quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Curta um Curta - Late Afternoon

Muitas vezes ignoradas no Oscar, as categorias de curta-metragens são capazes de reservar ótimas surpresas para aqueles que se aventuram por elas. E, em muitos casos, nem é tão difícil assim de se ter acesso aos filmes. No caso das animações, quatro das cinco indicadas estão disponíveis no Youtube - e uma é melhor que a outra! Dirigido pela irlandesa Louise Bagnall, o belíssimo Late Afternoon é pura delicadeza em sua abordagem d Mal de Alzheimer (ou de outras doenças relacionadas à perda de memória). O traço é simplíssimo - ainda que eventualmente psicodélico -, mas a mensagem é absolutamente comovente: com o apoio da jovem Kate, a idosa Emily estabelecerá uma conexão com o passado, por meio de memórias afetivas ligadas as coisas mais simples da vida, como uma xicará de chá com biscoitos, uma leitura ou a ida a praia. E em menos de dez minutos, quando tudo se revelar, você certamente estará as lágrimas, nesse pérola que é pequena só em metragem.

Picanha.doc - Minding The Gap

De: Bing Liu. Documentário, EUA, 93 minutos.

O documentário Minding The Gap começa com cenas cotidianas que mostram três jovens andando de skate. Os obstáculos superados no percurso - escadarias, corrimões, vãos - e as manobras realizadas com sucesso parecerão o tipo de metáfora quase óbvia para um filme sobre a prática de um esporte como forma de transpor as dificuldades da vida. Bom, pode-se dizer que, em partes, a película tem esse sentido. Mas apenas em partes. Com a desculpa de filmas os seus amigos em cenas prosaicas desde a juventude, o jovem diretor Bing Liu transforma o documentário em uma obra de arte sobre ritos de passagem para a vida adulta, abordando as dificuldades enfrentadas nesse processo - que poderão ser um filho inesperado ou a busca por um emprego que traga felicidade, o que possibilitará a manutenção do "sonho americano" que alimenta tantas gerações.

E assim perceberemos que, não muito diferente do que ocorre na música Como Nossos Pais, de Belchior, acabaremos por nos "transformar" em versões juvenis de nossos progenitores, abandonando aos poucos as nossas verdadeiras paixões, nossos sonhos e ideologias, substituindo-os pela busca desenfreada do capital, pelo sonho da casa própria, do carro na garagem e de um futuro melhor para os nossos filhos. Enfim, absorvidos pelo sistema, passaremos a ser versões "em negativo" de nós mesmos - as tatuagens uma mera marca patética da juventude que escorreu pelos dedos e o skate o símbolo de um período em que não queríamos pensar em nada que não fosse o prazer do vento no rosto. Nos tornamos "grandes" desde cedo. Cheios de obrigações e de compromissos que nem sempre conseguimos lidar.


Só que isso é pior se você é pobre. Ou se você vem de uma família disfuncional - e, nesse sentido, Bing Liu faz uma verdadeira volta dentro de seu pequeno documentário, para nos fazer constatar que o pior das "famílias de bem" também se perpetua por gerações. Um dos jovens é Zack, que se torna pai muito novo e deve lidar com as implicações dessas responsabilidade, mal tendo um emprego e apenas interessado em andar de skate. Aliás, Rockwell, cidade da Carolina do Norte em que se passa a trama, chegou a registrar o inacreditável número de 47% de desempregados, recentemente. Em certa altura do longa, o grupo de amigos - completado por Kiere - se dá conta de que Zack agrediu fisicamente a sua namorada (e mãe de seu filho), por meio de revelações que vêm a tona. A mesma coisa que o pai de Bing já havia feito com sua mãe. E que algum avô fez com alguma vó. E que em um sistema em que se perpetua o capitalismo desenfreado - e com ele todas as suas frustrações - também é passado adiante o que temos de pior em nós. Um ódio de não sabemos o quê. Uma raiva contida louca para ser extrapolada. Uma intolerância completa.

Nesse sentido, o documentário é não menos do que genial. Nos fará perceber como os jovens absorvem aquilo que seus pais lhes ensinam - com direito a comportamentos beligerantes sendo naturalizados e perpetuados. O mesmo vale para Kiere que, negro em meio a amigos brancos, estará sempre no limite de sofrer preconceito e duas cenas em especial são de partir o coração: uma delas é aquela em que ele explica, sorrindo (de medo, de nervoso), como quase morreu em uma abordagem policial, apenas porque ia pegar os documentos de seu carro no porta-luvas (e quantos jovens não morrem por isso?) e em outra quando os seus amigos gargalham de um vídeo claramente racista, recebido no whats. Essa pequena obra-prima fala de tantos temas - racismo, violência contra a mulher, transição para a vida adulta, problemas sociais -, com uma edição tão leve, juvenil, cheia de enquadramentos espertos e dinâmicos, que é simplesmente impossível não ser arrebatado. O que explica a justa indicação para a sua categoria, no Oscar desse ano.

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Novidades em DVD - No Coração da Escuridão (First Reformed)

De: Paul Schrader. Com Ethan Hawke, Amanda Seyfried, Michael Gaston e Philip Ettinger. Drama / Suspense, EUA, 2018, 113 minutos.

Ciência e a religião apresentadas como forças antagônicas não chega a ser exatamente uma novidade no cinema, mas a temática é explorada de forma bastante sutil (e nem por isso menos comovente), no ótimo No Coração da Escuridão (First Reformed). Na trama, Ethan Hawke é o reverendo Toller - ex-militar que, agora como capelão do reformatório que dá o nome original ao filme, luta para tentar superar um trauma relacionado ao passado (e a guerra). A visita da jovem paroquiana Mary (Amanda Seyfried) trás uma notícia que pode bater de frente com as suas convicções: o marido da jovem, de nome Michael (Philip Ettinger), é um ativista político que luta pelas causas ambientais, ao mesmo tempo que não aceita a gravidez da esposa, sugerindo-lhe o aborto. O seu argumento? Resumidamente: não dá para colocar uma criança no mundo como ele está e com a (auto)destruição que estamos promovendo.

Enquanto pensa em formas de demover Michael da ideia, um baque: uma carta para que o reverendo lhe encontre na floresta, será o ato final antes de o rapaz dar fim a própria vida. Intrigado com o caso, Toller - um alcoólatra de carteirinha, que parece estar sofrendo de alguma grave doença - passará a "investigar" o ocorrido, o que o fará perceber que o desespero e o sentimento de impotência do jovem que se suicidou tem a ver também com a hostilidade de um mundo de grandes corporações que, gananciosas, exploram a natureza a exaustão sem pensar nas consequências - e o fato de ter assistido ao filme e estar escrevendo esta resenha justamente na semana em que o crime de Brumadinho ocorreu, não deixa de ser uma triste ironia. Aliás, essas mesmas empresas serão responsáveis por patrocinar a paróquia em um grande evento de aniversário que se aproxima. Como conciliar tudo isso?


Toller parece ter, no fim das contas, um espírito progressista e muito mais alinhado ao que prega a Bíblia no que diz respeito à comunhão com a natureza e ao respeito a essa. E, diante das adversidades, o padre se sentirá à vontade para assumir um pouco as "idéias" de Michael - e a previsível aproximação de Mary reforçará esse cenário (assim como uma sequência que vai no limite do metafísico e que parece ser fundamental para o reforço das convicções do protagonista). Tudo é inacreditavelmente devagar, como se o filme avançasse em uma frequência mais lenta, capaz de transformar o torpor das personagens e mesmo os diálogos "mansos" em uma metáfora para a letargia (quase) coletiva que vivemos em relação ao tema do meio ambiente e das dificuldades que temos em questionar o capitalismo (essa espécie de Deus paralelo capaz de corromper e de fazer os sujeitos mostrarem o seu pior em nome do dinheiro).

Toller anota tudo o que faz em um diário: e reuniões a portas fechadas com "peixes grandes" da indústria (aquelas mesmas que fazem propaganda de responsabilidade social, mas que estão CAGANDO para isso) e da igreja, farão vir à tona uma figura pessimista e cética que, entregue a bebida, estará também disposta a uma última cartada para a redenção - como nos mostrará o terço final. Repleto de rimas visuais - aquela em que o protagonista mistura conhaque com um antiácido formando a partir de então um ectoplasma apodrecido (assim como está o nosso mundo fétido que só vê as calotas polares derreterem, o aquecimento global aumentar e tragédias ambientais serem encaradas apenas como isso... tragédias) é uma das melhores -, No Coração da Escuridão faz jus a indicação ao Oscar na categoria Roteiro Original para o diretor Paul Schrader (famoso pelo roteiro de Taxi Driver). Como uma espécie de Travis Bickle (o inesquecível personagem de De Niro) de batina, Toller mergulhará fundo em uma espiral vertiginosa que evidenciará o que dá de pior nas grandes instituições, sendo só o amor, divino que só ele, capaz de salvar. Se é que salva.

Nota: 8,5

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Cine Baú - Chinatown (Chinatown)

De: Roman Polanski. Com Jack Nicholson, Faye Dunaway, Harry Caul, Diane Ladd e John Huston. Drama / Suspense, EUA, 1974, 130 minutos.

Um roteiro intrincado e cheio de reviravoltas, grandes interpretações do elenco principal, um clima carregado de cinema noir à moda dos anos 30 em meio as tintas amareladas de uma Los Angeles calorenta, que começa a se formar. Essas são algumas das tantas características que tornam Chinatown (Chinatown), de Roman Polanski, um clássico tão fundamental. É a obra-prima do estilo por excelência: há um protagonista cínico e atormentado por algo que ocorreu no passado, a femme fatale misteriosa que sempre nos deixa em dúvida sobre a verdade, uma história misteriosamente densa e um senso de humor excêntrico em meio ao quebra-cabeças montado - a ponto de sequer nos surpreendermos com o fato de o detetive Jake Gittes (Jack Nicholson em mais uma de suas tantas caracterizações inesquecíveis), passar boa parte da projeção usando um curativo em seu nariz estropiado.

O filme começa no escritório de Gittes, quando ele recebe a visita de uma certa Ida Sessions (Diane Ladd) que alega que o seu marido Hollis Mulwray (Harry Caul) - engenheiro-chefe do departamento de Águas e Energia da cidade, tem uma amante. Após algumas fotos que comprovam que Mulwray realmente estava tendo um caso, a farsa é desmascarada: a verdadeira senhora Mulwray (Faye Dunaway) aparece no escritório de Gittes furiosa, deixando claro que jamais lhe contratou e, de quebra, processando-o. Intrigado com o mistério, Gittes passa a perseguir sorrateiramente Mulwray pela cidade, em locais próximo a represa e outros para tentar entender qual a motivação por trás do episódio ocorrido (que vira escândalo na mídia local). Não demora para que o homem apareça morto, tornando o quebra-cabeças ainda mais complexo.


O que no começo é para ser uma prosaica investigação de adultério se transforma rapidamente em uma trama sobre a ganância, com homens poderosos e engravatados em seus gabinetes, dipostos a fazer de tudo para se dar bem. Aos poucos o departamento de Água e Energia se mostra um antro de pessoas corruptíveis: Mulwray, avesso a ideia de construção de uma represa que poderia representar riscos para os moradores e que agradaria apenas a grandes produtores da parte oeste da cidade, aparentemente tem inimigos. E talvez a motivação política tenha falado muito mais alto do que a romântica - impressão que é aumentada após Gittes entrar em contato com Noah Cross, pai de Evelyn Mulwray e antigo parceiro de negócios do ex-marido desta. Na fachada são muitos os suspeitos e cabe a Gittes, com seu sorriso debochado e modos tranquilos, tentar desenrolar o novelo.

É um filme complexo, cheio de idas e vindas e que, de alguma forma, exige algum tipo de atenção do espectador. Detalhes como a simples presença de um objeto dentro de uma piscina natural nos fundos da mansão de Mulwray podem ser a chave para a resolução do mistério. É um drama denso e pesado, um suspense grandioso que, sutilmente, também aposta no deboche (e a cena em que o próprio Polanski aparece é, sem dúvida, uma das melhores). O desfecho trágico no bairro Chinatown dá conta de que não há redenção para toda aquela coleção de desajustados ambiciosos que vemos na tela - e os traumas de Gittes acabam por retornar com força, enquanto assistimos os créditos subir. Figurinha fácil em listas de melhores é o 19º melhor filme estadunidense da história, de acordo com o American Film Institute. No Oscar daquele ano só não foi tão bem sucedido porque havia um certo O Poderoso Chefão 2 no caminho. Mas isso é outra história.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Lado B Classe A - MØ (Forever Neverland)

A existência desse Lado B Classe A é uma forma de fazer justiça com a dinamarquesa : lançado em outubro do ano passado, Forever Neverland é um discaço que passou completamente batido por nós. Um discaço de música pop - daquelas mais grudentas e radiofônicas - que vai te fazer ficar com as canções na cabeça por semanas a fio. Até enjoar. Até não aguentar mais o refrão. Mas até lá você vai ouvir, ouvir e ouvir de novo. E ficar pensando como que é possível algo tão sensacional! Eu não sei quem inventou a música pop, mas certamente esta pessoa deve estar orgulhosa, onde quer que esteja. E pra quem não está ligando o nome a pessoa, a  é aquela que a gente se acostumou a ver em colaborações com bandas como o Major Lazer em músicas como Cold Water e Lean On - que contavam com as participações de Justin Bieber e DJ Snake respectivamente.

Mas essas músicas, sinceramente, não são nada. A crítica esperava, aparentemente, que depois do álbum No Mythologies to Follow (2014), levemente mais hermético que este registro, a artista se aprofundasse ainda mais em sonoridades pouco óbvias, mais profundas e mais solenemente adultas (especialmente agora, que ela recém completou 30 anos). Mas não. O título do trabalho não parece ser mera homenagem: como uma espécie de Peter Pan do mundo da música disposta a se divertir sem restrições, aberta ao ecletismo dos estilos, livre de qualquer amarra, MØ entrega um álbum leve, fluído, fácil de ser apreciado. As canções não seguem uma lógica específica (ou um "conceito", aliás, troço mais chato): elas apenas acontecem e nos vão dando aquela sensação de calor primaveril da juventude, onde a gente só quer expressar as nossas angústias sem ficar refletindo demais sobre o que os outros estão pensando.


O álbum abre na calmaria com Intro, onde a artista é sincera nos versos que dizem desavergonhadamente Isso é o que eu queria em toda a minha vida. Da segunda música (Way Down), até a sétima (Mercy), talvez tenhamos uma das melhores "primeiras metades" de disco desse novo milênio. A primeira tem batidinha do trap em modo econômico (e caribenho), la la las e uhs! que ancoram o refrão grudentíssimo. A segunda tem a lentidão necessária de quem vai pedir desculpas, mas quer a atenção do interlocutor. Uma canção que começa vagarosa, tem uma ponte que cresce e aquela refrão em modo "coro", que vai te fazer cantar a melodia mentalmente por dias. E você não vai se importar com isso, claro. E ainda tem a letra, que não poderia ser mais comovente - Eu preciso de misericórdia, eu estou te implorando por favor / Você sabe que eu não posso ver sem você.

No meio do caminho o pop convencional de sintetizadores e estalinhos de dedos de I Want You, culminando naquele refrãozão que não faria feio num disco da Carly Rae Japsen. Há ainda Nostalgia (que nos fará ter saudade de algo que não sabemos o quê) e Sun In Our Eyes (mais uma daquele tipo pra cantar junto a plenos pulmões). E aí chegamos a Blur, que mais parece um encontro da artista com a música alternativa - e ela tem um espírito meio Pixies, meio Sonic Youth, no caminho, que torna esta a melhor canção do álbum (rivalizando com Mercy). O trabalho segue com mais um punhado de grandes músicas como If It's Over, Beautiful Wreck e Purple Like The Summer Rain. Participações de outros artistas como Diplo, Charlie XCX e Empress Of, somada a uma dúzia de produtores, transformam o trabalho em uma miscelânea de estilos, capaz de ir das emanações latinas (Red Wine) à economia das baladas à moda da Lorde (Trying To Be Good) em segundos. Mas o que se sobressai mesmo é o pop cintilante, juvenil, daquele que a gente sempre está disposto a ouvir.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Músicas Gêmeas - Lady Gaga x Madonna

Um dos casos mais conhecidos de "plágio" - ou seria homenagem? - do mundo da música envolve as cantoras Lady Gaga e Madonna. Quando Gaga lançou Born This Way, no começo de 2011, a música imediatamente foi para o topo das paradas e para os Trending Topics do Twitter. Mas não demorou muito para que os fãs da Rainha do Pop percebessem as semelhanças com o megahit Express Yourself, que integra o disco Like A Prayer, de 1989. Não bastassem o ritmo e o encaixe dos versos absolutamente parecido, as canções ainda possuem letras semelhantes sobre empoderamento e respeito as diferenças. Em entrevista à Revista Newsweek alguns meses depois, Madonna não polemizou - até mesmo porque Gaga é declaradamente fã da primeira: "eu achei uma forma incrível de refazer minha música. Quero dizer, eu percebi as mudanças nos acordes. Mas eu achei… interessante”, afirmou. Polêmicas a parte, o que importa mesmo é que ambas são duas grandes canções que estarão para sempre no coração dos fãs da boa música!


Novidades em DVD - Buscando... (Searching)

De: Aneesh Chaganty. Com John Cho, Debra Messing, Michelle La e Joseph Lee. Suspense / Drama, EUA, 2018, 102 minutos.

A trama de Buscando... (Searching) não poderia ser mais convencional: homem que perdeu a esposa vítima de câncer, precisa lidar ainda com o desaparecimento inesperado da filha adolescente, que some sem muita explicação. Sim, a gente já viu essa história muitas vezes em Hollywood. Só que a grande diferença deste para outros filmes do gênero é o uso da tela do computador como recurso narrativo. A obra do diretor estreante Aneesh Chaganty - que fez barulho no último Festival de Sundance - se desenrola TODA dessa maneira. Não há grandes planos gerais, travellings criativos ou uso de gruas e outras técnicas de captura a que estamos acostumados, no cinema. Tudo o que vemos é David (John Cho), tendo seu desespero aumentado conforme tenta buscar alguma pista para o caso, invadindo o notebook da jovem Margot (Michelle La), de apenas 16 anos.

Hábil em sua grande sequência inicial, o filme torna o espectador íntimo daquela família em apenas cinco minutos. Com imagens, fotos e textos de arquivo acompanharemos a luta da esposa/mãe contra o câncer, as pequenas vitórias, tristezas, anseios e frustrações que levarão pai e filha a se tornarem figuras enlutadas - ainda que unidas. Margot faz aulas de piano e, como ocorre com qualquer adolescente, irrita o pai pela descompromisso com atividades prosaicas relacionadas à organização da casa, como levar o lixo para fora. David cobra Margot em uma série de mensagens a respeito disso, enquanto ela está na aula. Margot não responde. Ela fica horas sem responder. David começa a ficar preocupado, ensaia outras mensagens, começa a ligar para amigos, para pais de amigos, mas ninguém sabe do paradeiro da jovem, não restando alternativa a não ser o chamado à polícia.


Como já foi comentado aqui na resenha, tudo o que assistimos é um pai desesperado, diante da tela do computador, tentando encontrar alguma pista nas redes sociais, em alguma diálogo que tenha ficado subentendido ou que possibilitasse uma explicação lógica para o sumiço (ele até se tranquiliza ao lembrar que a filha tinha um acampamento previsto). Mas não. Ela some mesmo, deixando para trás inclusive o seu notebook pessoal. E será "entrando" nele que David "descobrirá" a sua filha, invadindo as suas redes sociais e vendo como ela se comportava em sites diversos como Facebook e Instagram, quais fotos publicava, com quem trocava mensagens no webmessenger, quem lhe curtia, quem era os eventuais haters, aqueles que tinham interesse ou que apareciam em suas fotos. Na internet, encontrará um verdadeiro dossiê que lhe mostrará como ele, de fato, não conhecia a sua filha. E a entrada no Youcast, em que verá uma série de vídeos publicados, ampliará esse sentimento.

Enquanto investiga de forma particular, David contará com o apoio da detetive Rosemary Vick (Debra Messing, a eterna Grace de Will & Grace, em um papel bem mais sério). A polícia procurará pistas e até obterá uma confissão com aquela cara de "notícia falsa". O que vai deixando David insatisfeito e desconfiado de todos a sua volta, até mesmo do irmão Peter (Joseph Lee) - não por acaso, a cena em que ambos se confrontam é uma das melhores da película. Usando o filme muito menos como um veículo para a crítica as redes sociais e a tecnologia e muito mais como uma ferramenta onipresente em nosso dia a dia, a obra é hábil em sua atenção aos detalhes (anda que seja econômico no cenário). Nesse sentido, não deixa de ser interessante notar como, ao enviar mensagens desesperadas ao seu irmão sobre o sumiço da filha, a produção se ocupe em demonstrar que, em mensagens anteriores que não nos são mostradas, ambos já teriam se conversado, com David tendo escrito a Peter sobre o acampamento da filha (em um tom apaziguador). O tipo de detalhe que enriquece a narrativa, sem torná-la cansativa.


Ainda que as reviravoltas do terço final possam soar eventualmente forçadas, o filme ainda aborda, de passagem, temas como a excessiva proteção exercida pelos pais na modernidade (ainda que estes pareçam ignorar solenemente aquilo que ocorre em um ambiente eventualmente perigoso, como as redes). Ainda que absolutamente tensa, a película não deixa de ter um ou outro momento de humor involuntário, seja nas pesquisas de David no Google, ou mesmo na improvável cena em que o pai desesperado confronta um jovem colega de Margot na fila do cinema, já que ele acredita que o jovem é o culpado pelo desaparecimento (evidentemente a sequência é filmada, disponibilizada no Youtube e viraliza, tornando David uma figura patética que ainda lhe transforma em um meme com os escritos "pior pai do ano"). É uma obra ágil, que acerta em cheio na forma, recriando de maneira criativa uma temática já um tanto batida.

Nota: 7,5

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

10 Considerações Sobre os Indicados ao Oscar 2019

A Academia divulgou na manhã desta terça-feira (22/01), a lista de indicados ao Oscar 2019, para a premiação que ocorre no próximo dia 24 de fevereiro. Como é de praxe, a gente faz aqui as nossas 10 Considerações a respeito dos nominados.

1) Todo o mundo já sabia que o Roma seria indicado na categoria Filme em Língua Estrangeiro - aliás, ele é o FAVORITAÇO nessa - mas, 10 indicações?! Este fato coloca a obra do diretor Alfonso Cuáron ao lado de O Tigre e O Dragão (2000), de Ang Lee, como o filme de língua não inglesa com o maior número de nominações na história. Nas bolsas de apostas, Roma aparece com boas possibilidades de faturar a estatueta na principal categoria da noite. Em 2001, O Tigre e O Dragão viu Gladiador (2000) levar o prêmio para casa. Ah, ainda: Roma é o primeiro filme da Netflix a ser indicado na categoria principal.

2) Ainda sobre Roma, gratíssima surpresa a presença da Marina de Tavira entre as indicadas na categoria Atriz Coadjuvante. Nas bolsas de apostas, a atriz que interpreta a patroa, no filme de Cuarón, era tratada como uma possibilidade bastante remota. Uma pena para a Claire Foy, que se entrega MUITO em um filme bem mais ou menos como O Primeiro Homem.


3) Aliás, se há um filme que perdeu bastante espaço na reta final para a divulgação dos indicados, foi O Primeiro Homem. Todas as quatro indicações são apenas em categorias técnicas. Por outro lado, uma obra que ganhou força foi Vice, que foi indicado em oito categorias, entre elas Filme, Diretor (Adam McKay) e Ator (Christian Bale).

4) Sempre fico com a impressão de que oito indicados na categoria Melhor Filme é sinal de "safra fraca". Sei lá. A impressão é reforçada pela presença de filmes bons, mas não espetaculares como Bohemian Rhapsody, que foi crescendo nessa reta final de maneira quase surpreendente (com direito a vitórias no Globo de Ouro). Ainda não assistimos o Se a Rua Beale Falasse, mas de antemão já posso dizer que senti falta desse filme na categoria principal - especialmente pela relevância do tema que discute. No mais, já assistimos Pantera Negra, Roma e Infiltrado na Klan e são todos ótimos.

5) Surpresa MESMO foi a presença do polonês Pawel Pawlikovski, na categoria Melhor Diretor, pelo esteticamente irrepreensível Guerra Fria - que também figura na categoria Filme em Língua Estrangeira (aliás, está aí uma categoria para sempre se estar atento, já que normalmente conta com belas obras). E se há uma categoria democrática este ano é a de diretor. Tem o grego Yorgos Lanthimos (que adoramos) por A Favorita e o mexicano Alfonso Cuarón, por Roma. Bradley Cooper, que tinha a sua indicação quase como certa nessa categoria, ficou de fora. Por outro lado, a ausência das mulheres nessa categoria foi bastante sentida - e não era por falta de candidatas já que Você Nunca Esteve Realmente Aqui e Sem Rastros, só pra ficar em dois, tinham elas no comando (Lynne Ramsey e Debra Granik, no caso).


6) Adoramos a presença de A Balada de Buster Scruggs, dos Irmãos Coen, na categoria Roteiro Adaptado - algo que poucos previam! Ainda não assistimos o filme mas, assim como ocorre com Roma, ele está disponível na Netflix, para quem quiser começar a se atualizar sobre os indicados.

7) Maior injustiça do MUNDO o documentário Won't You Be My Neighbor? não ter sido lembrado em sua categoria. Tudo bem, ainda não assistimos nenhum dos outros, mas é injustiça igual. Trata-se de um filmaço que era um dos favoritos, inclusive para ganhar. No final acabou esquecido.

8) Surpresa também foi a presença de Willem Dafoe na categoria ator pelo filme No Portal da Eternidade (aliás, obra que desperta MUITA curiosidade). Difícil será enfrentar a comoção por trás da caracterização de Rami Malek em Bohemian Rhapsody.


9) Pouca gente sabe, mas o Brasil tinha uma remota possibilidade de participar da premiação desse ano, na categoria Animação, pelo filme Tito e Os Pássaros. Infelizmente não deu.

10) Ainda é meio cedo pra falar em favoritos nas categorias principais, mas o Green Book: O Guia faturou o prêmio do Sindicato dos Produtores no último final de semana (único prêmio dos sindicatos a ser divulgado antes de ser liberada a relação dos finalistas para o Oscar). Normalmente é o melhor termômetro já que funcionou em 19 vezes de 27. Na categoria Atriz já estamos na torcida pela Glenn Close por seu belo trabalho em A Esposa (é sua sexta indicação). Não vimos o Vice, mas há muito falatório em cima da caracterização de Bradley Cooper como o vice-presidente americano Dick Cheney. Outra incógnita que será certamente resolvida com as premiações do Sindicato será diretor, mas que ia ser ótimo ver o Spike Lee subindo ao palco, em sua primeira indicação, para receber a estatueta por Infiltrado na Klan, seria!

Todos os indicados:


Melhor filme

Pantera Negra

Infiltrado na Klan

Bohemian Rhapsody

A Favorita

Green Book: O Guia

Roma

Nasce Uma Estrela

Vice


Melhor diretor

Spike Lee, Infiltrado na Klan

Pawel Pawlikowski, Guerra Fria

Yorgos Lanthimos, A Favorita

Alfonso Cuarón, Roma

Adam McKay, Vice


Melhor roteiro original

Deborah Davis e Tony McNamara, A Favorita

Paul Schrader, No Coração da Escuridão

Nick Vallelonga, Brian Currie e Peter Farrelly, Green Book: O Guia

Alfonso Cuarón, Roma

Adam McKay, Vice


Melhor filme estrangeiro

Cafarnaum (Líbano)

Guerra Fria (Polônia)

Nunca Deixe de Lembrar (Alemanha)

Roma (México)

Assunto de Família (Japão)


Melhor atriz

Yalitzia Aparicio, Roma

Glenn Close, A Esposa

Olivia Colman, A Favorita

Lady Gaga, Nasce uma Estrela

Melissa McCarthy, Poderia Me Perdoar?


Melhor ator

Christian Bale, Vice

Bradley Cooper, Nasce uma Estrela

Willem Dafoe, No Portal da Eternidade

Rami Malek, Bohemian Rhapsody

Viggo Mortensen, Green Book: O Guia


Melhor roteiro adaptado

A Balada de Buster Scruggs

Infiltrado na Klan

Poderia Me Perdoar?

Se a Rua Beale Falasse

Nasce uma Estrela


Melhor Fotografia

Guerra Fria

A Favorita

Nunca Deixe de Lembrar

Roma

Nasce Uma Estrela


Melhor atriz coadjuvante

Amy Adams, Vice

Marina de Tavira, Roma

Regina King, Se a Rua Beale Falasse

Emma Stone, A Favorita

Rachel Weisz, A Favorita


Melhor ator coadjuvante

Mahershala Ali, Green Book: O Guia

Adam Driver, Infiltrado na Klan

Sam Elliot, Nasce uma Estrela

Richard E. Grant, Poderia Me Perdoar?

Sam Rockwell, Vice


Melhor design de produção

Pantera Negra

A Favorita

O Primeiro Homem

O Retorno de Mary Poppins

Roma


Melhor figurino

A Balada de Buster Scruggs

Duas Rainhas

O Retorno de Mary Poppins

A Favorita

Pantera Negra


Melhor trilha sonora

Pantera Negra

Infiltrado na Klan

O Retorno de Mary Poppins

Se a Rua Beale Falasse

Ilha de Cachorros


Melhor canção original

All the Stars (Mark Spears, Kendrick Lamar, Anthony Tiffith e Solana Rowe), Pantera Negra

I'll Fight (Diane Warren), RBG

The Place Where Lost Things Go (Marc Shaiman e Scott Wittman), O Retorno de Mary Poppins

Shallow (Lady Gaga, Mark Ronson, Anthony Rossomando e Andrew Wyatt), Nasce uma Estrela

When a Cowboy Trades His Spurs for Wings (David Rawlings e Gillian Welch), A Balada de Buster Scruggs


Melhor efeitos visuais

Vingadores: Guerra Infinita

O Primeiro Homem

Jogador Nº 1

Solo: Uma História Star Wars

Christopher Robin — Um Reencontro Inesquecível


Melhor cabelo e maquiagem

Border

Duas Rainhas

Vice


Melhor animação

Os Incríveis 2

Ilha de Cachorros

Mirai

Wifi Ralph: Quebrando a Internet

Homem-Aranha: No Aranhaverso


Melhor curta-metragem de animação

Animal Behaviour

Bao

Late Afternoon

One Small Step

Weekends


Melhor curta-metragem

Detainment

Fauve

Marguerite

Mother

Skin


Melhor curta-metragem de documentário

Black Sheep

End Game

Lifeboat

A Night At The Garden

Period. End of Sentence


Melhor documentário

Free Solo

Hale County This Morning, This Evening

Minding the Gap

Of Fathers and Sons

RBG


Melhor edição

Infiltrado na Klan

Bohemian Rhapsody

A Favorita

Green Book: O Guia

Vice


Melhor edição de som

Pantera Negra

Bohemian Rhapsody

O Primeiro Homem

Um Lugar Silencioso

Roma


Melhor mixagem de som

Pantera Negra

Bohemian Rhapsody

O Primeiro Homem

Roma

Nasce uma Estrela

Pérolas da Netflix - A Sociedade Literária E a Torta de Casca de Batata (The Guernsey Literary And Potato Peel Pie Society)

De Mike Newell. Com Lily James, Michiel Huisman, Glen Powell, Mathew Goode e Penelope Wilton. Drama, Reino Unido / EUA, 2018, 123 minutos.

É um chavão dos mais antigos aquele que diz que "ler é viajar" e, metaforicamente, pode-se dizer que é exatamente isto o que ocorre com Juliet Ashton (Lily James), protagonista do precioso A Sociedade Literária E a Torta de Casca de Batata (The Guernsey Literary And Potato Peel Pie Society), disponível na Netflix. Juliet é uma escritora da Londres de 1946 que decide visitar Guernsey, uma das ilhas britânicas tomadas pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, depois que ela recebe uma carta de um fazendeiro que conta sobre um clube do livro que foi fundado no local, como forma de driblar a vigilância do Reich durante a guerra. O ponto em comum entre esse fazendeiro - seu nome é Dawsey (Michiel Huisman) - e a escritora é uma antiga cópia do livro Contos de Shakespeare, do escritor Charles Lamb, que está em Guernsey e possui uma dedicatória de Juliet.

Na verdade são poucas as cópias de livros existentes naquele povoado, no pós-guerra (muitos volumes foram confiscados, nunca é demais lembrar) e tudo o que Dawsey deseja é que Juliet lhe envie algum tomo para que o clube possa continuar tendo a sua lógica de existência preservada. Só que a escritora, que passa por um período de "bloqueio criativo" e de pouco prestígio entre seus pares, fica fascinada com essa história e resolve ir atrás do povoado, com o firme propósito de escrever um artigo para o jornal The Times sobre o grupo. Bom, não é preciso ser nenhum adivinho para supôr que Juliet e Dawsey se aproximarão bastante - eles têm a paixão pela literatura em comum - a despeito da jovem ter, recentemente, se tornado noiva de Mark (Glen Powell), um soldado do exército americano.


Muito menos preocupado em exorcizar demônios de guerra ou discutir literatura com algum grau de profundidade, o mais recente filme do diretor Mike Newell (O Sorriso de Monalisa) é uma obra sobre pessoas em busca da felicidade, em um contexto de bastante sofrimento. A maneira como o clube se forma pode até ser divertida - ainda que seja absurdamente melancólico pensar na necessidade de uma "torta de casca de batata" - mas os traumas relativos aos anos de guerra ainda pesam, e não é por acaso que a turrona Amelia (a sempre competente Penelope Wilton) se recusa frontalmente a autorizar Juliet a escrever o tal artigo. Por meio de flashbacks, descobriremos que a generosa Elizabeth (Jessica Brown Findlay) está desaparecida e que a sua pequena filha Kit (Eli Ramsey) foi adotada por Dawsey.

Como de praxe nas obras de Newell, o desenho e produção é caprichado - bem como o figurino -, o que conferirá verossimilhança à obra. Aqui e ali, é possível ainda perceber que Juliet era uma figura à frente de seu tempo, ao abrir mão de um casamento com um homem rico, que se apresenta controlador (a cena em que ele sugere que não deveria ter "deixado" Juliet ir a Guernsey é ótima), para optar por um caminho que, muito provavelmente, lhe fará mais feliz. Nesse sentido, a obra passa de raspão em temas como feminismo e igualdade entre gêneros (e não seria nenhum pecado se houvesse um desenvolvimento maior desses assuntos, ainda que a sutileza da abordagem não prejudique a apreciação). Com um elenco carismático - completado ainda por Matthew Goode, que interpreta o simpático editor Sidney - A Sociedade Literária... é daqueles filmes para assistir de alma leve, sem grandes pretensões já que tudo se encaminha para um desfecho previsível e que acertará em cheio o coração dos cinéfilos.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Cinema - WiFi Ralph: Quebrando a Internet (Ralph Breaks The Internet)

De: Rich Moore e Phil Johnston. Com John C. Reilly, Sarah Silverman, Gal Gadot, Taraji P. Henson e Ed O'Neill. Animação, EUA, 2018, 113 minutos.

Desde a conclusão de Detona Ralph (2012), a "vida" está mais do que tranquila para a improvável dupla Ralph (John C. Reilly) e Vanellope (Sarah Silverman). Em meio a rotina de trabalho nos games em que ambos atuam, um sentimento de tédio que só é quebrado quando um cabo de internet é adicionado ao emaranhado de fios do fliperama que permite a existência das personagens. Só que na intenção de dar uma modificada no cenário do adocicado e multicolorido jogo de corrida Sugar Rush (que tem Vanellope como umas corredoras), Ralph acaba fazendo com que a jovem que está jogando o game quebre o manche do Arcade. Fliperama é um troço bastante anos 80 e a dificuldade em se conseguir a peça que mantenha viva a engenhoca será o preâmbulo para um sem fim de novas aventuras em WiFi Ralph: Quebrando a Internet (Ralph Breaks The Internet).

Parece complicado de entender, mas no universo de mais esta espetacular animação, não é. Tudo não passa de uma desculpa esfarrapada para que Ralph e Vanellope "entrem" na internet, tentando encontrar de toda forma o eBay - onde a peça está sendo comercializada num lance inicial de 200 dólares. Um equívoco faz com que o preço do objeto aumente exponencialmente, o que faz com que a dupla invista em outras alternativas - como os cliques em pop ups que prometem ganhar dinheiro jogando videogame ou mesmo no universo dos vídeos virais. Esta última alternativa lhes possibilitará conhecer Yesss (Traji P. Henson), espécie de "curadora" de um site de vídeos chamado BuzzzTube, que lhes auxiliará na produção de memes que poderão render cliques, fama e, consequentemente, o dinheiro necessário para a compra do manche do Sugar Crush.


Muito mais do que a busca pelo objeto em si, o filme de Rich Moore e Phil Johnston tem uma mensagem poderosa sobre amizade e respeito às diferenças (e as decisões que tomamos na vida). Quando Vanellope entra no universo sombrio do game Slaughter Race - comandado pela anti-heroína Shank (Gal Gadot), a menina percebe que talvez o universo de Sugar Crush já não lhe seja mais suficiente. E a dificuldade de Ralph em compreender essa mudança de comportamento, resultará em algumas das mais comoventes sequências. "As pessoas mudam. Os amigos mudam". E o filme se esforça em fazer com que os pequenos que assistem à divertida obra, compreendam isso. Ralph e Vanellope saem juntos com o mesmo objetivo, mas ao final talvez trilhem caminhos diferentes. O que não significa que eles deixarão de se gostar.

Sim, o filme pode até soar eventualmente infantil - muitas vezes o excesso de cores quase nos deixa tontos -, mas, como é de praxe em projetos dessa natureza, há um sem fim de boas piadas que agradarão também os adultos. O momento em que Ralph encontra o "setor de comentários" dos vídeos que está fazendo ou mesmo a composição absurdamente sombria da Deep Web (e de um certo vilão do terço final) serão daqueles de fazer sorrir e se assustar ao mesmo tempo. O mesmo vale para a mensagem sobre gênero no cinema e, certamente, nunca vimos as princesas da Disney tão à vontade como neste filme! Piadas sobre os pelos no corpo do Zangief ou sobre as dificuldades em se criar 15 filhos também estarão espalhadas, aqui e ali, levando o projeto ao para o limite entre a diversão e a reflexão. Sim, não vai mudar o mundo mas é bacana de assistir.

Nota: 7,5

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Picanha.doc - Won't You Be My Neighbor?

De: Morgan Neville. Documentário, 94 minutos.

Tomar conhecimento de histórias que a gente sequer sonhava que existiam é uma das tantas coisas mágicas possibilitadas pelo cinema. E, no caso dos documentários, essa sensação é maior ainda! Won't You Be My Neighbor? - obra que provavelmente estará entre as indicadas ao Oscar em sua categoria - tem como figura central Fred Rogers famoso apresentador da televisão americana, que esteve no ar por mais de 30 anos em um programa voltado ao público infantil do canal educativo PBS (seria a nossa TV Cultura). Avesso ao padrão televisivo "atiro uma torta na cara de alguém para dar risada depois", Rogers foi na contramão do meio sendo utilizado (apenas) como entretenimento puro. Para ele, um programa de TV deveria ajudar a criança não apenas a compreender questões básicas da vida - fosse por meio do uso de jogos e de fantoches - como deveria ser o veículo de aprendizado para temas espinhosos como luto e respeito às diferenças.

No lugar de programas e de desenhos ultracoloridos, frenéticos e que viam as crianças apenas como mais um veículo para o consumo, um cenário prosaico em tons pasteis, reis, rainhas e animais de pano falantes e a voz plácida de Rogers - um padre que também tocava piano - guiando tudo. Tinha tudo pra dar errado, claro. Quem assistiria um negócio sonolento desses? Mas nos primórdios da televisão americana, o show foi um fenômeno de audiência. Pais, mães e crianças ficaram paralisadas diante da simplicidade comovente do apresentador, de sua serenidade e de seu traquejo na abordagem dos mais variados assuntos. Em cada um dos mais de 1.700 programas, uma lição de moral diferente, exibida de forma sinuosa, envolvente. Em um deles, por exemplo, Rogers convida o policial negro Clemmons (o músico François Clemmons) a escaldar os pés junto com ele, em um dia de calor. Nos anos 60, ainda era muito comum a segregação, com negros distantes dos ambientes frequentados pelos brancos. Rogers queria demonstrar, com a sua singela e sutil esquete, que não havia problema algum nisso.



Um filme sobre um apresentador de TV visionário, sem dúvida nenhuma conta com um riquíssimo material visual que o embase. Em meio a cenas de bastidores e dos próprios programas, integrantes da equipe técnica, familiares, jornalistas, pesquisadores e até personalidades, como o violoncelista (e amigo pessoal) Yo Yo Ma, falam sobre a trajetória de Rogers e de seus esforços (quase como uma luta pessoal) na aposta da gentileza, da bondade e da empatia, como forma de comunicação. O apresentador definia a sua vizinhança (que seria uma metáfora para todas elas) como "um espaço para pessoas diferentes, com opiniões diferentes, conviverem de forma harmoniosa". Mensagens sobre se aceitar como se é, numa espécie de comunicação quase espiritual, elegíaca e sem excessiva retórica, era a sua forma de trabalhar. Enquanto os Estados Unidos se transformavam - Bobby Kennedy era assassinado e missões da NASA à Lua falhavam - Rogers se empenhava em explicar cada uma dessas questões, didaticamente, sem nunca pesar a mão, para as crianças americanas. Sim, o mundo estava lá, ele não era fácil e as crianças americanas precisavam compreender isso.

Foi dessa forma que Rogers e as crianças criaram um vínculo eterno com ele. Ele ajudou a formar uma geração inteira de americanos? Não, os detratores o acusavam de várias coisas - de alienação, de fazer as crianças acreditarem que eram mais "importantes do que eram, na verdade" e até de ser gay. Aliás, nas cenas de arquivo lamentáveis de sua morte, um grupo de fanáticos intolerantes - daqueles que hoje em dia votariam no Trump e no Bolsonaro - vociferavam mensagens cheias de ódio à uma figura que deturpava (de acordo com eles), a visão do ideal da "família americana" - por mais que ele fosse casado. Com sequências absolutamente comoventes - como na cena em que Rogers reencontra uma criança com deficiência anos depois de ter participado do programa - Won't You Be My Neighbor? é uma obra otimista, que honra um programa americano que era conhecido por respeitar os sentimentos, anseios e frustrações juvenis. "O aprendizado mais importante é a habilidade de aceitar e esperar erros e lidar com as frustrações que os acompanham". Foi com esse tipo de frase, óbvia mas nunca fácil, que Rogers marcou época na televisão americana.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Cinema - A Esposa (The Wife)

De: Björn Runge. Com Glenn Close, Jonathan Pryce, Christian Slater e Max Irons. Drama / Suspense, Suécia / EUA, 2017, 100 minutos.

Em uma das primeiras cenas do ótimo A Esposa (The Wife), o escritor Joe Castleman (Jonathan Pryce) recebe uma ligação de Estocolmo, na Suécia, lhe comunicando que ele será laureado com o Prêmio Nobel de Literatura. Antes de a notícia ser dada, o homem faz questão de que a sua esposa Joan (Glenn Close) ouça a mesma conversa pela extensão telefônica. Enquanto Joe, emocionado, ouve os elogios do encarregado à obra literária do agraciado, Joan está em um outro cômodo, quieta, com o olhar perdido, como que excessivamente perplexa por aquilo que escuta. Seus olhos parecem comunicar algum tipo de tensão, de desconforto e de incerteza - e não serão poucas as sequências em que este expediente se repetirá, especialmente naqueles momentos em que o homenageado tomará a palavra para mencionar a importância da esposa para a sua vida. "Eu não sou nada sem ela", será uma frase ouvida com frequência.

Joan não quer ser vista pelos demais - especialmente pela equipe de produção do Nobel - como a companheira sofredora de um sujeito narcisista de "mente brilhante". Mas parece haver algo a mais do que esse simples incômodo, quando os primeiros flashbacks começam a aparecer no filme. Na juventude, Joan também era escritora. Uma escritora de talento, pelo que se pode perceber. Joe era um professor de literatura com boas idéias, mas muita dificuldade de colocá-las no papel. Não demora para que percebamos que a união pelo casamento, também se estenderá ao trabalho, sendo difícil mensurar o impacto causado pela "presença" de Joan na obra de Joe. Só o que sabemos é que o simples fato de ser mulher, impediu Joan de explorar seus sonhos dentro do mundo das artes. E a existência de apenas 12 ganhadoras do Prêmio Nobel de Literatura em 114 edições, é um verdadeiro atestado do machismo existente TAMBÉM nesta área.



A obra tinha tudo para ser mais melodramática e até histriônica - como era por exemplo o igualmente bom Grandes Olhos (2014), do Tim Burton. Mas o diretor Björn Runge aposta na economia, na sutileza e, especialmente, na ambiguidade. Pra falar a verdade a gente nunca sabe exatamente o quê está pensando Joan, em cada movimento sinuoso que faz em volta do marido - cuidando de sua saúde e fazendo observações gerais sobre seu comportamento no cotidiano. Ela estará satisfeita com esta "condição" que lhe foi imposta? Para ela é cômodo pensar que ela, minimamente, também poderia ser uma escritora? Seria ela reconhecida pelo mesmo material, por ser mulher? O surgimento de um jornalista de nome Nathaniel Bone (Christian Slater), interessado em escrever a biografia de Joe, tornará o contexto ainda mais curioso, indefinível.

Aqui e ali, Runge pincelará a película algumas sutilezas que parecem pequenas, mas dizem muito - como é o caso do momento em que Joe esquece o nome de uma de suas personagens, sendo lembrado disto pelo filho (com quem ele não tem boa relação, o que também resulta em boas cenas). Mas a força MESMO desta obra está na caracterização impressionante de Close, que certamente será uma das indicadas para o Oscar na categoria Melhor Atriz, tentando tirar da favorita Lady Gaga, pelo seu trabalho em Nasce Uma Estrela, a estatueta dourada. Joan é uma figura complexa, interessante, nada óbvia, que parece conhecer o comportamento errático do marido, aparentemente estando tranquila (e segura) quanto a isso. Mas estará mesmo? Com boas pequenas reviravoltas, a obra mantém a tensão até o surpreendente final, que transforma esta em uma das boas surpresas do começo dessa temporada.

Nota: 9,0

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Lançamento de Videoclipe - The Killers (Land Of The Free)

Se expressar artisticamente também é resistir e o The Killers - uma de nossas bandas preferidas aqui do Picanha - fez a lição de casa direitinho ao lançar um BAITA clipe para a recém-chegada Land Of The Free. O vídeo, uma verdadeira preciosidade dirigida por Spike Lee (diretor de Infiltrado na Klan) traz diversas imagens de refugiados e de famílias de imigrante ou em vulnerabilidade social - algo que, em um cenário de avanço de uma extrema-direita raivosa, xenófoba e intolerante não deixa de ser um belo recado. Em meio a coros de vozes crescentes e um instrumental bastante econômico - se comparado aos sintetizadores envolventes de Wonderful Wonderful (2017) - Brandon Flowers entoa versos potentes como Quando eu saio no meu carro, eu não penso duas vezes  / Mas se você é a cor da pele errada (eu estou de pé, chorando) / Você cresce olhando para ambos os seus ombros  / Na terra dos livres. Um lindo acerto e que nos deixa bastante otimistas para o futuro da banda!

Lado B Classe A - Animal Collective (Merriweather Post Pavilion)

Quem gosta de música parece estar sempre esperando por algum artista/banda que faça algo realmente NOVO. Que rompa com o lugar comum e que imprima personalidade e algum frescor as melodias. Que cruze estilos de forma inovadora, mas próxima do público. Sim, para cada novo disco do Franz Ferdinand - que ouvimos, claro, nas festas da faculdade ou lavando a louça em casa -, em nosso íntimo desejamos aquilo que nos arrebate. Que seja o novo Kid A - o incensado álbum do Radiohead. Ou que faça, sei lá, algo que o Nirvana fez em Nevermind. Esse papo é até meio chato e essa eventual "exigência" de que a coisa diferente apareça talvez até canse. E não é que o Animal Collective tenha feito A REVOLUÇÃO com o agora clássico Merriweather Post Pavilion. Mas, é preciso que se diga, ele chegou bem perto disso.

Merriweather é o oitavo disco de Avey Tare, Noah Lennox e companhia. E, de alguma forma, pode-se dizer que ele condensa todos os experimentos testados anteriormente pela banda, em uma coisa só. Em algo maior, mais impotente, mais psicodélico, mais roqueiro, mais praiano. Mais festivo. Mais comercial. Do espetacular Feels (2005) saem as canções adocicadas, o clima primaveril, bucólico, que serpenteia o registro com emanações etéreas, sutis. De ótimo Sung Tongs (2004) sai o peso alarmante do rock, com seus gritos mais urgentes e ensandecidos. De Strawberry Jam (2007) entra a psicodelia multicolorida e os refrões eventualmente mais fáceis - e não é por acaso que For Reverend Green é a minha música preferida do coletivo, na vida. Na real qualquer um desses álbuns poderia figurar aqui no Lado B Classe A. Mas o caso é que, no o registro que agora completa 10 anos, a banda enfiou todas as suas melhores referências em um liquidificador. Para de lá retirar um som todo próprio, divertido, efervescente, barulhento, mas também pop e, inevitavelmente, acessível.


Por exemplo, é difícil escutar Bluish, sexta canção do disco e não se comover completamente. Não sorrir, não pensar nas tantas possibilidade alcançadas pela banda. É uma música que começa com um sintetizador econômico e vai levemente crescendo, se ampliando na "ponte" até explodir em um refrão glorioso, que preenche os ouvidos como uma chuva de papel multicolorido a acariciar as nossas têmporas.  O vocal com um leve falsete canta coisas como Eu gosto da sua aparência quando você fica má / Eu sei que eu não deveria dizer isso, mas quando você /Agarra-me como um gato, eu fico radiante, enquanto a música faz idas e vindas se ampliando e retrocedendo, com deslocamentos nunca óbvios. Aliás, esse tipo de quebra de andamento, de alteração da lógica, de cada fragmento funcionando como uma espécie de caleidoscópio sonoro, se repetirá em muitos outros grandes momentos.

No maior hit da banda, My Girls, um começo meio de viagem interplanetária em meio a um filme de ficção científica, enquanto ao fundo uma voz ecoa a felicidade mundana pelas coisas simples da vida - a esposa, uma boa casa, o sangue correndo nas veias. Não demorará para que o sintetizador acelere (assim como toda a música), que culminará em um refrão grudento, inesquecível. No registro são tantas as grandes canções - Also Frightened, Summertime Clothes, Brother Sport, Taste - que é provável que, em uma discussão sobre as melhores do trabalho, cada um tenha a sua preferida. Poucas vezes pop e "barulho" se equilibraram tão bem, em meio a vocais limpos, eventualmente amplificados por coros, efeitinhos e batucadas capazes de aproximar o coletivo de sonoridades africanas e até brasileiras (como na já citada Brother Sport), enquanto o soft rock corre solto, sem vergonha. Um álbum fundamental, cheio de personalidade e que inaugura, ao lado de outros coletivos como o MGMT e o Tame Impala, a nova onda psicodélica que nos acompanha até hoje.


segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Pérolas da Netflix - Feliz Como Lázaro (Lazzaro Felice)

De: Alice Rohrwacher. Com Adriano Tardiolo, Alba Rohrwacher, Nicoletta Brschi e Tommaso Ragno. Drama, Itália / Suica / França / Alemanha, 2018, 127 minutos.

Feliz Como Lázaro (Lazzaro Felice) é um daqueles filmes cheios de simbologias. Que nos deixa pensativos, enquanto os créditos sobem. E que aposta na sutileza para mostrar que vivemos em um mundo de pessoas corrompidas - pelo poder, pelo dinheiro -, onde a bondade, a gentileza e a empatia dão lugar ao ódio, a intolerância e ao individualismo. Na trama Lazzaro (Adriano Tardiolo) é um garoto pobre, que mora com a sua família em uma fazenda mantida por uma Marquesa (Nicoletta Braschi). Ele está sempre disposto a ajudar, seja nas tarefas mais pesadas do dia a dia na plantação de tabaco, seja se oferecendo para levar uma xícara de café para alguém. Assim como ocorre com a Nicole Kidman em Dogville (2003), as pessoas abusam da boa vontade de Lazzaro, que é adepto do "fazer o bem sem olhar a quem". Na fazenda, os moradores mal ganham para comer e acreditam estar sempre em dívida com os patrões - aquelas figuras "generosas" que lhe possibilitaram o trabalho.

A chegada de parentes da Marquesa modificará a rotina do local, especialmente pela presença de um excêntrico sobrinho que irá para as montanhas com a intenção de fingir ter sido sequestrado - mimado, ele quer apenas chamar a atenção de todos. Uma ligação telefônica saída da fazenda, aliada a uma fatalidade envolvendo Lazzaro atrairá agentes de polícia para a fazenda, que constatarão que a Marquesa mantinha mais de 50 pessoas em condições de trabalho análogo à escravidão. Sim, qualquer semelhança com o Brasil não é mera coincidência. A trama faz um salto no tempo, com Lazzaro "ressuscitando" e indo em busca de sua família. O tempo passou, ninguém mais é escravo, mas as condições de pobreza permanecem as mesmas. Sim, a sociedade é hipócrita e sem boas políticas públicas, o pobre seguirá pobre, na rua na chuva ou na fazenda.


E é ao mostrar que as coisas não mudam com o passar dos tempos, que Feliz Como Lázaro tem seu maior acerto. Aliás, em um mundo que é uma verdadeira selva - e não são por acaso as metáforas envolvendo lobos uivando -, com todo mundo se atropelando e pensando só em si, não há lugar para a generosidade de Lazzaro (o que talvez explique o emocionante e, desde já, icônico final). No cada um por si da vida, a obra da diretora Alice Rohrwacher vai no limite do realismo fantástico para falar sobre a tragédia pós-moderna de um mundo em que o homem definitivamente deu errado - e que não seria problema colocar a fôrma fora. Jesus Cristo, de acordo com a Bíblia, ressuscitou Lázaro, que seria seu amigo pessoal, confidente, alguém de importância para ele. Mas haverá espaço para o seu homônimo, uma figura absolutamente generosa, nos dias de hoje?

Como forma de tornar a experiência ainda mais comovente, a diretora inunda a tela com pelo menos uma dezena de grandes sequências, como aquela em que a família "descobre" estar em um jardim de Plantas Alimentícias Não-Convencionais (Pancs) ou outra em que os pobres tentam, em vão, entrar em uma Igreja, sendo, após, perseguidos pela música que se amplificava pelo ambiente. Nem sempre a obra será fácil ou simples de entender e nem será esse o objetivo ao final das mais de duas horas de exibição. Mas ao beber da fonte do neorrealismo italiano, e de filmes como Feios, Sujos e Malvados (1976) de Ettore Scola, Rohrwacher constrói uma fábula sobre a gratidão e o altruísmo, como um contraponto a ganância e a mesquinhez. A gente se sente leve diante da placidez dos olhos azuis de Lazzaro - que muito dizem, sem dizer. E só este sentimento já faz valer o filme.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Na Espera - Nós (Filme)

Sim, a gente sabe que ainda tem um monte de filme bacana para estrear na temporada que recém se inicia - o Oscar vem aí e com ele obras como A Favorita (novo do Yorgos Lanthimos) e Green Book: O Guia (mais recente empreitada de Peter Farrelly) devem dar as caras. Mas temos de admitir que já estamos olhando para o mês de março. Mais precisamente para o dia 21, que é a data de estreia de Nós (Us), a nova película de Jordan Peele (de Corra!). Se no citado filme - que faturou a estatueta na categoria Roteiro Original no último Oscar - o suspense com discussão político/social era a tônica, neste, a sensação de terror parece se ampliar, assim como a quantidade de sangue, de gritos, de fogo e de sustos!


Na trama, Adelaide (Lupita Nyong'o) e Gabe (Winston Duke) decidem sair de férias com a família e alugam uma casa na praia. Não demora para que eles percebam que há algo de estranho quando uma outra família aparece no quintal. Tomando os protagonistas como reféns, os visitantes se revelarão como clones dos primeiros, mas como se estes estivessem vindo de uma realidade paralela em que tudo acontece ao contrário. O elenco conta ainda com Elisabeth Moss (de O Conto da Aia) e o roteiro certamente investirá, novamente, na alegoria como forma de debater temas como o racismo. Aqui no Picanha, já estamos Na Espera!

Pérolas da Netflix - Inspire, Expire (Andið Eðlilega)

De: Isold Uggadottir. Com Babetina Sadjo, Kristín Thóra Haraldsdóttir e Patrik Nökkvi Pétursson. Drama, Islândia / Suécia / Bélgica, 2018, 95 minutos.

Destaque do último Festival de Sundance Inspire, Expire (Andið Eðlilega) é uma obra pequena, mas ainda assim tão cheio de significados. Tão relevante em tempos de intolerância. De falta de empatia. De individualismo e de julgamentos sobre o outro - e, faço aqui um mea culpa, parece que estamos sempre prontos a "lavar as mãos" para os problemas que não nos dizem respeito. Na trama, duas mulheres completamente diferentes, mas com objetivos de vida semelhantes. Lara (Kristín Thóra Haraldsdóttir) é uma mãe de família desempregada que não consegue dar conta dos boletos que não param de chegar, sendo despejada do complexo habitacional em que mora. Já Adja (Babetina Sadjo) é uma refugiada de Guiné-Bissau que pretende ir ao encontro da filha, que está no Canadá. Quando Lara consegue um trabalho no aeroporto de Reykjavic, ela acaba barrando a passagem de Adja, que tentava utilizar um passaporte falso para sair do País.

É claro que esse pequeno encontro, este instante em que ambas estiveram juntas, modificará a vida delas para sempre. Ainda mais pelo fato de a obra da diretora Isold Uggadottir ser um filme sobre coincidências. Sobre acasos. Sobre estar no lugar certo (ou errado?) na hora certa. Adja acaba mandada para uma espécie de prisão do Estado em que aguardará julgamento. Despejada, Lara passará a morar com o filho pequeno no velho carro que possui (ao menos até que o seu primeiro salário entre e ela consiga, finalmente, começar a pagar os credores). Em um dia muito frio Lara perde o menino de vista - que sai de dentro do carro para procurar o gato da família. Quem o encontra? Adja, que retornava para a prisão após sair para as compras. Nesse novo encontro, uma mudança de percepção e a constatação de que ambas, mães solteiras sofrendo em um universo de abusos, são mais parecidas do que pensam.


O filme como um todo é muito silencioso, até frio - condição reforçada pelas paisagens gélidas da Islândia. Aposta muito mais nos olhares, na sugestão, do que nos gestos mais expansivos. No olhar cúmplice de Lara, já no terceiro ato, o arrependimento claro pelo que ela fez e o sonho de, se pudesse voltar no tempo, mudar o destino de Adja. Nos olhos marejados de Adja, a constatação de que a outra apenas estava cumprindo a Lei do País - e assim a gente percebe que o péssimo tratamento dado a refugiados ou estrangeiros, quaisquer que sejam, não é exclusividade nossa. Em meio a tudo, Lara também tenta tocar a sua própria vida e, como se fosse uma espécie de Roberto Benini em A Vida É Bela (1998), mente para o seu filho dizendo que o "despejo" será uma espécie de temporada de aventuras a bordo de um carro velho. Em cada sequência em que as dificuldades são escancaradas, é impossível não se comover.

Com ótimas interpretações da dupla de protagonistas, o filme ainda acerta em cheio por ser uma espécie de fábula distinta sobre a amizade. Por linhas tortas Lara e Adja se aproximarão, se tornarão amigas e se apoiarão em decisões que podem mudar o destino de ambas. Mas que mostram que nem sempre as primeiras impressões são aquelas que ficam. Olhando o filme fiquei pensando na nossa pequena e xenófoba cidadela. Aquela mesma que odeia haitianos e senegaleses que tentam tocar a vida vendendo produtos na beira da calçada - que, muitas vezes, não querem voltar para os seus países de origem, mas também não tem para onde ir. Nesse sentido obras como esta também servem para nos lembrar que, por trás de uma pessoa adotando medidas desesperadas para sobreviver, pode haver um ser humano cheio de boas intenções. Cabe a nós baixar a guarda e deixar um pouco de lado o preconceito.

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Novidades em DVD - O Primeiro Homem (First Man)

De Damien Chazelle. Com Ryan Gosling, Claire Foy, Jason Clarke, Kyle Chandler e Corey Stoll. Drama / Biografia, EUA, 2018, 141 minutos.

Do épico Os Eleitos (1983), passando pelo blockbuster Apollo 13 (1995) até chegar ao recente Gravidade (2013), não foram poucos os filmes que investiram em temáticas relacionadas à exploração do espaço - e devo admitir que gosto muito dessa vertente que, em muitos casos, cruza a realidade com o universo misterioso das ficções científicas. O badalado O Primeiro Homem (First Man) - mais recente trabalho do diretor Damien Chazelle (de La La Land) - é mais um desses. Adotando uma estrutura convencional, muito mais econômica do que "expansiva", a obra centra o foco na história de Neil Armstrong (Ryan Gosling), conhecido por ser o primeiro homem a pisar na lua. Na história a ida a Lua é o de menos. A trama volta no tempo, para o começo da década de 60, para mostrar como ele se consolida na profissão de engenheiro (e astronauta da Nasa), ao mesmo tempo em que tem de lidar com uma série de problemas pessoais.

Por problemas pessoais leia-se a perda de uma filha vitimada por um câncer, de amigos e de colegas de profissão em acidentes - sendo o mais marcante o que envolve o parceiro Ed White (Jason Clarke) que morre em incêndio durante um evento de testes mal sucedido. Não bastassem as pressões naturais da profissão de astronauta - que sai para trabalhar sem saber se voltará com vida - Neil, um sujeito claramente taciturno e sisudo, ainda deve encontrar equilíbrio para um convívio familiar estável ao lado da esposa Janet (Claire Foy, em impressionante caracterização que provavelmente lhe renderá uma indicação ao Oscar) e dos dois filhos. Como pano de fundo, o contexto político que desloca as personagens para o meio da Guerra Fria, período em que Estados Unidos e União Soviética travavam uma luta silenciosa para que se descobrisse qual dos dois tinha o maior "foguete" - e aí as cenas envolvendo engravatados em gabinetes, somadas a enfadonhas entrevistas à imprensa, completam o estresse generalizado que envolvia as famílias dos astronautas.


O filme avança no tempo, com a narrativa se ocupando do período entre 1961 e 1969, sendo este último, o ano em que a Apollo 11 faz a sua bem sucedida investida no satélite natural. Ainda que saibamos que Neil ficará vivo (ele foi pra Lua e voltou), não são poucas as cenas tensas em eventos de teste cheios de engrenagens barulhentas, com a câmera rodopiando e trilha sonora ostensiva. Mas ainda assim a intenção principal de Chazelle e companhia é a de focar na vida íntima daqueles que vemos na tela. Suas angústias, anseios, medos e preocupações - algo que Gosling, com sua cara de paisagem e olhares de peixe morto, executa sem muito esforço. Nesse sentido, a trama é inteligente ao mostrar que a eventual claustrofobia gerada por um pequeno módulo espacial talvez seja o menor dos problemas. Não por acaso, uma cena mostrando Gosling "encaixotado" pelas paredes de sua casa, após uma sequência em que há uma discussão com Janet, se torna um recurso bem sucedido para evidenciar o sentimento de "prisão" estabelecido por uma situação incômoda que deve ser superada.

Claro que esse tipo de efeito não transforma este em um filme superior dentro do estilo - e os três citados no começo desta resenha causam, cada um a sua maneira, mais "impacto" a meu ver. E na tentativa de não causar impacto, eventualmente Chazelle se perde na "linguagem de engenharia", com o espectador meio perdido em termos técnicos relacionados a cálculos de rotas, de distâncias de velocidades e pressões (o que para um jornalista desatento como este que vos escreve pode tornar a experiência meio sonolenta). Em contrapartida há que se reconhecer o esforço em conferir verossimilhança a narrativa, exaltando-se também a versatilidade do diretor que, em seu terceiro filme, deixa de lado os temas musicais para investir em uma trama de ares épicos. Não sei dizer se será indicado ao Oscar - os nominados serão conhecidos no dia 22 de janeiro -, mas, caso for, será um atestado de "safra fraca" já que o filme se estabelece bem, mas não chega a gerar nenhuma surpresa "a mais".

Nota: 7,0

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Tesouros Cinéfilos - Ponto Cego (Blindspotting)

De: Carlos Lopez Estrada. Com Daveed Diggs, Rafael Casal e Janina Gavankar. Comédia dramática, EUA, 2018, 95 minutos.

Em um contexto de avanço de uma extrema-direita cheio de ódio, de preconceito e de intolerância, filmes como Ponto Cego (Blindspotting) serão cada vez mais necessários, daqui pra frente. É uma obra que bebe na fonte do melhor Spike Lee para fazer o discurso sem soar excessivamente panfletário. É a resistência sutil, representada na voz calma e nos modos tranquilos do protagonista Colin (Daveed Diggs), ex-presidiário que enfrenta os últimos dias de liberdade condicional e que conta os dias para ter as suas contas com a justiça definitivamente acertadas. Ele tenta andar na linha de todas as formas - como uma espécie de Al Pacino do Oakland em O Pagamento Final (1993) -, por mais que companhias como a do amigo de infância Miles (Rafael Casal), sejam um convite para se meter em encrenca.

Faltando três dias para a tão sonhada liberdade, Colin presencia um policial assassinando um negro a sangue-frio. Sem saber direito como reagir ele segue em frente com medo de enfrentar novos problemas com a polícia. Mas a imagem do homem sendo morto assombrará Colin. Aliás, várias imagens assombrarão ele o tempo todo já que, também negro, o protagonista convive com o medo da morte o tempo todo. Para ele, estar em contato com uma arma (ou com drogas) pode representar uma dura sentença, apenas pelo fato de ser negro. Ao passo que o melhor amigo Miles - aquele tipo de branquelo meio skinhead cheio de tatuagens - terá um "cheque em branco" para um comportamento errático já que é caucasiano. Nesse sentido, Ponto Cego é, no fim das contas, uma obra sobre o racismo estrutural. Aquele tipo de racismo que é velado, nunca claro, mas que faz com que as pessoas tratem de forma diferente as raças diferentes.


No evento que levou Colin à cadeia, Miles também estava presente (como veremos em um flashback). E ele foi tão culpado quanto. Mas quem foi para a cadeia? A gentrificação da cidade de Oakland - aliás, esse é um processo que a Califórnia como um todo tem vivido - torna a vida ainda mais difícil para os locais (que devem conviver com o aumento do custo de vida, com pessoas diferentes na comunidade e até com o risco de desemprego). De alguma forma (e também por causa disso) o filme do diretor estreante Carlos Lopez Estrada é uma obra de contrastes: de um lado a cultura das ruas, representada pelos grafites multicoloridos, pelo hip hop e pela pluralidade, de outro as casas grandes e acinzentadas dos moradores mais ricos - e muitos deles serão clientes de Colin e Miles, que trabalham em uma transportadora.

Como já disse, é um filme que aposta na sutileza, que passa o recado e não pesa a mão. As conversas em estilo rap freestyle da dupla de protagonistas beiram o delírio realista, divertindo e fazendo pensar em igual medida - sensação ampliada pelo estilo multicolorido da fotografia, pela música onipresente e pelo desenho de produção cuidadoso. Já sequências como a que mostra uma festa de hipsters afetados nos fazem rir pelo absurdo - ainda que a conclusão desta seja chocante. E nada funcionaria se não fosse o carisma irresistível de Diggs e, especialmente, de Casal, que mesmo estando no limite da "bandidagem" nos fazem torcer para que a sua vida possa definitivamente entrar nos trilhos. Uma obra curiosamente descontraída, com diálogos sagazes, mas que não abre mão de discutir, nas entrelinhas, temas necessários como o porte de armas e o respeito às diferenças.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

25 Grandes Filmes de 2018 Lançados no Cinema ou DVD (+15 Menções Honrosas)

A lista mais difícil de fazer sempre é a dos filmes. Primeiro porque amamos cinema (capaz?). Segundo porque nunca conseguimos assistir a tudo aquilo que gostaríamos. E isso explica, por exemplo, a ausência de obras que já estiveram em cartaz - caso de Nasce Uma Estrela ou Primeiro Homem - mas que ainda não vimos (e que provavelmente estarão na nossa relação do ano que vem, já que ambas estão sendo cotadas para o Oscar). Bom, a intenção do nosso 25 Grandes Filmes de 2018 Lançados no Cinema ou DVD (+15 Menções Honrosas) não é relacionar melhores. E, sim, aqueles que vimos, gostamos e que achamos por bem sugerir (muitos deles, inclusive, foram resenhados aqui no Picanha)! Boa leitura!

Menções Honrosas:

40) Bird Box (Bird Box)
39) Hannah (Hannah
38) Tully (Tully)
37) É Apenas O Fim do Mundo (Juste La Fin Du Monde)
36) Bohemian Rhapsody (Bohemian Rhapsody)
35) Baseado em Fatos Reais (D'Apres Une Histoire Vraie)
34) O Confeiteiro (The Cakemaker)
33) Verão 1993 (Estiu 1993)
32) Tinta Bruta
31) Desobediência (Disobedience)
30) O Destino de Uma Nação (Darkest Hour)
29) Hereditário (Hereditary)
28) As Boas Maneiras
27) Mudbound: Lágrimas Sobre o Mississipi (Mudbound)
26) Um Lugar Silencioso (A Quiet Place)

25) Me Chame Pelo Seu Nome (Call Me By Your Name): este filme de grande beleza plástica - ainda que econômico no que se refere a complexidade (e até ousadia) - nos joga para o lânguido verão de 1983, na Lombardia, na Itália. No local o jovem Elio (Timothée Chalamet) passa as férias com os pais Anella (Amira Casar) e o senhor Perlman (o sempre ótimo Michael Stuhlbarg), em um ambiente multicultural, em que não apenas várias línguas são faladas de forma fluente - inglês, francês e italiano -, como também são naturais discussões sobre literatura, música e artes em geral. A chegada do estudante Oliver (Armie Hammer) agitará o local. Todos os anos o senhor Perlman convoca um acadêmico para lhe ajudar com as pesquisas sobre cultura greco-romana. Só que Oliver é diferente - alto, louro, com voz firme chamará a atenção de Elio que, aos 17 anos, talvez experimentará pela primeira vez a sensação de, de fato, se apaixonar. Uma verdadeira fábula sobre o amor, narrada de forma sutil, elegante, sem pressa. E que faturou a estatueta na categoria Roteiro Adaptado, no último Oscar. Leia a resenha completa.


24) Doentes de Amor (The Big Sick): baseada em fatos reais, essa é aquela obra que você assiste meio desconfiado, mas que vai te ganhando aos poucos - e, no fim, estamos torcendo por todos os personagens o que, em uma comédia romântica, é um mérito. A trama nos joga para o universo em que convivem os comediantes de stand up, que tentam a sorte em bares e boates com meia lotação. Um deles, o paquistanês Kumail (Kumail Nanjiani), chama a atenção da estudante de psicologia Emily (Zoe Kazan). Após um flerte meio desajeitado (e cheio de tiradas bem humoradas), ambos acabam se apaixonando. Só que há um problema meio "Romeu e Julieta" nessa história. Por ser paquistanês, os pais de Kumail jamais aceitariam, de acordo com a sua cultura, o casamento com uma caucasiana. Por outro lado, é possível imaginar o tipo de preconceito - ou, minimamente, de desconfiança - que Kumail sofreria quando apresentasse a loira a sua família. O conflito, após estabelecido, garantirá duas horas de ótima diversão! Leia a resenha completa.



23) 120 Batimentos Por Minutos (120 Battements par Minute):  representante da França no último Oscar, essa pequena obra-prima volta no tempo, mais especificamente para o final dos anos 80, para mostrar os bastidores da ONG Act Up, que procurava das visibilidade para o HIV (que registrava seus primeiros casos). A França, na época governada por François Miterrand, sofria com um aumento alarmante do número de pessoas infectadas com o vírus e, mesmo com esta condição, o que parecia haver era o descaso dos governantes que, por preconceito ou negligência, não destinavam recursos, não organizavam campanhas e não apresentavam políticas públicas suficientes com vistas a conscientizar a população. Cabia ao Act Up assim, essa divulgação. Na marra, protestando e até deixando as coisas saírem do controle. O tema é pesado e o diretor Robin Campillo não alivia nas cenas em que a doença é mostrada. Mas ainda assim o clima geral não é de melancolia, já que em meio ao ativismo, os jovens se divertem, participam de festas, transam. É tudo muito naturalista, em uma película que procura compreender as motivações de todos. Leia a resenha completa.


22) O Sacrifício do Cervo Sagrado (The Killing Of a Sacred Deer): sempre provocativos, os filmes do diretor Yórgos Lánthimos geralmente se ocupam de denunciar, ainda que de forma sutil, a hipocrisia das famílias de bem. Já havia sido assim com o ótimo Dente Canino (2009) e não é diferente com este, que é estrelado por Colin Farrel e Nicole Kidman. Eles são um casal que tem dois filhos, sendo ele um cardiologista que viu um de seus pacientes morrer na mesa de operação (a obra já abre com uma impactante sequência que mostra uma cirurgia). Ocorre que após este evento, o filho do paciente morto se aproxima da família, tornando-se um amigo. Há um clima de inquietação e de suspense no ar, algo reforçado pela pungente trilha sonora, como se algo estivesse o tempo todo para acontecer - e realmente acontece, quando os filhos perdem os movimentos das pernas. É um filme de "silêncio pesado", diferente, levemente surrealista, que discute religião, paranoia e vingança (e se o Oscar fosse uma premiação realmente justa, o jovem Barry Keoghan receberia uma nominação).


21) Você Nunca Esteve Realmente Aqui (You Were Never Really Here): drama de temática forte, com boas doses de suspense, o filme da diretora Lynne Ramsey já começa com uma série de imagens em close  - de mãos, de objetos sendo manipulados e limpos e que, inicialmente, apenas despertarão a nossa curiosidade. Uma trilha sonora cheia de notas caóticas, difusas. Um flashback esmaecido em que uma criança parece sofrer com algum tipo de violência. Todo esse preâmbulo servirá para que se instale uma sensação de desconforto. Ainda que o filme esteja muito menos interessado em escancarar gratuitamente em nossas caras a violência que parece o tempo todo estar nas entrelinhas, o roteiro opta, assim, por uma visão mais oblíqua - e nem por isso menos intensa - das ações do protagonista Joe (Joaquin Phoenix, em mais uma de suas impressionantes caracterizações). Joe é um veterano de guerra que, no submundo, se ocupa de resgatar adolescentes mantidas em cativeiros como escravas sexuais. Um "trabalho" duro, dificilmente satisfatório, e que tem tudo para, em algum momento, dar errado. Leia a resenha completa.


20) As Herdeiras (Las Herederas): este é um filme que aposta na sutileza para apresentar a jornada de transformação de sua protagonista. Ao invés da janela escancarada, a fresta. Ao contrário da gargalhada farta, o sorriso de canto de boca. Há muita sugestão e pouca obviedade. A trama gira em torno de Chela (Ana Brun) e Chiquita (Margarita Irún) que vivem em uma casa opulenta (ainda que decadente) de um bairro rico no Paraguai. Herdeiras de famílias abastadas, vendem seus bens como forma de equilibrar as finanças. Tudo muda quando Chiquita é presa por sonegação fiscal. Diante dessa "novidade", Chela é surpreendida pela vizinha Pituca (Maria Martins) que pede que ela lhe conduza até o subúrbio para um jogo de cartas envolvendo senhoras ricas e mais preocupadas com a vida dos outros do que com as suas próprias. Será nessas idas e vindas que Chela conhecerá a interessante Angy (Ana Ivanova). Angy é mais nova e é um espírito livre. Tem relacionamentos fracassados, mas tem personalidade forte. E isto tudo interessará Chela, que projetará nela a vida que, certamente, nunca teve. Leia a resenha completa.


19) Eu, Tonia (I, Tonya): filmes baseados em fatos reais sobre atletas indo do céu ao inferno não chegam a ser exatamente uma novidade mas esta é daquelas que merece ser vista! A história aqui é a da atleta Tonya Harding (Margot Robbie) que, no começo dos anos 90, surgiu para o mundo como um dos mais promissores talentos da patinação artística no gelo. Apesar de alta e relativamente forte para o esporte ela foi a primeira mulher americana a conseguir executar o dificílimo salto triplo axel em competições, o que lhe garantiu títulos no campeonato nacional. Tonya era uma das apostas dos Estados Unidos para a conquista do posto mais alto do pódio nos Jogos Olímpicos de Inverno de 1994. Mas o relacionamento abusivo com o violento marido Jeff Gilooly (Sebastian Stan) e as constantes humilhações e maus-tratos por parte da mãe (Allison Janney, em papel que lhe deu o Oscar), transformaram a vida da atleta em um verdadeiro inferno. O filme tinha tudo para ser pesado, mas a abordagem leve transforma-o em uma comédia dramática que nos deixa no limite entre o riso e o choro. Leia a resenha completa.


18) O Animal Cordial: em Casa Grande e Senzala, Gilberto Freire já falava do temperamento do brasileiro, que teria bons modos, gentileza e polidez apenas na superfície (e nunca é demais lembrar que o radical latino córdio é relativo ao coração, sanguíneo, portanto). De certa maneira, esse conceito vem bem a calhar numa análise desse ótimo filme nacional, que mistura algumas doses de Tarantino com outras tantas de Irmãos Coen. Quando um restaurante de classe média é assaltado por dois bandidos, o dono do estabelecimento (Murilo Benício) tentará de todas as formas "controlar" a situação. Por trás da voz calma e dos modos educados, está um sujeito que está no limite de explodir, tendo de aguentar empregados que ele considera desobedientes e clientes chatos. Nesse contexto, o homem cordial dará lugar ao sujeito epidérmico, incapaz de preservar inatas as suas sensibilidades e emoções. O resultado de tudo isso é imprevisível, numa obra que vai no limite do gore, mas que também nos faz rir de nervoso, quando percebemos que o fascista pode estar logo ali.


17) Arábia: no Brasil pós Golpe (e de Bolsonaro), em que sujeitos engravatados decidem, dentro de gabinetes bem refrigerados, pela subtração de direitos trabalhistas há muito conquistados ou por reformas previdenciárias que agradam apenas a uma pequena parcela da sociedade, um filme como Arábia se torna ainda mais impactante. A obra dos diretores Affonso Uchoa e João Dumans é uma verdadeira ode ao trabalhador comum - aquele sujeito fragilizado que anda pelos rincões do Brasil para oferecer a força física e que convive com a insegurança dos precários contratos de trabalho e com "patrões" que lhes sugam até a última gota de suor sem se preocuparem com qualquer tipo de reação daqueles que eles exploram. É uma película dura, triste, áspera, desalentadora. E inacreditavelmente real e atual. A trama, simplíssima, nos joga para Minas Gerais, onde um jovem (Murilo Caliari) encontra por acaso o diário de um operário metalúrgico que sofreu um acidente, o que mudará a sua vida e a sua percepção sobre os trabalhadores marginalizados. Leia a resenha completa.


16) Pantera Negra (Black Panther): não é necessário ser um fiel acompanhante do Universo Marvel - meu caso, diga-se -, para se deleitar com essa produção que, muito provavelmente, contará com várias indicações para o Oscar. Em uma época em que a palavra REPRESENTATIVIDADE se faz cada vez mais necessária em nosso vocabulário, a película de Ryan Coogler é um acerto. Não se trata apenas de um herói negro e de um grande elenco de matriz africana. Na trama sobre o Rei de Wakanda (Chadwick Boseman), que luta para garantir a paz em seu País, há espaço para discussões sobre o papel da mulher na sociedade, respeito às minorias, empatia e até a importância de se ter um governo que governe para TODOS (e que, de preferência, não ameace de morte aqueles que pensam diferente). A obra tem visual belíssimo, figurinos e maquiagens acachapantes e trilha sonora que equilibra percussão ritualística com timbres modernosos. Fora o elenco, de nomes como Michael B. Jordan, Danai Gurira, Lupita Nyong'o, Daniel Kaluya e Forest Whitaker.


15) The Post: A Guerra Secreta (The Post): mais recente projeto de Steven Spielberg, este é o filme sobre jornalismo por excelência. E sobre os bastidores da política. E, talvez por isso, possa soar meio enfadonho num primeiro momento. Mas o caso é que, como quase sempre ocorre com o diretor, estamos diante de um filmaço! Rico em termos de roteiro, cheio de grandes personagens (e interpretações) e com reviravoltas de tirar o fôlego. Sim, acredite: reviravoltas. A trama retorna para o começo dos anos 70 quando o New York Times inicia, com base em um grande volume de documentos sigilosos vazados do Pentágono, uma série de reportagens denunciando o fato de vários governos norte-americanos - Eisenhower, Kennedy, Johnson - terem mentido por mais de 30 anos acerca da atuação do País na Guerra do Vietnã (o que teria resultado em mais de 50 mil americanos mortos no conflito, em uma Guerra considerada "perdida"). Conduzido com elegância, a trama é instigante e tem no embate entre o editor do Washington Post Ben Bradlee (Tom Hanks) e a dona do periódico Kat Graham (Meryl Streep), um dos grandes atrativos. Leia a resenha completa.


14) Projeto Flórida (The Florida Project): essa pequena joia do cinema independente é a prova real de que não é necessário um elenco de grandes nomes - ou mesmo excessivas pirotecnias - para a construção de um grande filme. A história nos joga para o subúrbio de Orlando, mais precisamente para os arredores do complexo da Disney, onde famílias em vulnerabilidade social se acotovelam em hotéis de quinta categoria, tentando sobreviver. Nesse contexto somos apresentados a pequena Moonee (Brooklyn Prince), espevitada garota de seis anos que, em meio as férias de verão, se ocupa de pequenos trambiques (e brincadeiras) com outras crianças, enquanto a mãe Halley (Bria Vinaite) luta para manter as contas em dia. É uma obra de contrastes, que mostra um dolorido choque de realidade entre as famílias bordejam um dos parques mais desejados do mundo - sem poder ter acesso a este - com outras que (mais ricas, claro), que buscam o local para as suas férias. E há ainda Willem Dafoe no papel de Bobby - uma espécie de zelador que faz de tudo para que o local funcione da melhor maneira possível. Difíckl não se emocionar.


13) Uma Mulher Fantástica (Una Mujer Fantástica): grande vencedor na categoria Filme em Língua Estrangeira no último Oscar, o filme do chileno Sebastián Lelio é revoltante e encantador em igual medida. Com boas doses de surrealismo, narra a história de Marina (Daniela Vega, em caracterização comovente), uma garçonete transexual cujo namorado - um homem mais velho (Francisco Reyes) - tem um mal súbito e morre. Não bastasse ter de lidar com o luto, Marina, que sonha em ser cantora e se apresenta em bares da cidade, ainda precisa lidar com a hostilidade da família do falecido. É uma obra intensa sobre o preconceito, que surge de forma sutil (como na sequência em que um médico acha que deve chamá-la pelo nome de batismo) ou escancarada (em agressões verbais e físicas). Em um contexto em que o ódio e a intolerância em função de identidade de gênero legitimam aberrações políticas como o recém-empossado presidente Jair Bolsonaro, um filme como este não é apenas necessário. É fundamental.


12) Toc Toc (Toc Toc): poucas vezes na minha vida eu ri tanto assistindo a uma comédia como no caso dessa joia do diretor Vicente Villanueva. Toc Toc é, como o próprio nome sugere, um filme sobre pessoas com transtornos obsessivos compulsivos. E é justamente esse o caso dos seis protagonistas da película que, reunidos na sala de espera de um psiquiatra, se verão forçados a encarar os seus problemas para tentar resolvê-los. A história é simples e se passa sempre no mesmo ambiente - a sala de espera do consultório do psiquiatra. Mas o que a torna absolutamente divertida é a forma com que humaniza as fobias (a gente até se identifica com elas). Nada funcionaria se não fosse um roteiro esperto, que aposta em diálogos inteligentes e cheios de comentários sociais valiosos sobre a importância de se respeitar o "diferente". A ágil edição também confere urgência e frescor na trama que mistura outros gêneros e nos possibilita ver de camarote Rossy De Palma e Oscar Martínez claramente se divertindo em uma comédia imprevisível, debochada, sarcástica e irônica. Leia a resenha completa.


11) Em Pedaços (Aus Dem Nichts): os filmes do diretor Fatih Akin nunca são fáceis. Mesmo em obras de temática mais "leve" - caso de Soul Kitchen (2009), por exemplo - sempre parece haver, nas entrelinhas, um certo desencanto com a sociedade em que vivemos, tão individualista, intolerante e, especialmente, preconceituosa. Com este trabalho que faturou o Globo de Ouro não é diferente. Na obra somos apresentados ao casal Nuri (Numan Acar) e Katja (Diane Kruger), que leva uma vida tranquila e confortável ao lado do filho Rocco, na Alemanha. Em um certo dia Nuri está com o filho no escritório em que trabalha, quando sofre um violento atentado: uma explosão criminosa que acaba com a vida dos dois, além de ferir outros tantos. Em Pedaços é um filme doloroso porque, mais atual do que nunca, traz a baila um dos tantos problemas da modernidade: o do renascimento de uma extrema-direita odiosa e conservadora que, legitimada por aberrações políticas como o presidente norte-americano Donald Trump, faz brotar grupos neonazistas e xenófobos que não hesitarão em levar a cabo seus planos doentios. Triste. Comovente. Devastador. Leia a resenha completa.


10) Três Anúncios Para Um Crime (Three Billboards Outside Ebbing, Missouri): não houvesse um A Forma da Água pelo caminho e talvez esse filme do diretor Martin McDonagh (com ecos de Irmãos Coen) pudesse ter tido melhor sorte. A trama nos joga para uma pequena cidade no interior do Missouri, onde Mildred Hayes (Frances McDormand) que perdeu a filha brutalmente estuprada e assassinada está inconformada com a ineficácia da polícia local - que não tem uma pista sequer para a resolução do caso. Mildred decide chamar a atenção das autoridades locais alugando três outdoors nos arredores da cidade. Nos anúncios estarão três frases provocativas, remetidas diretamente ao delegado Willoughby (Woody Harrelson), ressaltando o fato de ninguém ainda ter sido preso, com o crime tendo ocorrido há sete meses. Será no embate entre essas duas figuras distintas que residirá a força dessa película, que tem ótima trilha sonora e é recheada por bem-humorados comentários sociais. Ah, e ainda há Sam Rockwell como um policial fascista, no melhor papel de sua carreira. Leia a resenha completa.


9) Viva: A Vida é Uma Festa (Coco): imagine você vivendo em um mundo em que não lhe fosse facultado o direito de ouvir música. Nunca. Em lugar nenhum. Sob pena de ser castigado pele mãe ou por algum outro familiar. Pois esta é a realidade do pequeno Miguel (Anthony Gonzalez VIII) de apenas 12 anos, o protagonista desta verdadeira joia da Pixar, que faturou o Oscar na categoria Filme de Animação, neste ano. Ocorre que esta proibição remete a um trauma que envolve os antepassados de Miguel. Mais precisamente o seu tataravô, que abandonou a esposa e a filha pequena para seguir carreira como artista. Por conta do baque a música é banida do seio familiar, só que o problema é que Miguel não apenas ama as canções como ainda sonha em ser artista. A trama (deliciosa) de descortinará na tentativa de conciliar esses dois "universos" que não dialogam mais, em uma narrativa absolutamente doce, delicada, e que ainda apresentará o mundo dos mortos de uma maneira poucas vezes vista no cinema. Leia a resenha completa.


8) The Square: A Arte da Discórdia (The Square): desigualdade social, hipocrisia das classes mais abastadas, falta de empatia, empáfia do universo das artes, informação na era digital, abuso de poder. São tantos os temas discutidos nessa obra-prima de Ruben Östlund, que a sensação que temos, ao final das duas horas e meia de projeção é a de que o filme poderia ter mais duas horas e meia que, ainda assim, não contemplaria os seus assuntos a contento. Esse é aquele tipo de película que não tem um começo, um meio e um fim bem definidos, nos apresentando a uma série de situações que, só nas aparências, parecem desconectadas. Um contexto em que as diferenças sociais existem e que transformam em inócuas as ações filantrópicas de senhores engravatados que carregam debaixo de seus finos trajes todo o seu preconceito. No fim das contas, essa é uma obra de contrastes, onde de um lado temos o universo das artes plásticas e o protagonista Christian (Bang) e do outro lado, as camadas em vulnerabilidade social, que se utilizam de verdadeiras manobras "artísticas" para tentar sobreviver. Obra tensa, urgente, bem-humorada. E imperdível! Leia a resenha completa.


7) Trama Fantasma (Phantom Thread): parece haver algo mal resolvido no que diz respeito a relação do estilista Reynolds Woodcock (Daniel Day-Lewis) com a sua mãe na juventude e que, agora, na fase adulta, reflete-se em seu comportamento - ele despreza completamente as mulheres, algo que já fica claro nas primeiras cenas. Um perfeccionista, o profissional exige dedicação (e submissão) permanentes daquelas que terão a honraria de se verem uniformizadas com as suas peças. Um trabalho certamente intragável para as jovens que com ele terão contato - ainda que o universo luxuoso, deslumbrante e requintado não deixe de ser um atrativo a parte. A situação muda quando Woodcock conhece Alma (Vicky Krieps). Jovem de personalidade forte, ela se tornará modelo do estilista - e também sua amante, numa relação que parecerá estar sempre no limite do amor e do ódio, da devoção e da fúria. É um filme deslumbrante, classudo, refinado, cheio de nuances psicológicas, numa das mais interessantes dinâmicas envolvendo um casal no cinema. Leia a resenha completa.


6) O Insulto (L'Insulte): a polarização político/religiosa não é exclusividade do Brasil - especialmente do pós-Golpe -, como nos mostra esse filme libanês, primeiro da história a ser indicado ao Oscar no País. A trama parte de um episódio quase prosaico, evoluindo para um verdadeiro estudo do contexto histórico-social da república localizada no Oriente (aliás, só esse fato já da conta da importância do cinema, enfim, dos filmes em nossas vidas). Em um certo dia Toni (Adel Karam), um cristão libanês está regando as plantas na varanda de seu apartamento quando, acidentalmente, molha Yasser (Kamel El Basha), um refugiado palestino, que não por acaso é o engenheiro responsável por uma obra que está ocorrendo na rua em que Toni mora. Yasser pede para que Toni instale um cano que de conta da correta vazão da água. Toni se nega a fazer. Yasser aciona a prefeitura e faz a obra por conta. E o estrago está feito quando as diferenças de pensamento e de visões de mundo se cruzam e transformam um evento pequeno em algo maior do que é - e que chegará até o tribunal.


5) Infiltrado na Klan (BlacKkKlansman): cotado para aparecer entre os indicados na próxima cerimônia do Oscar, o novo filme do diretor Spike Lee vem bem a calhar  - especialmente diante da onda conservadora/fascista/preconceituosa que tem, inexplicavelmente, tomado forma no mundo. O filme retorna para o ano de 1978, onde Ron Stallworth (John David Washington), um policial negro do Colorado, resolve se infiltrar na unidade da Ku Klux Klan local. Para colocar o seu plano em prática ele conta com a ajuda do colega de trabalho judeu Flip (o sempre ótimo Adam Driver), que era o responsável por estar fisicamente nos locais de reuniões do coletivo - enquanto que os telefonemas e cartas eram enviadas pelo próprio Ron. Sem nunca pesar a mão, Lee passa o recado de maneira formidável (e até divertida), mostrando a ascensão de Ron dentro da seita, o que lhe possibilitou sabotar atos racistas e outros crimes de ódio perpetrados pelas "famílias de bem americanas" - e que orgulhariam os votantes do Bolsonaro.


4) O Artista do Desastre (The Disaster Artist): histórias sobre os bastidores de Hollywood já renderam bons filmes e este possui uma narrativa tão improvável que, não fosse baseada em fatos reais, talvez fosse difícil acreditar que ela de fato tenha acontecido! A trama resgata a trajetória do excêntrico Tommy Wiseau (James Franco), sujeito megalomaníaco que sonhava em ser ator na Meca do cinema mundial. Sem absolutamente nenhum talento, mas com muita confiança, Tommy - que mais parece saído de algum videoclipe de alguma banda de "metal farofa" dos anos 80 - tenta a sorte por meio de participações em aulas de atuação. Em uma delas se aproxima e se torna amigo do jovem Greg Sestero (o irmão de Franco, Dave), com quem divide o sonho de fazer sucesso. Após alguns "nãos", Tommy produzirá, dirigirá, escreverá e protagonizará, ao lado do melhor amigo, The Room, obra considerada a pior de todos os tempos! Divertidamente nonsense, o filme conta os "bastidores" dessa megalomaníaca produção. Impagável é pouco. Leia a resenha completa.


3) A Forma da Água (The Shape Of Water): poucas vezes a empatia ou a importância do respeito às diferenças foi abordada de forma tão inteligente e delicada como no grande vencedor do último Oscar. A obra é uma verdadeira ode aos desajustados, capaz de transformar uma criatura "meio anfíbio meio homem" (Doug Jones) na metáfora perfeita para as minorias que buscam sobreviver em um mundo cheio de ódio, de preconceito e de intolerância. A narrativa nos joga para os anos 60, época em que, em meio à Guerra Fria, Estados Unidos e União Soviética mediam forças. Nesse contexto a faxineira Elisa (Sally Hawkins) atua como uma espécie de zeladora em um laboratório experimental secreto do Governo americano, local que recebe um fantástico ser capturado na Floresta Amazônica. Uma curiosa amizade iniciará e Elisa precisará elaborar um plano de fuga para livrar a criatura das mãos do agente Strickland (Michael Shannon em modo "bolsomito"), que quer a morte do animal para que seu corpo possa ser dissecado e estudado. Uma fábula leve, com tintas surrealistas, ótima trilha sonora e uma mensagem comovente. Leia a resenha completa.


2) Roma (Roma): provável vencedor na categoria Filme em Língua Estrangeira no Oscar 2019, a obra de Alfonso Cuarón (Gravidade) é um verdadeiro tapão na cara das hipócritas classes mais abastadas, que não se constrangem em explorar o trabalhador até o limite, fingindo uma generosidade que serve apenas para a manutenção do status quo. A trama volta no tempo, mais precisamente para a Cidade do México, no começo dos anos 70 - período de crescimento econômico (mas também de aumento das desigualdades) - para contar a história de uma família burguesa e de sua relação com a empregada doméstica Cleo (Yalitza Aparício). No período de um ano vários acontecimentos - da gravidez de Cleo a separação dos patrões - abalarão os moradores da casa. Com ecos de Que Horas Ela Volta?, a película aposta na sutileza - e em uma espetacular fotografia em preto e branco - para mostrar que a autonomia de Cleo só existe mesmo no campo das metáforas (como aquela que mostra a imagem de um avião refletida em uma poça da água).


1) Benzinho: devo admitir a vocês que não dava nada por este filme (a julgar pelo seu título). Mas saí da sessão absolutamente arrebatado, encantado não apenas pelo roteiro - que é até econômico, mas conduzido de maneira vibrante -, mas pelas personagens, viscerais, verdadeiras, honestas. É um filme que parte de um episódio isolado - o fato de o primogênito de uma família de classe média ser convidado para jogar handebol na Alemanha - para traçar um painel da nossa sociedade nos dias de hoje. Em meio a luta pela sobrevivência, a obrigação de lidar também com problemas domésticos (que podem ser desde uma torneira estragada até ter de conviver com a Síndrome do Ninho Vazio). É uma obra-prima cheia de metáforas, de barulhos que representam o caos interior da protagonista (vivida com paixão por Karine Teles) e que te faz rir, chorar, rir de novo, chorar de novo. Na montanha-russa de sentimentos, a vida de cada um de nós em uma película que prova que menos é mais e que atesta a grande fase do cinema brasileiro.