo nos reencontrar. O que certamente não será fácil.

Aliás, a obra já abre com o pequeno Deivinho (Cícero Lucas) contemplando o céu estrelado, enquanto ao fundo ouvimos foguetórios, buzinaço e gritos em comemoração à vitória que colocaria o País no caminho das trevas de uma extrema direita que sempre se vangloriou da necessidade de "destruir muita coisa, para depois construir". "Desfazer" diria Bolsonaro. Cultura, ciência, saúde, educação, habitação. Todos os nossos índices piorariam, o que faz com que, de alguma forma, esperemos de forma quase inevitável a derrocada da família Martins - composta ainda pelo pai Wellington (Carlos Francisco), pela mãe Tercia (Rejane Faria) e pela irmã Eunice (Camilla Damião), além de Deivinho. Como para qualquer família que viveu o doloroso outubro de 2018, não havia muito tempo para refletir sobre o momento político: era necessário levantar no dia seguinte, trabalhar, estudar, sacodir a poeira e tocar a vida. Sonhar, dentro do ônibus apinhado, por dias melhores.



Por sinal, para Deivinho, o sonho ganha contornos quase dramáticos - e um tanto existenciais - para quem nasceu em uma família preta e periférica da região de Contagem em Minas Gerais: dirigindo persistentemente seu olhar curioso para o céu, deseja ser um astrofísico, para participar de uma missão que, em 2030, pretende colonizar o Planeta Vermelho. Em seus horários de folga gasta longas horas assistindo vídeos no Youtube do astrólogo Neil deGrasse Tyson. Só que Wellington deseja para o filho um outro destino: o de jogador de futebol. E a insistência em levá-lo a peladas e a peneiras contra a vontade do rapaz faz com que se estabeleça um dos tantos pequenos conflitos da narrativa. Já para Eunice, o sonho de "liberdade" tem a ver com o fato de ser lésbica em uma família pobre e religiosa. Nesse contexto de idas e vindas, Tercia, uma empregada doméstica, se vê traumatizada por um episódio de inusitada violência na rua, que faz com que ela acredite que esteja atraindo energias ruins para a casa. Ainda que no nosso íntimo, a gente saiba que a doença em si, como diz a Eliane Brum, se chama Brasil mesmo. É essa a casa que carece de um feng shui permanente.

De forma bastante paciente, Gabriel Martins constrói o roteiro sem muita pressa, saltando de um núcleo a outro da família, mostrando como mesmo em um cenário de desolação ou de dificuldades dentro do universo que habitam, o quarteto central encontra forças para persistir e resistir, com senso de humor e meio que "na marra". Sutil, o diretor não esfrega na cara do espectador as diferenças sociais, os preconceitos, o racismo estrutural ou o sufoco da classe trabalhadora, ainda que o tempo todo esses elementos estejam lá. Em uma cena, por exemplo, Wellington ouve de seu colega de trabalho no luxuoso complexo de apartamentos em que ele é uma espécie de zelador, sobre a vontade de dar um "tchibum" naquelas piscinas maravilhosas que eles estão limpando em um dia de calor (e é quase inevitável pensar na Regina Casé e no que impecável Que Horas Ela Volta? na hora em que escutamos o sempre divertido Russo Apr apresentar seu ponto de vista). Em outro momento Eunice se sente desconfortável na presença da família da namorada, que é claramente melhor de vida. Superar esses obstáculos íntimos da rotina doméstica será a chave para levantar a cabeça. "Eu tô viva" lembra Tercia em certa altura, ao perceber que ela pode ter se salvo de um grave acidente, de forma meio inesperada. 




Em linhas gerais trata-se de uma experiência vigorosa e naturalista, cheia de doçura e de instantes comoventes, que ainda arremessa uma pá gigante de cal em quem ainda acredita, em pleno 2022, no discurso da meritocracia, ou de que todos poderão chegar juntos ao mesmo lugar se forem esforçados o suficiente. O final pode não ser assim tão otimista, ainda que a eleição de Lula, que sempre olhou com mais carinho pra classe trabalhadora, jogue um pouco de poesia para o instante em que Tercia, enfim, adormece com gosto (depois de uma temporada inteira de insônia). Foram anos de muita tensão. De muito sofrimento. De um verdadeiro massacre - ampliado pela péssima gestão da pandemia (algo que nem aparece no filme). Grande parte do povo desceu até onde deu pra descer. Perdeu emprego, viu oportunidades se desfazerem, sonhos se despedaçarem. A miséria acontecer. É hora de olhar pro céu novamente. Para encontrar refletido no brilho das estrelas a esperança por dias melhores, com mais justiça social, mais oportunidades, mais políticas públicas. Aqui, ali, acolá. Em Minas Gerais. Em Marte. Não custa sonhar.

Nota: 9,0

segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Novidades em Streaming - Athena

De: Romain Gavras. Com Sami Slimane, Dali Benssalah e Ouassini Embarek. Aventura / Drama, França, 2022, 99 minutos.

Caótico. Intenso. Maximalista. Operístico. Violento. Hiperbólico. Essas podem ser algumas palavras na tentativa de definir a experiência vivida com Athena, filme dirigido por Romain Gavras - filho do Costa-Gavras, que possui ampla experiência na direção de videoclipes, tendo trabalhado com nomes como Justice, MIA, Jay-Z e Jamie XX, entre outros. Aliás, de alguma forma, é possível afirmar que o "clima de videoclipe" meio que rege o aparato técnico por trás da obra. Tudo é muito frenético, urgente. Ao cabo trata-se de um esforço bastante completo no que diz respeito a planos, ângulos de câmera, desenho de produção, coreografias, trilha sonora e fotografia (alias, num mundo justo o filme jamais passaria batido nas categorias técnicas do próximo Oscar, dado todo o empenho de sua numerosíssima equipe em dar vida à produção). Só que, bom, enquanto assistia ao filme devo confessar que, mesmo com tantos e justos elogios à parte técnica, senti um pouco de falta de uma maior profundidade na discussão dos temas que, aqui e ali, ficam apenas no "rasinho".

Sim, a história parte de um suposto episódio de violência policial, que vitima o adolescente Idir de apenas 13 anos - um vídeo que circula na internet, garante que o jovem foi "deixado para morrer". E este fato é o que desencadeará uma revolta popular que converterá o Conjunto Habitacional Athena, na França, em uma espécie de fortaleza que servirá como centro ruidoso de uma população que resiste e clama por justiça. Na trama acompanhamos de forma intercalada os três irmãos remanescentes da vítima, Karim (Sami Slimane), Abdel (Dali Benssalah) e Moktar (Ouassini Embarek). Karim é o sujeito absolutamente revoltado com o caso, que não se furtará em arremessar um coquetel molotov em plena Delegacia de Polícia enquanto Abdel, um militar veterano, faz um pronunciamento protocolar sobre "investigações que já estão sendo feitas" e "busca pelos assassinos". 



Esse será o começo de um verdadeiro frenesi de câmeras que giram alucinadamente, de fogos de artifício infinitos, de correrias, de gritos, de tiros aleatórios, de carros em alta velocidade, de motos e de bombas - e o longo plano-sequência inicial, com seus quase 15 minutos de duração e vários quilômetros percorridos sem nenhum CGI ou tela verde, é absolutamente primoroso. De deixar o queixo caído. É tudo tão bem orquestrado, tudo tão bem coreografado que essa estilização toda é que pode resultar num efeito inverso do que se pretende. Enquanto o excelente Os Miseráveis (2019), de Ladj Ly (aliás, um dos corroteiristas) tinha um clima mais especulativo, de violência crescente e de uma maior clareza dos danos causados à minorias raciais pelo Estado, aqui temos um tipo de exagero que nem sempre parece tomar partido - e a existência de um policial "boa praça" (Anthony Bajon), apaixonado pelas filhas, parece estar ali apenas para nos lembrar de quem, bem, "nem todos os policiais, né?", ainda que seja impossível não pensar nos universos distintos que colocam em lados opostos os filhos de pretos e de migrantes e os de brancos de classe média (qual o que morreu mesmo?).

Voltando aos irmãos, Moktar é a terceira ponta do enredo e parece estar pouco se lixando para cada um dos lados, estando verdadeiramente preocupado é com os seus próprios negócios, num esforço comovente, aliás, de não apenas conseguir sair com vida do Complexo, mas levando consigo os objetos que certamente acenam para uma vida na ilegalidade. Indo de lá pra cá, voltando e começando de novo, recuando e avançando, a obra não tem nenhuma vergonha em tornar a coisa grandiosa num nível épico de guerra, com direito a trilha sonora de melodia tribal e policiais que escalam escadas como se fossem orcs em em sequência que antecede alguma invasão em O Senhor dos Aneis (e nem é preciso mencionar à referência óbvia à Grécia antiga). Sim, o esforço de brutalidade e porradaria foi grande. Há ali atrás uma discussão muito forte e respeito do absurdo da violência policial (ou mesmo de grupos de extrema direita, que surgem aqui e ali nas entrelinhas). Mas senti falta desse debate vindo um pouco mais pra frente. Pra além do caos visual, do cassetete cantando, da moto roncando pneu, do fogo sendo ateado. Ok, visualmente tem seu efeito. Mas glorificar tudo isso dá a impressão de que nem sempre paramos pra pensar com um pouco mais de calma sobre o significado de tudo aquilo. A polícia talvez tenha matado um adolescente de 13 anos. E o fato acaba soterrado em toneladas de pirotecnia. O que talvez pudesse ter sido "corrigido" com um tiquinho a mais de sutileza. O que não tira o brilho, claro.

Nota: 8,0


quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Novidades em Streaming - O Milagre (The Wonder)

De: Sebastián Lelio. Com Florence Pugh, Kíla Lord Cassidy, Tom Burke e Ciarán Hinds. Drama, EUA / Reino Unido / Irlanda, 2022, 109 minutos.

Não é novidade afirmar que a prática religiosa em si não chega a ser um problema. Cada um tem suas crenças, sua fé, suas convicções. O que é questionável mesmo é o "fã clube". O fanatismo. Que nunca faz bem. É assim nos dias de hoje - e basta ver notícias que dão conta da redução da cobertura vacinal no País (e que também tem a ver com o extremismo religioso) para que tenhamos uma ideia do retrocesso -, era mais ainda no passado, quando a ciência passou a ocupar um espaço cada vez maior na sociedade, funcionando como um contraponto à doutrinação religiosa. E esses polos distintos podem coexistir de forma pacífica? Quais os limites éticos, morais que envolvem esse suposto antagonismo? Em tempos de Deus acima de todos e de presidente da República colocando o conhecimento científico em cheque, um filme como O Milagre (The Wonder) é muito mais do que uma mera reminiscência que nos faz viajar mais de 150 anos atrás. A meu ver é uma forma criativa de olhar para os dias de hoje, a partir de eventos históricos.

E o que seria de nós sem uma boa história para contar, não? Apostando na metalinguagem como recurso, o diretor Sebastián Lelio - aliás, um dos motivos pelos quais me senti atraído para o projeto, já que sou fã de obras como Gloria (2013), Uma Mulher Fantástica (2017) e Desobediência (2018) -, abre o filme com uma narração em off em um estúdio de cinema. Equipamentos de filmagem, de luz, cenários. Um travelling nos conduzirá para uma casa improvisada onde mergulharemos no ano de 1862, na Inglaterra. É nesse local que vive à sombra da Grande Fome, que seremos apresentados a enfermeira Lib Wright (Florence Pugh) que é chamada para uma pequena e remota vila na Irlanda para acompanhar a rotina da jovem Anna O'Donnell (a ótima Kíla Lord Cassidy) que, aparentemente, parou de comer. Mais precisamente, a menina de 11 anos está há quatro meses, desde o seu último aniversário, sem se alimentar. O que tem atraído turistas e peregrinos, que acreditam estar diante de um milagre. Qual o mistério, afinal? Como é possível alguém sobreviver dessa forma?

Lib chega ao vilarejo com o ceticismo natural dos investigadores. Anna explica à Lib que não precisa se alimentar. Que para ela, o "maná que vem do céu" é o suficiente. No mesmo ambiente a Irmã Michael (Josie Walker) alternará turnos com a enfermeira. Claramente se está em uma comunidade em que será mais fácil ser guiado pela fé católica cega como meio de sobrevivência, do que pelo eventual cartesianismo da ciência. Se aproximando de Anna, a protagonista a isolará da família como forma de melhor estudá-la. O que possibilitará desvendar os supostos mistérios por trás desse milagre - e as reviravoltas do enredo, é preciso que se diga, são construídas de forma elegante, quase elegíaca, com o uso do primoroso desenho de produção, da fotografia suave e levemente adocicada (ainda que melancólica) e. especialmente, da trilha sonora, sombria e onírica em igual medida. Todos recursos estéticos que reforçam o poder da narrativa que acompanhamos. Há uma tensão meio palpável em meio àquele cenário ermo, de relva e de cinza, e que caberá a Lib confrontar.

Evidentemente não será tarefa fácil. Num universo em que é mais lógico acreditar em uma suposta intervenção divina do que na ciência, Lib ainda precisará lidar com o patriarcalismo, que envolverá sequências constrangedoras de uma espécie de comitê - formado por, entre outras lideranças, o padre Thaddeus (Ciarán Hinds, visto recentemente em Belfast) - que parece desconfiar o tempo todo das práticas da enfermeira (ela é convidada apenas a observar, sem jamais interferir). A "ajuda" partirá de um jornalista (Tom Burke), que está interessado na história e que poderá contribuir para que a luz seja definitivamente jogada no caso. Ao cabo trata-se de uma experiência profunda, elegante, que coloca o dedo na ferida quando o assunto é o conservadorismo excessivo e a dificuldade de lidar com a quebra de paradigmas, especialmente em comunidades mais tradicionais. "Ah, então a última coisa que ela comeu foi farinha com água?" pergunta Lib em certa altura para  mãe da jovem, que se sente ultrajada com a forma com que a profissional trata o "corpo de Cristo" - a hóstia. Nesse conflito cego parece haver apenas uma prejudicada. E para Lib será preciso muita força para enfrentar isso.

Nota: 8,0


quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Tesouros Cinéfilos - A Professora de Piano (La Pianiste)

De: Michael Haneke. Com Isabelle Hupert, Benoît Magimel e Annie Girardot. Drama / Suspense, Alemanha / Áustria / França, 2001, 131 minutos.

Entre os tantos distúrbios da mente existe um que considero bastante perturbador: aquele que envolve mães controladoras - que, sob a desculpa de "amar demais" sufocam seus filhos, impedindo-os de viver plenamente a sua independência. Ou mesmo a sua individualidade. Aliás, há até um nome para o transtorno: Personalidade Narcisista. Nele, de forma resumida, o prazer da genitora é o sofrimento dos filhos. Por mais paradoxal que isso possa parecer. E é um quadro muito semelhante a esse que aparece no filme A Professora de Piano (La Pianiste), do sempre ótimo diretor Michael Haneke. Baseada no clássico (e chocante) livro da austríaca Elfriede Jelinek a obra, vencedora do Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes de 2001, conta a história de Erika Kohut (Isabelle Hupert), uma professora de piano do Conservatório de Viena que vive uma relação conturbada com a mãe (Annie Girardot) - uma figura carente, emocionalmente instável e que vigia absolutamente TODOS os passos da filha.

Só que há um pequeno detalhe: Erika tem cerca de 40 anos. E por mais que não tenha "acontecido" no mundo da música - o que pode ser considerado um tipo de fracasso profissional - é uma professora respeitada no conservatório sendo, inclusive, bastante disputada por alunos que desejam estudar sob sua batuta. É nesse contexto que surge o impetuoso e destemido Walter Klemmer (Benoît Magimel), um jovem de vinte e poucos anos bastante técnico, que impressiona Erika - a despeito de seu comportamento um tanto presunçoso, quase mesquinho. Bom, não é preciso ser um grande adivinho pra entender que o estilo um tanto ousado do rapaz - que vem a reboque da persistência em executar sonatas de Schubert - despertará a curiosidade da professora que, nas aparências tentará agir de forma fria (enquanto suas entranhas serão corroídas pelo desejo pelo jovem). As barreiras para a consumação do amor? Inúmeras. A começar pela mãe e seu comportamento constrangedoramente possessivo.



Complexo na análise dos efeitos gerados por uma mãe que se vitimiza e que alega não ser compreendida, o filme converte Erika em uma figura que perambula pelas ruas da cidade encontrando prazer barato no voyeurismo - seja por meio da utilização tanto de cabines eróticas como através da observação de sexo de estranhos (como na sequência em que a protagonista caminha por um cinema drive in em busca de espionar algum casal dentro de um carro). De forma complementar, a satisfação também decorrerá da automutilação - e do espectador será exigida alguma persistência para não se sentir perturbado quando Erika utiliza uma lâmina e um espelhinho para se cortar. Apartada do mundo dos prazeres pela própria mãe - aliás, prazer que a arte não tornará suficiente, nesse caso -, Erika é a não figura em um mundo efervescente. Opaca, pálida, sem vida - com suas vestes compridas, em tons pasteis, que escondem qualquer traço possível de feminilidade (ela sequer pode escolher suas roupas, seus sapatos, sua maquiagem). Até a cama ela divide com a mãe. Que lhe obriga a dizer sempre onde está.

Nesse sentido, Haneke converte o livro de Jelinek em uma verdadeira experiência de horror doméstico. O apartamento apertado, claustrofóbico, com seus papeis de parede antiquados, moveis sombrios e pouca iluminação se transforma em um espaço sufocante em que parece difícil de respirar. Sob a desculpa da superioridade intelectual da própria filha, a mãe afasta qualquer interessado em socializar, impedindo a privacidade. Tanto que, em uma das mais impactantes cenas, Erika precisa empurrar um grande móvel para trás da porta do quarto, para poder ter o mínimo de independência. Contrastando ainda o caráter solene do universo da música clássica - sempre pomposo, refinado, requintado -, com as dores da alma que resultam em uma fisicalidade torta, fétida, pouco convencional (de urinas, vômitos, sangue, pus, cacos de vidro, selvageria e sexo masoquista) - o filme consolidaria Haneke como um dos grandes diretores de sua geração, pavimentando o caminho para outros clássicos modernos como Caché (2005), A Fita Branca (2009) e Amor (2012). Tá no Mubi. E vale ser conferido.


terça-feira, 8 de novembro de 2022

Curta Um Curta - Desvirtude

"Isso é um pedido de socorro / Você está aplaudindo / Eu tô me matando, porra! / Eu tô me matando, porra! / Eu tô me matando / Você tá aplaudindo e eu tô me matando". O estilo visceral de Baco Exú do Blues observado na suplicante canção En Tu Mira - que está presente no álbum Esu (nosso sexto colocado entre os melhores na lista de 2017) - combina perfeitamente com o curta-metragem Desvirtude, do qual integra a trilha sonora. Um dos lançamentos da semana na plataforma Mubi, o premiado filme da diretora gaúcha Gautier Lee coloca o dedo na ferida do racismo estrutural, mostrando como essa chaga pode emergir de onde, em tese, menos se espera. Durante uma apresentação de trabalho acadêmico, uma jovem negra sofre injúria racial de uma das professoras universitárias - crime previsto em Lei. Lidar com as consequências desse episódio sendo o lado vulnerável da equação (a docente, pelo visto é uma figura querida por todos, de reputação ilibada) será o dilema da protagonista, que se vê isolada não apenas pelos colegas, mas pela própria Instituição de ensino. Uma obra sobre injustiça, que supera uma ou outra dificuldade técnica com a potência de sua mensagem. Vale demais.


Novidades em Streaming - Men: Faces do Medo (Men)

De: Alex Garland. Com Jessie Buckley e Rory Kinnear. Drama / Terror / Ficção Científica, Reino Unido, 2022, 100 minutos.

[ATENÇÃO: ESSE TEXTO CONTÉM ALGUNS SPOILERS DE LEVE]

Falar de machismo e misoginia fugindo um tanto do óbvio. Esse é um objetivo que o enigmático Men: Faces do Medo (Men) alcança. Ou ao menos em partes já que, a despeito do título original autoexplicativo - que fala muito por meio de uma única palavrinha -, trata-se de uma experiência complexa e evocativa, mas que parece nos fazer lembrar o tempo todo da dificuldade que é ser mulher em uma sociedade tão patriarcal. O que talvez explique o receio sentido pela protagonista Harper (Jessie Buckley) a cada novo encontro com um homem "diferente", no retiro que ela resolve fazer em um exótico (e enorme) casarão de uma pequena comunidade da Inglaterra, após uma tragédia ter abalado a sua vida. Já na chegada ao local, que ela aluga por meio de algum aplicativo, o senhorio, um homem de nome Geoffrey (Rory Kinnear), parece se comportar de forma esquisita mesmo que ele não seja tão expansivo. Respostas secas, duras, um senso de humor torto que se soma a um provincianismo que sai dos poros. Tudo gera certo estranhamento.

De qualquer maneira não demora para que o espectador perceba que esse retiro meio forçado tem a intenção de expiar traumas: Harper se sente culpada pela morte do marido e, bom, os homens são mestres em fazer a mulher se sentir culpada mesmo quando ela não é. E se livrar desses demônios interiores não será fácil. Hábil, o diretor Alex Garland - do ótimo Ex-Machina: Instinto Artificial (2015) e do mediano Aniquilação (2018) - constroi um suspense que evolui sem muita pressa, nos deixando aflitos mesmo em instantes em que, aparentemente, não acontece nada. Em uma sequência ainda no começo, Harper sai para explorar o entorno do casarão que alugou. É uma pequena propriedade ladeada por uma densa floresta, com simpáticas plantações de lavanda. Ao alcançar um túnel de trem em uma linha férrea abandonada, a protagonista se ocupa longamente de brincar com o eco do local. Executa melodiosos sons. Sorri com essa besteirinha. Até o instante em que ela tem a impressão de não estar sozinha.


E enquanto assistia, fiquei bastante satisfeito ao perceber o fato de não ser necessário nenhum tipo e jump scare apelativo para que fiquemos tensos. Harper foge correndo dali. Há um homem em seu encalço. Pior, um homem nu. Que parece machucado. O que ele pretende? Harper chama a polícia que prende o sujeito. Mas logo o solta. Não há acusação que se sustente. Não há crime. Ele talvez fosse apenas alguém com problemas mentais. Ou não, vai saber. Em seu entorno, a moça vai percebendo que nenhum daqueles homens parece disposto a ajudá-la. Em certa altura ela encontra um jovem ao lado da Igreja que a provoca (usando uma máscara que gera calafrios). O padre chega, ela conta a sua história. O sacerdote a questiona sobre se ela não é a culpada por não ter conseguido sustentar um casamento. E talvez ter sido responsável direta sobre a tragédia que a leva até ali.

Ao cabo trata-se de uma experiência pouco óbvia, que exige do espectador atenção plena aos detalhes. Utilizando elementos do mundo exterior para discutir o turbilhão interior, Garland compõe uma obra poeticamente visual, cheia de contrastes no que diz respeito as cores e aos elementos cênicos. As paredes extremamente vermelhas do casarão são um indicativo do terror que está na mente da mulher em fuga. Como se livrar desse caos que vêm de dentro? Na natureza ela procura a paz, mas será capaz de encontrá-la? Não é um filme que fornece explicações fáceis. Ao contrário, suscitará longos debates, especialmente por incorporar um sem fim de elementos religiosos - a macieira é quase escancarada -, folclóricos, primitivos, ambíguos. E que vão no limite entre o onírico e o real, o imaginário e o concreto. A mensagem como um todo está lá: homens, apenas melhorem. Para que as mulheres não precisem ficar exorcizando-os o tempo todo de suas vidas!

Nota: 8,0


segunda-feira, 7 de novembro de 2022

Novidades em Streaming - Ingresso para o Paraíso (Ticket to Paradise)

De: Ol Parker. Com Julia Roberts, George Clooney, Kaitlyn Dever e Maxime Bouttier. Comédia / Romance, EUA, 2022, 104 minutos.

Um dos problemas de comédias românticas como Ingresso para o Paraíso (Ticket to Paradise) não é apenas o fato de o filme não ter nenhuma graça. O que gera mais estranhamento - ou vergonha alheia - é perceber que quando há uma tentativa de piada, não conseguimos rir nem por pena. Nem por um segundo. Pense naquele tiozão que contava aquela anedota no churrasco de domingo, mas que talvez só tivesse graça nos anos 80. Foi exatamente o que me veio a mente em uma sequência em que George Clooney resolve sacudir o esqueleto ao som de Gonna Make You Sweat do C+C Music Factory. "Uau, olha aí o choque geracional que emerge do pai que faz a filha passar vergonha só porque dança uma música brega dos anos 90", foi o que pensei na hora. Mais ou menos o ápice em termos de senso de humor, de uma experiência que mais parece inimiga do riso.

E, confesso que durante a projeção - aliás, parêntese, resolvi dar uma chance justamente por causa de Clooney, que contracena com Julia Roberts - me senti tão incomodado que até coisas que normalmente passariam meio batido começaram a inquietar. Na trama Clooney e Roberts são o "casal" David e Georgia. Ele, aparentemente, um arquiteto (nem isso consegui ter certeza). Ela, atua em uma galeria de arte moderna - ainda que, na única sequência em que ela apareça em seu trabalho, é para tirar sarro de um quadro que está na parede ("ele está virado?"). Separados há muitos anos, ambos deixam suas vidas pessoais pra trás - compromissos, agendas, amigos, relacionamentos - para tentar demover a filha Lily (Kaitlyn Dever) que, em uma viagem de férias a Bali após a formatura no curso de Direito, conhece um nativo da ilha paradisíaca e, bem, considera uma excelente ideia ficar ali para casar. Talvez apenas uma semana após conhecê-lo.


Sim, essa boa dose de suspensão de descrença é parte do que vai dando um certo cansaço conforme o filme evolui. Lembrando: um filme sem graça. Uma comédia de chorar de ruim. E que, de quebra, ainda tem um romance insípido, com zero química - aliás, vamos combinar que chega a ser constrangedor o instante em que Lily esconde um pacote gigantesco de camisinhas de seu pai por que, uau, ele não pode saber que ela transa. Sério? Esse tipo de infantilidade que advém de um roteiro anêmico também transforma David e Georgia em duas pessoas que entram em férias involuntárias enquanto, pacientemente, aguardam o enlace de Lily. Quer dizer, em partes, já que eles estão no local pra tentar fazê-la desistir desse "projeto" - até mesmo porque, como manda a boa, velha e anacrônica cartilha de Hollywood, é simplesmente impossível para uma mulher jovem ser feliz no amor e também no trabalho. É um ou outro. E, no caso, ela opta pela vida paradisíaca ao lado de Gede (Maxime Bouttier), um bonitão que cultiva algas no local.

Sério, é preciso acreditar muito no amor pra achar que esse tipo de coisas funcionaria na vida real. Ainda mais em um mundo tecnológico, moderno, urgente. Fora a amiga Wren (Billie Lourd) - sim, sempre tem uma amiga que é exageradamente bonita pra fazer a esquisita  -, não há mais ninguém na vida de Lily? Não há nenhum apego ao seu local de nascença? À cidade, a vida urbana? Bom, de qualquer maneira a gente nunca saberá do passado dela. Da rotina, do cotidiano. O mesmo vale para a vidinha de David e Georgia, que no tempo todo em que estão em Bali, são incapazes de responder uma mensagem de whatsapp que seja pra avisar que eles vão se atrasar um pouco para seus compromissos. Para pagar o boleto. Para pegar leite no mercadinho. Clooney e Roberts já provaram seu talento: têm carisma, são simpáticos, queridíssimos pelo público. E isso acho que torna o desastre ainda maior. E pra não dizer que a tragédia é completa, há algumas boas locações. Mas, se eu quisesse um guia de viagens, eu procurava na internet. No caso aqui pretendia rir e me emocionar com um filme. Mas só consegui ficar indiferente. E me irritar.  

Nota: 1,5


sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Pitaquinho Musical - The 1975 (Being Funny in a Foreign Language)

Uma das histórias que mais gosto de Being Funny in a Foreign Language, novo disco dos hypados do The 1975, envolve a melodiosa e grudenta Oh Caroline - quinta canção do registro. Nas entrevistas de divulgação, quando perguntado sobre quem seria, afinal, a Caroline da música, o vocalista Matty Healy afirmou que não era ninguém em especial. "É um personagem inventado, onde a cadência era o que realmente importava. Não poderia ser 'Oh Linda' ou 'Oh Jane' – você tinha que ter uma palavra de quatro sílabas que realmente funcionasse", salientou, reafirmando ainda o caráter universal do refrão. "Você não precisa ter vivido uma história para escrever uma. Caroline é quem você quiser, você pode mudar esse nome na sua cabeça", completou.



Sinceramente, arrisco dizer que é justamente nesse caráter aleatoriamente despojado, que reside um dos charmes da banda inglesa. É essa capacidade de pegar algo - uma pessoa, um objeto, um tema - meio que do nada e convertê-lo na mais perfeita gema pop, transformando a mera especulação em arte. Se a Caroline sequer existe, mas parece estar sempre na mente do eu lírico, talvez a mesma lógica valha para a oitentista e dançante Looking for Somebody (To Love) - que muito provavelmente não faria feio na trilha sonora de filmes como Um Tira da Pesada (1984) ou Máquina Mortífera (1987). Em linhas gerais dá pra se dizer sem erro que a pretensão megalômana do trabalho anterior, Notes on a Conditional Form - nosso 20º colocado na lista de Melhores Internacionais de 2020 -, aqui se converte em um exercício direto, divertido, irônico e com uma aura pop cintilante. É difícil não se apaixonar.

Nota: 8,5


quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Novidades em Streaming - Nada de Novo no Front (Im Westen Nichts Neues)

De: Edward Berger. Com Felix Kammerer, Daniel Brühl, Albrecht Schuch e Aaron Hilmer. Drama / Guerra, Alemanha / EUA, 2022, 148 minutos.

Quem der play em Nada de Novo no Front (Im Westen Nichts Neues), enviado da Alemanha ao Oscar e em exibição na Netflix, esperando uma história de heroísmo e patriotismo em tempos de guerra, certamente vai se decepcionar. Aliás, talvez seja algo meio óbvio imaginar que não há nada de glorioso em batalhas do tipo. E muito menos na Primeira Guerra Mundial, talvez um dos mais inúteis e inexplicáveis conflitos bélicos da história (e o número de mortos dá conta da tragédia sem precedentes que foi a guerra, que durou de 1914 a 1918). Aqui não há mocinhos ou bandidos, não há bem contra o mal. Bom, talvez a exceção sejam os líderes de nações belicistas que, a distância, assistem seus soldados caminhando em direção a boca escancarada da morte enquanto, encastelados, postulam sobre possíveis cessar-fogo de mentirinha, ou armistícios de faz de conta. Vilões reais. O escritor Erich Maria Ramarque, autor do livro em que a obra é baseada, já dizia que o "nacionalismo mata apenas para a glória do ego, oferecendo covas rasas em territórios estrangeiros ao invés de retornos heroicos ao lar".

E, vamos combinar que se a versão de 1930 do diretor Lewis Milestone já era bastante impressionante - cheia de inovações técnicas para à época, o que levaria a adaptação ao cinema a levar o Oscar de Melhor Filme - o que Edward Berger faz aqui é proporcionar ao espectador um mergulho no que de mais tenebroso pode haver em uma guerra. Em meio a trincheiras acinzentadas, repletas de ferro retorcido, de arame farpado, de madeira podre, de entulho, de água suja, de lama, de sangue e de morte, os alemães se empenham em uma campanha da Frente Ocidental que visa a avançar em direção à França. Tiros, explosões, ferimentos. Gritos por toda a parte. A sensação, em alguns momentos, beira a da completa desorientação no campo de batalha. O caos está por todos lados. Um sentimento que é também vivido por aqueles soldados que lutam, entre assustados e encorajados, como é o caso de Paul Bäumer (o ótimo Felix Kammerer), um dos protagonistas da história.



E, nesse sentido, são muitas as sequências inesquecíveis, que parecem obter uma poética meio difusa que vai da pilha de corpos milimetricamente empilhados em uma tomada aérea, chegando no pequeno inseto que, isolado em um recipiente de vidro, se vê paradoxalmente livre dos efeitos do conflito (uma pequena mudança aliás, em relação a cena clássica da borboleta no filme de Milestone). Assim como ocorreu em 1917 (2019), de Sam Mendes, aqui o mérito vai para além da história, com uma atenção aos detalhes que é quase comovente. Basta observar o contraste, por exemplo, entre os rostos rosados e saudáveis dos estudantes que, ainda no começo são atraídos para a guerra por políticos e professores na promessa da glória romântica da batalha, em contraste com seus rostos aterrorizados (e enlameados) quando chegam efetivamente ao front (um trabalho magnífico de maquiagem). Ou mesmo a trilha sonora de notas caóticas e desconexas que parecem evidenciar e reforçar a anarquia do conflito, surgindo aqui e ali de forma meio inesperada, torta. E o que dizer do desenho de produção impecável que faz com que se vivencie vivamente o horror dessa experiência do sofá da sala. Ou mesmo a fotografia melancolicamente acinzentada, que nos faz pensar o tempo todo na tragédia sombria que leva a inocência de milhares de jovens embora em minutos.

É dessa forma que Berger parece honrar o material original - e eu não li o livro - fortalecendo o discurso antibélico ao não se preocupar exatamente com as motivações por trás do conflito e sim com as ambições patéticas de nações megalômanas. Há uma cena ainda no começo da obra em que, em meio ao discurso que convoca uma centena de jovens para o front, um dos líderes alemães afirma, orgulhoso: "o futuro está nas mãos da melhor geração. Pelo kaiser, por Deus, pela Pátria". Pois é, talvez você já tinha visto discurso parecido por aí e, não, não é mera coincidência. A juventude que gestaria o nazismo está expressa naqueles olhares perdidos que, mais adiante, se converterão em almas perdidas. Em roupas reaproveitadas. Em estatísticas doloridas. Enquanto veste o uniforme camuflado, um dos meninos - sim, meninos - diz para o outro "vai pegar todas as meninas agora". Esse é o deslumbramento provocado pelo ímpeto de segurar em armas, de lutar por não se sabe o quê. E que, nos dias de hoje, ainda parece mover milhares de jovens, especialmente os patrióticos que, cooptados pela extremismo de direita (e religioso), acreditam na arma como um artefato tão "imaculado quanto as coxas da Virgem Maria". É meio maluco que se tenha que dizer o óbvio, em pleno 2022, mas guerra é algo macabro, tenebroso, vil, angustiante. Com muitas perdas, dores, sofrimentos. Mas, enfim, às vezes o óbvio precisa ser dito. E Berger o faz com maestria. 

Nota: 10


quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Cinema - Não Se Preocupe, Querida (Don't Worry Darling)

De: Olivia Wilde. Com Florence Pugh, Harry Styles e Chris Pine. Drama / Suspense / Ficção Científica, EUA, 2022, 123 minutos.

Se Não Se Preocupe, Querida (Don't Worry Darling) fosse um gráfico cartesiano, muito provavelmente ele seria uma parábola - que é aquele em formato de "U". A meu ver trata-se de um filme que começa muito bem, despertando a curiosidade do espectador ao entregar pequenas pílulas, mas sem entregar muito da história. Lá pelo segundo terço ocorre uma queda no ritmo, mais pelas repetições de ideias dentro da narrativa - que poderia ter essa parte um pouco mais enxugada, pra não ficar aquela sensação de um roteiro que parece dar voltas no mesmo lugar - do que pela execução em si. Até mesmo porque a parte técnica é instigante. E lá pro final, quando das surpresas, fica uma sensação de que tudo ocorre de forma meio apressada. Parece, nesse sentido, haver um certo desequilíbrio estrutural na coisa toda. Isso significa que não é bom? Não, de forma alguma. Trata-se de uma boa ficção científica, que talvez carecesse de algum aprofundamento de temas. E de uma melhor distribuição entre seus atos.

Sim, eu estou sabendo que a obra dirigida por Olivia Wilde teve uma série de problemas de bastidores. Mas isso não converte a experiência em algo negativo - e basta pensar em clássicos como Os Pássaros (1963), Apocalype Now (1979) e Chinatown (!974), que foram tumultuadíssimos por trás das câmeras, sem que isso necessariamente interferisse no produto final. Na trama, que mistura Esposas em Conflito (1975) com A Vila (2004), somos apresentados a uma idílica, próspera e isolada comunidade em que todos parecem conviver muito bem. Ou ao menos nas aparências. Todos ali são jovens, bonitos, saudáveis. O mesmo vale para as habitações, sempre limpas, brancas, uniformemente impecáveis, com jardins bem organizados, e coqueiros milimetricamente plantados. A rotina não parece ter muitas novidades: os maridos saem pra trabalhar (em lugar montanhoso, distante dali). As mulheres permanecem, em encontros recreativos e exibicionistas, em meio a chás, festas pomposas, compras e fofoquinhas sobre todos ali. Mas sem deixar de lado a faxina diária.



É a vidinha rotineira daquele bairro nobre da sua cidade, que vocês conhecem bem, com as dondocas frequentando os clubes, enquanto os maridos se ocupam em trazer pra casa o leite das crianças. Só que uma das moradoras dali, a jovem Alice Chambers (Florence Pugh), começa a estranhar um tanto, quando alguns eventos estranhos começam a acontecer. Será coisa da imaginação dela? Ou haverá segredos naquele local que todas as mulheres ali desconhecem? Por quê nenhuma delas sabe muito bem qual é, afinal, o trabalho dos maridos? No que eles se ocupam? Tudo parece bem ordenadinho, certinho. Mas Alice passa a ter visões sombrias. Que se materializam em excêntricos eventos - seja paredes que se movem, pessoas que parecem estar em um lugar sem estarem, barulhos incômodos. Curiosa, resolve tentar atravessar um longo deserto - aliás, o desenho de produção é muito engenhoso em apresentar esse contraste entre a insipidez da vida utópica da cidadezinha e a rudeza amarelada do caminho tortuoso de pedras - que leva até a montanha. E, bom, não é preciso ser adivinho pra supor que toda essa indiscrição de Alice chacoalhará o interior daquele espaço tão alegre quanto hipócrita.

Indo no limite da crítica social, a meu ver o filme falha um pouquinho em suas motivações - e o que poderia ser uma obra que versa sobre machismo, misoginia e outros preconceitos, é banalizada a partir da falta de lógica que envolve certas escolhas dos protagonistas. Vivido pelo cantor Harry Styles - alguém precisa dizer a ele que ele não precisa necessariamente ser ator, pode se focar na música que ele faz tão bem -, o marido de Alice se apresenta como um sujeito que pretende decidir pela vida de sua esposa (mas o caráter aparentemente benevolente de suas intenções, gera apenas estranhamento). Em tempos em que extremistas de direita se utilizam do Estado e da religião como forma de decidir pelos corpos alheios - especialmente os das mulheres -, ver uma metáfora do tipo sendo subaproveitada na narrativa nos faz ficar com o nariz meio torcido. É tudo meio acelerado, sem tempo pra deglutir. Sem falar que há uma contradição na coisa toda, por mais que, ao cabo, nos deparemos com o aspecto absurdista de uma narrativa com mulheres presas, tendo de lutar pela sua liberdade. A mistura é boa e até parece que vai sair um bolo bom. Mas na conclusão fica aquela sensação de faltou algo.

Nota: 6,5