Vamos combinar que nem o fã mais ardoroso da dupla The Lumineers poderia imaginar que Automatic, o recém chegado quinto registro de Jeremiah Fraites e Wesley Schultz, seria o melhor da carreira. Mas o caso é que talvez seja. Sim, no que se refere ao consumo de música na modernidade, o ouvinte meio que se acostumou a renegar o simples, o descomplicado, o direto. Assim, discos como esse passam meio que batido não apenas pela crítica, mas também pelo público, sempre ávido pela novidade da vez. Em entrevistas, Schultz chegou a comentar de que as pessoas se surpreenderiam com o novo trabalho - e com o novo direcionamento, que dá as canções um maior preenchimento, um volume que não parecia tão presente no passado. Claro, não há nenhuma reinvenção da roda (o que é bom) e sim um acréscimo de elementos que parece dar mais cor e mais sabor para o folk pop do duo.
Um bom exemplo nesse sentido pode ser percebido na ótima Plasticine, uma canção cheia de camadas, que não faria feio em um disco do Travis da fase The Boy With No Name. Em geral, as músicas são construídas tendo como centro o refrão, que quase sempre permite ao fã cantar junto. Os temas costumam ser variados indo de reflexões sobre rotina e sensação de vazio (Automatic), passando pela dependência emocional (Keys and the Table) até chegar as inseguranças envolvendo as relações e a aceitação das próprias falhas (Asshole). Ah, e até o militante mais ansioso pode segurar a onda porque os temas políticos também surgem salpicados, aqui e ali, como em Better Day (Sonhando com dias melhores / Balas de borracha, spray de pimenta / Caixas de papelão no caminho). Perdas, conexões, dilemas cotidianos. A gente parece meio anestesiado. E um trabalho como esse, tão cheio de vulnerabilidade e beleza, nos ajuda a reconectar.
De: Nick Park e Merlin Crossingham. Com Ben Whitehead, Reece Shearsmith, Peter Kay e Lauren Patel. Animação / Comédia, Reino Unido, 2024, 80 minutos.
Antes de qualquer coisa, verdade seja dita: parabéns para quem nomeou o novo filme de Wallace & Gromit para o português, porque esse trocadilho (tosco) mesclando as palavras "ave" e "vingança" (Avengança) ficou muito engraçado. E tudo fica ainda melhor porque o vilão em si é um pinguim silencioso e extremamente metódico, o Feathers McGraw, que mete medo sem nem se mexer! Bom, quem acompanha a icônica dupla britânica sabe do carinho geral que o público costuma ter por eles e como já fazia vinte anos desde o último longa-metragem - o divertidíssimo Wallace & Gromit: A Batalha dos Vegetais (2005) - era mais do que natural certa expectativa. Que foi ampliada com uma meio que inesperada, mas justíssima, indicação ao Oscar na categoria Animação. Sim, o filme não vai ganhar, mas terá visibilidade a mais, reforçada pela exibição na Netflix.
Na trama, o carismático e excêntrico inventor Wallace (Ben Whitehead) está bastante animado com a sua mais nova engenhoca: uma espécie de pequeno gnomo de jardim em formato de robô - seu nome é Norbot (Reece Shearsmith) -, capaz de fazer uma série de tarefas (podar, plantar, cortar gramas, colher) com uma velocidade única. Bastante obediente, Norbot acaba por irritar, em alguma medida, o fiel Gromit, que começa a ficar desgostoso com a dependência deles em relação à tecnologia (com absolutamente TODAS as atividades domésticas sendo conduzidas por algum equipamento eletrônico). Só que a vida deles parece tranquila apenas nas aparências, já que no começo da história dá pra perceber que Wallace e Gromit tiveram papel decisivo na prisão de Feathers que, acusado de tentar furtar um caríssimo diamante, vai parar em um um zoológico para "prestar serviços comunitários" (sim, mais uma das ótimas gracinhas).
Só que com a repercussão de Norbot, Wallace se torna famoso entre os vizinhos, o que atrai o interesse da imprensa. E é justamente uma entrevista concedida a TV e veiculada na prisão em que Feathers se encontra, que faz com que o maléfico pinguim bole o seu plano de vingança. Que envolve invadir um computador local, enquanto o guarda de plantão dorme, para mexer no código fonte dos gnomos. A ideia? Replicar o robô em massa, alterando o seu padrão de atendimento aos desejos humanos (saindo de amistoso para maligno). Claro que essa é a deixa para que uma série de confusões envolvendo ainda um atrapalhado delegado local (Peter Kay) e sua corajosa ajudante (Lauren Patel) - que se esforçam para solucionar o caso - ocorram. Especialmente quando os robôs malignos passarem a se comportar de forma totalmente imprevisível.
Divertida, tocante e caótica, a animação tem como mensagem óbvia a importância de não abandonarmos a simplicidade e os vínculos, em detrimento do uso da tecnologia. Claro, não é que ela não seja importante, mas alguma coisa substitui a delícia de passar um café de uma forma mais "raiz" em um bule ou em uma térmica? E o que dizer do afago no cachorro - e não é à toa que Gromit fica exasperado com a engenhoca responsável por lhe fazer o carinho (uma mão mecânica com uma luva). Feita em stop motion - e só essa técnica em si já coloca a obra em um outro patamar -, a produção, além de agradar as crianças (já que é muito viva e usa a expressão dos personagens de forma cômica), ainda dá várias piscadelas aos adultos, com piadocas que, em muitos casos, só eles serão capazes de compreender (e nesse sentido, vale prestar atenção às "obras literárias" que o engajado Gromit lê, no transcorrer do filme). Simples e direto, esses são oitenta minutinhos que passam voando. Tadá!
De: Mohammad Rasoulof. Com Mahsa Rostami, Missagh Zareh, Soheila Golestani e Setareh Maleki. Drama, Alemanha / Irã / França, 2024, 168 minutos.
"Por quê alguém é preso pela roupa que usa? É a vontade de Deus, a lei do País. E se a lei do País estiver errada? A lei de Deus não pode estar errada! O que lhe dá certeza de ser a lei de Deus? Qual o problema de vocês? Vão para a rua gritar! Vão para as ruas dançar com a cabeça descoberta!" Em uma das tantas cenas incômodas do ótimo A Semente do Fruto Sagrado (Daneh Anjeer Moghadas), o enviado da Alemanha ao Oscar - que só é da Alemanha porque o diretor Mohammad Rasoulof seria preso se tentasse fazer o filme no Irã (e não foi por falta de ameaças do tirânico governo do País do Oriente Médio) -, as jovens Rezvan (Mahsa Rostami) e Sana (Setareh Maleki) tentam argumentar com a sua mãe Najmeh (Soheila Golestani) sobre o absurdo de um regime autoritário e teocrático simplesmente impedir as mulheres de estarem nas ruas sem estar com o hijab (aquele lenço que cobre a cabeça) vestido adequadamente.
Diante da TV elas se deparam com uma notícia sobre a morte de uma jovem supostamente por um AVC - ainda que, nas redes sociais, a história pareça ser bem outra e há a possibilidade de ela ter falecido após um caso brutal envolvendo a nefasta Polícia Moralidade (um órgão de governo do Irã, que consiste em patrulhas que fazem vigilância das vestes das mulheres), que teria espancado a garota até a morte. Aliás, esse é um caso real - o nome da jovem de apenas 22 anos era Mahsa Amini -, e que seria o estopim para uma série de protestos no País, que culminariam no movimento Mulher, Vida, Liberdade. Protestos que servem como pano de fundo para a trama, que coloca em lados opostos não apenas Rezvan e Sana e sua mãe, mas também as adolescentes e o pai, Iman (Missagh Zareh), um importante advogado que trabalha para o governo e que acaba de ser promovido a juiz de investigação do Tribunal Revolucionário de Teerã - um cargo mais alto e com melhor salário.
Só que é só nas aparências que as condições de vida da família podem estar por melhorar. No microcosmo doméstico, Rezvan e Sana tem suas liberdades, quaisquer que sejam, cerceadas. Mais velha, Rezvan está pronta para ir para a faculdade e o contato com o ambiente acadêmico e com outras colegas (e culturas) funcionam como uma espécie de despertar. A discussão na sala, em frente a TV (e que abre essa pequena resenha) é só um dos instantes em que as meninas afrontarão a autoridade, não apenas do governo, mas de seu pai, um exausto empregado estatal que, a despeito dos dilemas envolvendo seu ofício, não hesitará em enviar dezenas, talvez centenas de pessoas para a prisão (ou para a morte), por simplesmente desrespeitarem as leis de Deus, de Alá, ou do que quer que seja. Rezvan e Sana só querem poder viver como qualquer outro jovem, namorando, ouvindo música, pintando os cabelos ou as unhas, se maquiando. Mas não podem nem ir até a esquina de casa com os cabelos à mostra.
Bem conduzida, a trama mostra como os conflitos externos - reforçados por imagens reais dos protestos -, vão parar nas entranhas da casa, com Iman mergulhando em uma espécie de vertigem, de paranoia e de conspiração, que o fará desconfiar de todos à sua volta. Inclusive de sua mulher e de suas filhas. O sentimento de perseguição aumentará no momento em que um revólver desaparece. E quando as meninas ocultarem dele a ajuda dada a uma outra jovem, Sadaf (Niousha Akhshi), que é gravemente ferida no rosto após levar um tiro de bala de borracha em uma manifestação. Ao cabo, esse é o tipo de obra que evidencia o problema da radicalização e de como ela é capaz de conduzir as pessoas em uma espiral de loucura, frente aquilo em que elas acreditam cegamente. Com uma série de tensões e conflitos, a obra ainda reserva para o terço final uma sequência que bebe na fonte de clássicos como O Iluminado (1980), em que uma família precisa lutar pela vida, frente a insanidade de um de seus integrantes.
De: Ali Abbasi. Com Sebastian Stan, Jeremy Strong e Maria Bakalova. Drama / Biografia, Canadá / Dinamarca / Irlanda / EUA, 2024, 122 minutos.
Sim, meus amigos, todo mundo sabe que é preciso ter estômago pra dar play em um filme sobre a "formação" de Donald Trump - e quais os bastidores que o consolidariam como figura pública de relevo, ainda na transição dos anos 70 e 80. Mas aí tem essa maldita maratona do Oscar e o Sebastian Stan indicado na categoria Ator, por sua construção que tenta, em alguma medida, humanizar um dos sujeitos mais abomináveis do planeta. E aí o início desse segundo governo Trump foi tão absurdo, tão delirante, tão distópico, que eu tenho a impressão de O Aprendiz (The Apprentice) já envelhecer mal na arrancada. Conhecendo o presidente dos Estados Unidos HOJE, confesso ser meio difícil ter qualquer tipo de empatia por aquele filho de magnatas supostamente ingênuo, que junta uma fortuna no mercado imobiliário - em partes, massacrando famílias pobres com dificuldades de honrar o aluguel - para ascender por meio de uma série de investimentos ambiciosos.
Eu li em algum lugar que Donald Trump não teria gostado da forma como ele é retratado no filme de Ali Abbasi - dos excelentes Border (2018) e Holy Spider (2022) -, mas o fato é que o laranjão deveria era agradecer aos produtores da obra. Para além do apetite pelo mundo dos negócios e da ganância financeira - que na real chega ao ponto da banalidade, nos dias de hoje, fazendo parte de qualquer discussão de homens de meia idade bem nascidos, com calças caqui e mocassins de solas largas - não há nada que desabone muito ou que soe mais bizarro do que qualquer das manifestações ou das ideações lunáticas de Trump como presidente dos Estados Unidos. Até mesmo a cena do estupro de Ivana (Maria Bakalova), por mais abominável e agressiva que seja, não surpreende. Primeiro por ser um evento conhecido e amplamente divulgado, segundo pela abordagem estranha da tomada - que talvez nem precisasse ter sido filmada.
Na trama, voltamos para meados dos anos 70, onde Trump (Stan) ainda é aquela almofadinha bem apessoado e meio sem rumo, que anda pra lá e pra cá em festas elegantes, tentando encontrar seu espaço. Em um desses eventos, ele conhece o advogado Roy Cohn (Jeremy Strong, que está muito bem em um papel que parece meio derivado daquele que ele fez em Succession), que se torna uma espécie de tutor, um mentor que guiará seus passos. E que lhe auxiliará, inicialmente, em um caso envolvendo o pai de Trump, Fred (Martin Donovan), que está sendo processado por discriminação contra inquilinos afro-americanos. Após uma chantagem envolvendo o promotor do caso e uma vitória na Justiça, a dupla se tornará inseparável, com Cohn guiando cada passo do pupilo, pautado por três regras básicas: sempre atacar, nunca admitir irregularidades e sempre reivindicar a vitória, mesmo quando derrotado (e não deixa de ser interessante perceber como Trump parece levar esses lemas ao cabo, até os dias de hoje).
Mas como mencionei no começo desse texto, esse é o tipo de projeto de baixa empolgação, porque a gente já inicia de nariz torcido e de olhos virados, ao ter de suportar uma historinha de bastidores de playboys corruptos que levam vantagem em tudo, ao passo em que mamam nas tetas do Estado até sugá-las ao limite (ainda que, inescapavelmente, vendam a ideia de austeridade e de economia acima de tudo, como a chave para o sucesso). No filme é possível constatar como Trump obteve um sem fim de isenções fiscais - inclusive na reforma do Hotel Commodore, em Nova York. Tudo com o dedo de Cohn e uma série de movimentações e chantagens de bastidores. O alcoolismo do irmão Freddie, o reaproveitamento do discurso ufanista de Reagan (esse de tornar a América "grande de novo"), o relacionamento tumultuado com Ivana, a homossexualidade no sigilo de Cohn, o vício em anfetaminas, a predileção por prostitutas, os tratamentos para a obesidade ou a calvície, tudo aparece bem costurado no roteiro que, ao cabo, choca um total de ZERO pessoas. E, menos ainda, os cidadãos de bem.
Tudo isso é café pequeno perto de projetos como a política truculenta de imigração, a ideia de anexar (ou taxar economicamente) outros países ou de "reconstruir" a Faixa de Gaza (e os palestinos que lutem). Trump é tão absurdo e a sua existência como político é tão delirante que mesmo um filme sobre ele parece não dar conta. Parece jamais alcançar o seu tamanho e a sua loucura. Sim, de forma sutil a gente pode até perceber que tudo que consolidaria, ao cabo, essa figura grotesca, rotunda, está lá. Inclusive o fato de superar seu tutor e abandoná-lo pelo caminho (como costuma fazer qualquer extremista de direita que está na antessala do fascismo). Mas tá tudo meio vencido, o que é reforçado pelos tons pasteis de uma era Reagan que agora se repete, de forma turbinada. Muito pior. Muito mais vergonhosa. E que jamais será salva pela trilha sonora carismática e totalmente equivocada, que tem como peça central o clássico setentista Yes Sir, I Can Boogie, da dupla espanhola Baccara.
De: Magnus von Horn. Com Victoria Carmen Sonne, Trine Dyrholm, Besir Zeciri e Joachim Fjelstrup. Drama, Dinamarca / Polônia / Suécia, 2024, 123 minutos.
[ATENÇÃO: ESSE TEXTO TEM ALGUNS SPOILERS]
A Garota da Agulha (Pigen Med Nålen) talvez seja o tipo de filme que precisaria vir com um "alerta de gatilho", tamanha a sequência de tragédias, de dores e de violências diversas exibidas nas cerca de duas horas da obra - a enviada da Dinamarca ao Oscar. E o mais incrível é que, por mais pesado que tudo seja, nada ali parece ser gratuito. Como uma mera forma de chocar por chocar. Ao cabo nessa narrativa há algo que martela: qualquer que seja o período permanecemos como uma sociedade hipócrita, em que muitos de nós se travestem de paladinos da moral, como se fôssemos o tempo todo sujeitos incorruptíveis ou nunca falhos. Na era do cancelamento e dos dedos apontados o problema está sempre no outro. E nunca em nós ou no que pensamos. Mas a arte serve para nos lembrar disso. Para nos alertar para essas contradições. Então por mais duro ou sombrio que seja o projeto do diretor Magnus von Horn, ele tem razão de ser.
Aliás, mais do que isso, ele é um filme que se passa no contexto do final da primeira guerra - ou seja, no começo do século passado -, mas que dialoga E MUITO com os nossos tempos. Tempos esses que parecem flertar com todo o tipo de retrocesso. Em que se perdeu a vergonha de se agir de forma absurda. "O mundo é um lugar horrível, mas precisamos acreditar que não é", lembra em um dos momentos decisivos da produção, a idosa Dagmar (a ótima Trine Dyrholm), que, em um cenário de desolação, administra uma espécie de empresa - por assim dizer - que se ocupa de encontrar casas para bebês que não são desejados. Claro, tudo as escondidas. E é justamente salvando a protagonista Karoline (Victoria Carmen Sonne) em uma situação de extrema violência - digamos que ela usava uma agulha de tricô, mas não para produzir uma peça de roupa -, que ambas formam uma amizade.
Amizade talvez não seja ao certo a palavra. Um tipo de vínculo. O que entre mulheres em um cenário tão patriarcal e machista pode ser uma boa. Até mesmo porque, quando Dagmar acolhe Karoline, ela já passou por uma dúzia de humilhações e agressões. Primeiro é despejada do seu apartamento por falta de pagamento, tendo de se abrigar numa pocilga que fica dentro do orçamento. Depois, acredita que o seu chefe em uma indústria de confecções - um certo Jorgen (Joachim Fjelstrup) - esteja apaixonado por ela (o que a faz sonhar uma vida melhor, especialmente quando iniciam um relacionamento meio às escondidas). Por fim, ela se descobrirá grávida de Jorgen, sendo rejeitada por ele e pela família dele. Com um filho pra criar mais adiante. E como se a desgraça não fosse pouca, o marido da protagonista - seu nome é Peter (Besir Zeciri) -, dado como morto no conflito, reaparece, mas com o rosto totalmente desfigurado (o que o faz aceitar um trabalho em um daqueles antigos circos sensacionalistas).
Sim, e nesse cenário em que uma punhalada atrás da outra ocorre, parece que o pior sempre vai ser o que está por vir. O próximo passo. A nova reviravolta. E é mais ou menos isso que acontece no terço final, sendo absolutamente incrível a forma como Von Horn nos conduz e nos faz compreender as atitudes - por mais desesperadas e cruéis que sejam - de todos ali. Em linhas gerais trata-se de uma obra permanentemente sombria, soturna, com a fotografia em preto e banco de contrastes reforçando o desencanto. Imagens secas de chaminés que soltam uma fumaça pastosa, ou frases cheias de simbolismo (você é a garota da agulha?), ampliam a sensação de sofrimento. O mesmo valendo para a trilha sonora com guinchos de violino, que é bastante original e perturbadora. Em tempos de avanço da extrema direita e em que temas como aborto e violência contra a mulher seguem mais atuais do que nunca, A Garota da Agulha é um tapão na nossa cara, que talvez pudesse nos fazer despertar. Talvez. Por que do jeito que vai, não sei se temos alguma salvação.
De: Gints Zilbalodis. Animação / Aventura, Letônia / França / Bélgica, 2024, 85 minutos.
Um simpático gatinho tenta fugir de uma enorme inundação e, talvez, com essa premissa simples, tenhamos um dos grandes filmes desse começo de temporada. Visualmente impecável e essencialmente contemplativo, Flow (Straume) - o candidato da Letônia ao Oscar e que também foi indicado na categoria Animação (tendo a credencial de ter vencido o Globo de Ouro) -, é daqueles projetos que ficam na nossa mente, após a subida dos créditos. E ainda que não haja nenhuma grande evidência das temáticas que a obra pretende explorar - já que tudo é muito sutil a ponto de não haver diálogos -, é possível perceber, no mínimo, dois grandes assuntos que se sobressaem: o da importância da coletividade e do respeito às diferenças, para que obstáculos sejam superados e o da inadiável percepção de que o meio ambiente pode estar chegando ao seu limite. E uma enchente estratosférica é só um bom indicativo do preço que pagamos por não tratarmos a questão com mais seriedade.
Claro que o diretor Gints Zilbalodis não levanta essa bandeira de forma tão escancarada, tão nítida - até mesmo pelo fato de ter explicado, em entrevistas, que a ideia para o projeto surgiu ainda antes da pandemia (e talvez até como uma alegoria para o enfrentamento de uma catástrofe sanitária global ele servisse, se tivesse sido lançado mais cedo). Mas o caso é que o timing não deixa de ser impressionante, com o mundo cada vez mais em colapso por conta de fatores climáticos, sejam eles as enxurradas que nos afetam como nunca antes, o calor insuportável e até mesmo o frio exagerado. Isso sem falar em terremotos, furacões, vulcões em erupção e outros. Quando uma cheia devastadora ocorre, a gente não costuma pensar muitos nos animais da floresta, em meio ao salve-se quem puder. Mas eles também sofrem. E precisam lutar para sobreviver. Flow parece nos lembrar também disso.
Na trama, um gatinho percorre uma densa (e linda) floresta, que mais parece saída de algum jogo de videogame estilo Crash Bandicoot -, até o momento em que ele passa a ser perseguido por um grupo de cães não muito amistosos, após furtar deles um peixe. Só que como desgraça pouca é bobagem, uma manada de cervos em fuga será o indicativo de que a coisa não anda bem: a água chega sem muito aviso e depois de tomar uma dúzia de "caldinhos", o protagonista consegue se refugiar em uma casa isolada, decorada com esculturas de gatos de madeira - e é interessante notar como essa cabana pode ser um indicativo de que a vida humana por ali já não é mais uma possibilidade, ainda que uma série de rabiscos e de desenhos ali permaneçam. Da mesma casa se aproxima um amistoso labrador, que se vê em apuros com a subida da água - até que uma embarcação com os outros cães o leva embora. A água sobe mais e, bom, o gatinho que lute pra manter a pele seca.
Após a água subir até o limite do suportável, surge uma capivara em um pequeno veleiro - o que faz com que o nosso destemido protagonista se salve. Mais adiante, eles resgatarão um lêmure e um pássaro gigante de pernas longas. Além do labrador, que reaparece. De personalidades distintas - o gato mais rabugento, a capivara mais preguiçosa, o lêmure mais organizado, o labrador mais amistoso e o pássaro com espírito de liderança -, esse conjunto excêntrico navegará pelas águas em busca de comida, de um destino, de sobrevivência. Para o espectador, a percepção de que a união faz a força em um cenário inóspito (e como o mundo seria um lugar bem melhor se avançássemos para além da simples caridade, quando o assunto é o coletivo) é evidente. As lições dessa animação lindíssima, feita com recursos modestos - o total gasto foi de US$ 3,7 milhões, usando um software livre (a ferramenta Blender) -, pode parecer meio vaga. Mas quando o ciclo da vida e das coisas se repete, é meio difícil não sentir um gosto meio amargo.
De: Aaron Schimberg. Com Sebastian Stan, Renate Reinsve e Adam Pearson. Drama / Comédia, EUA, 2024, 112 minutos.
Precisamos falar sobre a solidão das pessoas bonitas e bem sucedidas. Se interpretado como uma grande alegoria sobre a importância da autoaceitação e da busca por evitar fingir ser aquilo que não somos, Um Homem Diferente (A Different Man) pode ser uma obra com algo a mais a dizer. "A máscara pode cair a qualquer momento", diz o chavão, revelando a nossa verdadeira natureza - e, em muitos casos, decepcionando aqueles que nos rodeiam. Se encarado como um drama sobre um sujeito que supera uma severa deformidade facial - resultado de uma neurofibromatose -, mas que tem dificuldade de se ajustar a essa nova "identidade", o projeto do diretor Aaron Schimberg talvez seja apenas razoável. E até meio forçado, em última análise. O que não impede de considerarmos a produção inovadora, instigante, e que parte de uma premissa pouco convencional e que pode gerar algum desconforto.
Na trama acompanhamos Edward Lemuel (Sebastian Stan), um ator amador de rosto desfigurado e que, naturalmente, passa por dificuldades no que diz respeito ao convívio social - como fica claro, logo no começo, em uma sequência dentro do metrô em que ele simplesmente esconde o rosto, para não ser percebido por um bêbado chato que está incomodando a todos. Só que mesmo sendo introspectivo, ele consegue vencer a barreira da timidez, para uma aproximação meio desajeitada de sua vizinha, a carismática e vivaz Ingrid Vold (Renate Reinsve, vista no excelente A Pior Pessoa do Mundo, 2021), uma escritora iniciante que parece genuinamente interessada em Edward, a despeito do susto inicial. Conforme a amizade avança, Edward aceita participar de um tratamento experimental à moda A Substância (2024), com a promessa de cura para a sua condição. E, em resumo, a coisa funciona. O que faz com que o protagonista simplesmente mate, metaforicamente, Edward, entrando em seu lugar um certo Guy Moratz, o dono do rosto novo.
Ingrid fica sabendo da morte e, após um salto temporal, Guy/Edward já se converteu em um bem sucedido agente imobiliário, com uma boa casa, respeitado pelos seus pares. Só que não demorará para que constatemos que, na essência, Guy não mudou nada. Afinal, muito mais complicado do que simplesmente mudar a aparência é trocar de personalidade. A gente pode até adquirir um ou outro traço distinto na vida adulta, mas um sujeito introspectivo não se torna expansivo da noite pro dia. Uma pessoa quieta e taciturna não se torna vibrante ou entusiasmada num piscar de olhos. Guy agora está bonito, de acordo com o padrão. Mas permanece desencaixado, incapaz de ter um relacionamento amoroso sólido ou amigos que existam para além do ambiente de trabalho. É uma existência vazia, oca, ordinária. E que traz uma relevante discussão, em seu âmago, sobre autoestima.
E como se a desgraça não fosse pouca, tudo piora quando Guy reencontra, meio que sem querer querendo, Ingrid, que está produzindo uma peça off Broadway justamente sobre um sujeito com neurofibromatose, que tenta se aproximar de sua vizinha. Sombria, mas bem humorada, essa é uma obra que também joga alguma luz sobre a discussão que envolve a escalação de certos atores que atendam certos requisitos físicos - e de como isso impacta a indústria. Sebastian Stan, que atua muito bem por sinal, usa uma máscara no começo do filme - o que, inclusive, poderá resultar em uma indicação ao Oscar na categoria Maquiagem e Penteado -, diferentemente de Adam Pearson que, com seu irresistível charme, empresta seu rosto real para a produção. "Meu velho amigo, você não mudou nada!", comenta Oswald (Pearson) quase na conclusão. Esse é o grande problema. Ou dilema. Quando a essência é uma e a estampa é outra. E aí uma pode burlar os limites da outra.
De: Jacques Audiard. Com Karla Sofía Gascón, Zoe Saldaña e Selena Gomez. Drama / Comédia / Musical, França / EUA / Espanha, 2024, 132 minutos.
Com tantas décadas de cinefilia, devo dizer a vocês que poucas foram as vezes em que senti vergonha alheia assistindo a um filme. Aliás, no caso de Emilia Perez, que chega à Netflix na quinta-feira (06/02), mais de uma vez. Com tantas sequências cringe é até meio difícil escolher a mais constrangedora. Mas creio que o "prêmio" vá para o instante em que a advogada Rita Mora (Zoe Saldaña) chega à Turquia para conferir in loco - em uma clínica especializada -, como se dão os procedimentos de redesignação sexual. Circulando em meio a macas, equipamentos, pacientes e enfermeiras Rita estabelece um diálogo com um médico local, que imediatamente vira um número musical: "Olá, muito prazer em conhecê-la / Gostaria de saber sobre a operação de mudança de sexo / Entendo, entendo, entendo / Homem para mulher ou mulher para homem? / Homem para mulher / Do pênis para a vagina / É para você? / Para mim? Não / O que você gostaria de saber sobre isso, senhora? Eu quero saber tudo, qual é o protocolo?". É sério, eu quase não consegui segurar o riso diante dessa obra-prima lírica, entoada em um vergonhoso spoken word.
Aliás, talvez o maior problema do filme de Jacques Audiard - indicado a treze Oscar e o grande rival de Ainda Estou Aqui na disputa por estatuetas douradas (isso, ao menos até o dia em que os brasileiros escavaram o passado de Karla Sofía Gascón, descobrindo que ela atacava uma minoria diferente por hora, no Twitter) - seja o fato de que esse é um musical em que praticamente todas as músicas são terríveis! Além das letras péssimas (sobre pênis e vaginas imaginários) cantadas de uma forma supostamente engraçadinha - e, vejam bem, não se trata de moralismo barato e sim de um momento que mais parecia saído da comédia Team America (2004), mas feita com atores de carne e osso -, as inserções muitas vezes truncam a narrativa. Ou repetem conceitos que já havíamos compreendido previamente. E tudo ocorrendo de uma forma chata, forçada e irritante. Sim, um musical pode ser chato, forçado e irritante. Mas esse aqui quer bater todos os recordes.
Durante a tortuosa sessão, admito que cheguei a comentar com a minha companheira que esse poderia ser um grande filme se ele se levasse mais sério. Um drama, com menos estereótipos e maniqueísmos sobre um chefão de um cartel que, para deixar seu passado de crimes para trás e evitar que uma trilha de sangue e morte persiga a ele e a sua família, opta por uma nova vida, distante de tudo, com outra identidade, ofício e endereço. Talvez com mais polidez e um conjunto menos bobo, as coisas pudessem funcionar. Porque o caso é que até a suposta redenção de Emilia (Gascón) é difícil de comprar. Quais os motivos centrais para essa mudança drástica de vida? Sim, ela sente que está em uma identidade que não lhe representa, mas e todo o resto? Filhos, família, esposa? Tudo fica para trás quando acaba a Era Manitas e, para alguém que se converterá na rainha da filantropia em meia dúzia de anos, parece que essa conta não fecha. E se a conta não fecha, tome-lhe música ruim!
A despeito de todas as polêmicas envolvendo Gascón, o Oscar e tudo o que vocês já sabem, eu confesso que fui conferir o filme de sangue doce. Com a mente aberta, como sempre faço. E adoraria ter encontrado uma grande experiência. Que fizesse sentido nas discussões sobre identitarismo e gênero e não reduzisse a protagonista à uma caricatura. Mas enquanto a coisa se desenrolava, eu só conseguia pensar em como esse é exatamente o tipo de produto que servirá de matéria-prima para que o reacionário de extrema direita se sinta à vontade para dizer que hoje em dia a arte é só lacração, que a cultura woke vai dominar o planeta e que está em curso a implantação de uma agenda gayzista para as crianças ao redor do globo, até 2030. Sério, galera, se é para o campo progressista ser acusado disso, que façamos a coisa bem feita. Com inteligência, sagacidade, sutileza e criatividade. Sim, sei que cada filme é um filme, mas tomemos como comparação o ótimo Conclave, que também está indicado ao Oscar. Ninguém precisa empurrar a coisa goela abaixo, em uma produção de gosto duvidoso. Ao cabo, pouca coisa se salva. O que, em partes, me deixa feliz, já que esse pode significar o caminho aberto para que nós, brasileiros, sejamos muito felizes no próximo 2 de março, quando ocorre a noite do Oscar. Aguardemos.
De: Jesse Eisenberg. Com Kieran Culkin, Jesse Eisenberg, Will Sharpe e Jennifer Grey. Drama / Comédia, EUA / Polônia, 2024, 90 minutos.
Acho que A Verdadeira Dor (A Real Pain) poderia entrar em uma espécie de subcategoria de "filmes click bait de festivais". Aquele tipo de produção com homens brancos e héteros sofredores de meia idade, traumatizados não se sabe bem exatamente por quê - até porque, em muitos casos, a obra não se ocupa em explicar isso direito -, e que costuma funcionar direitinho em Sundance ou em outras premiações do circuito alternativo (e que, se a temporada for efetivamente fraca como essa que estamos vivenciando, pode se estender até o Oscar). E nesse filme dirigido por Jesse Eisenberg, que também atua, tem um bait a mais: o de colocar Kieran Culkin - o eterno Roman Roy, de Succession -, como uma figura atormentada, supostamente complexa e que pode ser mal educada num instante, para no momento seguinte ser carismática e cativante.
Sim, tudo aqui parece que meio que feito sob medida pra capturar uma parcela do público com pendor pro progressismo de sofá - há um pano de fundo sobre as dores do holocausto e que parece se cruzar de forma meio estranha (ou torta) com as mazelas da modernidade -, mas que, ao cabo, resulta naquele sentimento de enfado. Como crítico amador, e estudioso autodidata do cinema e da produção cultural como um todo, já compreendi que a arte não precisa ter necessariamente uma função. Ela pode entreter, ou nos fazer refletir. Mas é meio que impossível não pensar em A Verdadeira Dor como um filme tão fugaz que, assim que os créditos passam, já esquecemos dele. Há um grupo de personagens que tenta ser interessante mas não consegue - não nos conectamos com ninguém -, ao mesmo tempo em que a dupla de protagonistas se apresenta como de personalidade diametralmente oposta, como se isso fosse inovador em pleno 2025.
Bom, na trama desse elogiadíssimo produto - a média da nota no Metacritic é 89% (então, não deixem de assistir por NADA) -, David (Eisenberg) e Benji (Culkin) são dois primos não muito compatíveis, que resolvem fazer uma viagem - aquelas vendidas em pacotes turísticos - à Polônia, pra homenagear a recém falecida avó, uma sobrevivente dos campos de concentração nazistas da Segunda Guerra. E, enfim, boa parte da obra consiste em apontar as gritantes diferenças de comportamento entre os dois sujeitos - e de que formas isso faz com que eles se amem e odeiem ao mesmo tempo. Sim, quem nunca, e ok, esse pode ser um mérito que sempre valorizo: o de nos apresentar a figuras dotadas de alguma complexidade, afinal, não somos uma mera caricatura maniqueísta, que age sempre da mesma maneira. Mas o caso é que tudo soa meio forçado.
Na primeira sequência, David já se apresenta como aquele cara supostamente metódico, preocupado com horários e agendas prévias, e que é um homem de família, um cidadão de bem com esposa, filhos, um bom emprego e tudo conforme o script (e eu confesso que me incomodam um pouco as obras de arte que acenam para a normalidade como algo estranho, excêntrico ou a ser evitado). Já Benji é a figura que, mesmo com mais de 40 anos de idade no lombo, ainda mora com a mãe, se ocupa de fumar maconha, e que é charmoso e expansivo com estranhos, ainda que pareça julgar, em seu cerne, as suas vidinhas enfadonhas. Como alguém que convive com algum transtorno de personalidade, ele pode estar em estado meditativo ou pacífico agora, para, no minuto seguinte explodir em fúria, em gritos e, enfim... os outros que lutem. Por quê ele teria tentado se matar, também, meses antes, é algo que fica no ar. Resumo da coisa toda, galera: façam terapia. Tomem os medicamentos. Pratiquem exercícios. Cuidem da saúde mental e física. E evitem ser chatos. Falo isso com conhecimento de causa. Porque a terapia não estando em dia talvez só te torne meio insuportável. Como esse filme, nas suas entranhas, é.
Vamos combinar que alguns discos são tão prazerosos de se ouvir, que mais parecem um abraço de alguém que a gente gosta. É uma sensação de conforto. De acalento. É algo nostálgico, meio familiar, mas também inovador, delicado e claustrofóbico. E essa pluralidade de sentimentos é exatamente o que ocorre quando escutamos o lindo Lower, o terceiro registro de estúdio do cantor e compositor estadunidense Benjamin Booker. Ao cabo, tudo é perfeito nesse trabalho, que inicialmente se destaca pelo estilo vocal sedutor e aveludado do artista - que funcionará como uma espécie de fio condutor de canções que se espalham em histórias suburbanas (e violentas), devaneios existencialistas e alegorias desconfortáveis e cômicas de uma forma meio torta. Sim, cômicas, como no caso de Rebecca Latimer Felton Takes a BBC, canção sobre sexualidade e racismo, que coloca o dedo na ferida da hipocrisia dos conservadores (a tal Rebecca Latimer do título seria uma frígida senhora de escravos do passado).
Em linhas gerais as entrevistas de Booker e as próprias explicações sobre o significado de suas canções são pontuadas por tiradas bem humoradas, ainda que jamais ignorem a complexidade do fazer artístico. Sobre a maravilhosa Same Kind of Lonely - um shoegaze que lembra um The 1975, em um flerte com a periferia -, ele brincou ao afirmar que seu produtor Kenny Segal lhe enviou um material sobre como escrever uma música pop e que o caminho era "tocar em um assunto universal, com os versos mais vagos possíveis". O resultado é a melhor canção do ano sobre solidão e o desejo de recomeçar em um outro lugar - mas que surpreende no meio do caminho ao tomar uma direção inqueitante. O expediente se repete em outros instantes estranhos e belos, como no caso de New World, que presta homenagem ao injustiçado filme de Terrence Mallick de mesmo nome e a inaugural Black OOPS, que fala de violência e preconceito de forma bastante franca. Neo soul, psicodelia sessentista, art rock e até bedroom pop. Está tudo lá, redondinho e irresistível.