quarta-feira, 28 de junho de 2023

Tesouros Cinéfilos - Entre Tempos (Ricordi?)

De: Valerio Mieli. Com Linda Caridi, Luca Marinelli e Giovanni Anzaldo. Drama / Romance, França / Itália, 2018, 106 minutos.

"Ah, memória, inimiga mortal do meu repouso!". A frase é antiga, atribuída ao escritor Miguel de Cervantes, mas encaixa como uma luva na narrativa que acompanhamos em Entre Tempos (Ricordi?) - um romance de estilo meio "pastoso" que segue disponível na Mubi (é a última semana em cartaz). Na trama temos uma experiência labiríntica, caleidoscópica, de idas e vindas e de como podemos ser traídos pelas nossas lembranças. Especialmente quando o assunto são os relacionamentos. Basta pensar como parece agir o nosso cérebro diante de um iminente rompimento: as recordações parecem floreadas, vívidas, primaveris. Como se houvesse um embate, uma luta capaz de apagar os piores momentos, fazendo com que nos foquemos nos instantes mais belos do amor. Sim, tudo pode estar desabando. Mas será que ainda assim não valeria a pena tentar? Quem nunca? A exceção de quem viveu grandes traumas quando o tema é a paixão, a impressão que temos é a de nos enganarmos por vezes. Ou não?

Quem não se lembra, por exemplo, do esforço homérico do personagem de Jim Carrey no ótimo Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004) para simplesmente deletar de sua memória a sua tão amada Clementine (Kate Winslet)? No filme delirante, surrealista e divertido de Michel Gondry tudo corre mais ou menos bem na cabeça do protagonista. Ao menos até chegar a hora de apagar as primeiras memórias. Que nesse caso são as últimas. Como a engenhoca opera de trás pra frente, ela começa na pior parte de uma relação em frangalhos. Para retroceder até o princípio idílico onde rolam os primeiros encontros, a paixão, os pontos em comum, o tesão. No caso da obra italiana de Valerio Mieli a vida real não envolve tecnologias avançadas de apagamento de memórias. E elas estarão lá. Boas, ruins, nos atormentando ou nos fazendo sorrir. Mexendo conosco, com o nosso íntimo. Expondo as nossas fragilidades, com a sua completa falta de lógica.

Aqui, acompanhamos duas pessoas de personalidades completamente opostas que se aproximam em uma festa ao ar livre daquelas tipicamente bucólicas (e inadvertidamente italianas). Lui (Luca Marinelli) é o sujeito introspectivo, que parece ter uma predileção pela melancolia, pelo niilismo e até por certo pessimismo. Já Lei (Linda Caridi) é a jovem cheia de vida, sempre com um sorriso magnético no rosto, daquele tipo de garota que, por onde passa, parece contaminar a todos com seu otimismo irresistível. Duas almas tão distintas podem se apaixonar? Podem se amar e ter planos? Bom, não é preciso ser nenhum especialista pra saber que essas coisas não se escolhem. Elas simplesmente acontecem. Ainda que o que vá determinar a solidez ou não de uma relação sejam outros aspectos. Uma paixão pode esvanecer com o passar dos anos. Empalidecer. Pessoas podem deixar de amar. Mas não de gostar. Mieli, em sua narrativa fracionada, fragmentada, trata de todas essas complexidades. De uma forma pouco convencional.

Intercalando uma série de flashbacks com cenas mais atuais, assistimos as várias etapas que compõem a vida de um casal - a relação com as famílias, os planos juntos, mudanças, risos e choros, perdas, dores, anseios, sonhos compartilhados. É um filme bonito e triste e que jamais idealiza o amor ou olha para o passado com uma esperança inevitável de salvação. Utilizando uma série de recortes, de pequenas peças, o diretor forma uma verdadeira colcha de retalhos ao mesmo tempo em que brinca com a fotografia (que pode ir de ensolarada a acinzentada em segundos), com os figurinos (que se modificam às vezes na mesma cena) e até com as memórias em si - que podem ter seu ângulo alterado, de acordo com quem está narrando a história. Pode ser uma experiência não muito fácil e pouco convencional, mas que funciona por possibilitar um olhar carinhoso para as marcas deixadas por aqueles que percorrem as nossas existências - e não é por acaso que a dupla central também parece guardar na memória fragmentos de outras relações (que, inclusive, lhes confundem). Intensa, insinuante, não muito lógica, essa é daquelas produções eventualmente filosóficas e levemente experimentais, que tentam tratar seu tema para além do óbvio. É um mérito, inegavelmente.

terça-feira, 27 de junho de 2023

Tesouros Cinéfilos - Sobre Meninos e Lobos (Mystic River)

De: Clint Eastwood. Com Sean Penn, Kevin Bacon, Tim Robbins, Marcia Gay Harden, Laura Linney e Laurence Fishburne. Drama / Suspense / Policial, EUA / Austrália, 2003, 139 minutos.

"Você já pensou em como uma pequena escolha pode mudar uma vida inteira? Ouvi dizer que a mãe de Hitler queria aborta-lo. No último minuto ela mudou de ideia. Entende o que quero dizer?" A pergunta feita por Jimmy Markum (Sean Penn) ao policial Sean Devine (Kevin Bacon), após uma das mais brutais sequências do clássico moderno Sobre Meninos e Lobos (Mystic River) é daquelas pra nos deixar no mínimo com uma pulguinha atrás da orelha. Quantas vezes já não pensamos em como certas atitudes nossas podem ter sido determinantes para que os fatos ocorressem desta ou daquela maneira? Quando Sean questiona a Jimmy o que, exatamente, ele está querendo afirmar, tem como resposta: "e se você ou eu tivéssemos entrado naquele carro em vez de Dave Boyle?" Essa, ao cabo, parece ser uma dúvida que acompanhará não apenas os protagonistas da obra dirigida por Clint Eastwood, mas também o espectador. As coisas poderiam ter sido diferentes?

A cena a que Jimmy se refere é vista ainda no começo do filme e se passa na juventude dos três meninos. O ano é 1975 e Jimmy, Sean e Dave estão jogando hóquei em uma rua isolada de um bairro de Boston. Após perderem a bola dentro de um bueiro, resolvem fazer uma galinhagem: escrever seus nomes com gravetos, em uma calçada recém concretada. É o instante em que surgem dois homens - supostamente policiais - que passam uma carraspana nos garotos. Pior do que isso: obrigam Dave a entrar no carro deles. Não demorará para que percebamos não se tratarem de agentes da lei e sim de sequestradores, que trancam o menino em um cafofo para cometer uma série de abusos sexuais. Após quatro dias Dave consegue fugir. Mas como levar uma vida de normalidade, depois de um trauma tão violento? A história salta no tempo, para 25 anos no futuro. Onde um novo evento, no caso um assassinato brutal de uma jovem de apenas 19 anos, fará com que suas vidas se cruzem novamente.


Resumir um filme como Sobre Meninos e Lobos em meia dúzia de palavras é complicado porque se trata de uma experiência muito completa, muito bem costurada. Muito rica do ponto de vista do suspense policial e do drama familiar - aqui, adaptado do livro de Dennis Lehane que, dizem, é ainda melhor (não li). Amadurecer em um contexto de violência é chegar na vida adulta com uma série de abalos emocionais que parecerão estar eternamente incrustados no inconsciente. Dave, por exemplo, tenta levar uma vida mais ou menos normal - é um operário casado com Celeste (Marcia Gay Harden) e tem um filho pequeno. Só que em certa madrugada chega em casa com as mãos ensanguentadas e ferido nas mãos e no peito. Desesperado, explica pra esposa que teria escapado de um assaltante, com quem entrou em luta corporal. Só que quando amanhece o dia há um novo problema: na mesma madrugada a filha de Jimmy, Katie (Emmy Rossum) é assassinada. Katie estava em um bar com as amigas na noite anterior. Dave estava no mesmo local. As coisas poderiam ser diferentes?

Sean entra em cena como um detetive do Estado que investigará o crime. E tentará montar o quebra-cabeças que envolve todos eles. Em meio a isso Jimmy está naturalmente furioso - e, como ex-presidiário com um pé na criminalidade, destaca alguns parceiros meio barra pesada para uma investigação paralela. Que os levará ao jovem Brendan (Tom Guiry), um candidato a namorado de Katie, com quem a jovem pretendia fugir dali. Parece tudo meio complexo e, de fato, são muitos os personagens. Mas a adaptação foi tão bem sucedida que não apenas receberia uma série de indicações ao Oscar de 2004, como ainda faturaria o prêmio nas categorias Ator (Penn), Ator Coadjuvante (Robbins) - e isso num ano em que a Academia só tinha olhos para Senhor dos Aneis: O Retorno do Rei (2003). Tenso, revoltante e surpreendente (o final é daqueles pra explodir o cérebro), a obra ainda nos lembra o tempo todo de que a sanha punitivista e o senso de justiça a qualquer preço podem gerar equívocos irreparáveis. Méritos de Clint Eastwood, em mais uma grande produção sob seu comando.


Curta Um Curta - Big Bang

De: Carlos Segundo. Com Giovanni Venturini e Aryadne Amancio. Drama, Brasil / França, 2022, 14 minutos.

Nesse simpático curta-metragem dirigido por Carlos Segundo (de Sideral, 2021) a Teoria do Big Bang - aquela que versa sobre a expansão do Universo a partir de um ponto muito quente e denso em algum tempo do passado - é a metáfora perfeita para a história de Chico (Giovanni Venturini), um anão que trabalha consertando fornos. Como não poderia deixar de ser, esse carismático protagonista sofre todos os tipos de preconceitos - não apenas pela sua diminuta altura, mas também por seu ofício (ele só parece ser um indivíduo quando está a serviço de alguém). Um evento meio inusitado - um engavetamento de veículos em que ele se torna o único sobrevivente - será o ponto de partida para uma mudança de perspectiva para Chico. Especialmente após ele conhecer a diarista Marta (Aryadne Amancio), nos corredores do hospital em que ambos aguardam atendimento. Será o instante daquela faísca, que inicia a expansão. Big Bang, que está disponível na Mubi, faturaria o prêmio de Melhor Curta de Autor no Festival de Locarno. Não foi por acaso.


segunda-feira, 26 de junho de 2023

Novidades em Streaming - Beau Tem Medo (Beau Is Afraid)

De: Ari Aster. Com Joaquin Phoenix, Parker Posey, Patty LuPone e Amy Ryan. Comédia / Drama, EUA / Canadá / Finlândia, 2022, 179 minutos.

Joaquin Phoenix interpretando um adulto infantilizado mergulhado em traumas edipianos, tentando superar uma série de tragédias familiares - entre elas as que envolvem a conturbada relação com a própria mãe. E, como se não bastasse tudo isso, uma experiência filmada por Ari Aster - de Midsommar: O Mal Não Espera a Noite (2019). Tem como dar errado? Bom, aí vai de cada fã de cinema. Afinal são três horas extravagantes, divertidas, excêntricas e ousadas. Com um tipo de narrativa menos convencional que o habitual - o que talvez exija uma paciência um pouco maior. Ao cabo, Beau Tem Medo (Beau Is Afraid) é aquele tipo de obra que costuma dividir opiniões. Quem gostar vai considerar essa uma excelente alegoria para as manifestações psicológicas e os consequentes transtornos mentais que decorrem de uma mãe castradora e narcisista. Já aqueles que não simpatizarem tenderão a achar apenas entediante ou presunçoso. Um meio termo? Talvez.

Na trama, Beau Wassermann (Phoenix) é o sujeito solitário, filho de uma ricaça, que reside em um bairro tomado pela criminalidade (o caos do entorno é tão sufocante que o simples ato de entrar em seu apartamento é um desafio). Em meio a visitas ao psiquiatra e uma rotina de poucas novidades, Beau programa uma viagem para visitar a mãe, como forma de "comemorar" o aniversário de morte do próprio pai. Só que depois de uma madrugada mal dormida em que Beau é confundido com o vizinho que está com o som alto no prédio, o protagonista perde não apenas o voo, mas também a sua bagagem e as chaves de casa, que são roubadas na cara dura. Quando Beau liga pra sua mãe pra explicar todo esse contexto, ela faz pouco caso. Mais do que isso, inicia um processo de chantagem emocional que apenas ampliará o sentimento de ansiedade de Beau. Com tudo piorando no dia seguinte quando, em nova ligação, Beau descobrir que sua genitora está morta. Em um trágico acidente doméstico envolvendo a queda de um lustre.


Nessa altura do campeonato a gente já não sabe mais o que é coisa da cabeça de Beau, o que é trauma, ou o que é o simples desejo de fuga dos conflitos familiares. Para Mona Wasserman (Patti LuPonne) seu filho parece ser sempre alguém em dívida com ela. Ela lhe deu a vida, o que talvez lhei deixe na obrigação de atender seus desejos de forma incondicional. Mesmo que esse "desejo" seja uma simples visita. A mala e as chaves perdidas por Beau, assim como a demora pra acordar e pegar o voo no dia da viagem podem ser apenas uma desculpa verdadeira de quem efetivamente não conseguiu cumprir o combinado. Mas será mesmo? Será que no inconsciente desse sujeito tão perturbado, seus traumas que envolvem quartos escuros e uma mãe que sequer lhe deixava namorar sob a desculpa de ele ter uma grave doença no coração -, não são apenas a manifestação mais concreta de quem simplesmente não quer ir ao encontro da própria mãe? Por quê, se ele vai simplesmente sofrer - ou ser cobrado - ele iria?

Sim, a narrativa é cheia de buracos pra gente preencher com as nossas percepções, com a nossa bagagem, com a nossa história. Relações complexas com a mãe? Que chame Freud quem nunca teve alguma dificuldade. No percurso de Beau ele passará por tudo quanto é dissabor - que vão de um atropelamento, passando por uma fuga desesperada até chegar a um encontro inusitado com um grupo de atores itinerantes no meio da floresta. Todos esses elementos parecem se converter em pequenas pecinhas do quebra-cabeças que nos ajudarão a compreender não apenas o que aconteceu de fato com o pai de Beau em sua juventude, mas também como se comportava verdadeiramente a sua mãe no período. O que fará com que a gente entenda, ao menos em partes, os motivos de Beau querer fugir o tempo todo de Mona. Ou ao menos fugir dessa visita. E depois se arrepender. E tentar ir ao seu encontro de qualquer maneira. E se sentir livre. E viver. Não é uma experiência fácil e a impressão que se tem é que cada um que assistir vai dar ao filme uma interpretação. Isso não é ruim - ainda que possa sugerir que as ideias estão apenas espalhadas. Mas é uma obra que tem seu ponto, soberbamente executada do ponto de vista técnico, e que nos deixa em suspense em boa parte do tempo. Mesmo que esse tempo dure três horas.

Nota: 8,0


quinta-feira, 22 de junho de 2023

Picanha em Série - Black Mirror (6ª Temporada)

Vamos combinar que talvez desde a terceira temporada a série Black Mirror já não nos comove tanto. Provavelmente a realidade anda tão dura, tão no limite do absurdo - em meio a guerras, pandemia e ascensão de grupos extremistas de direita -, que uma antologia que debate os limites do uso da tecnologia e na discussão de questões éticas, políticas e sociais da contemporaneidade, talvez não seja mais nenhuma novidade. Em meio a inovações como o Chat GPT, assistentes virtuais com recomendações personalizadas, deepfake, realidade aumentada e até mesmo stalkerwares (que permitem monitorar pessoas a distância), a impressão que temos nesta sexta temporada da série idealizada por Charlie Brooker foi a de que alguns episódios foram "menos Black Mirror que o padrão Black Mirror". É divertido de assistir? É. Dá pra passar sem ver? Talvez. Nós do Picanha assistimos aos cinco episódios e aqui damos o nosso veredicto.

Joan is Awful: esse aqui tem uma premissa sensacional que, infelizmente, na reta final soa meio apressado e até mesmo, vá lá, excessivamente debochado (ok, fazer graça pode ser uma boa, mas eu senti falta de uma imersão maior que nos conduzisse para além do rasinho em relação as consequências do que assistimos). Na trama Joan é uma CEO de uma empresa de tecnologia que é surpreendida quando percebe que os eventos de sua vida estão, literalmente, sendo recontados em uma série de uma plataforma de streaming (um certo Streamberry, que parece tanto a própria Netflix, que tem até o tradicional "tudum"). Ao contatar sua advogada, Joan descobre que essa bizarra experiência está acontecendo com ela, pelo simples fato de ela ter assinado os termos de uso da plataforma sem ter lido. Assim, uma espécie de computador quântico recria a sua história praticamente em tempo real, a partir dos dados fornecidos por ela nos seus dispositivos. É um episódio com o DNA Black Mirror, estrelado por Salma Hayek e Annie Murphy, que se estivesse na primeira temporada da antologia, talvez fosse ainda melhor. Nota: 8,0



Loch Henry: esse aqui tem um climinha de suspense adolescente genérico que não chega a empolgar tanto assim. É ok, só não inesquecível. Na história acompanhamos um casal de estudantes de Cinema, seus nomes são Davis e Pia, que, em visita a familiares em uma isolada cidade rural da Inglaterra tomam conhecimento da existência, no passado, de um certo Iain Adair - um notório serial killer que era famoso por torturar turistas. Como eles são acadêmicos da área, Pia sugere que seria legal fazer, quem sabe, um documentário, sobre esse episódio macabro. Em meio ao trabalho, a dupla descobre uma série de fitas VHS que contém segredos escabrosos que mudarão completamente o rumo da história que estão contando. Há uma surpresinha no final que subverte a ideia simples de suspense rural de horror com começo, meio e fim. Mas tudo fica meio que no quase. Nota: 6,5



Beyond the Sea: disparado o melhor episódio da temporada e, talvez se tivesse um pouco mais de metragem, poderia ser um filme isolado, descolado da antologia, talvez até com direito a elogios da crítica. Também é o mais Black Mirror de todos os episódios, ao misturar uma narrativa de viagens espaciais e réplicas robóticas de seres humanos na Terra. Na trama, os astronautas Cliff e David (Aaron Paul e Josh Hartnett) estão em uma missão espacial de seis anos, deixando nas suas casas cópias mecânicas de seus corpos, que lhes permite interagir, minimamente, com suas esposas e filhos. Só que a coisa desanda quando David fica preso na nave após a sua versão robô e a sua família serem assassinados por extremistas ligados a algum tipo de culto religioso. Incapaz de ver seu parceiro em estado catatônico dentro da nave, Cliff oferece a ele a oportunidade de ir a Terra utilizando o seu corpo - uma experiência que poderia ser terapêutica, já que David poderia "respirar" outros ares, pintar e... interagir com a esposa de Cliff. Claro que a coisa vai desandar e será impossível ficar alheio a um desfecho tão brutalmente impactante. Nota: 9,0



Mazey Day: o episódio mais curtinho da temporada mistura história de horror com tintas de realismo mágico, em meio a crítica ao universo sempre caótico de culto as celebridades e de clickbaits em páginas sensacionalistas. É uma trama meio convencional onde acompanhamos uma paparazzi que vê sua vida virar do avesso quando um famoso se suicida após ter fotos que revelavam um caso extraconjugal, vazadas. Disposta a abandonar a carreira, a fotógrafa Bo se vê atraída por um novo trabalho, que envolve a busca por um click que seja de uma certa Mazey Day, uma atriz que desapareceu após um atropelamento ocorrido na República Tcheca. Os limites éticos da profissão serão testados quando Bo decide ir até a clínica de reabilitação em que Mazey está internada. E será lá que ela será surpreendida por um acontecimento bizarro que alterará a vida de muitos. Nota: 6,5



Demon 79: sinceramente esse aqui eu penei pra concluir porque ôôô troço bem chato. Além de longo, o episódio não tem absolutamente nada de Black Mirror sendo apenas uma história de tintas políticas - essa parte é ok, gostei -, que envereda para o terror setentista. Na trama uma vendedora de loja que sofre com casos explícitos de racismo, encontra uma espécie de talismã do subsolo do departamento que trabalho. Após esfregar o amuleto, ele libera um demônio de nome Gaap, que surge vestido como Boney M. O sujeito diz a ela que será preciso assassinar três pessoas no intervalo de três dias para evitar que a Terra sofra uma espécie de apocalipse nuclear. A ideia é boa, mas por fim acaba sendo mal executada. Especialmente por apostar em um senso e humor meio excêntrico, que reduz o impacto dos temas que o episódio pretende discutir. Nota: 5,0




Média geral: 7,0

terça-feira, 20 de junho de 2023

Pitaquinho Musical - Janelle Monáe (The Age of Pleasure)

Talvez seja apenas a vida imitando a arte. Ou mesmo a Janelle Monáe "se guardando pra quando o carnaval chegar". E o carnaval, já diria Chico Buarque por aqui, há de chegar. Também nos Estados Unidos. No caso da artista americana, esse desejo de libertação de sistemas opressores que parecia estar no centro da narrativa de discos como o elogiado Dirty Computer (2018) - nosso quinto colocado na lista de melhores internacionais daquele ano -, aqui dá espaço para um senso de vitória. De exaltação. Sim, é hora de festejar. De deixar para trás a distopia capaz de evocar cenários de ficção científica, para mergulhar em uma temporada de amor, de paixão, de autodescoberta, de tesão (de muito tesão), de hedonismo. Sonhar com um mundo melhor em tempos de guerra, de pandemia e de extrema direita sempre rondando? Vem pra cá que Janelle não coloca o cropped e reage. Ela tira o cropped e arremessa ele pra longe. Se libera dele. Pra iniciar uma "era do prazer".


Sim, aquela parcela da mídia especializada essencialmente conservadora tem considerado pouco interessante esse The Age of Pleasure - o quarto trabalho da cantora - justamente por esse caráter menos cabeçudo (ou conceitual) do registro. Pra quem se acostumou a ver a artista vestida como se fosse uma deusa de um universo futurista que parece saída de alguma obra de Isaac Asimov, talvez estranhe essa desinibição toda. Essa ausência de roupa. Esse fogo, que parece fazer lembrar o tempo todo que o corpo também é político. E que com ele a mulher faz o que bem entender. "Estou me sentindo tão sexy" sussurra ela em Haute para, logo em seguida, na deliciosamente quente Water Slide, ela emendar um "se eu pudesse me comer agora mesmo eu faria isso". O disco em resumo é todo safado. O conceito aqui é a safadeza.  Com suas letras provocantes e seus ritmos que misturam dancehall, R&B, reggae e ritmos africanos. "Eu definitivamente tive uma oportunidade de evoluir, crescer e explorar as coisas que me dão prazer", resumiu em entrevistas de divulgação. 

Nota: 8,0


Novidades em Streaming - Till: A Busca por Justiça (Till)

De: Chinonye Chukwu. Com Danielle Deadwyler, Jalyn Hall, Haley Bennett e Sean Patrick Thomas. Drama, EUA, 2022, 131 minutos.

"Este é o cheiro do meu filho. Fedendo a ódio racial." (Mamie Till, educadora e ativista norte-americana)

Um dos crimes motivados por ódio racial mais brutalmente repugnantes da história dos Estados Unidos. Assim podemos chamar o assassinato à sangue frio de Emmett Till, um jovem de 14 anos nascido em Chicago, que foi linchado por homens (brancos, claro), que supostamente pretendiam vingar uma ofensa dirigida a uma certa Carolyn Bryant, moradora de Money, Mississipi. Os eventos que desencadeariam nesse ato atroz, bárbaro e invariavelmente estúpido são narrados no comovente Till: A Busca por Justiça (Till), obra dirigida por Chinonye Chukwu (de Clemência, 2019), que está disponível na plataforma Amazon Prime. Na trama retornamos ao ano de 1955, período em que os estados do Sul dos Estados Unidos ainda naturalizavam práticas segregacionistas que visavam a separar negros e brancos em ônibus, hospitais, escolas, parques e outros estabelecimentos públicos e privados. 

Sim, nos anos 50, há pouco mais de meio século, era considerado normal - e até legal -, manter brancos e negros separados em certos locais, com as leis antimiscigenação proibindo, inclusive, casamentos interraciais. Só que Emmett (Jalyn Hall) residia em Chicago, onde parecia haver uma abertura maior no que dizia respeito às questões raciais (a família havia se mudado do Mississipi durante a chamada Grande Migração, período em que centenas de milhares de norte-americanos se mudariam para os Estados do Norte, especialmente no começo do século passado). A própria mãe de Till, Mamie (Danielle Deadwyler) era a única empregada negra de uma refinaria da região, tendo se estabelecido no bairro afro-americano de Argo. O que para os padrões do preconceito do período quase possibilitava uma vida dentro de certa "normalidade". Só que Emmett queria passar férias de verão com seus primos em Money. E Mamie mal sabia que o abraço na estação de trem seria o último em seu filho.

 


Assistir a Till em um época de tanto ódio e de tanta intolerância - não há uma semana que seja que não somos impactados por alguma notícia que envolva crimes motivados por ódio racial -, torna tudo ainda mais revoltante. Durante a viagem ao Sul, Emmett é convidado a mudar de lugar ainda dentro do trem, o que já lhe gera certa estranheza. Os negros não ficam no mesmo vagão que os brancos, afinal. Só que mesmo assim ele não imaginava que uma simples cantada (um elogio seguido de um assobio, por assim dizer) dirigido a Carolyn (Haley Bennett) seria o estopim que resultaria em seu sequestro, seguido de linchamento e morte. O ódio pelo ódio, pura e simplesmente - que parece ser ampliado pela facilidade com que os americanos apontam armas uns para os outros (e isso que não estamos falando do Velho Oeste). Tudo se torna ainda mais asqueroso, mais nauseabundo, quando a dupla acusada do crime é simplesmente absolvida pelo júri (formado por aquele coletivo de homens brancos, velhos e conservadores). Crime que seria admitido pelos próprios assassinos mais tarde.

O sentimento de injustiça é tão revoltante, que Mamie resolve adotar uma medida drástica durante o velório do filho: mostrar o corpo do jovem  totalmente desfigurado, em caixão aberto. Uma atitude que não apenas confrontaria o patético sistema jurídico (e político) da época, como chamaria atenção de todo o País, com as manchetes circulando pelos principais jornais dos Estados Unidos. Em meio a questionamentos sobre o ativismo - que brotam do entorno - e a mentiras proferidas pela defesa durante o julgamento, Mamie encamparia essa luta até o limite do suportável, se convertendo em um verdadeiro símbolo da luta pelos direitos civis dos negros americanos (uma discussão que evoluiria por todos os anos 60). Ao cabo trata-se de uma obra histórica, conduzida com elegância (o desenho de produção e os figurinos são caprichados) e de grande relevância. Especialmente pelo fato de o debate sobre este tema, em pleno ano de 2023, seguir mais do que atual.

Nota: 8,5


segunda-feira, 19 de junho de 2023

Tesouros Cinéfilos - Um Plano Simples (A Simple Plan)

De: Sam Raimi. Com Bill Paxton, Billy Bob Thornton, Bridget Fonda e Brent Briscoe. Suspense / Drama, EUA / Alemanha / França / Reino Unido / Japão, 1998, 121 minutos.

"Mas a ambição do homem é tão grande que, para satisfazer uma vontade presente, não pensa no mal que daí a algum tempo pode resultar dela." (Maquiavel)

Se tem um subgênero do cinema hollywoodiano que considero fascinante é o do suspense policial que tem como cenário a área rural dos Estados Unidos. Aquele ambiente que se supõe habitado por "famílias de bem" - aquela classe média trabalhadora, de moral ilibada, que tem o seu cotidiano resumido a uma vida doméstica satisfatória (de casamento, filhos, encontros familiares) que se soma às idas dominicais à Igreja e às caçadas como forma de entretenimento. Esse País do interior, ao cabo, não se difere muito do nosso no que diz respeito ao conservadorismo e ao ideal de perpetuação de certas tradições. E talvez seja por isso que as obras que desvendam as vísceras, os meandros dessas comunidades mais fechadas, em alguns casos até retrógradas, são tão fascinantes. Afinal de contas até onde vai a retidão ética? A capacidade de fazer o certo? De não ser incorruptível?

No caso de Um Plano Simples (A Simple Plan), talvez o melhor filme do diretor Sam Raimi - que tem uma carreira meio irregular entre filmes de terror e produções baseadas em quadrinhos -, esse limite é testado quando Hank (Bill Paxton) e o seu irmão mais velho Jacob (Billy Bob Thornton, em atuação comovente) e mais o vizinho Lou (Brent Briscoe), encontram por acaso, numa região isolada do condado de Wright County, em Minnesota, um avião acidentado (escondido embaixo de uma grossa camada de neve). Até aí tudo bem, ao menos até o momento em que o trio resolve investigar o interior da aeronave e descobrem que o piloto não apenas está morto, como deixou uma enorme mala de dinheiro, contendo nada menos do que US$ 4,4 milhões de dólares. Tudo em notas de cem. A atitude mais correta seria a de avisar a polícia, claro - no filme representada pelo xerife Carl (Chelcie Ross). Bom, mas aí não haveria filme se tudo fosse tão simples né?



Voto vencido, Hank, um modesto contador de uma fábrica de rações que está esperando junto com a sua mulher Sarah (Bridget Fonda) - uma bibliotecária local - o primeiro filho, aceita que eles retenham a bolada, mas desde que o dinheiro fique em sua posse. O sujeito teme que nas mãos de Lou, um desempregado beberrão (e que adota fazer confusão) ou mesmo com Jacob, seu irmão que parece ter algum grau leve de deficiência (talvez esteja no espectro autista, nunca fica exatamente claro), possa dar alguma m**** que lhes incrimine. A ideia é aguardar o inverno passar para, ao final da estação, com a neve derretendo, esperar pela natural localização do avião. E, se ninguém falar uma linha que seja sobre o dinheiro, ficar com ele. É claro que a gente sabe que nem tudo será tão simples quanto parece e o roteiro é muito engenhoso em manter o interesse mesmo estando diante de um fiapo de história.

Hank, por exemplo, é convencido por Sarah a levar uma certa quantia de dinheiro de volta ao avião, pra não dar tão "na cara" assim em relação às autoridades locais. Só que tudo dá errado quando o homem convida Jacob pra ir junto - com eles sendo encontrados, por acaso, por um outro vizinho. O comportamento de Lou, desesperado por conseguir algum dinheiro em meio a ruína financeira e a um casamento em frangalhos também complicará tudo. E tudo piora quando Sarah descobre uma notícia no jornal que dá conta da história que envolve o sequestro de uma herdeira milionária (a origem do dinheiro, ao cabo). E tudo é absurdamente bem costurado, com a tensão sendo mantida com estratégias inteligentes, que vão desde a utilização de abutres que insistem em sobrevoar o local do acidente (há uma sequência bem no início que envolve o piloto do avião que é simplesmente notável) até chegar ao sentimento palpável de frio da alma e de desolamento proporcionado pela nevasca constante e pelos cenários desalentadores. É uma obra simples, mas extremamente bem executada e que ainda possui uma das mais devastadoras conclusões do cinema recente.


sexta-feira, 16 de junho de 2023

Tesouros Cinéfilos - Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes (Lock, Stock and Two Smoking Barrels)

De: Guy Ritchie. Com Nick Moran, Jason Statham, Dexter Fletcher, Vinnie Jones, Sying e Jason Flemyng. Ação / Comédia, Reino Unido, 1998, 106 minutos.

Ok, a gente pode até concordar que, hoje em dia, o estilo um tanto frenético, com boas doses de humor cínico e de violência estilizada do Guy Ritchie pode ter dado uma saturada - como comprovam os repetitivos (e até confusos) Revolver (2005) e RocknRolla: A Grande Roubada (2007). Mas vamos combinar que os trabalhos de começo de carreira seguem sendo os mais divertidos, com suas tramas rocambolescas, personagens aleatórios e coincidências sem limite. Primeiro filme da carreira do diretor, Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes (Lock, Stock and Two Smoking Barrels) é um desses exemplares, com sua coleção de criminosos desajustados que tentarão a todo o custo passar a perna uns nos outros. Com uma grande chance de, ao cabo, todo mundo se dar mal no final. Sim, Ritchie vai no limite do absurdo esticando a corda estendida por outros de sua estirpe como os Irmãos Coen e, claro, Quentin Tarantino. A gente vai rir. Ainda que o sangue jorre na nossa cara!

Na trama, um habilidoso jogador de cartas - seu nome é Eddy (Nick Moran) - convence seus três amigos Soap (Dexter Fletcher), Bacon (Jason Statham) e Tom (Jason Flemyng), todos habituados a uma existência de golpes no "baixo clero" da criminalidade, a tentar enganar o perigoso mafioso Harry Lonsdale (P. H. Moriarty) em um jogo de cartas. Eddy se considera um gênio da coisa toda, mas não percebe que quem tá sendo enganado é ele: resumo da ópera, após uma arriscada aposta no pôquer, ele e sua turma acabam com uma dívida de 500 mil libras. Que deverá ser paga em uma semana, sob pena de todos os pescoços em questão serem devidamente cortados - como comunica o ameaçador Big Chris (Vinnie Jones). E como se já não estivessem devidamente ferrados - pra não usar outra palavra -, Harry ainda ameaça tomar o bar do pai de Eddy.

Só que nesse ínterim, o destino parece sorrir para esse quarteto meio desmiolado quando, sem querer querendo, eles escutam uma conversa que ecoa do apartamento vizinho: um certo Dog (Frank Harper) planeja um assalto a um grupo de produtores de maconha da vizinhança que parecem ter uma carga gigante de dinheiro e de drogas - ainda que mantenham as aparências de uma existência paz e amor meio riponga (e a cena em que os traficantes debatem longamente sobre o uso das grades na porta de entrada da casa, dá uma noção de suas preocupações). A ideia de Eddy e companhia é a de roubar Dog - que é seu vizinho, lembremos - quando eles voltarem do golpe contra os maconheiros. O roubo do roubo servirá então para saldar a dívida com o temido Harry. O que lhes livrará a cara. Claro que a gente sabe que as coisas não serão tão simples e, obviamente, há uma chance de tudo sair do controle. Até mesmo porque há outros interessados na jogada - como é o caso de um outro chefão, o traficante barra pesada Rory Breaker (Vas Blackwood).

Sim, são muitos personagens e uma costura de roteiro que, por mais que siga uma lógica bem estabelecida, exige certo grau de atenção do espectador para que nenhum detalhe se perca. E tudo se encaixe. Porque se já não bastassem as maracutaias que envolvem o fio condutor, ainda há uma série de subtramas importantes na narrativa - como aquela que envolve a compra de duas armas valiosíssimas (itens de colecionador) e o "sequestro" de um guarda de trânsito que estava no lugar errado e na hora errada (isso só pra ficar em duas). Estiloso do ponto de vista técnico - com sua fotografia amarelecida,  cortes de câmera rápidos, ângulos oblíquos e figurinos setentistas -, o filme ainda conta com excelente trilha sonora, de nomes como James Brown, Dusty Springfield, Robbie Williams e Stooges. Premiado em diversos festivais, o filme passaria batido pelo Oscar daquele ano. Mas nada que impeça o culto sobre a obra, que é adorada por um sem fim de fãs.


Pitaquinho Musical - Jess Williamson (Time Ain't Accidental)

Jess Williamson estava assistindo ao filme Cenas de Um Casamento (1973) de Ingmar Bergman quando pausou o filme porque simplesmente não conseguia parar de chorar: "é uma representação de um relacionamento desmoronando e eu me identifiquei demais com a forma como a protagonista feminina se sente", explicou a artista. O remédio para apaziguar a dor foi migrar para a sala ao lado onde estava o seu teclado - o que faria com que a canção Two Seasons simplesmente brotasse de seus dedos (e de sua alma). Uma das músicas mais tristes de seu quinto trabalho, Time Ain't Accidental, talvez ela funcione como uma espécie de fio condutor da temática que rege o projeto durante suas onze canções - que no caso, é a separação. Jess foi casada durante nove anos. E agora parece utilizar a sua música como uma forma de tentar juntar os cacos, desobstruir a dor e, ao cabo, continuar.

Sim, numa comparação com outros discos, especialmente o elogiado Cosmic Wink (2018), a artista que mescla country, folk e indie - ela é do Texas, afinal - parece uma nota mais melancólica. A estrada anda mais empoeirada, o deserto mais seco. E o coração? Parece ter sido jogado "aos lobos" (como ela canta em Hunter). Claro, nem tudo são tristezas e a própria cantora e compositora brinca sobre os processos movediços que envolvem os altos e baixos da paixão. Em Chasing Spirits, por exemplo, ela pergunta debochada "minhas canções de amor são mentiras agora que o amor se foi?". Não, não foi para sempre, mesmo que ela tenha escrito Forever, que está no citado Cosmic Wink. As pessoas mudam, sofrem, vivem e sobrevivem, sonham, tem decepções e anseios. Talvez não seja mero acaso Jess Williamson ter lançado um de seus melhores álbuns justamente após um rompimento. Vai ver seja parte da cura. De superar essas curvas sinuosas e difíceis - que abrem espaço para a esperança. E que fazem com que a gente se identifique tanto.

Nota: 8,0


quarta-feira, 14 de junho de 2023

Picanha em Série - Yellowjackets (1ª e 2ª temporadas)

De: Ashley Lyle e Bart Nickerson. Com Melanie Lynskey, Christina Ricci, Juliette Lewis e Tayny Cypress. Drama / Suspense, EUA, 2023, 524 minutos.

Abordar o trauma sem apelar para soluções previsíveis e ainda construir uma narrativa de suspense vigorosa, daquelas que prende a atenção do espectador de forma orgânica, sem forçar a barra. Esses são alguns dos méritos de Yellowjackets, série da Paramount+ que concluiu a sua segunda temporada recentemente - e que, admito, fui conferir por causa do hype (e também pela oportunidade de ver Christina Ricci, Juliete Lewis e Melanie Lynskey juntas em ação). Na trama, criada pela dupla Ashley Lyle e Bart Nickerson, acompanhamos duas linhas temporais - sendo a primeira em 1996, onde um trágico acidente de avião faz com que um time de futebol feminino de Nova Jersey fique preso e isolado por dezenove meses em uma floresta do Canadá. O outro segmento ocorre 25 anos depois, onde acompanhamos a vida de algumas das sobreviventes - com os acontecimentos do passado ainda assombrando as mulheres, agora adultas (com famílias, filhos e... traumas, muitos traumas).

Incapazes de simplesmente esquecer tudo que ocorreu 25 anos atrás - e quais as formas encontradas para sobreviver (e quem já viu qualquer material de divulgação da série, sabe do que estou falando) - Shauna (Melanie Lynskey), Misty (Christina Ricci), Tai (Tawny Cypress) e Natalie (Juliette Lewis) tocam suas vidas na medida do possível até o momento em que recebem uma espécie de cartão postal com um símbolo sinistro do passado - o que fará com que elas acreditem estar sofrendo algum tipo de chantagem. Quem afinal teria interesse de revirar esses esqueletos há tanto tempo enterrados? Tai, por exemplo, é candidata ao Senado e teme pelo uso político do caso para prejudicá-la. Ao mesmo tempo, as coisas não parecem ir tão bem assim em casa, especialmente quando seu filho pequeno passa a se comportar de forma estranha (com direito a desenhos sinistros, agressões a colegas na escola e pinturas macabras na porta de casa).



Para as demais também não parece haver interesse em reviver os episódios de duas décadas e meia atrás. O casamento de Shauna com Jeff (Warren Cole) pode até estar meio caído, o mesmo valendo para a conturbada relação com a filha Callie (Sarah Desjardins), mas nada se compararia a uma possível investigação que pudesse levar aos eventos que levaram à morte de Jackie (Ella Purnell), a melhor amiga de Shauna, na época do acidente. Já Misty é a "doidinha de bairro" frequentadora do 4Chan e outros fóruns online (especialmente um de detetives amadores) que parece se deliciar em investigar a vida e os objetivos de seus algozes. Natalie, por sua vez, é aquilo que a gente sempre espera da Juliette Lewis: a drogadita que ela interpreta como ninguém. Entre idas e vindas no tempo descobriremos como rituais místicos e florestas que parecem assombradas e dispostas a se "comunicar" com o grupo, levarão às jovens a situações limite como a prática de canibalismo e de rituais satânicos como modus operandi de sobrevivência. Especialmente no doloroso inverno que enfrentarão. A floresta passará a escolher quem morre, lembrará uma delas após uma inesperada perseguição. Será isso mesmo? Ou os traumas somados a perda de qualquer noção de realidade farão com que elas se comportem dessa forma?

Ao cabo, a série nos deixa sempre na dúvida se o que estamos vendo tem algo, efetivamente, de sobrenatural, ou se tudo não passa de efeitos tardios das mentes perturbadas das garotas. Não são poucas às menções à medicamentos para ansiedade ou depressão e a necessidade de terapias alternativas como forma de controlar os pânicos gerais. Tudo sendo ampliado quando o grupo de mulheres descobre que Lottie (Simone Kessell), uma jovem esquizofrênica que se vendia como líder espiritual do grupo, na época do isolamento, hoje sobrevive como uma espécie de coach espiritual em uma comunidade hippie de bem-estar coletivo. Aliás, Lottie poderá ser a chave para desvendar outras questões - especialmente após o sequestro de Natalie (que pretendia dar cabo da própria vida). Sim, parece haver muita coisa acontecendo ao mesmo tempo - entre alucinações, fugas da realidade e incertezas em relação ao que vemos. Mas é tudo muito bem costurado, editado e fotografado (as premiações estão aí pra comprovar). Com a cereja do bolo sendo a excelente trilha sonora noventista - de Veruca Salt à Radiohead, passando por Elliot Smith e Tori Amos. De ficar grudado na poltrona. E que venha a terceira temporada!

Nota: 8,5


terça-feira, 13 de junho de 2023

Tesouros Cinéfilos - O Retorno (Vozvrashchenie)

De Andrei Zvyagintsev. Com Ivan Dobronravov, Vladimir Garin e Konstantin Lavrolenko. Drama / Suspense, Rússia, 2003, 105 minutos.

Quando assistimos a um filme como O Retorno (Vozvrashchenie), parece que somos permanentemente instigados a encontrar um algo a mais - que nos leve para além da simples história doméstica sobre um pai ausente que reaparece de forma inesperada para alegria (e desespero) de seus filhos. Alegoria para questões políticas da Rússia moderna? Metáfora religiosa que alude ao patriarcalismo e aos sacrifícios para a eventual sobrevivência da prole? Obra enigmática sobre o desafio do amadurecimento em um mundo violento e embrutecido? Não sei, talvez um pouco de tudo. Quem acompanha a carreira do diretor Andrei Zvyagintsev - que mais tarde seria aclamado por obras como Leviatã (2014) e Sem Amor (2017) - sabe que a mescla de temas políticos e sociais que parecem emergir de um microcosmo familiar, muitas vezes compõe a matéria-prima de suas histórias. E não foi diferente em seu elogiado filme de estreia que, não por acaso, faturaria o Leão de Ouro no Festival de Veneza.

Na trama somos apresentados a dois irmãos - o pequeno Ivan (Ivan Dobronravov) e seu irmão mais velho Andrei (Vladimir Garin). Ivan ainda é jovem o suficiente para ter um medo genuíno de altura que ele não esconde - como vemos na primeira cena em que ele sobe, ao lado de um grupo de garotos, em uma torre que lhe possibilitará pular em um riacho. Incapaz de saltar, ele é amparado pela mãe (Natalia Vdovina) que vem em seu socorro, antes que a noite chegue (com o frio já se tornando palpável). Já Andrei é aquele que já entrou na adolescência e não parece ter muito pudor em debochar do próprio irmão por sua suposta covardia. Em resumo: uma rotina que não difere muito da de outros garotos de idade próxima. Só que a coisa muda de figura quando, ao retornarem pra casa no dia seguinte, são alertados pela mãe para que façam silêncio. Seu pai (vivido por Konstantin Lavrolenko) está de volta, depois de mais de uma década sem dar as caras. E está dormindo.

Os meninos ficam num misto entre eufóricos e petrificados, curiosos mas desconfiados. Vão até o porão e encontram uma foto antiga do pai, em família. "É ele" garante o irmão mais velho. Mas será mesmo? Como forma de tentar uma aproximação, o pai resolve os levar para uma viagem de três dias sob a desculpa de uma pescaria. Uma maneira de se conectar? Mas é tudo muito estranho. E misterioso. Sensação ampliada pela fotografia permanentemente cinzenta, de tons que puxam para o azul escuro. E pela chuva insistente que cai. Aliás, a umidade é tão palpável que quase parece ser possível senti-la. Tudo parece dialogar com o comportamento do pai, que vai no limite entre o cuidado e a rispidez, o zombeteiro e o rígido nunca hesitando em tratá-los de modo rude. Por vezes até violento. Testando seus limites em meio a perturbadoras sequências de agressão - física e psicológica. Mas que mais adiante se converterão em inesperados "afagos" (ou algo perto disso).

Em linhas gerais não é um filme fácil, por mais simples que ele seja. Há um quê de primitivo naquilo tudo que vemos - de pescarias a embarcações, de chuvas e de praias, passando por ilhas isoladas e casas meio abandonadas. O espectador, de alguma maneira, parece tão perdido quanto os meninos. Doze anos ausente não seriam motivo suficiente para maiores demonstrações de carinho? De afeto? Mas quais os traumas que esse pai carrega em meio a essa Rússia contemporânea e politicamente complexa? Não parece haver explicações (nem caminhos) fáceis. Ao cabo é possível afirmar ainda que a obra é um excelente suspense - sombrio, austero, imprevisível - que é ancorado por excelentes e comoventes atuações de todo o elenco envolvido (aliás, o pequeno Dobronravov é um achado, com seu rosto anguloso, extremamente expressivo). E que ainda conta um desfecho surpreendente, que parece nos lembrar o tempo todo do quão doloroso pode ser o processo de amadurecimento.


Pitaquinho Musical - Christine and the Queens (Paranoïa, Angels, True Love)

Existe um problema meio inevitável nos discos "inchados" que é o fato de eles não terem como ser 100% bons o tempo todo. É um risco que certos artistas correm. E uma verdadeira ousadia em tempos de consumo rápido, de tik tok, de instantaneidade e de dispersão em meio a tanta oferta. Tudo isso não impediu o Christine and the Queens de lançar o seu mais ambicioso projeto. Dividido em três segmentos, Paranoïa, Angels, True Love - o quarto trabalho de estúdio de Héloïse Letissier - possui 20 músicas distribuídas em (quase) inacreditáveis 96 minutos. A empreitada pode parecer meio excessiva, mas quem se aventurar nela encontrará uma coleção de canções magnéticas, divinas, teatrais e operísticas que levam o pop experimental da artista a um limite que parece avançar para além dos sintetizadores transcendentais (e dançantes) testados anteriormente.


Aqui, parece haver um diálogo mais permanente com uma atmosfera mais etérea - algo como um encontro entre o trip hop, a new age e o jazz. É desafiador e nem sempre fácil. Enigmático e eventualmente ausente de refrão. Mas é completamente satisfatório em seus melhores momentos. Tears Can Be Soft, por exemplo, parece uma canção extraída de álbuns como Mezzanine (1998) do Massive Attack. Já A Day in the Water, com seu refrão pegajoso e letra contemplativa sobre a sensação de estar imerso sob a água nos momentos de dor (ele perdeu a mãe em 2019), vai na borda do acessível. E isso que estamos apenas no primeiro terço! Uma leve esranheza segue em cada curva dos dois seguintes atos - e mesmo a presença de Madonna em três canções e do rapper 070 Shake em outras duas, não reduz esse sentimento. Sofisticado mas caótico, artístico mas compreensível, esse é daquelas trabalhos que jamais imaginaríamos precisar em pleno 2023. E veio bem.

Nota: 8,5


segunda-feira, 12 de junho de 2023

Cine Baú - Levada da Breca (Bringing Up Baby)

De: Howard Hawks. Com Katharine Hepburn, Cary Grant, Adeline Ashbury, May Robson e Barry Fitzgerald. Comédia / Romance, EUA, 1938, 102 minutos.

Histriônica. Divertida. Caótica. Verborrágica. Talvez, em alguma medida, até meio a frente de seu tempo. Assim podemos considerar a saborosa comédia romântica Levada da Breca (Bringing Up Baby) de Howard Hawks. Afinal de contas, não são poucos os instantes que a gente para e pensa "uau, nem parece um filme dos anos 30". E principalmente por causa de Susan (Katharine Hepburn), uma protagonista determinada, forte e carismática - ainda que bastante atrapalhada -, que fará de tudo para conquistar o paleontólogo meio quadradão David (Cary Grant), um sujeito que está com casamento marcado mas que vê sua vida virar do avesso a partir do primeiro encontro com Susan. David trabalha em um museu de ciências naturais que está na expectativa de receber uma voluptuosa doação de US$ 1 milhão de um investidor interessado. E Susan? Bom, Susan, saberemos mais tarde, é uma das herdeiras da família ricaça que pretende fornecer o dinheiro para o museu.

Só que, a moda das comédias românticas dos anos 30 - o clássico Aconteceu Naquela Noite (1934), só pra ficar em um exemplo, vai na mesma levada -, tudo não passará de uma grande desculpa para um engenhoso roteiro onde figuras diametralmente opostas, se aproximarão em circunstâncias aleatórias. David conhece Susan justamente no dia em que vai jogar golfe com o advogado de seu futuro investidor. A ideia é dar uma paparicada no sujeito pra que a transação se desenrole sem muitos percalços. Só que Susan aparece. Primeiro batendo no carro de David. Depois praticamente o "sequestrando" de uma maneira que ele não consegue se livrar dela. E, a partir daí a anarquia toma conta! Ao cabo, Susan é o espírito livre que não parece se adequar a qualquer lógica. Em um dos primeiros segmentos da trama, Susan recebe de seu irmão um leopardo domesticado - e aqui dá pra ver de onde sai a ideia da inclusão desse tipo de animal em comédias como Se Beber Não Case (2009).



A presença inesperada do felino acaba sendo a deixa mais que perfeita para que Susan convide David, que ela acredita ser um zoólogo, até a sua propriedade em Connecticut. Detalhe: no dia casamento do sujeito. Claro que esse será o subterfúgio ideal pra manter o homem próximo a ela - aos poucos perceberemos que ela está apaixonada pelo rapaz. E aí para atrapalhá-lo na ideia de retornar pra cidade, ela fará e tudo um pouco: desde esconder as suas roupas durante o banho (a cena em que David usa uma camisola emprestada é hilária), passando por tombos e batidas de todos os tipos até chegar a uma inesperada prisão. E como se não bastasse todos os desencontros, David ainda perde no meio do caminho um osso de brontossauro - que seria uma peça fundamental na construção de um esqueleto no museu (ela havia sido enviada pelo correio após um trabalho exaustivo de cinco anos de escavação e é capturada por George, o irritante cachorro da protagonista).

Mal recebida pela crítica à época e totalmente esnobada no Oscar de 1939, a obra viveria um período de ostracismo até ser redescoberta nos anos 50. Anos depois, o crítico do New York Times Anthony Oliver Scott destacaria o "brilho e o vigor surpreendentes e que permaneceriam inalterados mais de sessenta e cinco anos depois". Já o historiador e crítico do cinema americano Leonard Maltin afirmaria que esta é "considerada a comédia maluca definitiva e um dos filmes mais rápidos e engraçados já feitos, com grandes atuações de todos". Todos esses predicados fariam com que a obra fosse mais tarde inclusa em diversas listas do American Film Institute (AFI), casos da relação de 100 Melhores Filmes Americanos de Todos os Tempos (na 97ª posição) e de uma honrosa 14ª colocação entre as comédias mais engraçadas da história. Livros como os 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer também incluem a produção que pavimentaria o caminho para que Hawks se tornasse um dos maiores diretores da história, como comprovariam o romance de aventura Uma Aventura na Martinica (1944), o faroeste Rio Vermelho (1948) e o musical Os Homens Preferem as Loiras (1953), entre outros. Pra quem procura uma comédia romântica menos óbvia no Dia dos Namorados, tá disponível na HBO Max.



quinta-feira, 8 de junho de 2023

Livro do Mês - Kafka à Beira-Mar (Haruki Murakami)

Editora Alfaguara. Tradução Leiko Gotoda. 2002, 578 páginas.

Depois de Norwegian Wood, Kafka à Beira-Mar foi a minha segunda experiência de leitura com Haruki Murakami. Resumidamente é um livro muito bom, que tem uma boa dinâmica - até por ocorrer em duas linhas temporais distintas, o que minimiza a exaustão - ainda que exija um pouco mais do leitor, especialmente por conta das suas voluptuosas 578 páginas. Digamos que talvez não seria a obra que eu recomendaria pra quem está querendo adentrar no universo do escritor japonês. A menos que você já esteja acostumado com os "calhamaços". Assim como Norwegian é um livro fluído, mas talvez mais adulto. Ainda que, aqui e ali, aposte no realismo mágico, na fantasia, no subconsciente e no universo onírico em sua composição. "Uma viagem fabulosa através da identidade, da mitologia, da filosofia e dos sonhos", como resumiria o Boston Globe em sua resenha.

A trama, como já dito, envolve dois enredos distintos inter-relacionados que, inevitavelmente se cruzarão. Em capítulos alternados, conhecemos a história do jovem Kafka, um adolescente de 15 anos que, para tentar fugir de uma maldição familiar edipiana foge de casa meio que sem rumo, com o objetivo de tentar encontrar a mãe e a irmã. Em sua jornada, encontrará abrigo em uma suntuosa biblioteca particular na tranquila cidade de Takamatsu - espaço que é dirigido pela enigmática bibliotecária senhorita Saeki (mulher elegante, de modos discretos). No local, Kafka fará amizade com a esperta Oshima enquanto desvendará, paulatinamente, segredos que envolvem seu passado. Na outra linha temporal acompanharemos a história de Satoru Nakata, um homem idoso que, após passar por um trauma na infância, adquire excêntricos poderes sobrenaturais.


Um desses poderes envolve a capacidade de conversar com gatos. Habilidade que foi adquirida após Nakata acordar de um coma que envolve um estranho incidente ocorrido em uma floresta na província de Yamanashi, onde várias crianças teriam desmaiado sem muita explicação. Após o episódio, o homem acordou sem nenhuma memória e sendo incapaz de ler e escrever. As limitações o levaram a um trabalho como auxiliar de marcenaria. E em meio período como localizador de gatos perdidos. Situação que lhe conduzirá, em certa altura da trama à residência de um certo Johnny Walker (sim, na história são muitos os trocadilhos com nomes conhecidos e figuras da cultura geral), famoso por assassinar gatos. Nakata acaba matando Walker, o que lhe fará pegar a estrada pela primeira vez na vida, fazendo uma inesperada amizade com um generoso caminhoneiro de nome Hoshino. O destino da dupla depois de tantas andanças? A mesma Takamatsu, onde Kafka está morando de forma improvisada.

A narrativa cheia de situações inusitadas envolve de chuva de sanguessugas, passando por floresta "encantada", até a capacidade de ver o passado a partir de um quadro na biblioteca. É uma trama engenhosa que mescla referências do mundo pop com tragédias gregas, numa odisseia que aborda temas diversos como, luto, memória, destino e até mesmo o poder das artes (especialmente da música na comunicação) - e não é por acaso que uma sonata de Beethoven é utilizada como metáfora redentora para a vida daqueles que acompanhamos. Metafísico, o livro também aborda a natureza e a nossa relação com ela, sendo comoventes as descrições de Kafka de sua existência solitária e elegíaca em uma espécie de chalé, que é emprestado por Oshima quando o jovem passa a ser suspeito de um assassinato. Drama, mistério, romance torto, tudo com certo senso de humor, a obra nos leva ao limite entre o material e o abstrato, entre o mundano e o filosófico. Parece ser um mergulho em muitos temas que envolvem a obra de Murakami. O que não é pouco.

terça-feira, 6 de junho de 2023

Pitaquinho Musical - Foo Fighters (But Here We Are)

Frida Kahlo já dizia que "a arte mais poderosa da vida é fazer da dor um talismã que cura" - e, bom, não dá pra negar que But Here We Are parece ter sido o veículo ideal para que Dave Grohl, o vocalista do Foo Fighters, tentasse exorcizar a tristeza não apenas pelo falecimento de seu companheiro de banda, o baterista Taylor Hawkins, mas também de sua mãe, Virginia. Foram quatro meses entre uma morte e outra e, pro bem ou pro mal, os episódios trágicos parecem ter contribuído para que viesse à tona o melhor Foo Fighters dos últimos tempos. Não, não há nenhuma revolução aqui. E muito provavelmente ninguém vai se tornar fã de Grohl e companhia por conta desse décimo primeiro trabalho. Mas, em alguma medida, essa também parece ser uma forma de afagar os fãs. De lembrá-los de que eles ainda estão ali. E de que talvez continuar possa ser o caminho pra que as perdas sejam superadas.



De forma discreta, a banda não concedeu muitas entrevistas sobre o disco ou deu detalhes sobre as letras e seus significados. Mas não é preciso ser nenhum expert pra perceber que temas como luto, memórias, saudade e outros se espalham por todos os cantos. Um bom exemplo desse expediente pode ser percebido em singles como Under You, que tem aquele quezinho de Foo Fighters das antigas, com direito a ponte que leva pro refrão ganchudo, que se soma a barulheira agridoce que não faria feio em meio a canções do álbum There Is Nothing Left to Lose. A letra autoexplicativa (Alguém me disse que nunca mais veria seu rosto / Parte de mim não consegue acreditar que é verdade) é daquelas capazes de unir plateias mundo afora, afinal de contas, quem nunca lidou com perdas? Talvez desde Wasting Light (2011) os Foos não lançassem um disco tão vigoroso, límpido, liricamente belo e até esperançoso - daquele tipo que todos os atos parecem fazer sentido, como atestam as ótimas Show Me How e Rescued.

Nota: 8,5


A Volta ao Mundo em 80 Filmes - A Lancheira (Índia)

De: Ritesh Batra. Com Irrfan Khan, Nimrat Kaur e Nawazzudin Siddiqui. Drama / Romance, Índia / França / EUA / Alemanha, 2013, 104 minutos.

Vamos combinar: a gente vive tempos tão individualistas que, por mais sonhadores e improváveis que filmes como A Lancheira (Dabba) sejam, eles ainda parecem renovar as nossas esperanças. Nem que seja em partes. O ato de almoçar, afinal, pode ser bastante solitário para o funcionário público Sajaan Fernandes (Irrfan Khan) que, em meio a papelada e as burocracias cotidianas, recebe a sua marmita deixada por um tradicional serviço de entregas de Mumbai (o Mumbai Dabbawallahs que, pelo que entendi não apenas existe de verdade, como é bem famoso). Em outro ponto da cidade, a dona de casa Ila (Nimrat Kaur) ocupa as manhãs no preparo do almoço do marido que, mais adiante, descobriremos que talvez a esteja traindo. O capricho dela na preparação do farnel tem a ver com isso: por meio do estômago, Ila pretende reconquistá-lo. A comida saborosa é o caminho, talvez. O aroma, o gosto, o visual, o amor. Tudo parece estar lá dentro naquela marmita metalizada envolta em uma sacola verde.

Só que um problema acontece quando a entrega vai para o destino errado - e a marmita enviada por Ila vai parar na mesa de Sajaan. Que a devora literalmente limpando o prato! Com trinta e cinco anos dedicados ao trabalho, Sajaan está para se aposentar. E comunica o serviço de entregas sobre não ser mais necessário o envio do almoço no próximo mês. Com gentileza, ele informa o atendente sobre a qualidade do preparo do dia. O preparo feito por Ila - não percamos de vista. No dia seguinte o equívoco se repete. Em meio aos esforços do protagonista em treinar o seu substituto - o expansivo e carismático Shaikh (Nawazzudin Siddiqui) -, a marmita é recebida. Só que dessa vez ela está levemente apimentada (a tia de Ila havia lhe dito algo sobre o ingrediente e sobre como deixar as coisas mais quentes em relação ao marido). Sajaan resolve enviar um bilhete para Ila. Sendo esse o instante em que eles iniciarão uma improvável amizade. Construída por meio de bilhetes subsequentes. Enviados por meio da marmita do dia.

Evidentemente, Ila perceberá que há um equívoco e que o alimento não está chegando ao marido. Só que, de um completo desconhecido, ela passará a receber o carinho que está, grosseiramente, em falta em casa. Ao passo que para Sajaan, as conversas com Ila darão cor (e sabor, claro) aos seus dias acinzentados em meio a arquivos, fichários e mesas abarrotadas. Pode parecer apenas inusitado, mas não deixa de ser simpático. Charmoso. A sensação de calor humano é ampliada pelo completo senso de solidão vivido mesmo quando se está em meio a multidão - com seus trens lotados, tráfego lento, arranha-céus intermináveis e outros elementos que formam uma paisagem sem vida, fria, apática, caótica. Na varanda de casa, Sajaan acende um cigarro atrás do outro enquanto observa o movimento da vizinhança. "Seria legal se você parasse de fumar", lembra Ila em uma das carinhosas cartas. Parecem migalhas que, para aquele homem tão traumatizado - um viúvo a caminho do ocaso de sua existência -, serão tudo.

Em alguma medida, é possível afirmar que esse romance epistolar dos tempos modernos funciona direitinho - ainda que, para o espectador, a ansiedade para um possível encontro só aumente a cada nova troca. Mas a obra do diretor Ritesh Batra (de Retrato do Amor, 2019) parece ter muito mais a ver com coincidências e com o compartilhamento de experiências do que necessariamente com o sonho de um grande amor. "Esquecemos as coisas que não temos a quem contar" comenta Sajaan a Ila em certa altura. Às vezes não precisamos muito para termos motivação para levantar da cama e prosseguir. Um afago, um carinho, o reconhecimento por algo, uma nova amizade ou um amor. Uma boa refeição com quem se gosta. Uma refeição enviada carinhosamente por quem se gosta. O filme não dará soluções óbvias ou fáceis como seria se essa fosse uma simples comédia romântica hollywoodiana. Melancólica e doce, sutil mas labiríntica, essa é daquelas experiências pequenas, mas que nos acompanham. Como se fosse um almoço gostoso demais. Tá no Mubi. É só saborear.


quinta-feira, 1 de junho de 2023

Pitaquinho Musical - Arlo Parks (My Soft Machine)

A maciez e a sofisticação dos arranjos. Um jeito de cantar sussurrante, que aconchega. As letras repletas de citações culturais e de histórias cotidianas - de amor, de amizades, de relações familiares - tornam Arlo Parks uma das artistas mais interessantes da atualidade. Não por acaso seu primeiro disco, Collapsed in Sunbeans foi o segundo colocado na nossa lista de melhores internacionais de 2021. E ainda que My Soft Machine, a aguardada sequência, não tenha o brilho do trabalho inaugural, não dá pra negar que se trata de uma nova coleção de canções acima da média. Apostando novamente na mistura de R&B, jazz, pop e eletrônica, a artista britânica utiliza sua poética simples e criativa como veículo para íntimas composições, que parecem se revelar aos poucos, sem pressa. O resultado é um trabalho cativante, que se alterna entre sintetizadores primaveris e guitarras eficientes.


Um bom exemplo dessa mescla pode ser percebida na saborosa Weightless, uma canção ao mesmo tempo açucarada e dolorosa sobre a experiência de amar alguém, mas receber de volta apenas migalhas de afeto (Você está tão fechado, eu estou esgotada / Mas eu brilho no caso raro / De você me dizer que eu sou seu raio de sol / Eu estou faminta por sua afeição). Ao cabo, é o tipo de música que nos faz abrir um sorriso, mesmo com o coração devastado - tudo isso pela beleza ecumênica dos versos, que se junta a uma melodia estranhamente dançante. Há outros instantes luminosos, como no caso de Pegasus, feita em parceria com a sempre ótima Phoebe Bridgers. Indo pro lado contrário, a música fala sobre a pureza e a raridade de um amor verdadeiro. "Aquele sentimento de solidez de encontrar um verdadeiro lar em outro ser humano", resumiria a britânica nas entrevistas de divulgação. É difícil ficar alheio.

Nota: 8,5


Grandes Cenas do Cinema - O Pagamento Final (Carlito's Way)

De: Brian De Palma. Com Al Pacino, Sean Penn, John Leguizamo, Penelope Ann Miller e Luiz Guzman. Drama / Policial, EUA, 1993, 144 minutos.

[ATENÇÃO: SPOILERS EM TODA A PARTE!]

Tão impactante quanto aleatória. Tão inesperada quanto simbólica. Assim pode ser resumida a última cena do clássico moderno O Pagamento Final (Carlito's Way), filme de Brian De Palma que completa trinta anos de lançamento em 2023 (e que pode ser alugado na plataforma da Amazon). Na famosa sequência, o personagem Carlito Brigante (Al Pacino) é surpreendido por Benny Blanco (o excelente John Leguizamo), que lhe faz a derradeira pergunta: "remember me, Benny Blanco from the Bronx?". Sem dar um segundo para que seu interlocutor pense, ele simplesmente saca a arma a dispara. Em pleno dia. Na estação de metrô. E tudo depois de uma tentativa desesperada de escapada do protagonista, que andava sendo vigiado de perto por mafiosos barra pesada, após seu advogado David Kleinfeld (Sean Penn) assassinar um chefão do tráfico de drogas local. Foi por um milésimo de segundo que a fuga de Carlito não foi consolidada. E talvez seja por isso que essa conclusão - por mais moralista que seja - me pareça tão perfeita. É um arco narrativo que se fecha de forma soberba.

Ao cabo, o que De Palma parece estar querendo dizer para seu público é que, no fim das contas, como diz o velho chavão, "o crime não compensa". E Carlito parece saber disso. O ano é 1975. E após uma manobra arrojada de Kleinfeld, Carlito é liberado da prisão depois de cumprir cinco anos por tráfico de heroína (sua pena original era de 30 anos). Quando é solto, o sujeito está decidido: não quer se envolver com nada que envolva ilegalidades. Quer arrumar um trabalho, quitar suas dívidas e talvez ir morar em algum lugar idílico, tipo as Bahamas (ele tem uma proposta para uma sociedade em um negócio de aluguel de veículos). Só que quando alguém tão relevante no mundo do crime sai da prisão - e a importância de Carlito em seu meio fica óbvia já nos primeiros segundos de filme - é quase impossível impedir que o rastro de violência, de vingança, de morte e de sangue lhe acompanhe. Não são necessárias muitas horas para que Carlito presencie o assassinato de um primo. Tendo que voltar a matar para salvar a própria pele.

Ok, Carlito até tenta mudar de ares. A morte do primo faz com que o protagonista "herde" um valor financeiro da negociação mal sucedida, o que lhe permite entrar como sócio em uma boate. A ideia segue sendo levantar a grana para fugir dali. Daquele contexto inundado de violência. Só que o problema é que a casa noturna é mantida por Saso (Jorge Porcel), um bonachão que é viciado em jogos de azar. E pra piorar a situação, o espaço ainda é frequentado por candidatos a ocupar a vaga de chefão do crime, deixada por Carlito. É o caso do próprio Benny Blanco que, por mais que se comporte como um trombadinha metido, é mais impetuoso do que aparenta. A ponto de Benny desafiar Carlito permanentemente. Com tudo piorando quando Kleinfeld passa a se relacionar com Steffie (Ingrid Rogers), uma garçonete do clube que funciona como interesse amoroso de Benny. Lá pelo meio do filme, um rebu faz com que Carlito expulse Benny da boate. Um episódio humilhante para o novato. Em outros tempos talvez Carlito não o deixasse sair com vida dali. Mas ele deixa. E, bom, quem se lembraria de Benny até os instantes finais?

Parte da diversão dessa trama rocambolesca sobre mafiosos querendo fazer justiça pelas próprias mãos envolve o fato de Carlito jamais se preocupar com Benny. Ele na realidade está ocupado tentando fugir de todas as formas dos capangas de Anthony Taglialucci (Frank Minucci), o chefão do tráfico que é morto por Kleinsfeld. É gente da pesada e Carlito sabe que a retaliação é inevitável. E é por isso que ele pega parte de sua grana pra tentar fugir junto com Gail (Penelope Ann Miller), uma antiga namorada que, atualmente, trabalha como stripper em uma boate. E tudo parecia que ia dar certo pra Carlito. A polícia havia interpelado os homens de Taglialucci em meio ao metrô. O caminho estava livre. Até aparecer Benny. O Benny Blanco. From the Bronx. Que enfia a bala no protagonista. Uma forma de reparar o vexame passado semanas atrás na boate de Carlito. Pelo próprio Carlito. Que lhe expulsou. Lhe agrediu. Ninguém lembrava mais de Benny naquela altura. Já fazia uma hora que ele não dava as caras na história. Mas nesse ambiente masculinista e trágico não há vencedores. Carlito perceberá tardiamente que foi traído. Que foi tudo inútil, afinal. Num dos desfechos mais desconcertantes e devastadores do cinema dos anos 90.