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segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Novidades em Streaming - Sol de Inverno (Boku no Ohisama)

De: Hiroshi Okuyama. Com Keitatsu Koshiyama, Sosuke Ikematsu e Kiara Nakanishi. Drama, Japão / França, 2024, 90 minutos.

Existe uma cena bastante singela ainda no início de Sol de Inverno (Boku no Ohisama) e que, em alguma medida, resume o encantamento daquilo que acompanharemos na obra do diretor Hiroshi Okuyama. Nela, o pequeno Takuya (Keitatsu Koshiyama) fica hipnotizado enquanto assiste a um grupo de meninas praticando patinação no gelo. A estação mais gelada do ano chegou, e o jovem troca o beisebol dos dias primaveris, pelo hóquei congelante, em que ele não parece se adaptar muito bem. Como goleiro - que é o que sobra pra quem não tem muita habilidade em qualquer esporte coletivo -, ele acaba levando uma dolorida "bolada" (ou discada, vá lá), que lhe dá um vergão junto às costelas. A real é que ele abomina com todas as forças o hóquei sobre o gelo. E o interesse pelas patinadoras não envolve necessariamente as meninas em si e, sim, a delicadeza do esporte que ele observa. Com seus gestos majestoso e elegância única.

Sim, como se fosse o menino apaixonado por balé clássico de Billy Elliot (2000), aqui temos um garoto que sonha em ser patinador artístico. Algo que ele nem entende direito por quê gosta. "Um esporte de garotas", debocha uma das meninas quando percebe Takuya - que, de quebra, sofre uma gagueira que lhe rende o apelido de Tata - ensaiando os primeiros (e um tanto desajeitados) passos. Só que no canto do rinque, o protagonista também é espionado pelo professor Arakawa (Sosuke Ikematsu), que fica comovido com as tentativas do menino, com suas repetidas quedas e jeito meio desengonçado. "Os patins de hóquei não servem para isso", explica o instrutor à Takuya, enquanto lhe estende um par ideal para a prática. "Considere isso um empréstimo", afirma. O que dá início a uma parceria e também a uma amizade entre treinador e aluno.

 


Claro que, diferentemente do que ocorre em filmes hollywoodianos, aqui não teremos um exame do preconceito e da homofobia tão acentuados, tão escancarados. As coisas ocorrem meio que pelas frestas, evoluindo com sutileza, assim como se espalham de forma econômica, mas vigorosa, os raios de luz que entram no complexo esportivo em que boa parte da ação ocorre. Como filme oriental, muito do que se diz é o não dito. Os silêncios são longos, assim como as sequências cheias de carisma em que a dupla celebra qualquer evolução. Tudo sempre meio na encolha pra não chamar a atenção. Incluído entre as garotas, Takuya passa a fazer dupla com a patinadora Sakura (Kiara Nakanishi), uma atleta bastante técnica, que será justamente o ponto de desequilíbrio. Ela parece nutrir uma certa paixão pelo professor, que mostra uma afetuosa (no melhor sentido) atenção ao seu novo pupilo. Além do fato de o instrutor ser gay - ele tem um namorado que reside com ele. 

Em alguma medida, esse é um filme nunca exagerado. Como se emulasse a passagem das estações, aqui o que vale é o exercício de paciência. As sequências em que a família é envolvida surgem envoltas em uma aura enigmática, quase incerta. Há uma beleza onírica que se percebe já na primeira sequência do longa, quando um Takuya paralisado, percebe a queda dos primeiros flocos de neve que evidenciam a chegada da nova estação. O inverno ali naquela ilha japonesa será invariavelmente gelado, mas o sol será uma figura onipresente, mostrando que há calor em cada fragmento - o que é reforçado pela fotografia levemente granulada, de tons amarelados. Há uma maravilhosa sequência de treino em um lago congelado - cenário que retornará mais adiante -, com um outro sentido. Não há nada definitivo aqui. Apenas um exame sobre liberdade de fazer o que se ama. E de como isso pode ser fundamental na nossa formação como sujeitos.

Nota: 8,0 

 

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Novidades em Streaming - Memórias de Um Caracol (Memoirs of a Snail)

De: Adam Elliot. Com Sarah Snook, Jacki Weaver, Kodi Smit-Mcphee e Eric Bana. Animação / Drama, Austrália, 2024, 95 minutos.

Vamos combinar que em tempos de inteligência artificial e de consumo rápido, um filme em stop motion como Memórias de Um Caracol (Memoirs of a Snail) - um dos indicados ao Oscar na categoria Animação na edição desse ano - se torna ainda mais relevante. E bastam os primeiros minutos da obra dirigida por Adam Elliot - do igualmente ótimo Mary e Max: Uma Amizade Diferente (2009) - para que sejamos impactados pelo visual (e isso que um amontoado de entulho, em muitos casos, não parece ter assim tanta "beleza"). Mas esse é um projeto que se deleita em sua complexidade do ponto de vista técnico, ao mesmo tempo em que entrega uma narrativa simples e trágica sobre dois irmãos gêmeos que perdem a mãe durante o parto e, mais adiante, veem o próprio, que sofre de um quadro severo de apneia do sono, também padecer.

Sim, apesar de essa ser uma animação, é importante que se diga que não há nada de infantil aqui. Aliás, a própria classificação indicativa do projeto - voltado à maiores de 17 anos ou menores acompanhados dos pais -, deixa claro o fato de esta ser uma produção para adultos. Com temas complexos como luto e solidão e até fanatismo religioso, problemas de saúde e fetiches sexuais, surgindo aqui e ali como parte da narrativa. Na trama, a protagonista Grace (Charlotte Belsey na versão criança e Sarah Snook, na adulta) é quem conta a história - que tem como ponto de partida a trágica morte de Pinky (Jacki Weaver), uma ex dançarina de bordel e leitora compulsiva, que se torna uma espécie de amiga involuntária da jovem. Em seu leito de morte, Pinky grita um inesperado "potatoes" - como se fosse algum tipo de Rosebud dos novos tempos -, deixando uma pulga na orelha sobre o significado daquilo. O que é só uma desculpinha pra uma volta no tempo para que toda a história seja rememorada.

 


De forma divertida, Grace solta no jardim um de seus caracois - seu nome é Sylvia - e mais adiante entenderemos como ela se tornaria uma colecionadora desse tipo de molusco. Na volta no tempo, a protagonista narra como sofria bullying em sua juventude por conta de uma cicatriz acima de sua boca, resultado de uma operação de lábio leporino, e de como o seu irmão Gilbert (Mason Litsos na infância e Kodi Smit-Mcphee na fase adulta), a defendia de seus colegas provocadores. Aliás, a defendia a ponto de se oferecer para uma transfusão de sangue comovente durante sua cirurgia - o que lhe levaria a crer que morreria. São pequenos instantes que emocionam e que ajudam a construir a história, inspirada em eventos reais da própria juventude de Elliot, cheia de adversidades, que ajudariam na formação e no amadurecimento de Grace.

Em sua trajetória, Grace descreve desde o auxílio e um sem teto de quem se torna amiga - um magistrado de nome James (Eric Bana), que é destituído do cargo por se masturbar em público -, e de como viria a ser adotada por um excêntrico casal de swingers (sim, de troca de casais). Já Gilbert, um piromaníaco de carteirinha, acaba enviado à casa de uma família de fanáticos religiosos, que utiliza a sua intolerância para oprimir. O que gera uma série de instantes tragicômicos. A chegada de Pinky à vida de Grace também é descrita com riqueza de detalhes - sendo ela uma senhora de hábitos curiosos, que teve uma série de empregos, perdeu dois maridos, teve o dedo mindinho decepado e frequenta praias de nudismo. Já o candidato a namorado da protagonista, se insere na trama como um jovem provavelmente fetichista, que se aproveita dela pelo seu fascínio por "gordinhas". Esquisito, mas esperançoso, soturno mas cheio de humanidade, esse é um filme que une técnica e roteiro de forma inequivocamente honesta. O que faz valer cada segundo.

Nota: 8,5

 

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Novidades em Streaming - Hot Milk

De: Rebecca Lenkiewicz. Com Emma Mackey, Fiona Shaw, Vicky Krieps e Vincent Pérez. Drama, Reino Unidos, 2025, 93 minutos.

Mesmo quem não está assim tão familiarizado às alegorias cinematográficas será capaz de compreender o significado de um cachorro que, no contexto de um filme simplesmente late de forma contínua. Um barulho que ecoa ao fundo e que parece evidenciar o fato de haver algum incômodo ali. O cão do vizinho parece estar irremediavelmente preso. De forma desconfortável. Uma metáfora mais do que perfeita para a condição vivida pela jovem Sofia (Emma Mackey), no pastoso Hot Milk: "acorrentada" à própria mãe, Rose (a sempre ótima Fiona Shaw), que padece em uma cadeira de rodas, com dores excruciantes. Dores que, aliás, lhe perseguem desde a juventude, quando se separou do marido após uma série de experiências traumáticas. O que lhe impediu de andar com as próprias pernas. Um tipo de simbolismo que, em alguma medida, percorre toda a narrativa, que é inspirada em um livro de Deborah Levy.

Exibido no Festival de Berlim, esse é aquele tipo de obra que convida o espectador a tentar unir os pontos daquilo que parece ser uma jovem umbilicalmente conectada à sua mãe controladora, dependente (física e emocionalmente) e narcisista. Por ser cadeirante, Rose é incapaz de fazer qualquer coisa por conta própria. O próprio ato de servir um copo de água pode ser complicado - com tudo piorando a partir de implicâncias tolas a respeito da qualidade da bebida (que vem embutido de um alto grau de exigência do tipo de tratamento que a genitora, essa idosa tão sofrida, acredita merecer da filha). De férias na litorânea Almería, a dupla está programada para uma série de consultas com uma espécie de curandeiro local chamado de Gomez (Vincent Pérez), que toma algumas medidas drásticas, como a interrupção de certos tratamentos com medicamentos supostamente ineficazes e uma investigação mais atenta a respeito de fatos (traumáticos) da vida de Rose, que poderiam ter desencadeado as dores crônicas.

 


Só que esse ambiente praiano tão sensualmente caloroso e tão magneticamente quente também transformará Sofia que, mesmo com vinte e poucos anos, parece meio travada no que diz respeito aos relacionamentos. Há algo pronto a desabrochar - e o simples toque de um enfermeiro em certa altura, após a jovem ser queimada por uma água viva, parece exalar uma energia sexual vibrante (o que é reforçado pela sensualíssima desatenção quanto a um seio que pula para fora do biquíni de forma inesperada). E, como se já não bastasse esse clima meio febril e letárgico da orla marítima inebriante, a coisa ainda escala após Rose conhecer a enigmática Ingrid (Vicky Krieps), uma alemã que, com sua personalidade desapegada em todos os sentidos, surge como o espírito livre que fornece o ideal de uma vida oposta à da protagonista. Sem amarras e extrovertida, ainda que traumatizada em alguma medida.

Para aqueles que buscam um sentido maior naquilo que assistem, essa pode ser uma experiência eventualmente hermética e não muito fechada em uma caixinha. Sofia, por exemplo, é uma antropóloga em formação que nunca chegou a concluir os seus estudos, ao passo que a mãe é uma bibliotecária precocemente aposentada. Em meio a essa síndrome de coitadismo que avança para uma vida de frustrações e de dores nunca superadas, a idosa converte a existência da filha em um inferno para quem apenas existe para ser sua cuidadora. Envolta pela névoa litorânea cintilante e plácida, a jovem vai aos poucos quebrando essas correntes que a atam à mãe. O que envolve pequenas subversões - como soprar a fumaça do cigarro nas roupas que estão no varal ou mesmo quebrar um prato violentamente quando Sofia é impedida (em termos) de encontrar o próprio pai, que lhe abandonou aos 15 anos. O final ambíguo pode ser pouco revelador. Ainda que nos lembre que, em alguns casos, só atitudes extremas podem fazer com que ciclos se quebrem.

Nota: 7,0 

 

terça-feira, 19 de agosto de 2025

Novidades em Streaming - Entre Nós, o Amor (Une Vie Rêvée)

De: Morgan Simon. Com Valeria Bruni Tedeschi, Félix Lefebvre e Lubna Azabal. Comédia / Romance / Drama, Bélgica / França, 2024, 97 minutos.

Uma simpática comédia dramática sobre as complexidades da relação mãe e filho e que parece nos lembrar o tempo todo da importância de viver a própria vida - e não a dos outros. E, de como isso pode ser decisivo para um ambiente doméstico mais pacífico. Sim, parece papinho meio de coach, mas o caso é que no carismático Entre Nós, o Amor (Une Vie Rêvée), que acaba de estrear na Reserva Imovision, a vida da protagonista Nicole (Valeria Bruni Tedeschi) só dá um giro de 180 graus depois que seu filho sai de casa, após uma briga feia. Aliás, por briga feia, leia-se uma discussão forte em que verdades duras vêm à tona e ressentimentos emergem em uma velocidade galopante. "Tenho vergonha de você quando estou com meus amigos. Queria que você não existisse, você é um ser velho e grotesco morrendo um pouco a cada dia", verbaliza o jovem Sérgio (Felix Lefebvre), contra a sua genitora, do alto de seus 19 anos.

E, não sejamos hipócritas, né galera, todo mundo que já brigou feio com os próprios pais sabe que a quantidade de palavras agressivas por metro quadrado costuma verter sem muito espaço pra reflexão, pra racionalidade. É horrível, mas meio que parte da vida, como lembra a afável Norah (Lubna Azabal), dona de um boteco da vizinhança frequentado por imigrantes que passam os dias fumando narguilé e observando o movimento. É Norah que se aproxima de Nicole quando esta parece estar na pior para lhe oferecer um café, um cigarro, um abraço, um beijo, um... algo a mais. "Na idade deles você também não estava de saco cheio dos seus pais?", questiona amistosamente à protagonista. Que chora, mas também passa a olhar para o outro lado diante da atenção quase desmedida da afetuosa Norah. Em meio as divagações, Nicole afirma não ter nada a oferecer. Ao que recebe como resposta um "a felicidade não é questão de dinheiro".

 


Sim, pode parecer utópico ignorar a parte financeira em favor do amor, mas parte dos motivos da grande briga entre Nicole e Sérgio é que ela tá completamente ferrada do ponto de vista de grana. Desempregada e endividada, ela tem se empenhado em conseguir um novo trabalho - recebendo negativas excêntricas de entrevistadores, como no instante em que seu currículo é negado por ela simplesmente morar longe do local ("isso pode fazer com que você se atrase"). Após ter sua conta no banco encerrada justamente por causa das dívidas, ela resolve tomar uma decisão drástica para não deixar seu filho na pior: oferecer o seu corpo para a ciência, após a sua morte. O que impediria Sérgio de não apenas herdar o problema financeiro da mãe, mas também evitar uma despesa de cinco mil euros que seriam necessários para o enterro. Um gesto de amor que é mal interpretado pelo rapaz. Que se revolta. E sai de casa.

Tudo soa bastante simples e é. Não é que não haja uma reflexão um pouco maior sobre questões políticas da França - há sequências de Macron na TV verbalizando as conquistas econômicas de seu País, enquanto alguns setores ainda sofrem pela falta do básico. A xenofobia que parece rondar os cantos também surge, aqui e ali, salpicada em instantes meio aleatórios, mas que servem como parte do conjunto, afinal de contas os problemas domésticos nunca surgem desconectados de dificuldades sociais mais amplas. "Essa não é a sua casa pra você me tratar assim", argumenta Nicole a um senegalês que a confronta no boteco, após uma cena mais quente entre ela e Norah. É o suficiente para que o mal entendido quase escale para uma crise geral envolvendo os refugiados. Só que nesse caso bastante específico o que comove mesmo é a relação doméstica de mãe e filho. "Só quero saber se você está bem e se vem jantar", pergunta uma sofrida e chorosa mãe após a horrível discussão. É família sendo família. É carinho seguido de pancada. É celebração que se alterna com a dor. É real e intenso. O que faz valer. 

Nota: 7,5

 

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

Novidades em Streaming - April (Ap'rili)

De: Dea Kulumbegashvili. Com Ia Sukhitashvili, Kakha Kintsurashvili e Merab Ninidze. Drama, Geórgia / Itália / França, 2025, 134 minutos

 "Sei que você faz abortos nas vilas. Você é uma assassina." A frase dita à médica obstetra Nina (Ia Sukhitashvili), por um pai enlutado, ainda no início de April (Ap'rili), o elogiado filme de Dea Kulumbegashvili que acaba de estrear na Mubi, serve não apenas para solucionar imediatamente aquilo que poderia ser um provável mistério da narrativa, mas também para evidenciar os preconceitos que envolvem a prática. Ainda mais em países em que a justiça reprodutiva e tudo que envolve os direitos das mulheres nesse campo, são tratados não como casos flagrantes de saúde pública e, sim, com decisões tomadas por rígidos códigos religiosos, que transbordam para dilemas morais profundos, talvez onde nem devesse existir dilema. Nina é uma excelente médica, respeitada por seus pares e que já realizou milhares de nascimentos no hospital em que trabalha. Mas, em certo dia, as coisas dão errado e um bebê nasce sem vida.

Para as pessoas do entorno, pouco importa que a gravidez não tenha sido informada ao hospital, num flagrante caso de negligência. Sem acompanhamento médico e com uma mãe desejando um parto normal, as coisas se complicam. "Aquela mulher sentiu um alívio ao ver que a criança tinha morrido. Ela estava tranquila, pacífica", argumenta Nina ao diretor do hospital, David (Kakha Kintsurashvili). Só que, pelo visto, nada disso importa muito quando, paralelamente, a protagonista cruza estradas de chão precarizadas para, aqui e ali, auxiliar jovens de pequenos vilarejos, muitas delas provavelmente vítimas de violência, sem desejar uma gravidez, a retirarem os fetos ainda em formação dos seus ventres. Aliás, o que é exibido em sequências bastante gráficas, que geram desconforto não pelo ato em si, mas pelas condições precárias em que ocorrem. Em mesas improvisadas, com toalhas plásticas e instrumentos nem sempre tão adequados.

 


Como um filme não hollywoodiano, esse vencedor do Prêmio do Júri no Festival de Veneza não segue a lógica mais esperada em produções a respeito desse tema. Aqui não haverá sequências de tribunal ou com cidadãos "de bem" rabiscando o carro da protagonista com palavras de ódio ou intolerância ou outros tipos de eventos que seguem uma cartilha. Pelo contrário, para a diretora Dea Kulumbegashvili esta parece ser uma obra muito mais sobre sensações evocadas vindas de um plano quase abstrato, eventualmente onírico, do que de situações concretas que poderiam delimitar a narrativa. Não por acaso, a produção já abre com a cena de uma figura grotesca - uma espécie de monstro -, que se movimenta lentamente em um plano escuro, enquanto ao fundo ouvimos gritos e risadas que parecem ser de crianças pequenas. Um tipo de alegoria que retornará em diversos momentos, especialmente aqueles em que Nina parece confrontar a si própria (bem como suas decisões).

Sim, Nina tem uma vida solitária que envolve fugir das investidas do próprio David - que tem interesse nela (o que pode influenciar as tomadas de decisão futuras sobre sua continuidade no hospital) - e ter encontros fortuitos com homens desconhecidos de beira de estrada para satisfação sexual, com ela mesma não escapando da violência que emerge desses indivíduos. Ao cabo essa é uma obra complexa, que não reduz as figuras que encontramos à meras caricaturas, já que Nina parece trafegar entre a nobreza e a inconsequência dos seus atos, com os traumas da juventude - como no instante em que ela conta como a irmã quase perdeu a vida diante dela, que, paralisada, ficou sem ação -, retornando para lembrá-la que, sim, há uma certa monstruosidade que habita seu ser. Alternando longos planos sequência de chuvas torrenciais, estradas embarradas e dias cinzas, com os campos floridos da chegada da primavera, Dea constroi uma experiência selvagem e rústica, mas também meditativa e de fluidez lenta. É meio magnético justamente por fugir do óbvio. O que em tempos de massificação e de mais do mesmo, também tem valor.

Nota: 8,5 

 

terça-feira, 12 de agosto de 2025

Novidades em Streaming - Síndrome da Apatia (Quiet Life)

De: Alexandros Avranas. Com Grigoriy Dobrygin, Chulpan Khamatova, Miroslava Pashutina e Naomi Lamp. Drama, Grécia / Alemanha / Suécia / Estônia / França / Finlândia, 2025, 99 minutos.

Quem acompanha a carreira do diretor grego Alexandros Avranas sabe que seus filmes procuram examinar a barbárie e os horrores do mundo sempre de forma sutil, partindo de um microcosmo doméstico, com o grito abafado normalmente saindo pelas frestas. Ao espectador, assim como ocorre nas obras do compatriota Yorgos Lanthimos - de projetos estranhos e diversos como Dente Canino (2009), O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017) e Pobres Criaturas (2023) - cabe unir os pontos para compreender melhor aquilo que sempre parece estar uma camada abaixo. Foi assim com o impressionante Miss Violence (2013) - em que a violência sexual contra menores e o incesto emergem como parte da fratura de uma família traumatizada por um suicídio -, é assim também com Síndrome da Apatia (Quiet Life), produção que estreou na última semana na plataforma Reserva Imovision.

A trama é simples e, por mais excêntrica que pareça, é inspirada em eventos reais. Na história um casal de refugiados russos - Sergei (Grigoriy Dobrygin) e e Natalia (Chulpan Khamatova) -, que alega ter chegado à Suécia por medo de retaliações do Governo, tem o seu pedido de asilo político negado por falta de evidências dessa suposta violação. Após o ocorrido, uma das filhas, a jovem Katja (Miroslava Pashutina), simplesmente desmaia na rua. E, resumidamente, nunca mais acorda. Sendo diagnosticada, localmente, com a síndrome da resignação, uma espécie de curiosa condição psicológica que coloca crianças e adolescentes, geralmente filhos de imigrantes, em um estado letárgico, catatônico. Como se fosse um sono permanente, o que os impede de comer, andar ou falar - um quadro que pode durar semanas, meses ou anos e que seria uma resposta à situações de trauma e de adversidade.

 


O tema, diga-se de passagem já foi retratado no documentário em curta-metragem A Vida em Mim (2019), que chegou a ser indicado ao Oscar em sua categoria naquele ano. E que revela como centenas de crianças foram, misteriosamente, acometidas pela síndrome que segue tendo suas causas desconhecidas. Já na obra de Avranas, o que se vê é a luta do casal protagonista em meio a cubículos de hospital e outros ambientes opressores, não apenas para prosseguir após o ocorrido com Katja, mas também para obter o documento que ateste a autorização para residência. O que envolverá a participação da outra filha, a adolescente Alina (Naomi Lamp), que será encarregada de contar aos representantes da imigração a história de agressão que ela supostamente teria testemunhado contra o seu pai - um professor em seu País de origem , e que poderia contribuir para a obtenção do visto.

Sem muita brecha para outros mistérios - ainda que a produção se empenhe em conceder à narrativa a ideia geral de metáfora para traumas atuais que envolvem xenofobia, crises imigratórias, burocracias estatais, indiferença à dor do outro e outros temas políticos e sociais (tudo muito de passagem) -, o filme se esforça em evidenciar, talvez forçando um pouco a barra, o significado do silêncio frente às injustiças. Ainda que, como no caso dos repulsivos episódios recentes do nosso congresso brasileiro - com deputados de extrema direita colando esparadrapos em suas bocas, para denunciar uma ditadura existente somente na cabeça alucinada deles -, essas ideias soem totalmente deturpadas, é importante lembrar que não devemos nos calar, nem ficarmos "apáticos" frente ao sofrimento alheio. É aquela pulguinha que fica.

Nota: 7,0 

 

quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Novidades em Streaming - Você é o Universo (Ти – Космос)

De: Pawlo Ostrikow. Com Volodymyr Kravchuk, Alexia Depicker e Leonid Popadko. Drama / Ficção Científica / Comédia, Ucrânia, 2024, 100 minutos.

Será que o ucraniano Você é o Universo (Ти – Космос) é uma ficção científica de tintas existencialistas sobre o fim do mundo e o apocalipse climático, ou apenas meio que uma indireta fílmica sobre a indisponibilidade das pessoas para a construção de laços mais sólidos em tempos tão fragmentadamente líquidos (com o perdão da mais óbvia e cansativa citação de Bauman)? Parte obra catastrofista em que o espaço é o limite, parte carrossel do Insta com reflexões supostamente profundas a respeito da ausência de responsabilidade afetiva na era digital, o filme do diretor Pawlo Ostrikow, que está disponível na Reserva Imovision, também tem a chance de não ser nada disso. Nem uma coisa nem outra. Apenas uma aventura, vai ver, sobre solidão na pós-modernidade, com um astronauta em sua nave nos confins do universo, servindo como a base para a fundamentação desse tipo de alegoria. Uma história que meio que sempre existiu, mas que gostamos de voltar a contar.

Na trama, Andriy (Volodymyr Kravchuk) é uma espécie de transportador de cargas espacial, que tem como trabalho levar resíduos nucleares radioativos para o fim do mundo do espaço - mais precisamente para o satélite de Júpiter, Calisto. Uma missão solitária que ele faz de forma permanente, com viagens de ida e volta de dois anos cada. Com toneladas de lixo a bordo. O resumo da ópera é de que, após 150 anos de uso desse tipo de energia, houve um acúmulo de radiação em instalações provisórias, que poderia comprometer a vida em nosso planeta (com tudo sendo explicado em uma bem humorada animação ainda no começo do filme). Bom, o caso é que, em certo ponto, uma das missões dá meio que errado e a Terra explode - sinceramente, admito que não entendi se uma coisa estava relacionada a outra. Impedido de retornar pro nosso mundinho, Andriy parece condenado a vagar pelo espaço. Enquanto tiver combustível. Ou enquanto tiver ânimo pra sobreviver.

 


Resignado, o protagonista revolve se entupir de comida - ele ainda tem estoque para alguns meses -, enquanto consome discos de vinil que, convenientemente, compõem uma decoração que lembra um mapa dos planetas em sua parede. Há também a necessidade de se desviar dos detritos da própria Terra, o que ele faz se "escondendo" atrás da Calisto. Para se distrair, ele mantém conversas nada empolgantes com o robô Maxim (Leonid Popadko) - uma mescla do Hal-9000 de 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) e o Gerty, o computador de bordo de uma das grandes e esnobadas obras do cinema alternativo, o ótimo Lunar (2009) -, que lhe conta umas piadas meio de tiozão do pavê só que pioradas. Na tela da nave, Andriy recebe instruções de engravatados xaropes, que estão insatisfeitos com os rumos da missão - aliás, essa transmissão é interrompida quando o sujeito, enfurecido, quebra o televisor.

Tudo vai mais ou menos nesse rumo até o dia em que ele recebe em seu computador de bordo, de forma inesperada, uma mensagem de uma jovem francesa de nome Catherine (Alexia Depicker), que alega estar em uma estação espacial perto de Saturno. Utilizando a mesma frequência e um tradutor, os dois iniciam uma conversa amistosa e mundana, nesse Tinder em que nenhum dos dois sabe exatamente como é o rosto do outro - o que envolverá instantes poéticos, como a tentativa de Andriy de recriar a face de Catherine usando um tipo de massa de modelar (a plasticina). A comunicação é meio complicada, já que o envio e a resposta levam mais de três horas pra ocorrer. Mas mesmo assim, Andriy decide ir ao encontro da sua nova amiga, em uma viagem de milhões de quilômetros de distância. Quem quer dá um jeito, já diria aquela publicação da Nozy. Sim, se a gente forçar um pouquinho a amizade também será possível encontrar, aqui e ali, metáforas sobre guerras (e não é demais lembrar que a própria Ucrânia segue em conflito), pandemias, isolamento, crises imigratórias e outros. Vai de cada um. E o resultado será tocante e comovente, nos fazendo pensar sobre a importância dos laços, das conexões e daquilo que nos faz, de fato, humanos.

Nota: 8,0

 

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Novidades em Streaming - Centenas de Castores (Hundreds of Beavers)

De: Mike Cheslik. Com Ryland Brickson Cole Tews, Doug Mancheski, Olivia Graves e Wes Tank. Comédia / Aventura, EUA, 2024, 108 minutos.

Preciso ser honesto com vocês: fazia tempo que não assistia a um filme tão chapado, desvairado, maluco, demente e, acima de tudo, divertido, do que esse inesperado Centenas de Castores (Hundreds of Beavers), que está disponível para aluguel em plataformas como a da Amazon. Feita com orçamento baixíssimo (cerca de US$ 150 mil), a produção consegue um feito raro: fazer rir naturalmente, sem forçação de barra. O estilo anárquico e de curioso espírito formalista da obra de estreia do diretor Mike Cheslik, pode ser percebido já nos primeiros três minutos, quando, em uma sequência que une animação e musical - com uma canção de tintas folclóricas sendo vigorosamente entoada -, o protagonista, um produtor de sidra meio desastrado, é apresentado. Seu nome é Jean Kayak (Ryland Brickson Cole Tews) e ele acaba de perder todo o seu pomar de maçãs, após um acidente com os barris que reservavam a bebida alcoólica (que era bastante consumida por viajantes locais).

Quando a gente fala assim, parece tudo bastante correto e até eventualmente trágico. E, talvez na vida real meio que fosse. Mas aqui é tudo tão nonsense que, mesmo quando as coisas dão errado, o resultado é a gargalhada. Filmado todo em preto e branco, sem diálogos e com alguns intertítulos - alguns até com frases aleatórias que parecem saídas de um livro barato de empreendedorismo coach -, o filme adota um estilo cartunesco, com Jean sendo o sujeito que perde tudo e que parte em uma jornada solitária. Inicialmente, para tentar simplesmente matar sua fome - o que envolve tentativas frustradas de caçadas de coelhos, peixes e ovos enormes dispostos em ninhos sobre árvores altíssimas (com ele sendo meio que sempre derrotado num estilo Coiote e Papa Léguas) - e, mais adiante, para tentar conseguir um casamento com a charmosa filha (Olivia Graves) de um exigente comerciante local (Doug Mancheski).

 


Em uma produção do tipo, é importante não levar nada muito a sério. Os coelhos, por exemplo, são simplesmente seres humanos adultos, vestidos com as roupas alvas dos animais. Com dentes e orelhas enormes. O mesmo valendo para castores, lobos, guaxinins, cães e até cavalos. Todos se comportando como os bichos - mas também sendo meio humanos (como no instante em que um grupo de cachorros joga cartas madrugada adentro ou no momento em que uma dupla de coelhos senta a porrada no protagonista após as coisas saírem errado). Jean sofre nesse ambiente inóspito, essencialmente gelado, que parece saído de algum local ermo no Século XIX. Com as coisas mudando um pouco de figura quando ele é salvo, após um acidente, por um caçador andarilho (Wes Tank). É com ele que Jean aprenderá a arte das armadilhas. Que lhe possibilitará adotar maneiras criativas - com um toque pessoal, claro -, na hora de tentar aprisionar os animais. Para trocá-los com o comerciante.

A quantidade de piadas em cascata - bobas e hilárias - é parte do charme. É um filme de humor físico, de quedas, de tombos, de dentes despedaçados, de cabeças batidas, de dedos sangrando após serem mordidos por piranhas, de aves gigantes evacuando e outras bicando o rosto de Jean. De castores vilanescos construindo uma enorme arca e mastigando milhares de troncos de árvores. É um conjunto imprevisível e mesmo aquilo que poderia parecer um tipo de gag meio barata ou de mau gosto - como no momento em que Jean toma água do rio para, mais a frente descobrir um que um coelho urina vastamente corredeira acima -, ocorre de forma tão inesperada, que é quase impossível ficar alheio. Sim, talvez nem todo mundo simpatize com o clima absurdista e sem limites, que exige uma boa dose de suspensão de descrença. Mas quem se aventurar sem grandes expectativas nessa narrativa minimalista, frenética e repleta de efeitos especiais caseiros, feitos na raça, poderá se maravilhar com esse tipo de cinema nunca óbvio. E que usa suas referências - Chaplin e Monty Phyton, games noventistas e revistas em quadrinhos underground - com personalidade e criatividade infinitas.

Nota: 8,5

 

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Novidades em Streaming - Oh, Canadá (Oh, Canada)

De: Paul Schrader. Com Richard Gere, Uma Thurman, Jacob Elordi, Michael Imperioli e Victoria Hill. Drama, EUA, 2024, 91 minutos.

"Quando não há futuro tudo o que resta é o passado. E se o passado é uma mentira, principalmente para as pessoas próximas, você não pode existir, exceto como um personagem fictício". É claramente um enorme peso na consciência aquele que Leonard Fife (Richard Gere), o protagonista de Oh, Canadá (Oh, Canada), carrega. Cheia de sutilezas, essa é uma obra do diretor Paul Schrader que, em alguma medida, repete o tema do arrependimento e de tentativa de reparação de danos - assim como no seu magistral trabalho anterior, o meio que inexplicavelmente esnobado Jardim dos Desejos (2022). Se no filme estrelado por Joel Edgerton temos um nazista empenhado em se redimir em uma vida pacata como floricultor, aqui temos um documentarista diagnosticado com um câncer terminal que resolve, em seus instantes derradeiros, revelar toda a verdade de uma vida dupla repleta de decisões moralmente questionáveis.

Frente aos seus pares, Leo, como era carinhosamente chamado, sempre pareceu aquele sujeito ético, que utilizava a sua arte como veículo de denúncia. Não por acaso, seus potentes filmes políticos ganhariam tração e seriam admirados, especialmente pelo público progressista do Canadá (onde ele se estabeleceu). E não apenas isso: na juventude, teria se rebelado contra o governo estadunidense e não apenas fugido de uma possível convocação para a Guerra do Vietnã, mas também permanecendo uma temporada em Cuba, o que teria contribuído para a sua formação ideológica. Um combo de acontecimentos digno de uma retrospectiva e é mais ou menos isso que dois de seus ex-alunos, Malcolm (Michael Imperioli) e Diana (Victoria Hill) propõem: um documentário sobre a sua irrepreensível existência. Algo que honre seu legado.

 


Só que tem um pequeno problema: muitos dos fatos pelos quais Leo é admirado, talvez não passem de mentiras. Conforme a narrativa se descortina, entenderemos como o protagonista simplesmente abandonou a sua primeira mulher, que estava grávida e com um filho pequeno (que funciona como um narrador improvisado), para, em segredo, tentar seguir o sonho de ser escritor, saindo do Sul conservador para o Norte do País. No caminho, além de roubar dinheiro que seria usado para a compra de uma casa e de jamais ter sequer chegado perto da terra de Fidel Castro, uma trilha enorme de casos extraconjugais, de adultérios e de mulheres seduzidas (inclusive alunas). O primeiro filho, ignorado por 30 anos, jamais seria reconhecido. Egoísta e narcisista, Leo teria vivido apenas para satisfazer seu ego hedonista. Encontrando em seus documentários de temas complexos como os horrores da guerra e do uso do Agente Laranja, ou sobre violência contra animais das regiões polares, o terreno fértil para uma carreira respeitosa e premiada.

Inteligente e levemente ousada, a obra burla os limites entre ficção e realidade, levando o espectador à um cenário de dúvidas sobre aquilo que se assiste. Com uma série de trucagens, Schrader mescla fotografias em preto e branco e flashbacks onde um Leo já veterano aparece, para, aparentemente, ampliar a sensação de desconfiança à respeito da veracidade dos acontecimentos. Emma (Uma Thurman), a atual esposa de Leo, uma mulher muito mais jovem, que também foi sua aluna, suplica para que a produção do filme sobre sua vida pare: "ele está misturando memórias, filmes, fantasias e histórias dos outros", argumenta, enquanto a enfermeira lhe aplica uma dose de fentanil. Essa incerteza entre o concreto e o abstrato, entre verdade e ficção é o que torna a experiência instigante ainda que, talvez, propositalmente confusa, em certos momentos. "Devo parecer um esquizofrênico" divaga em certa altura o protagonista, num autoexame de sua mente perturbada. Para o espectador nunca há certeza. E é nessa ambiguidade que reside a beleza, afinal, ninguém é tão virtuoso o tempo inteiro. Tão perfeito. E nem tão errático.

Nota: 7,0

 

segunda-feira, 28 de julho de 2025

Novidades em Streaming - Tóxico (Akiplėša)

De: Saulė Bliuvaitė. Com Vesta Matulytė, Ieva Rupeikaitė e Giedrius Savickas. Drama, Lituânia, 2024, 99 minutos.

Está lá no dicionário: tóxico é tudo aquilo que produz efeitos nocivos no organismo. E, nesse sentido, é preciso saudar a escolha do título do longa de estreia da diretora Saulė Bliuvaitė, que acaba de estrear na Mubi. Existe uma cena perturbadora no filme, em que a jovem Kristina (Ieva Rupeikaitė) pesquisa na internet sobre ovos de tênia. Tênia, aquela da solitária. Eu, do alto da minha ingenuidade, cheguei a achar que a busca na web envolvia algum trabalho de aula, para alguma matéria de Biologia. É só mais tarde, quando um amigo da adolescente lhe entrega o que seriam pílulas com ovos do parasita - adquiridas, como não poderia deixar de ser, na darkweb -, que compreendo o propósito daquilo. Para tentar uma vida melhor, Kristina, do alto dos seus 13 anos, esté empenhada em uma futura carreira de modelo. Um ambiente de sonho e de muitas exigências. Inclusive tóxicas, de agressão ao próprio corpo.

Drama tenso e pungente, que quase vai ao limite do terror Tóxico (Akiplėša), o vencedor do Leopoardo de Ouro, em Locarno, é, curiosamente, mais um filme a abordar esse desejo íntimo de fama e de sucesso, que permita à meninas nascidas em ambientes pobres ou vulneráveis, um futuro mais promissor. Assim como no recente e perturbador Diamante Bruto (2024) - sobre uma jovem adulta determinada a emplacar a sua presença em um reality show de gosto duvidoso, apenas para aumentar o número de seguidores no Instagram, que lhe permitam uma maior conversão em vendas ou melhores publis -, aqui também as garotas parecem iludidas por adultos cheios de promessas, o que envolve um comportamento abnegado e totalmente distante do que seria a existência de meninas que mal entraram na puberdade. Nesse sentido, não deixa de ser curioso ver Kristina alternando sequências em que surge (supostamente) confiante, de maiô e salto alto, com outras em que, ainda como uma criança, penteia os cabelos de uma Barbie.

 


Esse limite entre a infantilidade e a maturidade obrigatoriamente antecipada também gera no espectador um sentimento meio que de repulsa. Saber que um ambiente tão misógino e de tanta cobrança como o das supermodelos siga sendo alvo para muitas meninas - algumas delas, inclusive, estimuladas por pais narcisistas - é algo que é parte do incômodo. O que torna a experiência bastante efetiva. Mas para além deste ser um projeto sobre os bastidores de agências de modelos ou de desfiles improvisados em cenários modestos, esta também é uma obra sobre amizade. E sobre crescer nesse mundo brutalizado. No começo do filme, vemos um vestiário feminino desses típicos de escolinha de natação, em que Marija (Vesta Matulytė) sofre bullying. Mais alta que as demais, meio desajeitada e antissocial - o que é reforçado por uma deficiência na perna, o que lhe impede de caminhar sem mancar -, ela é uma espécie de novidade no vilarejo em que a trama se passa. Sofre agressões gerais. Até roubada é.

Mas quando começa a frequentar a mesma escola para modelos de Kristina - uma das bullyers -, uma amizade meio que inesperada tem início. Ambas passam a fazer tudo que meio que juntas. E a conviver nesse contexto estranho que lhes leva a passarelas tortas, a amizades cheias de más intenções e a professoras que não hesitam em afirmar que elas só serão escolhidas se mantiverem as suas medidas abaixo de um certo padrão. Não são poucas as vezes que a fita métrica é estendida, para dar a volta nas magricelas cinturas das adolescentes. No desespero em não perder uma das vagas, Kristina apela para os ovos de tênia. A real é que tudo é tóxico naquele contexto. Os ovos, por óbvio; uma vida pobre e de pouca esperança - por mais que pais e avós pareçam empenhados em possibilitar os sonhos juvenis -, e os próprios bastidores dessas agências. O tóxico aqui é literal, mas também alegórico. É concreto e abstrato. E é meio difícil não sair de estômago embrulhado.

Nota: 8,0 

 

quarta-feira, 23 de julho de 2025

Novidades em Streaming - Moon (Mond)

De: Kurdwin Ayub. Com Florentina Holzinger, Celina Sarhan, Andria Tayeh e Nagham Abu Baker. Drama, Áustria, 2024, 93 minutos.

Existe uma pequena cena em Moon (Mond) que, fosse esse um outro filme qualquer, e talvez passasse meio batida. Nela, a protagonista Sarah (Florentina Holzinger), uma lutadora de artes marciais aposentada, que leva uma vida sem grandes emoções como professora em uma academia de Viena, na Áustria, ouve atentamente as instruções de seu novo contratante. "O nosso contrato é de confidencialidade. Sem fotos, sem redes sociais. É um procedimento normal, regular, de privacidade, que fazemos com todos os nossos empregados. Espero não ser um inconveniente". Para ela parece ok até porque, pelo visto, ela vai ganhar uma grana boa como personal trainer de três jovens de uma família abastada da Jordânia. Ao menos é o que atestam as ótimas condições em que ela está instalada, em um hotel luxuosíssimo de ampla piscina, que contrasta com o cenário arenoso do País do Oriente Médio.

Tanto na entrevista como na chegada à casa em si, Sarah é recebida pelo afável irmão mais velho das garotas - seu nome é Abdul (Omar Almajali). Nas conversas, a ideia de ensinar as artes marciais para as meninas, por ser algo que está na moda (é trendy), sendo o MMA muito popular na Jordânia. E por mais que os amigos de Sarah tirem uma com a sua cara, especialmente no que diz respeito às diferenças culturais entre os dois países - "você vai usar um hijab?", questiona um deles -, ela jamais imagina estar adentrando um ambiente de absoluta opressão e de patriarcalismo atordoante. As condições de vida são refinadíssimas em uma mansão suntuosa. Mas essa aparência de elegância vai só até ali. Impedidas de sair de casa sem um dos seguranças, as jovens também não podem usar as redes sociais, se relacionar, ir para uma boate dançar. Enfim, viver. 

 


E, no começo, Sarah acha estranho o comportamento reticente e quase infantilizado das jovens durante os treinos. Meia dúzia de movimentos e elas se mostram cansadas, enfastiadas, com pouca vontade. Talvez na cabeça da protagonista, isso seja apenas algo típico da idade. Adolescentes não estão muito a fim dessa ou de qualquer outra programação. Mas os dias parecem evoluir apenas para trás. Quando Sarah resolve investigar por conta própria o que pode estar acontecendo nos cômodos daquela casa - uma decisão complicada, dado o clima silenciosamente beligerante de tudo (sem esquecer da confidencialidade) -, ela faz descobertas surpreendentes. Antes disso, ela se empenha em interagir de outras formas com as meninas, como na excêntrica cena em que Fatima (Celina Sarhan) a utiliza como uma "boneca", penteando seus cabelos grosseiramente. O que gera um pequeno e quase inexplicável conflito, que funciona como uma metáfora estranha pra esse contexto de confinamento.

Sem muita pressa em fortalecer seu ponto, a diretora Kurdwin Ayub converte a experiência em um thriller vagaroso, em que pequenos acontecimentos dizem muito mais do que momentos maiores (por mais que haja um, em específico, bem impactante). Em certo ponto, Nour (Andria Tayeh) furta o celular da professora, sem que ela possa retomá-lo imediatamente. Quando ela obtém o aparelho de volta, ela entende o risco enfrentado pelas meninas. Bem como seu papel quase alegórico de mulher forte - em um esporte de alto grau de intensidade -, para confrontar aquele ambiente misógino, em um País que, por mais que tenha avanços sociais, culturais e políticos, ainda parece delegar às mulheres um papel restrito à vida doméstica. Naturalista e cheia de sutilezas, mas também inquietante e potente, esta é uma obra repleta de significados e de reflexões a respeito de temas como vigilância, liberdade, relações de poder e (des)igualdade entre gêneros. Tá na Mubi e vale espiar.

Nota: 8,0

 

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Novidades em Streaming - Magic Farm

De: Amalia Ulman. Com Chloé Sevigny, Alex Wolff, Valeria Lois e Camila Del Campo. Comédia, Argentina / EUA / Reino Unido, 2025, 93 minutos.

Vamos combinar que Magic Farm consegue um feito raro: ser um filme nonsense sem nenhum tipo de apego à realidade. Sim, em linhas gerais o cinema excêntrico e que vai no limite do absurdo talvez não necessite de verossimilhança. Mas o caso é que acaba sendo totalmente incoerente assistir à uma equipe de filmagem tão ignorante acerca de seu próprio papel frente ao que pretendem retratar em vídeo. Ok, a ideia central talvez esteja justamente em evidenciar o quão alienado e despreparado é aquele coletivo - que acaba no interior da Argentina após uma confusão envolvendo o nome da cidade que eles procuram (San Cristóbal que, ao que tudo indica, se repete em todo e em qualquer País latino). Só que essa falta de organização travestida de preconceito colonialista vai escalando até o ponto da irritação, conforme a obra da diretora Amalia Ulman avança. 

E preciso dizer que quando li a sinopse fiquei bastante animado com o que parecia ser uma produção que satirizava a exploração da mídia e esse ideal bastante contemporâneo da viralização a qualquer preço. Quando chegam à San Cristóbal, o grupo liderado por Edna (Chloé Sevigny), que realiza uma série sobre subculturas diferentonas ao redor do mundo, está atrás de um músico que se veste com orelhas de coelho e que responde pelo nome bastante sugestivo de Super Carlitos. Sim, isso mesmo. Só que, como dito, eles dão com os burros na água justamente por não terem se estabelecido no local correto. E pra não desperdiçar a pauta (ou algo do tipo) e as diárias já contratadas na improvisada pousada capitaneada por um carismático recepcionista (Guillermo Jacubowicz), eles resolvem percorrer o vilarejo atrás de alguma boa história que possa render pra série.

 


Tudo parece promissor quando a obra inicia, com um estilo de filmagem pouco óbvio do ponto de vista estético e com o uso de cores berrantes, que contrastam com a melancolia provinciana e letárgica dessa pequena comunidade rural argentina. Só que o poderia ser a deixa óbvia para uma série de comentários bem humorados sobre diferenças culturais entre nova iorquinos bem nascidos em contraste com interioranos raiz, logo apela para a obviedade galopante sobre o excesso de cachorros da região, a ausência de uma infraestrutura mais adequada para atender os caprichos daqueles sujeitos ou o uso de roupas excessivamente de grife em estradas de chão poeirentas. Edna está acompanhada de uma equipe de produtores estúpida e mesquinha (pra não dizer escrota), que bate cabeça, enquanto se aproxima de forma entortada dos habitantes locais - como no caso de Popa (Valeria Lois) e sua filha Manchi (Camila Del Campo), que deixa o produtor Jeff (Alex Wolff) caidinho de paixão (ao menos até a hora de eles irem para os "finalmentes").

Além de Jeff, a própria Amalia no papel de Elena funciona como a intérprete do grupo, mediando as conversas entre os nativos e a equipe, o que auxiliará na fabricação de um documentário forjado a respeito de um novo culto religioso, com pessoas que utilizam um adereço bastante peculiar sobre a cabeça. Que a pior equipe de produção do planeta não perceba onde verdadeiramente estava a pauta - os moradores da região sofrendo permanentemente com a pulverização de agrotóxicos, inclusive espalhados por aviões (o que resulta em pessoas com deformações, deficiências e outros problemas), é só a cereja do bolo desse ambiente de alienação que povoa as redes sociais na atualidade (com sua presunção torpe, falta de criatividade e ignorância sobre tudo que não está em volta do próprio umbigo). Essa acaba por ser a parte mais efetiva ao final. O que não salva a experiência do mero escapismo tolo e tedioso, que nunca aprofunda as suas questões.

Nota: 5,0

 

segunda-feira, 14 de julho de 2025

Novidades em Streaming - Super Happy Forever

De: Kohel Igarashi. Com Hiroki Sano, Nairu Yamamoto, Yoshinori Miyata e Hoang Nh Quynh. Romance / Drama, Japão / França, 2024, 94 minutos.

Existe uma cena bem no comecinho de Super Happy Forever e que envolve uma placa fixada em um hotel. O cartaz em questão avisa que a hospedagem fechará dali a um mês. Só que, nesse ponto, já fica claro pro espectador que essa ideia de encerramento, de conclusão - de ciclos, de etapas, de relacionamentos -, não é apenas simbólico. Há algo no marasmo meio acinzentado daquela praia não muito acolhedora que grita uma certa melancolia do fim. A pandemia passou, mas as pessoas ainda estão de máscara. Espaços estão encerrando atividades, por falta de público será? Ou porque no mundo a vida é meio que feita disso mesmo? De transformações, de mudanças, de memórias que ficam enquanto novas se criam? Sim, pode parecer excessivamente filosófico para uma resenha sobre uma obra alternativa e agridoce do cinema japonês, mas o caso é que esses pontos começam a se conectar sem muita demora.

Sano (Hiroki Sano) está de luto. Mas, mesmo assim, resolve acompanhar o melhor amigo Miyata (Yoshinori Miyata) em uma viagem justamente para o resort de luxo em que conheceu, cinco anos atrás, a sua falecida esposa Nagi (Nairu Yamamoto). Sano está naquele estágio meio ranzinza, meio melancólico, de quem viveu uma perda que pesa uma tonelada nos ombros, enquanto percorre a orla em uma investigação particular - como se buscasse algum objeto, algum fragmento de algo que pudesse lhe remeter àqueles dias vividos cinco anos atrás. O que envolve o mesmo quarto de hotel, a mesma vista, o mesmo restaurante que, agora, jaz solitário, com as portas cerradas. Na caminhada pela praia, o rapaz tem a impressão de ver o boné perdido de sua amada, nunca mais encontrado. A negativa a respeito só lhe enfurece mais. Uma ligação esquisita faz com que ele arremesse o celular no mar.

 


Já Miyata tá ali pra uma espécie de seminário de autoajuda - com palestras de nomes sugestivos como Super Happy Forever, que não fariam feio na cartilha do mais novo coach abstrato a tentar enganar um grupo de seguidores incautos. Aliás, o tipo de coisa que enoja ainda mais Sano, que não consegue não responder de forma ríspida, um tanto debochada, quando o amigo convida duas outras cursistas para sentarem a sua mesa. Não demora para que o papo derive para as coincidências do mundo ou os problemas de uma sociedade tão materialista. Tudo parece meio vazio pro protagonista atormentado. Que não consegue não ser mais do que honesto ao falar sobre a relação que não existe mais: "Nagi não era feliz. Eu era muito covarde e egoísta". O tipo de franqueza que faz com que fique evidente também um certo remorso. Que avança para a alegoria no fato de Nagi ter simplesmente morrido dormindo, mesmo sendo alguém tão jovem. Uma morte simbólica e real em igual medida - como muitas vezes ocorre para casais que se formam para, mais tarde, com o desaparecimento do encanto inicial, se desfazerem.

Na segunda metade a trama recua para 2018, justamente para o dia em que Nagi e Sano se conhecem. Com a ação centrada na jovem, não demora para que compreendamos o encanto do protagonista. Nagi fica chateada por um encontro com uma amiga que lhe dá um bolo - mas aceita percorrer a cidade com Sano e Miyata para um almoço, seguido de um passeio, uma conversa prazerosa e uma ida a uma danceteria. Quase aquele ideal juvenil de primeiros encontros em que tudo o que temos de fazer é sermos felizes, viver o momento. Ao cabo tudo é muito simples, ainda que a narrativa seja pontuada por instantes singelos, como aqueles em que Nagi auxilia a vietnamita An (Hoang Nh Quynh), que deixa seu almoço cair no chão. An terá papel importante mais tarde, especialmente após as duas fazerem amizade, o que será marcado ainda pela onipresença da canção Beyond the Sea, de Bobby Darin. O sentimento ao final será ambíguo, já que a felicidade pode ter outro significado.

Nota: 8,0

 

terça-feira, 8 de julho de 2025

Novidades em Streaming - Diamante Bruto (Diamant Brut)

De: Agathe Riedinger. Com Malou Khebizi, Idir Azougli, Andréa Bescond e Léa Gorla. Drama, França, 2024, 103 minutos.

"Eu já me decidi. Vou ficar famosa e vou ter dinheiro". Diamante Bruto (Diamant Brut), a ótima estreia da diretora Agathe Riedinger, já passa da metade quando a protagonista Liane (Malou Khebizi) diz a frase que abre esse texto, com uma convicção comovente. Ela está em um consultório, onde um médico lhe explica as opções de próteses de silicone para o bumbum. Quais os tipos, os efeitos alcançados, os investimentos. Liane, uma jovem infliuencer de 19 anos que nem ainda teve as suas primeiras experiências sexuais direito, está convicta de que precisa daquilo. Para melhorar sua imagem - mesmo que, aos nossos olhos não haja nada que necessite melhoria ali. Só que a jovem precisa mais. Mais validação. Mais carinho de um público que está interessado apenas na sua aparência, no seu decote, na sua barriga a mostra, nas pernas e nos pés (machucados) sempre em um salto alto. É um efeito dos complexos tempos atuais: a fama tem um preço. E ele pode ser caro de muitas formas.

Há outras frases de efeito ditas por Liane nos transcorrer da narrativa e, muitas delas, são muito verdadeiras em sua mentalidade ainda em formação. Uma mentalidade em que plataformas de exposição como o Tik Tok funcionam como uma pequena bomba relógio em vias de explodir, quando o assunto é a saúde mental dos usuários. "Se você é bonita, as pessoas te admiram" ou "eu sei que não sou comum", são algumas das sentenças verbalizadas pela nossa anti-heroína que, ao cabo, só deseja ser conhecida a todo o custo. Não por mera vaidade, aparentemente. Mas também por acreditar que esse possa ser um caminho para que, de fato, a sua vida mude. Pra que ela saia de uma vida marginal, em que mora com a mãe narcisista e a irmã mais nova devota, indo daqui pra lá em meio a bicos feitos com produtos roubados. Aos poucos mais de 10 mil seguidores nas redes sociais, ela entrega dancinhas e performances generalistas com roupas mínimas - o que, em muitos casos, pode ser o suficiente para o acesso a algum tipo de fama.

 


Como muitas que estão nessa segunda divisão do universo dos influencers - sem ainda uma capacidade de monetizar a contento no mercado publicitário, e sem um público mais cativo que lhe consuma para além do fetichismo voyeur -, o caminho para o estrelato ainda passa por alcançar outros espaços. Que possam gerar um status a mais. No caso de Liane, o seu desejo nem tão secreto é poder participar de algum reality show televisivo de gosto duvidoso - e é exatamente o que ocorre quando ela faz um teste para o excêntrico programa Miracle Island Miami. Que, no mundo real, nem parece tão atrativo assim, já que o salário por dois meses de trabalho alcança, com muito bom gosto, os cinco mil euros - com exigências que vão de muita exibição do corpo e um comportamento disposto para o conflito e para certo hedonismo pervertido  ("não queremos nenhuma santa", alerta a produtora). Ah, fora o fato de os apresentadores terem um histórico de assédio e violências contra as mulheres. Um "detalhezinho". 

Importante dizer que Agathe é hábil em não julgar a protagonista - que parece sim ter alguma compreensão dos papeis de gênero e do machismo que a rodeia (como na repulsiva sequência do metrô, ainda no início, ou na distância que preserva do onipresente amigo de infância Dino, vivido por Adir Azougli) -, a inserindo no papel de desajustada que luta por aquilo que, de fato, ela acredita. E como ela acredita. Como se fosse uma personagem de Sean Baker em uma experiência onírica e nebulosa que retira da França o seu glamour meio natural, Liane se converte em uma representação da potência e da persistência frente a certos ideais - mesmo que, para os cidadãos de bem conservadores, esses ideais possam parecer meio difusos. Uma bunda e um par de seios mais volumosos que a façam chegar perto daquilo que ela deseja? Que seja. O Tik Tok está descaralhando uma galera da cabeça e é fundamental que não se perca de vista os efeitos malignos em jovens, que se sentem inadequadas ou insatisfeitas com seus corpos, ou que buscam validação o tempo inteiro. Liane não é a vilã. Ela é apenas alguém tentando jogar o jogo. Com aquilo que ele oferece. E talvez seja por isso que a gente se sinta tão feliz por ela no frame final.

Nota: 8,5 

 

terça-feira, 1 de julho de 2025

Novidades em Streaming - O Segundo Ato (Le Deuxième Acte)

De: Quentin Dupieux. Com Léa Seydoux, Vincent Lindon, Louis Garrel e Raphaël Quenard. Comédia, França, 2024, 80 minutos. 

Quem acompanha a carreira do diretor francês Quentin Dupieux sabe que seu cinema costuma ser anárquico, provocativo, iconoclasta. As experiências podem ser mínimas. Mas costumam entregar o máximo em termos de reflexões sobre tudo o que envolve esse certo mal-estar da contemporaneidade. No cerne de O Segundo Ato (Le Deuxième Acte), que está disponível na Mubi, parece residir uma questão meio prosaica: qual o sentido de estarmos aqui, assistindo a um filme, enquanto tudo ao redor parece ruir? Inteligência artificial, destruição da natureza, pandemia, guerras, extrema direita, fascismo - e nós, aqui, interpretando esses papeis? A troco de quê? As angústias se tornam mais claras quando o veterano Guillaume (o sempre ótimo Vincent Lindon) simplesmente abandona as filmagens de seu mais recente projeto em andamento. Sai andando a contragosto, insatisfeito meio que sem saber exatamente com o quê. Ou ele sabe.

Enfim, ele parece insatisfeito. Mas estará mesmo? Ao seu lado, a companheira de cena Florence (Léa Seydoux) se exaspera e segue seus passos, tentando argumentar sobre o absurdo daquele comportamento. É o trabalho deles, afinal. Se tudo está ruindo, o que os impediria de continuar? "Os violinistas do Titanic seguiram tocando até que o barco afundasse", desespera-se Florence. Ao que Guillaume retruca, alegando que aquilo nunca existiu. Que foi uma mera invenção de James Cameron para tornar os artistas supostamente corajosos em meio a tudo. Coragem. O que talvez os falte para certas decisões. Ou ao menos até certo ponto, quando o homem recebe uma inesperada ligação de um agente do diretor Paul Thomas Anderson - ele mesmo, de Sangue Negro (2007), Trama Fantasma (2017) e Licoricce Pizza (2021). Enfim, um dos grandes de nossa geração. Que quer trabalhar com Guillaume. O que o deixa em êxtase momentâneo. Esquecendo, por um minuto, o discurso "lacrador". 

 

 


Na sequência em que estão filmando - ou não, porque nunca fica tudo exatamente claro nesse exercício de metalinguagem (a realidade por vezes pode ser outra, mas, vá lá, o que é, exatamente a realidade quando tudo o que vemos é um longo plano-sequência feito com dolly track, em que a câmera flui com maciez desconcertante?) -, Guillaume e Florence estão indo ao encontro dos amigos Willy (Raphaël Quenard) e David (Louis Garrel). Florence quer apresentar David a seu pai, que no filme dentro do filme é o próprio Guillaume, mas o caso é que o candidato a namorado não está tão interessado assim na jovem. Aliás, mais do que isso, bola um plano para colocar Willy no caminho de Florence. Enquanto se encaminham para o local, debatem uma série de temas caros à era do cancelamento - e que vão no limite do preconceito e da intolerância.

Na trama, David é bissexual. Já Willy é o machão da masculinidade frágil que não parece ter muitos limites na hora de verbalizar seu incômodo a respeito de pessoas que se relacionam com o mesmo sexo. "Para com isso! Você está querendo ser cancelado?", pergunta David, enquanto quebra a quarta parede para se direcionar justamente a nós, espectadores, cruzando novamente o limite entre o concreto e o fantasioso. No terço final, a coisa melhora ainda mais quando entra em cena o excelente Stéphane (Manuel Guillot), um figurante que está tão nervoso por ter de interpretar um garçom do restaurante em que a cena ocorre, que mal consegue servir o vinho de forma satisfatória. O que talvez seja mais um truque, vai saber. "Eu tenho problema com os filmes, quando os códigos são muito óbvios", comentou o realizador, anos atrás, em entrevista ao The Guardian. É mais ou menos o que resume o cinema conceitual, sombrio, entortado, nada racional e essencialmente cômico do realizador. 

 Nota: 8,0

 

sexta-feira, 27 de junho de 2025

Novidades em Streaming - Em Rumo a Uma Terra Desconhecida (To a Land Unknown)

De: Mahdi Fleifel. Com Mahmood Bakri, Aram Sabbah, Mohammad Alsurafa e Angeliki Papoulia. Drama, Palestina / Grécia / França / Alemanha / Arábia Saudita / Dinamarca / Holanda / Reino Unido, 2024, 105 minutos.

"De certa forma é uma espécie de destino dos palestinos, não terminar onde começaram, mas em algum lugar inesperado e distante". Vamos combinar que em tempos de ódio, de preconceito, de intolerância e de xenofobia, reforçados pelos subsequentes ataques do governo de Israel à Faixa de Gaza - um genocídio bárbaro, que parece não ter fim -, a frase dita pelo já falecido intelectual Edward Said, que abre o desalentador filme Em Rumo a Uma Terra Desconhecida (To a Land Unknown), não poderia ser mais atual. De fato, para um povo em permanente processo de deslocamento, inseguro e desumanizado, o desespero soa ainda maior. Não há sensação de pertencimento onde quer que se esteja - o que explica esse senso de urgência e de fuga eterna que emana da obra do diretor Mahdi Fleifel - documentarista conhecido pelo premiado Um Mundo Que Não É Nosso (2012), e que está disponível na Reserva Imovision.

O cenário é uma Atenas moderna, urbana, agitada de dia, meio poética e sonora à noite, onde os primos Chatila (Mahmood Bakri) e Reda (Aram Sabbah) vivem de pequenos trambiques - como furtos de bolsas de velhinhas desatentas na praça -, na tentativa não apenas de sobreviver com o mínimo que seja de dignidade (algo difícil de se obter para quem é um refugiado, em um País que não deseja a sua presença), mas também de juntar algum dinheiro para o que seria o destino final de sua jornada. No caso, a Alemanha, onde aguardam a esposa e o filho de Chatila. Em seus sonhos nada oníricos - sempre carregados e pontuados por ausências -, a ideia é a de se instalar no rico País europeu para, lá, abrir uma cafeteria. A principal barreira? Tentar obter um passaporte, o que envolve a conexão com figuras não muito amigáveis e que habitam uma espécie de submundo da capital grega, como é o caso de um contrabandista que promete obter os documentos em troca de alguns outros favores.

 


 

Nada é muito fácil ali e a situação se torna ainda mais complicada quando a dupla central meio que adota o adolescente Malik (Mohammad Alsurafa), um jovem de 13 anos, que também está em fuga da Faixa de Gaza, buscando uma oportunidade de escapar dali para encontrar sua mãe na Itália. Mais gentil, sensível e empático com o menino, Reda o acompanha em suas andanças, enquanto Chatila, na crença de que seu parceiro está, de fato, preocupado com o novo amigo, bola um plano bastante complicado para ajudá-lo. O que envolverá a participação de uma quarta pessoa - no caso, Tatiana (Angeliki Papoulia), uma mulher grega que é incumbida de se fazer passar pela mãe do garoto, para que a fronteira possa ser finalmente cruzada. Tudo é intenso e sofrido e mesmo os pequenos instantes iluminados servem apenas para nos lembrar do desespero que ronda - como no momento em que Reda furta um par de tênis de uma loja para, lembrando à Malik que "não é legar roubar".

E, nesse sentido, vamos combinar que a obra não poderia ser mais acertada ao não apenas não vilanizar excessivamente os seus protagonistas - com sua disposição natural para a sobrevivência -, mas também não os tornando dois mártires incorrigíveis buscando fazer sempre o bem (o que seria uma solução bastante cômoda em um momento em que os olhos estão voltados para o conflito do Oriente Médio). Ao cabo mão há espaço para o maniqueísmo barato, que poderia comprometer a experiência. Reda tem problemas com drogas. Chatila não hesitará em agir com violência meio determinada em qualquer que seja a situação. Assim, as figuras vistas são complexas, com seus medos, desejos, sonhos, contradições e códigos morais questionáveis - o que é reforçado pelo impactante terço final, em que uma dolorosa sequência de sequestro escancara a violência estrutural a que todos ali estão submetidos. Trágico, cru e comovente, esse é daquele tipo de projeto que nos acompanha após os créditos subirem. 

Nota: 8,5 

 

terça-feira, 24 de junho de 2025

Novidades em Streaming - Cidade; Campo

De: Juliana Rojas. Com Fernanda Vianna, Mirella Façanha, Bruna Linzmeyer e Andrea Marquee. Drama, Brasil, 2024, 119 minutos.

Já falei pra vocês da dificuldade que tenho de me engajar - na falta de uma palavra melhor - em filmes que se passam no ambiente rural, mas que não retratam seus personagens, as figuras que trafegam naquele universo, de forma mais fidedigna. Mais realista, por assim dizer. Há toda uma complexidade na vida no campo que parece difícil de ser resolvida com meia dúzia de conveniências do roteiro. Ou com poucas explicações mais críveis para determinados comportamentos. E talvez seja por isso que tenha tido um sentimento meio misto com Cidade; Campo, mais recente obra da diretora Juliana Rojas - do ótimo As Boas Maneiras (2018) -, que aborda temas ligados à perdas, luto, memórias e fantasmas do passado. Isto a partir de duas histórias distintas que até não se conectam tão diretamente, mas que conversam com questões contemporâneas, que vão do êxodo urbano, passando por eventos ambientais extremos até chegar a casos como os de refugiados climáticos, que tem se tornado cada vez mais realidade no Brasil.

Como dito, o longa se divide em duas partes em que seus personagens realizam movimentos de migração - do campo para a cidade ou da cidade para o campo. Só que esses movimentos não ocorrem por livre iniciativa. Ou por vontade própria. São forçados. Invasivos. Agressivos. Especialmente no primeiro desses contos, em que a agricultora Joana (a ótima Fernanda Vianna), se vê obrigada a sair de sua cidade natal, no interior de Minas Gerais, após sua propriedade ter sido devastada por uma tragédia ambiental - no caso, o rompimento de uma barragem, que liberou toneladas de dejetos (como nos casos reais de Brumadinho e Mariana). Conseguindo escapar com vida, Joana se abriga na casa da irmã Tania (Andrea Marquee), que mora com seu neto Jaime (Kalleb Oliveira), um menino curioso, mas que pouco sabe sobre a vida no campo. Tentando se adaptar, Joana consegue trabalho em um aplicativo voltado à diaristas - que organiza faxinas em casas de dondocas. 

 


 

Sim, ela se vê obrigada a deixar um ambiente idílico, onde produzia seu próprio alimento, aparentemente sem o uso de agrotóxicos, para enveredar em uma existência urbana, vazia, cinzenta - como é o espaço das cidades maiores, com suas rotinas repetitivas -, em que deve se submeter às exigências e violências cotidianas do capitalismo tardio. Que ganham um capítulo a parte quando uma situação de abuso é revelada. Melhor das duas histórias, essa primeira, por mais que confie nos silêncios e no dito pelo não dito, diz muito - e mesmo o apelo fantasmagórico e de realismo fantástico, tão típicos da realizadora, surgem aqui de forma orgânica, em memórias desconexas ou sonhos bizarros da protagonista (como no instante em que um cavalo aparece em pleno asfalto da madrugada, no concreto, numa daquelas dicotomias que servem como metáfora perfeita para a sua própria situação: perdida em um lugar que lhe é apenas estranho, que não lhe pertence).

Na segunda, e menos interessante das duas narrativas, o casal Flávia (Mirella Façanha) e Mara (Bruna Linzmeyer), se muda para a propriedade rural do pai de Flávia, após a morte deste. O por quê exatamente elas decidem se manter na propriedade após a morte do familiar, nunca fica exatamente claro. Flávia era distante do genitor e a vida no campo, todos sabem, é difícil. Há vacas leiteiras, que dão leite todo o dia e, como vai ser isso dali pra frente? Não há amor que resista e não dá pra ficar muito no modo passeio e, vamos combinar, dá pra expiar as mágoas mesmo à distância, mesmo resolvendo as burocracias. Não é preciso experimentar a vida no campo para isso, ainda mais em um cenário desolador e quase inóspito de lavouras de soja ocupando o entorno, de terra empobrecida e seca e de ausências diversas (inclusive de conhecimento sobre o que o pai plantava ali, de fato). No mais, tudo parece só uma desculpa, uma conveniência, para que situações insólitas possam acontecer naquele ambiente - barulhos, aparições e outras abstrações que geram estranhamento apenas por gerar. Não sabemos muito das mulheres, de suas vidas, de seus passados, de suas trajetórias. Ou mesmo de como elas muito provavelmente sofreram pra chegar até ali. Onde estão agora tentando sobreviver. O que torna essa segunda parte meio oca, sem muito a entregar. Por mais que as intenções pudessem ser as melhores.

Nota: 6,5

 

segunda-feira, 23 de junho de 2025

Novidades em Streaming - Vitória

De: Andrucha Waddington. Com Fernanda Montenegro, Linn da Quebrada, Thawan Lucas e Alan Rocha. Drama / Policial, Brasil, 2025, 112 minutos.

Uma idosa cansada da violência que ronda seu bairro (e seu apartamento) resolve ligar o foda-se e, como se fosse uma espécie de James Stewart em Janela Indiscreta (1954), decide filmar uma série de crimes cometidos a céu aberto por traficantes, na ideia de levar o material para a polícia para que alguma atitude seja tomada. Sim, a peculiaridade da trama de Vitória, inspirada no livro Dona Vitória Joana da Paz, de Fábio Gusmão, já seria digna de algum tipo de atenção. Mas a coisa se torna ainda mais interessante quando a protagonista é uma senhorinha de mais de 80 anos interpretada por ninguém menos do que Fernanda Montenegro. E, diga-se de passagem é meio que impossível dissociar a imagem verdadeira da nossa maior atriz de todas - fragilizada e com algumas limitações do alto de seus mais de 90 anos reais -, daquela que vemos em tela. Preocupada, com seus movimentos lentos, desconfiança permanente, olhar distante e medo onipresente.

Afinal, não deve ser fácil para uma idosa ser vizinha da bandidagem. Convivendo com o medo de abrir a própria janela, sob risco de um tiro de fuzil cruzar seu apartamento como se fosse parte do cotidiano. Para Nina (Montenegro), a vida nem sempre foi assim. Quando passou a residir na Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana, a frente de seu prédio era ocupada por uma vasta mata, de rica biodiversidade. Só que o morro se alterou com o passar do tempo. Com a violência passando a frequentar a sala de casa. No começo do filme, dona Nina - seu nome fictício é Maria Josefina dos Santos -, está tomando um chá, enquanto ouve um antigo disco de vinil. Em um espaço nostálgico, de memórias que não sabemos exatamente quais. Só que a tranquilidade é quebrada quando tem início um tiroteio que vara a madrugada. O que lhe impede de ter uma noite de sono satisfatória.

 


 

Indignada, dona Nina vai até a delegacia mais próxima, para denunciar o ocorrido. Mas um certo Major Messias (Alan Rocha), meio que ignora seu pedido, alegando não poder fazer nada sem que haja algum tipo de flagrante. Parece justo. De sua janela, a protagonista enxerga uma série de absurdos. Com tudo se tornando ainda pior quando Nina percebe que a má vontade de Messias - aliás, que nomezinho sugestivo - tem raízes mais profundas: corrompido, o sujeito é parte do sistema. Recebe propina dos traficantes pra fazer vistas grossas. E ignorar os crimes cometidos ali. Só que a idosa não desiste. Junta suas economias para comprar uma pequena câmera filmadora - aliás impactante perceber que esse aparato de última tecnologia custava a bagatela de R$ 2.999 em 2005 (algo próximo de dez salários mínimos) -, que gere as evidências necessárias para uma denúncia. Em uma das noites ela assiste um assassinato brutal. Que ela consegue filmar. E levar pra outra delegacia. 

Toda essa movimentação acaba chamando a atenção de um repórter policial de nome Flávio (Alan Rocha), que resolve tentar ajudar no caso. Nina é alertada pelo adolescente Marcinho (Thawan Lucas), um jovem da quebrada - que tem alguma ligação com os traficantes do morro -, e que funciona como uma espécie de neto que a idosa nunca teve, de que ela corre risco de vida se levar seu plano de delação à cabo. Ela alimenta o menino, lhe dá dinheiro para pequenos trabalhos cotidianos (como ajudar a levar as compras) e mantém uma amizade próxima. Já a vizinha Bibiana (Linn da Quebrada) se aproxima da protagonista após um quebra pau na reunião de condomínio - que dá início a uma amizade inusitada, com direito a idas ao bingo e participação em bailes da matinê. Com tensão na medida certa e mesclando instantes bem humorados, com outros absolutamente comoventes, Andrucha Waddington reconstrói a história real Joana Zeferino da Paz, uma mulher determinada e destemida, que preserva um senso de justiça mesmo quando tudo parece querer desabar. Com a identidade mantida em sigilo pelo Programa de Proteção da Testemunha, Joana morreria apenas em 2023, aos 97 anos. Sem ter visto uma resolução real do problema da violência urbana no Rio de Janeiro. Aliás, no no País como um todo.

Nota: 7,5 

 

quarta-feira, 18 de junho de 2025

Cinema - Homem Com H

De: Esmir Filho. Com Jesuíta Barbosa, Caroline Abras, Hermila Guedes, Bruno Montaleone e Rômulo Braga. Drama / Biografia, Brasil, 2025, 129 minutos.

Enquanto nos encaminhávamos para o final da sessão de Homem com H, que estreou ontem na Netflix, virei pra minha companheira e disse: "que bonita uma homenagem dessas ainda em vida". Sim, porque a meu ver, o filme dirigido por Esmir Filho - do premiadíssimo Os Famosos e Os Duendes da Morte (2009) -, é também isso: uma justa maneira de enaltecer um dos maiores artistas ainda vivos e em atuação, que temos a alegria de acompanhar. Falar que Ney Matogrosso era um iconoclasta, um sujeito que quebrava (e segue quebrando) paradigmas, que era e sempre foi um artista com "A" maiúsculo, é meio que chover no molhado. Mas o caso é que, nos tempos que vivemos, esse óbvio, por vezes precisa ser dito. Precisa ser lembrado. Porque o Ney é esse sujeito complexo, furioso, de sexualidade diversa, de corpo sinuoso e ondulante, que, de quebra, ainda tem uma voz única, que segue nos encantando. E, de fato, assistir a tudo isso na telinha é um deleite.

Sim, os cracudos de cinebiografias certamente lamentarão a ausência de polêmicas, de outras histórias importantes ou curiosas ou de outros episódios que marcam a sua trajetória - e que integram o livro de Julio Maria no qual o projeto se inspira. Mas como fazer isso em uma obra de duas horas e pouco? Méritos pro Esmir que, não apenas tentou, mas conseguiu dar um panorama diversificado das origens do menino humilde nascido no Mato Grosso do Sul, que precisava lidar com seu pai militar - que se exasperava com seus modos afeminados -, passando pelas descobertas sexuais e artísticas em meio a um País que mergulharia na Ditadura Militar, até chegar a consolidação daquela figura excêntrica, visceral, escandalosa e cheia de carisma que vemos nos palcos, sempre com adereços vibrantes, figurinos ambíguos e uma presença única. Daquelas que hipnotiza. Assim como ele mesmo, quando menino, seria hipnotizado pela vedete Elvira Pagã (em participação especialíssima da cantora Céu), ainda na infância.

 


Aliás, essa mescla meio bucólica, meio roqueira e polvilhada por tintas neon e de lantejoulas em palcos grandes ou pequenos, que marcariam as apresentações de Ney Matogrosso Brasil afora - fosse nos Secos e Molhados ou mais tarde, em carreira solo -, surge a todo instante, em memórias juvenis ou mesmo em improvisos em estúdio, que o levariam a interpretar com energia única as canções escolhidas para seus discos. Por sinal, essa capacidade meio que de domar a natureza, carregá-la consigo como se ele mesmo fosse também um bicho saído do meio do mato, de uma selva vinda sei lá de onde, surge nas entrelinhas em alegorias muito bem construídas, como no instante em que o artista simplesmente acorda com uma cobra serpenteando em seu peito nu para, sem nenhuma surpresa, recolhê-la e levá-la para uma espécie de criadouro que, aparentemente, ele mantinha em casa (e admito não ter pesquisado se isso era real ou não e, em muitos casos, prefiro a mística do que a verdade).

E, por fim, não dá pra falar de um filme desses sem citar a interpretação magnética de Jesuíta Barbosa, que preenche cada frame da tela com sua presença envolvente, eloquente, única, o que contribuí para que a homenagem nunca soe excessiva, esquemática ou caricatural - por mais excessivos que os trejeitos e os olhares intensos e as curvas corporais improváveis sugiram o contrário. Em certa altura, quando gravava um vídeo para o clássico Sangue Latino, que seria exibido na TV, um dos diretores de filmagem lhe alerta de que evite olhar para a câmera. Mas Ney não se segura. Olha pra nós de forma quase invasiva, a nos desnudar - esse nosso voyeurismo do todo, do corpo, do sangue, das lágrimas e dos fluídos que vertem por todos os lados quando nos deparamos com uma experiência fílmica como essa. Ney Matogrosso disse certa vez: "Sou ousado, sim, sou atrevido, sim, porque eu preciso ser, porque o Brasil está mais careta do que era". Num País em que a extrema direita, o evangelistão, o preconceito e o reacionarismo seguem ditando as regras e passando a boiada como se nada fosse, uma obra como essa não é apenas um regozijo de transgressão. Ela é necessária. O Brasil é pouco para o Ney e tudo o que ele representa. E que bom que seja assim.

Nota: 9,0