sábado, 29 de abril de 2023

15 Filmes Sobre Questões de Trabalho ou de Relações Entre Patrão e Empregado

Sim, a gente sabe que é uma maravilha aproveitar o Dia do Trabalhador - é um feriadinho a mais no calendário, afinal. Mas também não podemos perder de vista o significado histórico da data e a consequente luta permanente por manutenção de direitos e conquistas do proletariado. E, nesse sentido, o cinema - e as artes em geral - tem papel fundamental ao nos auxiliar na compreensão e na reflexão sobre aquilo que está nas entranhas desse sistema. E de qual é o nosso lugar de fato nessa equação. Mais ainda em um cenário de precarização como os que vivemos recentemente - especialmente em governos elitistas como os de Temer e, especialmente, Bolsonaro. Você se acha muito patrão pela suposta autonomia que envolve os serviços de tele entrega ou de transportes de passageiros? Bom, talvez esteja na hora de rever os conceitos. E, para contribuir nesse debate, eis uma listinha bem diversificada de Filmes Sobre Questões de Trabalho ou de Relações Entre Patrão e Empregado. Vale também para você, que é dono do barber shop gourmetizado local, mas se acha uma espécie de Jeff Bezos da Província. Você, ao cabo, também está precarizado. E, muito provavelmente, nem percebeu.




15) Arábia: no Brasil pós Golpe (e de Bolsonaro), em que sujeitos engravatados decidiam, dentro de gabinetes bem refrigerados, pela subtração de direitos trabalhistas há muito conquistados ou por reformas previdenciárias que agradam apenas a uma pequena parcela da sociedade, um filme como Arábia se tornava ainda mais impactante. A obra dos diretores Affonso Uchoa e João Dumans é uma verdadeira ode ao trabalhador comum - aquele sujeito fragilizado que anda pelos rincões do Brasil para oferecer a força física e que convive com a insegurança dos precários contratos de trabalho e com "patrões" que lhes sugam até a última gota de suor sem se preocuparem com qualquer tipo de reação daqueles que eles exploram. É uma película dura, triste, áspera, desalentadora. E inacreditavelmente real e atual. A trama, simplíssima, nos joga para Minas Gerais, onde um jovem (Murilo Caliari) encontra por acaso o diário de um operário metalúrgico que sofreu um acidente, o que mudará a sua vida e a sua percepção sobre os trabalhadores marginalizados. Leia a resenha completa.




14) O Empregado e O Patrão (El Empleado y el Patrón): muito mais do que um filme de teor político sobre questões que envolvem o universo do trabalho, essa é uma obra sobre relações humanas e seus pormenores. Isso não quer dizer que os contrastes sociais que colocam em lados opostos as duas famílias que acompanhamos em cena não estejam lá. Basta ver a moradia opulenta dos proprietários das lavouras de soja em contraponto a casa de pau a pique da família daquele que será contratado para trabalhar na safra. De um lado o maquinário agrícola que, em muitos casos, avaliza a riqueza. De outro, o cavalo solitário que simboliza um pouco de tudo ao mesmo tempo. O cenário é o Norte do Uruguai, na divisa com o Brasil - um local tão bucólico quanto inóspito. É nele que o jovem Rodrigo procurará alguém que possa auxiliar a família na colheita de grãos - o que ele conseguirá ao contatar Carlos, um rapaz de 18 anos que é filho de um antigo funcionário de seu pai. Tudo corre mais ou menos bem até o dia em que o o jovem empregado sofre um grave acidente de trabalho - o que resultará num verdadeiro jogo de xadrez que coloca frente a frente ambos os lados. É, ao cabo, um filme pequeno, incômodo, cheio de camadas. E que vale conferir. Leia a resenha completa.




13) Orgulho e Esperança (Pride): feel good movie que mistura temáticas políticas e sociais com uma abordagem sobre respeito às diferenças, aqui temos uma trama que se passa no Reino Unido dos anos 80, período de grande turbulência, onde os efeitos devastadores da política de austeridade de Margaret Thatcher resultaria na maior greve de mineiros da Inglaterra. Os prejuízos foram enormes, com demissões em massa, privatizações, perdas de direitos e o desmantelamento de comunidades inteiras de operários. A despeito desse recorte mais pesado da história, a obra se ocupa de um extrato mais episódico do todo e que envolve um grupo de ativistas gays e lésbicas que resolvem aproveitar o Dia do Orgulho LGBT de Londres para se associar, de forma quase involuntária, à pauta dos grevistas, arrecadando fundos para as famílias de mineiros. A intenção nobríssima, visa chamar a atenção para a causa dos trabalhadores, enquanto também levantam as suas bandeiras na luta por direitos iguais à de qualquer outro cidadão. Só que aí reside um probleminha: quando a pauta começa a ganhar certa força será necessário lidar com o preconceito que envolve o outro lado. O resultado é uma obra afetuosa sobre união de forças e superação de preconceitos. Leia a resenha completa.




12) Caros Camaradas (Dorogie Tovarishchi): se compreender os meandros políticos do nosso Brasil já não é tarefa fácil, imagina então os da antiga União Soviética. Ainda assim, os que se aventurarem nessa obra enviada pela Rússia no último Oscar certamente serão recompensados. Há, pra começo de conversa, um fio condutor da narrativa, que culminará no episódio que ficou conhecido como Revolta de Novocherkassk - ocasião em que empregados de uma fábrica de construção de locomotivas entram em greve pelo fato de a comida estar a cada dia mais cara (e escassa), as condições de trabalho serem precárias e os salários estarem a míngua. O ano é 1962 e a promessa, com o Governo de Nikita Khrushchov, era o de criar um novo paradigma para o comunismo, muito mais distante da violenta herança estalinista. Só que os preços altos e o desabastecimento parecem estar batendo na porta. E os trabalhadores, no limite, avançam com o protesto. O resultado é trágico e a obra aposta no drama familiar como forma de analisar o todo, em um roteiro de forte teor político e que aborda, entre outros, a importância da sindicalização. Leia a resenha completa.




11) A Camareira (La Camarista): existe um tipo de opressão, especialmente direcionada à massa trabalhadora, que é demonstrada de forma soberba (e sutil) nesse ótimo exemplar do cinema mexicano. Esse tipo de abuso é muito mais estrutural, está presente no tecido social, o que faz com que muitas pessoas vivam uma vida de invisibilidade. Aliás, pior: na intenção de obter o mínimo para o atendimento de suas necessidades mais básicas, abdicam permanentemente de suas vidas pessoais, abrindo mão de seus sonhos para existir, em muitos casos, a existência do "outro". E, nesse sentido, não poderia haver ambiente mais adequado para o desenvolvimento da ação da película de estreia da realizadora Lila Aviles, do que um hotel de luxo. É esse espaço que nos permitirá nos ver confrontados com tantos contrastes. Enquanto a protagonista Eve se empenha em atender os caprichos dos mais variados hóspedes - a maioria monossilábicos, grosseiros - se empenha em tentar alcançar pequenas vitórias que amenizem a distância existente entre o seu universo e o dos aristocratas com quem convive à força, no trabalho. Uma obra inteligente, de fluência contemplativa, que estabelece o hotel como uma metáfora para a sociedade. Leia a resenha completa.


 

10) Roma (Roma): grande vencedor na categoria Filme em Língua Estrangeira no Oscar 2019, a obra produzida pela Netflix e dirigida por Alfonso Cuarón (Gravidade) é um verdadeiro tapão na cara das hipócritas classes mais abastadas, que não se constrangem em explorar o trabalhador até o limite, fingindo uma generosidade que serve apenas para a manutenção do status quo. A trama volta no tempo, mais precisamente para a Cidade do México, no começo dos anos 70 - período de crescimento econômico (mas também de aumento das desigualdades) - para contar a história de uma família burguesa e de sua relação com a empregada doméstica Cleo (Yalitza Aparício). No período de um ano vários acontecimentos - da gravidez de Cleo a separação dos patrões - abalarão os moradores da casa. Com ecos de Que Horas Ela Volta?, a película aposta na sutileza - e em uma espetacular fotografia em preto e branco - para mostrar que a autonomia de Cleo só existe mesmo no campo das metáforas (como aquela que mostra a imagem de um avião refletida em uma poça da água).




9) Dois Dias Uma Noite (Deux Jours, Une Nuit): a capacidade dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne em pegar um fiapinho de história para transformá-la em um grande tratado social sobre temas profundos, atinge um de seus ápices nessa obra que deu à Marion Cotillard uma indicação ao Oscar. Na trama, ela vive Sandra, uma funcionária de uma empresa que comercializa painéis de energia solar que está retornando ao trabalho, após um período em que esteve em licença saúde para tratamento de uma depressão. Enquanto esteve ausente, seu chefe remanejou a equipe de trabalho: para que não precisasse contratar ninguém para executar as atribuições de Sandra, concedeu horas extras aos demais empregados, lhes pagando uma espécie de abono salarial. E, para Sandra, restará uma verdadeira via crúcis pra tentar convencer os colegas, indo de porta em porta implorar sobre a importância de manter o seu emprego - a situação será decidida em uma assembleia mais adiante. Sim, mendigar pelo emprego se torna a metáfora mais do que perfeita a respeito da humilhação sofrida por empregados (que, de quebra, ainda tem a sua saúde deteriorada). Leia a resenha completa.




8) 7 Prisioneiros: sim, a gente sabe que na esteira do recém finalizado (des)governo Bolsonaro há um contexto caótico em que absolutamente tudo é possível. Só que, ainda assim, parece meio inacreditável que, já adentrando 2023, sejam tantos os casos revelados que envolvem tráfico de pessoas e, mais ainda, de trabalho análogo à escravidão. Experimente fazer uma pesquisa com os termos relacionados ao assunto, e não será surpresa encontrar notícias atualíssimas de trabalhadores resgatados, em meio a condições degradantes, ausência total de direitos e precarização de todos os tipos imagináveis -  como o que envolveu certas vinícolas da Serra Gaúcha. Na gestão do "mito", valia a ladainha do "mais trabalho e menos direitos". E a real é que há pouco espaço para qualquer tipo de otimismo no que diz respeito a esse tema. O futuro é nebuloso - e, em muitos casos, parece o passado. E, aqui, entra o grande mérito desse dolorido filme nacional que coloca o dedo na ferida na hora de escancarar o absurdo do trabalho escravo na contemporaneidade - uma de nossas tantas mazelas. É uma obra de baixo orçamento, mas que passa o recado de forma contundente. Leia a resenha completa.




7) O Bom Patrão (El Buén Patrón): "bom todos vocês sabem que minha mulher e eu não temos filhos, e nem precisamos deles, porque vocês são nossos filhos." A frase dita pelo senhor Blanco (Javier Barden) ainda no começo do enviado da Espanha ao Oscar do último ano já evidencia uma certa semiótica desse ideal supostamente paternalista que costuma reger algumas empresas. Do alto de uma estrutura elevada, o sujeito - o dono de uma bem conceituada fábrica de balanças - discursa à seus funcionários, que estão ao nível do solo (uma imagem de peso e contrapeso que serve de metáfora não apenas para o tipo de segmento daquela indústria, mas também para a hierarquia ali vista). Em meio a comentários sobre compromissos e estratégias, o senhor Blanco alerta a todos ali que, naquela semana, deverá visitá-los uma comissão que concede uma premiação de excelência entre empresas regionais e que eles estão entre os finalistas. E é claro que a coisa vai desandar e a tentativa de preservar a boa imagem será paulatinamente arruinada por empregados insatisfeitos, problemas familiares, assédios e outras questões. O tema é sério, mas o resultado é absurdamente debochado! Leia a resenha completa.




6) O Corte (Le Couperet): quem acompanha a carreira do grego Costa-Gavras já sabe que o cinema político é o seu forte - como atestam obras fundamentais como Z (1969) e Estado de Sítio (1972). Com O Corte o diretor realizou uma debochada comédia, que leva ao limite o conceito de capitalismo selvagem, que faz com que as pessoas briguem o tempo todo pelos melhores postos de trabalho. A ideia de "eliminar adversários" na busca por uma vaga de emprego adquire, nesta ótima película, um tom literal quando o protagonista Bruno (José Garcia) resolve que a solução para voltar ao mercado é assassinar os potenciais concorrentes para o mesmo cargo. Sim, é bastante nonsense, com a película flertando com o absurdo a todo momento. Mas a intenção é a de, metaforicamente, fazer a crítica a um sistema que se apresenta extremamente competitivo, fazendo com que as pessoas tomem medidas desesperadas. Alegórico, quase à moda de um Tarantino francês, Costa-Gavras faz a crítica necessária - isso que naquela época não ouvíamos falar em empreendedorismo de palco, em coach, em coworking, em startups e em outros termos da área -, extrapolando qualquer limite de lógica, de coerência e de ética. Vale demais! Leia a resenha completa.




5) Você Não Estava Aqui (Sorry We Missed You): quem acompanha a carreira do diretor Ken Loach sabe que seu cinema social costuma ser duro, áspero e extremamente realista. Não há desafogo para a paisagem que se estabelece, seja na análise do cidadão comum que luta contra a burocracia de um sistema que lhe exaure, como no anterior Eu, Daniel Blake (2018), seja na abordagem da precarização do trabalho, caso neste aqui. Na trama voltamos um pouco no tempo, mais especificamente para os anos que se sucederam a crise de 2008, que resultou em um sem fim de trabalhadores desempregados. Um destes é Ricky (Kris Hitchen), que adquire (meio a contragosto) uma van para trabalhar de forma autônoma com entregas. Já a esposa Annie (Debbie Honeywood) trabalha como cuidadora, como forma de complementar a renda. Ambos os trabalhos precarizados, sem direitos, com jornadas exaustivas, que chegam próximas das 14 horas diárias. É um contexto bastante atual, e Loach mete o dedo na ferida para mostrar como a falsa de ideia de "autonomia" no mercado de trabalho é, apenas isso... falsa. Assim, a estrutura familiar desanda e a tragédia se torna quase inevitável. Leia a resenha completa.




4) Parasita (Gisaengchung): grande vencedor do Festival de Cannes e do Oscar - aliás, primeiro estrangeiro da história a alcançar o feito de vencer a categoria principal -, o filme do diretor Bong Joon-ho (Okja, Expresso do Amanhã), desconstrói o sentido do substantivo/adjetivo que dá nome à obra: quem afinal de contas parasita quem para que a engenhoca capitalista siga funcionando a contento? Na trama, uma família pobre do subúrbio da Coréia do Sul vai aos poucos entrando na vida de outra, burguesa, sem que esta perceba o que está realmente acontecendo. A intenção é a de oferecer a força de trabalho, mas até onde vai a mentira para que esteja assegurada a manutenção do estratagema? Com um elenco carismático, a história mostra que não há vilões - sendo o Estado o grande culpado por não viabilizar uma sociedade com menos contrastes - com mais igualdade. Tecnicamente sublime, a obra ainda vai no limite do suspense e o deboche, adotando metáforas - como na inesquecível sequência da chuva -, que resumem a intenção geral da película em poucos segundos. Parasita conseguiu, ao cabo, furar a bolha ao apresentar uma narrativa sobre questões sociais, que era totalmente palatável. Leia a resenha completa.




3) Eles Não Usam Black-Tie: incrível perceber como, mais de 40 anos depois de ter sido lançado nas cinemas, esse clássico de Leon Hirszman, segue dolorosamente atual. O Brasil caminhava para o final de uma longa ditadura em 1982 - época em que greves como a dos metalúrgicos, ocorrida em São Bernardo do Campo, no ABC Paulista, ganhavam força buscando melhores condições de trabalho ao passo que protestavam contra o arrocho salarial e autonomia sindical.  De alguma forma o filme de Hirszman nos joga para dentro desse contexto, ao nos apresentar para o jovem operário Tião (Carlos Alberto Riccelli), um sujeito alienado que está apenas interessado em viver a boa vida. O pai de Tião, Otávio (o próprio Guarnieri), é um ardoroso militante sindical que, a despeito da idade, não perde o seu idealismo. Quando uma assembleia faz com que ecloda um movimento grevista, a categoria metalúrgica fica dividida (e pai e filho acabam ficando em lados opostos desse debate). O resultado é uma obra que olha com certa melancolia para a juventude - desinformada, ignorante, afastada da realidade -, ao passo em que assiste não sem certo desencanto a massa trabalhadora sendo diariamente exaurida e com cada vez menos perspectivas. Leia a resenha completa.




2) Tempos Modernos (Modern Times): mecanização, rotinas de trabalho exaustivas, luta por direitos, intolerância política, pobreza, doença. Desencanto. Alienação. Sim, esse combo todo pode até parecer um resumo dessa era aceleradíssima que vivemos. Mas também é aquilo que assistimos no clássico que apenas comprova a atemporalidade da obra de Charles Chaplin. Seu humor, nunca vence. Suas críticas dialogam com o hoje. E em tempos tão tecnológicos como os deste começo de século, chega a ser comovente perceber como um filme lançado há quase 90 anos ainda nos pega desse jeito. Da cena clássica em que centenas de trabalhadores entram na indústria metalúrgica como se fossem um rebanho bovino indo pro abate à esteira onde Carlitos deve repetir, mecanicamente, os mesmos movimentos monótonos durante toda a jornada, tudo contribui para que ele não consiga se desconectar dessa rotina, quando o serviço se encerra. Após um rebu, o protagonista é preso acusado de, pasmem, comunismo! Aliás, a crítica social da obra foi tão contundente que Chaplin foi, de fato, acusado de estar do "lado vermelho da força". É só um elemento a mais que torna essa experiência entre roldanas, pistões, alavancas e outras engenhocas ainda mais impactante. Leia a resenha completa.




1) A Classe Operária Vai ao Paraíso (La Classe Operaia Va In Paradiso): Simone de Beauvoir afirmava que o opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos. Pois na Itália do início dos anos 70, a frase encontra eco no comportamento de Lulu (Gian Maria Volonte), um "operário-padrão" dedicado e admirado pelos seus chefes pelo trabalho que desempenha, com muito esforço e suor, em uma indústria metalúrgica. Apesar das condições absolutamente insalubres, Lulu se mantém alheio às greves que lutam por cargas horárias mais justas, salários adequados e melhores condições gerais, permanecendo em um mundinho em que recebe tapinhas nas costas dos superiores por desenvolver sistemas que aumentam a produtividade. Digamos que a ficha cai para Lulu quando, num dia de trabalho exaustivo, ele perde um dedo. Desassistido pelo Plano de Saúde ocupacional, que lhe fornece o mínimo dos mínimos, Lulu resolve que é hora de se engajar. Só que talvez seja meio tarde, quando Lulu perceber que os tapinhas nas costas darão lugar ao pé na bunda depois de sua produtividade reduzir drasticamente. Contundente e melancólica, essa obra que venceria a Palma de Ouro no Festival de Cannes, apresenta certa parcela da classe operária como uma massa ignorante do ponto de vista político - sonhando com a ascensão social, ao mesmo tempo em que permanece alienada. Mais atual, impossível. Leia a resenha completa.



A gente sabe que teria muitos outros filmes pra incluir nessa lista e contamos com as sugestões de vocês pra ampliar a nossa relação! E para manter a classe trabalhadora unida!

sexta-feira, 28 de abril de 2023

Tesouros Cinéfilos - Phoenix

De: Christian Petzold. Com Nina Hoss, Ronald Zehrfeld e Nina Kunzerdorf. Drama, Alemanha, 2014, 98 minutos.

"O tempo é tão antigo e o amor tão breve / O amor é ouro puro e o tempo um ladrão / Estamos atrasados ​​querido, estamos atrasados / A cortina desce, tudo termina cedo demais". É simplesmente impossível não abrir um largo sorriso enquanto assistimos à cantora Nelly (Nina Hoss, vista recentemente em Tár), em uma interpretação da canção Speak Low, escrita por Kurt Weill e Ogden Nash, em 1943, já nos instantes finais de Phoenix - essa pequena obra-prima do cinema moderno dirigida por Christian Petzold (do ótimo Em Trânsito, 2018), e que está disponível no Mubi. Esse, ao cabo, é um daqueles momentos de elevação, capazes de converter o cinema em arte. Tudo se fecha, afinal, com a enigmática letra da música servindo não apenas como um mero acessório sem função, mas como uma metáfora mais do que perfeita para tudo aquilo que assistimos até então. "Fale baixe enquanto você fala amor / Nosso dia de verão murcha muito cedo". É um aviso. Um alerta.

Até aquela altura da trama, tudo parecia ser apenas ambiguidade dentro daquele contexto de pós-guerra. Nelly é uma jovem que sobreviveu aos campos de concentração, mas teve o seu rosto desfigurado durante um ataque. Ela não morreu, mas seu marido Johnny (Ronald Zehrfeld) pensa que ela não está viva, enquanto serve uma ou outra garrafa de bebidas na boate que dá nome ao filme. Determinada à retornar à Berlim, Nelly passa por um severo procedimento cirúrgico que reconstrói sua face. O objetivo é o de tentar ficar o mais próximo possível de como era a sua aparência. O médico alerta de que talvez essa seja a oportunidade para um novo rosto, que deixe as marcas - da guerra, dos preconceitos - para trás. Tudo é acompanhado de perto pela leal amiga Lene (Nina Kunzerdorf), que funcionará também como uma conselheira, que a adverte sobre os riscos que envolvem um reencontro com o, agora, ex.

Vagando como um fantasma ressuscitado por Berlim, a protagonista reencontra Johnny, que não a reconhece - mas acha curioso o fato de ela ser muito semelhante à sua "falecida" esposa. E, diante desse fato, resolve bolar um plano à moda dos filmes de Hitchcock que, aqui, têm a adição de uma pitada meio noir, e que envolve a grana que Nelly tem para receber como uma espécie de benefício/herança (da sua casa só restaram escombros). A ideia é fazer com que Nelly se passe por... ela mesma, para que o dinheiro possa ser obtido. Sendo posteriormente dividido entre os dois. E, nesse cenário, não deixará de ser comovente o esforço de Nelly em reencontrar o amor, essa paixão perdida pelo ex-marido (com quem dividia a vida e os palcos, já que ele era pianista e ela cantora), ao passo em que o sujeito só enxergará nela a oportunidade de faturar uma grana.

Misterioso, o filme nos conduz para uma experiência que nos confunde e nos deixa em dúvidas com as suas idas e vindas. Com a situação chegando ao limite conforme Nelly avança de forma gradativa na construção da personagem dela mesma - e não deixa de ser impressionante notar o fato de que, quanto mais iluminado seu rosto fica, mais próxima de subverter suas decisões para bem longe de certa lógica, ela parece estar. É um rosto que brilha externamente, enquanto internamente algo esvanece. Ela está murchando, mas crescendo em igual medida. Em certo momento surge sedutora. Mas indecifrável. Esse vai e vem de incertezas é apenas a cereja do bolo de uma obra que brilha ao, nas suas entranhas, discutir a independência da mulher e a capacidade de seguir seu caminho sem necessariamente estar atrelada a um homem. O filme é feminista? Não sei dizer. Mas o final, sem romantismo exacerbado, é de uma delicadeza e de um vigor inebriantes. Que tornam impossível ficar alheio.


quarta-feira, 26 de abril de 2023

Novidades em Streaming - Minhas Férias com Patrick (Antoinette Dans les Cévennes)

De: Caroline Vignal. Com Laure Calamy, Benjamin Levernhe e Olivia Côte. Comédia / Romance, França, 2021, 96 minutos.

A figura do burrinho que empaca e anda, empaca e anda é uma metáfora quase óbvia, mas que funciona a contento dentro do simpático Minhas Férias com Patrick (Antoinette Dans les Cévennes) - filme francês que está disponível na Mubi. Dirigida por Caroline Vignal, a obra é uma experiência leve e cheia de carisma, sobre uma professora de nome Antoinette (vivida pela ótima Laure Calamy) que resolve se humilhar até onde dá na tentativa de se aproximar de seu amante - um homem casado chamado Vladimir (Benjamin Levernhe). Até a chegada do verão, tudo parecia arranjado pra que os dois passassem uma semana de férias juntos. Só que de última hora Vladimir precisa cancelar o programa, já que sua esposa Eléonore (Olivia Côte) reserva uma estada em uma casa de campo que envolve uma caminhada nas montanhas, com direito a condução de um burro (!). 

Para não ficar para trás, Antoinette resolve fazer a única coisa possível, claro, em uma situação como essa: ir para o mesmo local em que está o amante, a esposa e a filha do casal que, pra completar o combo, é sua aluna. Durante a jornada a gente parece não saber direito o que ela pretende. Mas tudo não passa de uma boa desculpa para momentos de diversão (e de bastante vergonha alheia). No local, a protagonista é informada sobre o fato de não ser uma obrigação a travessia pelas montanhas ser feita com o burro. Mas já é tarde. Como muitos lugares para alugar no Airbnb, a condução do burro por paisagens bucólicas é parte da experiência. Que dialoga com a história do local. É assim que Antoinette é apresentada à Patrick que, as turras, será sua companhia durante vários dias. Uma inesperada companhia, aliás. Um confidente que, com suas orelhas baixas, escutará atentamente os dilemas da professora.



É claro que não é preciso ser nenhum adivinho para saber que parte da graça do filme estará na excêntrica relação de Antoinette com Patrick. Manejar um burro não é tarefa fácil. Exige paciência para minimizar as chances de que ele emperre. E aí não vai ter puxão que o faça ir adiante. Como dito no começo do texto, por mais que essa não seja assim uma obra tão profunda (ou moralista) na hora de analisar os relacionamentos, não dá pra negar que o comportamento do burrinho funcionará como uma alegoria para a própria existência de Antoinette. Qual o sentido, afinal, de uma jovem professora com a vida mais ou menos bem resolvida ir atrás de um homem casado? A coisa piora quando ela se encontra com a família e percebe, por meio de uma conversa com Eléonore, que ela não apenas sabe das traições do marido, como tem certeza de que ele jamais lhe abandonará por uma aventura. Ou seja, qual o sentido de tudo aquilo?

Em meio a encontros fortuitos com outros hóspedes, Antoinette vai se familiarizando, a cada dia que passa, com seu novo "amigo". Ela até pensa em desistir no meio do caminho, mas é instigada a permanecer. Conhece um motoqueiro com quem divide uma noite de paixão. Faz confidências ao dono de uma pousada. Se torna conhecida no local por sua inusitada "história de amor" nunca concretizada e que, ainda assim, é tratada por todos com incrível naturalidade. É, ao cabo, um filme que não julga seus personagens, ainda que coloque seu ponto. É simplesmente impossível não se afeiçoar da protagonista que, com seus olhos azuis angulares, seu comportamento ao mesmo tempo inseguro e decidido, e seu carisma irresistível, cativa a todos. A mensagem que fica é: homem casado? Talvez melhor evitar. Somente assim o burro desempacará. E, quem sabe, ali adiante a coisa pode começar a fluir melhor.

Nota: 8,0


terça-feira, 25 de abril de 2023

Novidades em Streaming - Um Filho (The Son)

De: Florian Zeller. Com Zen McGrath, Hugh Jackman, Vanessa Kirby, Laura Dern e Anthony Hopkins. Drama, EUA, 2022, 123 minutos.

Em uma das raras cenas efetivamente bonitas - na falta de outro adjetivo - de Um Filho (The Son) o jovem Nicholas (Zen McGrath) dança junto com seu pai Peter (Hugh Jackman) e com sua madrasta Beth (Vanessa Kirby) ao som de It's Not Unusual de Tom Jones. O cenário é o apartamento de Peter e ali está rolando uma tentativa meio desajeitada de aproximação entre os três - naquele ponto a relação já está um tanto complicada, por conta da sensação de abandono e da consequente depressão severa que assola a alma de Nicholas. Aliás, uma grave doença que, em muitos casos, é difícil determinar exatamente de onde vem. Na mesma cena a câmera lenta foca Peter e Beth bastante animados enquanto movem o corpo para, imediatamente após, um travelling colocar Nicholas em primeiro plano, paralisado, com os olhos fixos em lugar indefinido. É a forma criativa que o diretor Florian Zeller encontrou para dizer ao espectador que o jovem pode até estar ali. Mas somente de corpo. Sua mente, ao cabo, está em outro lugar.

E é justamente o dilema de como lidar com um filho com um grave problema psicológico, que está no centro da narrativa dessa espécie de continuação de Meu Pai (2020) - ambas adaptações de peças teatrais do próprio Zeller (a primeira, aliás, vale lembrar, rendeu o Oscar de Roteiro Adaptado e de ator para o veterano Anthony Hopkins). Só que tudo que a experiência anterior parecia ter de empática e compreensiva com a doença do idoso à beira da demência vivido por Hopkins, se dilui em um caleidoscópio de tentativas e erros que parecem apenas frustrantes ao tentar apontar quais as origens da depressão do jovem. E eu não sei, sinceramente, se isso é muito saudável para quem está do lado de cá da tela. Conforme o filme avança, descobrimos que Peter trocou a ex-esposa Kate (Laura Dern) pela jovem Beth. Uma tentativa de dar um novo rumo pra própria vida e tentar ser feliz? Ou apenas egoísmo de um pai de família, que se refletirá em uma carga de dor sem fim nos ombros do filho (como por vezes a obra parece direcionar)?

 

Ainda assim, ao menos o filme foge do clichê totalmente formulaico do péssimo pai - não que Peter seja um exemplo em tudo -, que resultará em um filho traumatizado. Nos flashbacks não há cenas de agressões físicas ou psicológicas, de bebedeiras ou de qualquer sequência derivativa de instabilidade parental que é típica do gênero. Ao contrário. Em certa altura somos brindados com um belo instante onde o trio está em um passeio de barco em um dia ensolarado - o chapéu de Kate, que surge exuberante na proa, voa para longe. Todos riem. Na sequência, Peter está com o filho que não deve ter mais do que seis anos dentro da água, ensinando-o a nadar. Um esforço bonito, comovente. Um momento alegre de pai e filho, no estilo daquele meme do pai que fica genuinamente feliz ao ver o seu pequeno dar as primeiras pedaladas de bicicleta. Alegrias, tristezas, anseios, sonhos, decepções. A vida é um turbilhão e ninguém nunca estará efetivamente preparado para os acontecimentos. E um dos acontecimentos é que Peter e Kate se separam sem muita explicação. E mais adiante Nicholas para de ir às aulas. O que se soma ao fato de não ter amigos, não ter interesses. "A vida está me pesando. Quero que algo mude mas não sei o quê", clama em certa altura o adolescente.

Ok, se o objetivo do filme era chamar a atenção (ou horrorizar) os pais para os perigos da depressão adolescente e da necessidade de uma permanente "vigilância" pautada pelo diálogo e, especialmente, por tratamentos terapêuticos e com medicamentos, dá pra se dizer que a obra tem seu ponto. Não dá pra virar as costas e achar que é apenas mimimi - e a cena em que Anthony Hopkins aparece, quase resvala no chavão do "na minha época era bem pior e olha como estou agora". Mas ao mesmo tempo me deixou meio incomodado a persistência da ideia do trauma impossível de lidar, ser oriundo de um divórcio entre pais que eram felizes juntos e, agora, não são mais. Reduzir a existência de qualquer fiapo de felicidade de Nicholas a condição de ver os pais casados me parece pequeno. E quase injusto com todos ali. Mas o caso é que a depressão muitas vezes não têm muita explicação, sendo capaz de assolar mesmo aqueles que consideraríamos estar em uma vida boa, confortável. Fazer filme sobre o tema é difícil. É um assunto tabu. E nem sempre o resultado será totalmente a contento. E aqui temos um meio termo: nem o desastre que parte da crítica está apontando. Nem a exuberância da obra anterior de Zeller. Vocês, como sempre, estão convidados a assistir - está disponível no Now e em outras plataformas. E a dar o veredicto.

Nota: 6,5


Pitaquinho Musical - Kara Jackson (Why Does the Earth Give Us People to Love?)

"Por quê a terra nos dá pessoas para amar? / Para em seguida levá-las embora, para fora de nosso alcance?". A pergunta melancólica e de tom filosófico feita durante a execução da faixa-título do álbum de estreia de Kara Jackson não é por acaso. As dores do mundo - aquelas dores mais cotidianas e que em muitos casos não nos parecem ser objeto de uma reflexão mais consciente - formarão a matéria-prima de boa parte das 13 canções de Why Does the Earth Give Us People to Love? Qual o sentido de tudo isso? "Estamos apenas esperando a nossa vez?". questiona a artista enquanto seu violão flui como uma espécie de extensão evocativa do completo absurdo do luto. Algo que, somado a sua voz angustiada, apenas amplia o sentimento de vazio. Sim, Jackson pode ser apenas uma jovem de 23 anos, nascida em Illinois. O que não significa que ela esteja imune às perdas.

E perdas aqui podem também ter um sentido meio literário. E literal. Ou estarem diretamente relacionadas ao amor - e suas desilusões, paixões desastradas estrada afora ou sentimentos desajeitados cidade adentro. "Quando eu tiver limpado meus lençois / Não venha me ligar para ver que / Não sou tão maternal / Não vou beijar sua bochecha" afirma em Free, num misto de deboche e sobriedade que envolve adultos infantilizados e, aparentemente, incapazes de entregar uma paixão mais madura. O expediente se repete em Therapy ("Todo homem pensa que eu sou a porra da mãe dele"), o que dá uma dimensão da quebra de expectativas que envolvem histórias do tipo. Como se fosse uma poeta já experiente, Jackson se apropria desses temas com elegância, mesclando estilos como blues, alt country e folk, reafirmando o poder da mulher - e da mulher negra. "Todas as pessoas com quem namorei / Me dizem que sou intimidante" resume de forma espirituosa em no fun/party. De tirada em tirada, quem ganha é o ouvinte.

Nota: 8,5


segunda-feira, 24 de abril de 2023

Cinema - Broker: Uma Nova Chance (브로커)

De: Hirokazu Koreeda. Com Lee Ji-Eun, Song Kang-Ho, Gang Dong Won e Bae Doona. Drama, Coréia do Sul, 2022, 129 minutos.

Quem acompanha a carreira do diretor Hirokazu Koreeda sabe que, no cerne de muitas de suas obras, costuma estar a completa desconstrução do conceito de família - ao menos num sentido mais tradicional do termo. Foi assim com os premiados Ninguém Pode Saber (2004), Pais e Filhos (2013) e Assunto de Família (2018). É assim também com o recente Broker: Uma Nova Chance (브로커), que está em cartaz nas salas do País. A trama não poderia ser mais intrincada, se espalhando como um emaranhado que, no fim das contas, nos deixa num universo de incertezas em relação ao que seria a decisão correta a se tomar em determinadas circunstâncias. Tudo começa em uma noite chuvosa, sombria. A jovem So-young (Lee Ji-Eun) se aproxima de uma Igreja para deixar um bebê - seu próprio filho - em uma espécie de caixa (algo tipo um abandono "institucionalizado"). Junto ao pequeno, apenas um bilhete com a promessa de que ela voltará.

Ela volta. Já no dia seguinte, quando ela descobre que o bebê já está em posse da dupla Sang-hyun (Song Kang-Ho, visto em Parasita, 2019) e Soo-dong (Gang Dong Won). O primeiro é o proprietário de uma lavanderia que, nas aparências, atua como um voluntário da paróquia. O segundo é o responsável por um esquema que rola por baixo dos panos e que envolve o tráfico de bebês - com o conhecimento e a conivência do primeiro. Nesse meio tempo So-young chamou a polícia, que passa a investigar o caso nos bastidores. E como se já não bastasse toda a complexidade do caso, a jovem protagonista, sem ter muito pra onde ir, resolve se juntar à dupla na missão de tentar encontrar pais adequados e que estejam dispostos à adotar seu próprio filho. A ideia por trás é de que os investigadores possam efetuar o flagrante. Enquanto acompanhamos a peregrinação do trio e do bebê, que mais adiante passarão a ter a companhia ainda do pequeno Hae-jin (Im Seung-soo), um órfão fã de futebol que se junta a eles.

E por mais que no centro da narrativa esteja a ocorrência de um grave crime - o tráfico de seres humanos -, o que Koreeda faz, com sua habitual habilidade, é subverter a ordem quando a ideia é apontar mocinhos e bandidos. Quando tomamos contato com o passado da dupla central de trambiqueiros, descobriremos que eles também são órfãos. No mesmo orfanato em que esteve Hae-Jin. "Depois dos seis anos ninguém quer te adotar", lembra alguém. Nesse sentido, está totalmente equivocado o ideal de tentar encontrar pais amorosos e dispostos à criação de um filho, ainda que isso seja feito do ponto de vista completamente ilegal? Sim, é estranhíssimo pensar sobre isso, mas enquanto acompanhamos a aventura desse quinteto improvável, vamos nos dando conta de que família, talvez não necessariamente tenha a ver com laços de sangue. Aliás, uma ideia batida que, aqui, volta à baila, quando vemos todos ali se apoiando a partir do que lhes impôs o destino. Ainda mais em um mundo tão complicado como o que vivemos.

Ok, ninguém esqueceu da gravidade do assunto que acompanhamos no filme. Mas as circunstãncias não podem ser ignoradas - o que também determina, em partes, as ações de So-young, que envolvem ainda um outro crime cometido, este contra um homem que, muito provavelmente, teria abusado dela. Ao cabo, essa é uma obra que nos faz pensar sobre todas essas questões, mas de uma forma curiosamente leve - sem uma mão pesada, excessivamente moralista ou necessariamente panfletária por trás. Ao contrário, são tantos os momentos tocantes envolvendo aquele coletivo de desajustados que, no fim das contas, nos vemos torcendo para que todos ali possam ter o melhor destino. Do bebê ao dono da lavanderia - sem esquecer que todos ali são vítimas de um sistema maior. Em um momento em que reacionários insistem em desqualificar o ideal de família mais plural (ou menos convencional), o clamor por empatia parece falar mais alto nessa experiência ao mesmo tempo melodramática e inovadora. Quem conseguir quebrar os protocolos do julgamento pelo julgamento encontrará aqui um filmão. Que talvez até nos faça repensar a nossa visão sobre as famílias "improvisadas".

Nota: 8,5


terça-feira, 18 de abril de 2023

Novidades em Streaming - Até os Ossos (Bones and All)

De: Luca Guadagnino. Com Taylor Russel, Timothée Chalamet, Mark Rylance, Chloë Sevigny e Michael Stuhlbarg. Drama / Terror / Romance, EUA / Itália, 2022, 131 minutos.

Uma alegoria sobre pessoas à margem da sociedade que lutam para sobreviver? Ou "apenas" um romance de tintas gore sobre um casal que tem o canibalismo como estilo de vida? Metáfora para uma sociedade doente que tem por hábito excluir aqueles que considera diferentes (ou que não se encaixam em certo padrão)? Ou road movie sobre dois desajustados num esforço tão desesperado quanto poético - mais ou menos como o da dupla central de Assassinos por Natureza (1994), de Oliver Stone? Um pouco de cada coisa talvez. E é por isso que a arte é tão linda. Porque enquanto assistia Até os Ossos (Bones and All) ficava o tempo todo me perguntando "o que diabos o Luca Guadagnino tá querendo dizer?" Ali pelas tantas surgia algum discurso meio perdido de Ronald Reagan na TV - a trama se passa nesses desolados anos 80 de completo esfacelamento do sonho americano - e mentalmente eu já pensava "tá aí, é um filme político".

Só que ali adiante esse ideal já parecia ser quebrado, especialmente pelo comportamento excessivamente desequilibrado de certos errantes. Ok, o sistema é bruto e ele isola as minorias, sejam eles pretos, pobres, gays. Mas então qual é o sentido de converter, por exemplo, o personagem Sully (o sempre ótimo Mark Rylance) em uma espécie de vilão involuntário? Que resolve caçar a dupla de protagonistas - no caso Maren (Taylor Russel) e Lee (o onipresente Timothée Chalamet) - até o final? Ele também não é um excluído? Isso fez com que eu me desse conta de que talvez a coisa não fosse tão complexa assim. Ou era? No começo do filme, entendemos Maren como uma jovem recém-chegada à Virgínia. Está fazendo novas amigas, frequentando as aulas. A gente estranha quando seu pai tranca a sua porta à noite. A jovem foge e vai ao encontro das meninas, que estão fazendo uma reuniãozinha. A conversa é amena: música, festas, interesses juvenis e, bom, "você fez de novo" é a reação do pai ao saber o que Maren havia feito. É preciso fugir. Novamente.

Em linhas gerais, Guadagnino não se ocupa em tentar explicar por que Maren, Lee, Sully e outros são o que se chama de "comedores". Sim, comedores de carne mesmo. Carne humana, no caso. Eles apenas existem como desajustados que vagam de uma cidade para a outra, sendo capazes de se reconhecer pelo cheiro - que é justamente a forma com que o excêntrico Sully se aproxima da protagonista. Eles até podem se alimentar de comida normal. Mas não demora para que o desejo de ser uma espécie de Drew Barrymore em Santa Clarita Diet - aliás, uma das mais divertidas e inusitadas séries da Netflix - fale mais alto. Só que pra comer um ser humano é preciso, inevitavelmente, matá-lo. E aí, como faz? Tentando manter a coisa mais ou menos dentro de um código de honra, a dupla central adota o modo Yellowjackets somente quando acreditam estar diante de alguém que possua um código de conduta minimamente questionável. Mas e se a leitura for equivocada? Assim, é preciso fugir. Praticamente o tempo todo. De Estado em Estado da Costa Leste americana.

Abandonada pelo pai, Maren tem o sonho de conhecer a mãe Janelle (Chloë Sevigny) que, mais tarde, ela descobrirá estar passando por sérios problemas. E quem ali não está? Adotando uma fotografia levemente granulada que parece combinar à perfeição com os cenários bucólicos de estados como Ohio, Indiana, Missouri e Iowa, Guadagnino converte Até os Ossos em uma experiência sobre sobrevivência em meio a um contexto difícil, que escancara (ainda) de forma quase literal o ideal que envolve uma de nossas necessidades mais básicas como ser humano: a de comer. Visceral, o filme talvez exija um pouco de força de vontade do espectador, dadas as sequências com corpos mutilados, ossos expostos, bocas e roupas sujas com sangue e vísceras. Animalesco, selvagem, de certa forma grotesco, esse é um filme que mistura gêneros e que permanece conosco, após os créditos finais subirem. E que ainda possui uma excelente trilha sonora. O que o diretor de Me Chame Pelo Seu Nome (2017) quis dizer? Não consigo dizer com certeza. Só sei que a jornada é prazerosa. Aliás, estranhamente prazerosa.

Nota: 8,0


segunda-feira, 17 de abril de 2023

Novidades em Streaming - Marcel the Shell With Shoes On

De: Dean Fleischer-Camp. Com Jenny Slate, Dean Fleischer-Camp e Isabella Rossellini. Comédia / Drama / Animação, EUA, 2021, 90 minutos.

Em um dos tantos diálogos divertidos e curiosos do mocumentário (como é chamado o documentário de mentirinha) Marcel the Shell With Shoes On, a simpática concha protagonista de cerca dois centímetros de altura (dublada por Jenny Slate) se mostra bastante surpresa com o fato de as pessoas assinarem as cartas com a palavra "paz". Ao que ela brinca com a ideia de alguém utilizar guerra na conclusão das correspondências - como se isso fosse possível. "Guerra. Sim, na verdade eu sou uma pessoa de guerra. Que comece a batalha". Esse instante excêntrico, devo dizer a vocês, é apenas um entre tantos. Marcel está sendo filmado pelo diretor Dean Fleisher Camp (que vive ele mesmo) após ele se mudar para um Airbnb e "descobrir" a concha - que usa tênis e possui algo que se assemelha a um corpo (com direito a um olho gigante). No local, esse anfitrião meio impensável reside com a sua avó, Connie (Isabela Rosselini). E contará ao documentarista sobre como uma tragédia levou-o a se perder de sua família após uma briga envolvendo os proprietários anteriores da residência em que estão.

Sim, poderia ser tudo apenas bobo se não fosse o absurdo carisma do protagonista que, com sua voz infantil e claudicante, se converte no narrador involuntário de uma saborosa história sobre a importância da empatia, do senso de comunidade e da busca por superar dificuldades. Aceitando-se como peça central de um filme - que mais tarde será subido no Youtube e viralizará (aliás, experiência que tem um pé na "realidade", não porque existam conchas falantes em miniatura, mas porque Fleischer realmente produziu um curta-metragem com a graciosa figura em 2010) -, Marcel preencherá cada frame com divagações inteligentes e cheias de personalidade. Sim, aqui e ali pode faltar algum tipo de requinte, de algum apuro que seria mais típico dos "adultos", mas as palavras aqui parecem dotadas de uma sabedoria única e imprevisível. "Sabe por quê eu sorrio tanto? Por que vale a pena", teoriza Marcel em certa altura.



Enquanto assistia à animação - aliás, um prodígio da técnica que mistura vida real com as possibilidades infinitas do stop motion - pensei imediatamente no personagem Horácio da Turma da Mônica (um simpático dinossauro da Idade da Pedra que sempre parece pronto a nos fazer pensar, e sorrir, com sofisticadas pílulas de sabedoria). Muitos dos diálogos de Marcel ocorrem em formato de perguntas e respostas - aliás, ele parece ter uma resposta pra tudo, sempre a partir de sua perspectiva diminuta em comparação à vastidão do mundo. Até quando dizem que sua cabeça parece grande num comparativo com seu corpo, ele devolve um "comparado a quê?". Sim, a confiança de Marcel parece inabalável e de alguma forma, nas entrelinhas, também surge o assunto da autoaceitação. Somos seres imperfeitos, com medos, desejos, sonhos, inseguranças. E uma concha minúscula está ali para nos lembrar de todas essas questões. Filosóficas mas também engraçadas.

Há, por exemplo, um instante divertidíssimo em que Marcel solta um balão pelos ares, que desperta um cachorro da vizinha - que late sem parar. O nosso protagonista parece pasmo com aquilo tudo. "Ele vê algo verdadeiramente elegante no céu e essa é a sua reação?", questiona. Em outra sequência, Dean o leva de carro para uma jornada investigativa na tentativa de encontrar a família de seu amigo. Marcel acaba por vomitar diversas vezes - um vômito minúsculo. "Você sempre vomita no carro?", inquire ele ao motorista. A vastidão do mundo e a sua infinita curiosidade sobre ele parecem ser o que move a concha - para além do ideal de tentar se reencontrar com seus antigos familiares. A sua avó, já com alguma idade, também lhe preocupa - sua saúde pode estar debilitada. "Ela vem da garagem, por isso o sotaque", explica Marcel, como se não fosse nada. Sinceramente, é meio impossível ficar alheio. O que faz com que a gente compreenda o frenesi dos fãs que ele reúne na frente da casa, após seus vídeos viralizarem. Ainda que fãs, não necessariamente signifiquem amigos. Ou pessoas dispostas a ajudar. Mais um ensinamento.

Nota: 8,5


sexta-feira, 14 de abril de 2023

Pérolas da Netflix - Olhar Invisível (La Mirada Invisible)

De: Diego Lerman. Com Julieta Zylberberg e Osmar Nuñez. Drama, Argentina / Espanha / França, 2010, 96 minutos.

Já dizia o escritor Alberto Morávia que "a ditadura é um estado em que todos temem alguém". E, de alguma maneira, é possível dizer que é esse o sentimento que espreita pelas frestas do educandário que serve como cenário para o claustrofóbico Olhar Invisível (La Mirada Invisible) - obra argentina dirigida por Diego Lerman e que está lá, em algum cantinho da Netflix. A trama se passa quase ao final da Ditadura Militar dos nossos hermanos - o ano é 1982. Preocupadíssimo com o avanço dos possíveis atos de subversão, o inspetor da escola Biasutto (Osmar Nuñez) - sujeito de modos rudes, daquele tipo que costuma cair de amores pela extrema direita - encarrega a jovem professora Marita (Julieta Zylberberg) de ser uma espécie de general improvisada, que deve vigiar os alunos com rigor irrestrito. Assim, qualquer atitude que quebre esse senso de ordem, que soe como algum tipo de insubordinação, deve ser relatado.

Imbuída de sua nova tarefa, Marita perambula pelos corredores observando se as gravatas estão bem vestidas, se os tênis estão amarrados, se a distância de um aluno para o outro na fila está adequada. Ao cabo, qualquer perturbação do funcionamento normal do quart.. opa, da escola - aliás, uma escola que parece ser de elite, comandada pelo Estado - será motivo para punições. Para bilhetes aos pais. Para alertas gerais sobre os riscos da desordem. Uma das principais preocupações da protagonista tem a ver com a predileção dos jovens por cigarros. Como forma de vigiá-los, ela chega a se postar às escondidas nos banheiros - inclusive masculinos. A tentativa é de proceder com flagrantes. Surpreender bitucas em vistorias à mictórios. Só que não demora para que o espectador perceba que o interesse da docente pode estar para além do simples patrulhamento. Há algo a mais ali no íntimo. Que instiga.


Marita é jovem, tem 23 anos. Talvez, ao que tudo indica, ainda seja virgem. Em um governo ditatorial, jamais esqueçamos, o moralismo exagerado (falso ou não) está sempre na pauta. Transar e ser feliz? Coisa de depravado. É preciso controlar tudo. Deixar todo mundo em pânico. Só que para Marita talvez seja difícil controlar aquilo que está em seu interior. No caso, os seus próprios, e reprimidos, desejos. Que ela quase extrapola em olhares insidiosos, que se confundem com o seu zelo diligente. Em sua casa, na companhia da mãe e da avó, a jovem não tem sequer privacidade para um banho. Há, como pano de fundo, um certo ar de normalidade. Que é quebrado pela paleta de cores pálida, pela falta de vida dos figurinos sempre acinzentados e mesmo pela letargia permanente das atitudes e da rotina repetitiva. "A ditadura é um estado em que todos temem alguém". E a real é que mesmo quando não parece haver o que temer, há certo risco.

[ATENÇÃO, SPOILERS NESSE PARÁGRAFO] E, nesse sentido, a mensagem dessa pequena obra de pouco mais de 90 minutos, que foi exibida no Festival de Cannes, não poderia ser mais óbvia. A frase "cria corvos e eles te comerão os olhos", de autor desconhecido, aqui também se aplica. Tudo segue em uma rotina mais ou menos razoável dentro daquilo a que se propõe Marita. Até ela mesma ser violada, literalmente, aliás, pelo sistema que supostamente estaria ali para protegê-la. Os acontecimentos impactam, mas permanecem. E Julieta Zylberberg brilha como a figura silenciosa, invariavelmente triste, amarga, com sentimentos e desejos retraídos. Uma alma pálida, sem vida, opaca. Que só encontrará algum tipo de libertação a partir de uma atitude extrema. Não dá pra vencer a ditaduras totalitárias com flores ou com gentilezas. Há que se cortar na carne. Marita descobre isso (quase) tardiamente. Mas, ainda é tempo de despertar. Aliás, nossos hermanos souberam disso mais do que ninguém. A história está escrita.


Pitaquinho Musical - Wednesday (Rat Saw God)

Vamos combinar que é nas contradições que envolvem a vida na pequena cidade que reside a força da poesia ao mesmo tempo turbulenta e contemplativa dos americanos do Wednesday - sensação ampliada com o recém chegado quarto registro de inéditas Rat Saw God. Nesse sentido, o grupo capitaneado por Karly Hartzman é capaz de unir a ambientação pacata do povoado poeirento - onde os moradores sentam tranquilos nos alpendres das casas ajardinadas ao entardecer -,com o clima intempestivo da juventude que, nesses mesmo locais, se encontra em postos de gasolina de beira de estrada para cervejadas que avançarão madrugada adentro. Barulho e placidez. Ruído e calmaria. Por vezes se alternando como uma espécie de metáfora da própria existência, em um disco que é capaz de urrar tenebrosamente, como no épico Bull Believer, para, mais adiante, ressurgir de forma vagarosa, como em TV in The Gas Pump.

 

Ao cabo, e a despeito das inúmeras semelhanças com bandas alternativas dos anos 90 - e que grupos como Waxahatchee e Hop Along replicam na atualidade, com igual qualidade - aqui temos um conjunto de canções que transbordam personalidade, levando o ouvinte por um caminho em que dificilmente se tem certeza de algo. Se Chosen to Deserve quase parece um single possível de ser executado no mesmo bloco radiofônico em que estarão o Alvvays e The War On Drugs, em outro instante somos tragados por letras que acenam para uma inesperada ironia - sim, não podemos esquecer que os meninos vistos em filmes clássicos como A Última Sessão de Cinema (1971), de Peter Bogdanovich, também possuíam senso de humor (nem que fosse um traço). "A América é uma criança mimada que ignora o luto", debocha a cantora na sinuosa Quarry. É uma forma de resumir a ideia toda. Vale demais.

Nota: 8,5


quarta-feira, 12 de abril de 2023

Pitaquinho Musical - Pato Fu (30)

Devo confessar a vocês o fato de não ser fácil falar do Pato Fu sem ser contaminado pela paixão. É uma das bandas da vida, afinal, com direito a discos na coleção, apresentações ao vivo, DVDs e tudo o mais. Posto tudo isso resolvi tentar fazer o isentão pra escutar 30, o décimo registro de inéditas dos mineiros - e o primeiro desde o ótimo Não Pare pra Pensar (2014). Só que não deu: bastaram duas canções do trabalho pra que eu já estivesse entregue ao irresistível carisma e à doçura indefectível do grupo comandado por Fernanda Takai. "Faz tanto tempo / Que não vejo você / Faz tanto tempo já / Que até dá medo de saber / O que anda pensando / Da vida e tudo o mais", anuncia já na abertura da inaugural Fique Onde Eu Possa Te Ver - como se fosse uma velha amiga, querendo saber das novidades, em uma canção graciosamente prosaica com o DNA da banda.


E como se já não bastasse a entrada triunfal, o ato seguinte é a política Silenciador, que faz um contraste perfeito entre a delicadeza da melodia e a fúria dos versos (Mais um milagre na capela / Da fé brotou o empreendedor / Deus fala pelo cano de meu revólver / E a bíblia é o meu silenciador). Aliás, assim como ocorreu no ano passado com o Planet Hemp, a impressão que temos é a de que sequer houve um hiato de quase dez anos, dada a naturalidade com que o coletivo retornou. Ok, a desculpa pode até ser os trinta anos de carreira, que renderá turnê e outros produtos - e é justíssima a reverência a essa que é uma das mais inventivas bandas brasileiras. Mas o Brasil anda dureza e é muito bom ver esse recorte mais afrontoso que resulta em canções imperdíveis como A Besta e Curral Mal-Assombrado. Claro, as baladas cotidianas, açucaradas e primaveris não deixaram de existir. Mas o mundo mudou. Nós mudamos. E é bom perceber que o Pato Fu também caminha junto. Bem-vindos de volta!

Nota: 8,5

 

terça-feira, 11 de abril de 2023

Novidades em Streaming - Os Reis do Mundo (Los Reyes del Mundo)

De: Laura Mora Ortega. Com Carlos André Castañeda, Davison Flores, Brahian Acevedo e Cristian Campaña. Drama / Aventura, Colômbia, 2022, 103 minutos.

"São minha família. Eles não tem ninguém. Nem eu. Estamos sozinhos. Fazemos companhia um pro outro. E só quero leva-los a um lugar em que ficarão bem. Onde não nos falte nada. Onde ninguém vai bater, humilhar ou menosprezar a gente. Onde possamos fazer o que quisermos. E lutar pelo que acreditamos." Vamos combinar que, quando o assunto são as injustiças sociais, as burocracias governamentais e o completo descaso com as camadas populacionais mais vulneráveis, só muda o endereço. Já que a história, em linhas gerais, costuma ser a mesma - com pequenas variações, de acordo com o País. Em Os Reis do Mundo (Los Reyes del Mundo) - grande vencedor da Concha de Ouro do último Festival de San Sebástian -, o jovem Rá (Carlos Andrés Castañeda) recebe uma excelente notícia: por meio de um programa de restituição de terras do do governo colombiano, ele tem direito a um terreno que teria herdado de sua avó, no povoado de Nechí - mais de 350 quilômetros distante de Medellín, onde "mora".

Ao lado de outros quatro jovens amigos, Rá embarcará em uma jornada que visa a recuperar de fato, aquilo que é seu de direito. Sem muito conhecimento ele tem apenas um papel na mão - um documento que o reconhece como legítimo herdeiro. Mas, bom, estamos na Colômbia e poderia ser o Paraguai, a Venezuela, o Brasil e a coisa seria igualmente complexa. Dotado de grande senso de persistência, ele pega a perigosa estrada em meio a caronas em caminhões e ousadias de bicicleta. De cada parada - em bares de beira de estrada, em propriedades rurais isoladas ou até mesmo em bordeis improvisados - emergirão eventos inesperados, que alteram rotas, que dão movimento a esse road movie tão aleatório quanto carismático. Em uma sequência comovente, por exemplo, eles chegam a uma casa de prostituição, sendo acolhidos como filhos (ou netos) por um coletivo de putas idosas. Um lugar para chamar de casa é o que todos ali procuram - um afeto que seja. Mais real do que terreno até então abstrato, que era da avó de Rá.

Em certa altura os meninos correm pelas ruas asfaltadas na madrugada solitária. E, como crianças que são, não resistem a uma traquinagem: arremessam pedras em todas as lâmpadas dos postes de iluminação pública que estão no seu trajeto. Ao final da explosão do último refletor resta apenas a escuridão. A alegoria não poderia ser mais óbvia: é o breu que parece estar no horizonte daqueles meninos. Que deixam a violenta e turbulenta Medellín - com sua urbanidade e urgência de metrópole impregnada em todos os poros - para se embrenhar rumo ao desconhecido, à incerteza. Entre eles a relação também não será fácil. De forma magnética, a diretora Laura Mora Ortega, apresenta cada um dos meninos como sujeitos de personalidade únicas, uns mais afáveis, amistosos, outros mais intempestivos, propensos a algum tipo de violência. Ainda assim eles estão juntos em sua jornada. E a frase que abre essa pequena e modesta resenha, proferida por Rá em certa altura, resume o espírito todo da coisa.

De alguma maneira esse é um filme em que o preconceito parece estar nas entrelinhas, ainda que ele não demore a eclodir. No mesmo bordel em que são aninhados pelas mulheres, eles recebem uma boa dose de hostilidade de outros clientes. O racismo, a intolerância, o ódio e a invisibilidade estão em toda parte. Em um bar o atendente simplesmente ignora seus pedidos. Eles queriam apenas comida e bebida. Nada de mais. Nenhum abuso. Ao cabo este é um filme dolorido sobre pessoas que persistem, resistem, caem e levantam. O cavalo branco que volta e meia reaparece também funciona como um símbolo de uma paz que parece que nunca será encontrada. Contemplativa, comovente, urgente, essa é daquelas obras que atualizam, de alguma maneira, Capitães de Areia, de Jorge Amado, num retrato desalentador e fantasmagórico da miséria e da falta de afeto - e das consequências duras que decorrem desse contexto. Tá na Netflix. E vale ser conferido.

Nota: 8,0


Na Espera - Asteroid City (Filme)

Não é preciso assistir nem 30 segundos do trailer de Asteroid City para saber que estamos diante do novo filme de Wes Anderson. Estão lá a paleta de cores tradicional, os travellings usuais, os diálogos e personagens excêntricos. Tudo como manda a cartilha do realizador desde sempre. E eu pergunto a vocês, será que essa fórmula, um dia, não vai enjoar? Bom, enquanto o novo projeto não chega as salas brasileiras - a obra deve aportar por aqui em agosto - a gente mantém a expectativa para a história que, de acordo com o material de divulgação, se passa numa cidade fictícia do deserto americano nos anos 50. Lá, uma convenção de astrônomos organizada para reunir estudantes de todo o País - uma competição escolar de bolsas de estudos - é interrompida por "eventos espetaculares que podem impactar e transformar o mundo".

Como de praxe na filmografia do diretor, um dos destaques é o numeroso elenco, que conta com nomes de peso, como, Tom Hanks, Edward Norton, Steve Carell, Willem Dafoe, Margot Robbie, Maya Hawke, Tilda Swinton, Jason Schwartzman, Jeffrey Wright, Bryan Cranston, Hope Davis, Liev Schreiber, Rupert Friend, Jarvis Cocker, Hong Chau e Jeff Goldblum, isso só pra citar alguns! Ainda é cedo para saber se essa é uma produção de fôlego para chegar até a temporada de premiações - especialmente após a esnobada de A Crônica Francesa (2021), que passou de forma discreta pelo Oscar. De qualquer maneira há que se destacar que as obras de Anderson sempre são um atrativo a parte, justamente pela sua personalidade e identidade únicas. Em geral a gente curtiu o trailer. E está, naturalmente, Na Espera!


segunda-feira, 10 de abril de 2023

Tesouros Cinéfilos - Vestígios do Dia (The Remains of the Day)

De: James Ivory. Com Emma Thompson, Anthony Hopkins, Hugh Grant, Christopher Reeve e James Fox. Drama / Romance, EUA / Reino Unido, 1993, 134 minutos.

Em uma das tantas cenas tocantes de Vestígios do Dia (The Remains of the Day), o sisudo senhor James Stevens (Anthony Hopkins) - mordomo-chefe em uma casa de campo em Darlington Hall - é informado do falecimento de seu pai. O trágico comunicado chega em meio a um importante jantar promovido pelo lorde Darlington (James Fox), um evento pomposo prestigiado por lideranças políticas européias e que pode definir o futuro das nações envolvidas - o período é o entre-guerras. Ocupado com o seu ofício, realizado com rigoroso senso de servidão, senhor Stevens não para o que está fazendo. Aliás, mal tem tempo para escutar as condolências dos demais - como as que são concedidas pela governanta miss Kenton (Emma Thompson), com quem mantém uma relação turbulenta e que vai no limite entre o profissionalismo exagerado e algum tipo de admiração um tanto reprimida.

Sim, na casa de Darlington Hall as decisões em meio a mesas fartas e representantes de países como França, Alemanha e Inglaterra, sempre tomam por base certa discrição. Aliás, discrição que se estende ao grande grupo de serviçais que se ocupa de manter tudo em ordem. Miss Kenton vem para ocupar a vaga que foi deixada pela governanta anterior, que abandonou o trabalho em prol de um casamento com um outro empregado do local - no caso, um copeiro. Para evitar novos problemas, o senhor Stevens coloca o próprio pai, um idoso de 75 anos também chamado de senhor Stevens (Peter Vaughan), para cuidar de louças, bandejas e talheres. A coisa vai mais ou menos bem até o infarto que leva o senhor Stevens "sênior". E tudo piora quando a miss Kenton - uma figura carismática, que funciona como uma espécie de espírito mais livre em meio aquele cenário absurdamente conservador, fechado - resolve contratar duas jovens judias refugiadas da Alemanha. Para desgosto do lorde Darlington.


Por que o caso é que o senhor Darlington é, sem muito espaço para ambiguidades, simpático ao nazismo. E, de alguma maneira, a rigidez totalitária da ideologia extremista, parece contaminar o ambiente como um todo. Stevens parece, por extensão, incapaz de estabelecer um diálogo mais "leve" com miss Kenton. Tudo ocorre às turras, com comportamentos passivo-agressivos que quase descambam para o abuso psicológico. Abalada pela forma rude como é tratada pelo mordomo-chefe, miss Kenton aceita um casamento meio que de fachada para simplesmente sumir dali. E o caso é que, ao cabo, todos ali se arrependerão do que fizeram naquele passado de vinte anos atrás - do proprietário envolvido com um regime político problemático (pra dizer o mínimo), passando pelo mordomo-chefe, aparentemente incapaz de reduzir o ideal de sacrifício em seu ofício em prol de uma maior satisfação na vida pessoal, até chegar a governanta, que casa mesmo sem estar tão a fim assim de um matrimônio. Mas haverá tempo para corrigir a rota?

Com elegância, James Ivory se apropria do texto de Kazuo Ishiguro - no qual a obra é embasada -, para entregar uma experiência classuda, riquíssima em matéria de figurinos e cenários (o desenho de produção é não menos que soberbo e possui o DNA das obras de época típicas dos anos 90). [ATENÇÃO PARA OS SPOILERS] Já Emma Thompson e Anthony Hopkins comovem como o maior "não casal" da história do cinema - o que converte a famosa cena final, aquela em que as mãos tocam por um último instante enquanto ambos se olham e choram, em uma das dilacerantes da era moderna (e confesso que sempre que vejo esse instante um arrepio percorre a minha alma). É, ao cabo, um filme sobre um relacionamento que nunca se consuma e que serve como uma metáfora perfeita para a aspereza dos tempos de guerra - em que homens preferem morrer pelo seu ofício (não esqueçamos do pai de Stevens) do que baixar as armas e... amar. O filme receberia oito indicações ao Oscar, permanecendo eternizado como uma ode às paixões platônicas. Independente de idade.


terça-feira, 4 de abril de 2023

Cine Baú - A Noite Americana (La Nuit Américaine)

De: François Truffaut. Com Jacqueline Bisset, Valentina Cortese, Dani, Alexandra Stewart, Jean-Pierre Aumont e François Truffaut. Drama / Comédia, França / Itália, 1973, 116 minutos.

Quando pensamos em François Truffaut parece ser meio inevitável nos vir a mente a imagem do diretor de cinema "cabeçudo", que integrou a Nouvelle Vague e que entregaria ao mundo obras-primas do movimento, como Os Incompreendidos (1959) ou Jules e Jim: Uma Mulher Para dois (1962). Mas há um outro lado do realizador que, por vezes, é meio ignorado e que envolve uma capacidade única para a concepção de obras íntimas, cotidianas, diretas. Sim, Truffaut era um teórico do cinema - escritor do semanário Cahiers Du Cinéma - e talvez fosse bastante natural a adoção de um espírito mais transgressor na hora de produzir filmes. Mais quebrador de lógicas ou de padrões. E não é que isso não se aplique ao A Noite Americana (La Nuit Américaine), mas poderia haver filme mais classicamente genérico (no melhor sentido) do que esse? A ponto de o próprio diretor debochar desse ideal de erudição que costuma rondar projetos do movimento?

Em certa altura da trama, o diretor de cinema Ferrand (o próprio Truffaut) é perguntado por um produtor se ele não gostaria de fazer um filme político. Ou quem sabe um filme erótico, pra ficar em outro modismo? Só que Ferrand está elaborando um suspense agridoce intitulado A Chegada de Pâmela - que não faria feio na temporada de verão de Hollywood. Sim, o filme dentro do filme é esquemático, repleto de amenidades, até meio piegas. E, de alguma forma, esse sentimentalismo se refletirá no comportamento de grande parte das pessoas que trabalham com ele - com todos os imprevistos que vão de astros com ego excessivamente inflado até chegar ao calendário apertadíssimo de filmagens. Fazer um filme, ao cabo não é fácil e Ferrand precisa lidar com toda a sorte de percalços. O orçamento é pequeno. Os problemas pessoais afetam a todos - traições, intrusões, doenças e outras questões mundanas. Mas a magia da câmera ligada não pode parar.


Aliás, é preciso que se diga que poucas vezes um filme foi tão realista e até mesmo afetuoso na abordagem do que ocorre nos bastidores, com seus improvisos, ajustes, logística necessária. A própria noite americana em si é uma técnica de filmagem que utiliza um filtro noturno nas tomadas de dia. A sequência com neve transparece magia. A da chuva que bate na janela é prosaica e divertida. Assim como toda a cena inicial em que um grande número de figurantes é coordenado, até o impactante instante em que um sujeito agride o outro em plena praça pública. O vai e vem, as idas e vindas. Há uma coisa lúdica e envolvente, que nos deixa sobressaltados o tempo todo. De alguma forma Truffaut parece gritar que fazer um filme não é tarefa fácil. Mas sem deixar de observar o prazer advindo da experiência. O fascínio. Um filme sobre fazer filme é sempre algo que magnetiza. E em A Noite Americana há toda uma simplicidade evocativa desses elementos formidáveis. Que desconstroem os astros. E que os humanizam.

Em uma cena, por exemplo, há todo um esforço comovente da equipe para que um simples gato consiga tomar leite de um pires. Ou para que uma veterana atriz consiga abrir a porta certa na conclusão de uma sequência. E qual o tamanho ideal para um revólver em um momento que se pretende violento? São instantes que formam essa colcha de retalhos de um universo que vai no limite entre o sonho e a realidade, a abstração e a materialidade. Vencedora do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro na cerimônia daquele ano, a obra segue inesquecível como exercício de linguagem, com grande riqueza de detalhes, citações a obras diversas e um elenco afiadíssimo em suas tiradas com senso de humor exótico. "Fazer um filme é como um passeio de diligência no velho oeste. Quando você começa, espera uma viagem agradável. Na metade do caminho, você só espera sobreviver", afirma Ferrand ainda no terço inicial. Para o espectador, essa viagem não poderia ser mais agradável.


Pitaquinho Musical - The New Pornographers (Continue as a Guest)

Depois do lançamento de clássicos do power pop moderno como Mass Romantic (2000) e Twin Cinema (2005) e mantendo uma certa regularidade dentro de uma carreira de mais de 20 anos, é meio natural nos perguntarmos se o The New Pornographers ainda tem lenha pra queimar. A resposta é sim - ainda que as coisas possam ter mudado, naturalmente. Com Continue as a Guest é possível perceber que o DNA do coletivo canadense segue todo lá, seja nas guitarrinhas cheias de fuzz, nas melodias efervescentes, nos vocais multiplicados ou nas letras que operam como fluxos de consciência excêntricos e irônicos. Talvez a diferença agora é que Dan Bejar, Neko Case e companhia não sejam mais os jovens de vinte e poucos anos, que tinham aquela pressa graciosa que convertia os aspectos aleatórios do mundo a em canções pop simplesmente perfeitas como The Bleeding Heart Show ou The Slow Descent Into Alcoholism.



Não, não significa ficar chato ou excessivamente autocomiserativo, afinal a banda já tinha tirado o pé do acelerador anteriormente, como no caso do econômico Challengers (2007). Só que muita coisa aconteceu e segue acontecendo - de pandemia à guerras, com uma paradinha na ascensão política da extrema direita. Nesse sentido parece haver uma alteração uma necessidade de reconfigurar a rota - o que envolve a experiência e a trajetória da própria banda. De alguma maneira isso fica bastante claro na faixa-título, que rumina sobre a necessidade de continuar, mesmo em um cenário de desolação (A maioria de nós não pode se dar ao luxo de desistir / Se você está falando em desistir, bem, isso é outra coisa / É um sol, ele vai se por, isso não é uma merda quântica). Ok, há aqui e ali espaço para algum movimento a mais, como no caso das animadas Bottle Episodes e Really Really Light. Mas em geral há um charme em envelhecer. Que se encaixa direitinho com a proposta delicadamente vagarosa desse disco.

Nota: 8,0