De: Valerio Mieli. Com Linda Caridi, Luca Marinelli e Giovanni Anzaldo. Drama / Romance, França / Itália, 2018, 106 minutos.
"Ah, memória, inimiga mortal do meu repouso!". A frase é antiga, atribuída ao escritor Miguel de Cervantes, mas encaixa como uma luva na narrativa que acompanhamos em Entre Tempos (Ricordi?) - um romance de estilo meio "pastoso" que segue disponível na Mubi (é a última semana em cartaz). Na trama temos uma experiência labiríntica, caleidoscópica, de idas e vindas e de como podemos ser traídos pelas nossas lembranças. Especialmente quando o assunto são os relacionamentos. Basta pensar como parece agir o nosso cérebro diante de um iminente rompimento: as recordações parecem floreadas, vívidas, primaveris. Como se houvesse um embate, uma luta capaz de apagar os piores momentos, fazendo com que nos foquemos nos instantes mais belos do amor. Sim, tudo pode estar desabando. Mas será que ainda assim não valeria a pena tentar? Quem nunca? A exceção de quem viveu grandes traumas quando o tema é a paixão, a impressão que temos é a de nos enganarmos por vezes. Ou não?
Quem não se lembra, por exemplo, do esforço homérico do personagem de Jim Carrey no ótimo Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004) para simplesmente deletar de sua memória a sua tão amada Clementine (Kate Winslet)? No filme delirante, surrealista e divertido de Michel Gondry tudo corre mais ou menos bem na cabeça do protagonista. Ao menos até chegar a hora de apagar as primeiras memórias. Que nesse caso são as últimas. Como a engenhoca opera de trás pra frente, ela começa na pior parte de uma relação em frangalhos. Para retroceder até o princípio idílico onde rolam os primeiros encontros, a paixão, os pontos em comum, o tesão. No caso da obra italiana de Valerio Mieli a vida real não envolve tecnologias avançadas de apagamento de memórias. E elas estarão lá. Boas, ruins, nos atormentando ou nos fazendo sorrir. Mexendo conosco, com o nosso íntimo. Expondo as nossas fragilidades, com a sua completa falta de lógica.
Aqui, acompanhamos duas pessoas de personalidades completamente opostas que se aproximam em uma festa ao ar livre daquelas tipicamente bucólicas (e inadvertidamente italianas). Lui (Luca Marinelli) é o sujeito introspectivo, que parece ter uma predileção pela melancolia, pelo niilismo e até por certo pessimismo. Já Lei (Linda Caridi) é a jovem cheia de vida, sempre com um sorriso magnético no rosto, daquele tipo de garota que, por onde passa, parece contaminar a todos com seu otimismo irresistível. Duas almas tão distintas podem se apaixonar? Podem se amar e ter planos? Bom, não é preciso ser nenhum especialista pra saber que essas coisas não se escolhem. Elas simplesmente acontecem. Ainda que o que vá determinar a solidez ou não de uma relação sejam outros aspectos. Uma paixão pode esvanecer com o passar dos anos. Empalidecer. Pessoas podem deixar de amar. Mas não de gostar. Mieli, em sua narrativa fracionada, fragmentada, trata de todas essas complexidades. De uma forma pouco convencional.
Intercalando uma série de flashbacks com cenas mais atuais, assistimos as várias etapas que compõem a vida de um casal - a relação com as famílias, os planos juntos, mudanças, risos e choros, perdas, dores, anseios, sonhos compartilhados. É um filme bonito e triste e que jamais idealiza o amor ou olha para o passado com uma esperança inevitável de salvação. Utilizando uma série de recortes, de pequenas peças, o diretor forma uma verdadeira colcha de retalhos ao mesmo tempo em que brinca com a fotografia (que pode ir de ensolarada a acinzentada em segundos), com os figurinos (que se modificam às vezes na mesma cena) e até com as memórias em si - que podem ter seu ângulo alterado, de acordo com quem está narrando a história. Pode ser uma experiência não muito fácil e pouco convencional, mas que funciona por possibilitar um olhar carinhoso para as marcas deixadas por aqueles que percorrem as nossas existências - e não é por acaso que a dupla central também parece guardar na memória fragmentos de outras relações (que, inclusive, lhes confundem). Intensa, insinuante, não muito lógica, essa é daquelas produções eventualmente filosóficas e levemente experimentais, que tentam tratar seu tema para além do óbvio. É um mérito, inegavelmente.